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Série Cris

Seu Para Sempre

Editora Betania
Digitalização: deisemat
SEU PARA SEMPRE
1

ROBIN
JONES
GUNN
O Presente
1
Cris Miller, garota de quinze anos de idade, estava de pé no canto do ginásio de

esportes, sentindo-se meio tensa.

- Tá vendo, Katie? Não falei que ele não estaria aqui?!, disse ela, em voz baixa.

- Acredite em mim, Cris. O Rick afirmou que viria jogar basquete hoje à noite,

aqui na igreja. Já deve estar chegando, disse Katie, balançando o cabelo cor de cobre, ao

virar-se para olhar a entrada.

- Bem, mesmo que ele venha, não vou entregar este presente de Natal. Foi uma

péssima idéia, replicou Cris, guardando o pequeno embrulho dentro da bolsa.

- Não foi não!

- Foi sim, Katie! Mal conheço o Rick. Não devia estar correndo atrás dele para lhe

dar um presente, disse Cris, sentindo o rosto queimar e um calor no corpo todo.

E passando rapidamente o dedo nas pálpebras, perguntou:

- Minha maquiagem está manchada?

Katie fitou os olhos azul-esverdeados de Cris.

- Não, nem um pouco. Não dá pra notar que você se maquiou.

- Talvez eu deva ir ao banheiro passar mais um pouquinho.

- Cris, pare com essa infantilidade. Você tem uma beleza natural, e o Rick sabe

bem disso, disse Katie, colocando as mãos na cintura. Você tem "fugido" do Rick Doyle

desde que o conheceu. Agora que ele finalmente está mostrando interesse por você, por

que não fica quietinha e deixa que ele se aproxime?

Cris olhou à sua volta, evitando responder à pergunta. A verdade era que ela se

derretia toda com apenas um olhar do Rick. Sentia-se bem ao lado dele, principalmente
quando estavam provocando um ao outro com brincadeiras. Contudo ficar ali parada,

esperando que ele aparecesse, deixava-a desconcertada.

No ginásio de esportes da igreja ecoava o barulho das bolas de basquete batendo

no chão, e os gritos dos atletas que se aqueciam para a habitual noite recreativa de

sexta-feira. As únicas outras garotas que Cris viu ali estavam sentadas num grupinho na

arquibancada.

- Katie, me arrependi de ter vindo, disse Cris, passando a mão no cabelo cor de

noz moscada, quase na altura do ombro. Não sou esportista como você. Estou

totalmente deslocada aqui.

A expressão do rosto de Katie de repente iluminou-se.

- Não olhe agora, murmurou, mas ele está bem ali!

- Ele nos viu? Está vindo pra cá? perguntou Cris, sentindo o coração bater tão alto

como o som das bolas de basquete no chão do ginásio.

Katie parecia contente.

- A resposta é sim e sim. Agora é com você. A gente se vê mais tarde.

- Katie! gritou Cris, enquanto a amiga saía correndo, quicando uma bola,

atravessando o ginásio e entrando numa fila de jogadores para fazer lançamentos na

cesta de basquete.

-Olá!

Cris ouviu uma voz grave atrás de si. Virou-se devagarinho, e seu olhar encontrou

os olhos castanhos de Rick. Seu cabelo escuro e ondulado estava ainda mais bonito.

- Olá, respondeu ela, sentindo-se miúda apesar do seu metro e setenta de altura, ao

lado do metro e noventa e cinco dele.

- A Katie disse que você viria aqui hoje.

- E você veio só pra me ver, certo? disse Cris, deixando de lado o nervosismo e

começando a agir de maneira despreocupada, flertando com ele, como vinha fazendo

ultimamente, sempre que o encontrava.


- Estava contando os segundos para encontrar-lhe, respondeu Rick, entrando na

brincadeira.

- Ah é? E quantos segundos contou?

- Bilhões.

- Não sabia que você conseguia contar tão alto, brincou Cris. E, ainda brincando,

Rick pegou-a pelo cotovelo.

- É assim que se fala com o único cara que lhe trouxe um presente de Natal?

- Você trouxe?

Cris sentiu-se enrubescer com a surpresa. Talvez fosse verdade o que todo mundo

vinha dizendo. Talvez o Rick estivesse mesmo gostando dela.

- Talvez, respondeu ele sorrindo. Depende. Você foi uma boa menina este ano?

- Ah sim, Papai Noel. Tenho sido muito boazinha.

- Nesse caso, acho melhor você vir ao meu trenó agora para pegar o seu presente.

Ainda mais que meus ajudantes me informaram que você pretende viajar amanhã.

- É, vou com minha família pra casa dos meus tios, em Newport Beach. Mas só

vamos ficar lá uma semana.

- Uma semana? perguntou Rick, colocando a mão no peito como se estivesse

sofrendo um ataque cardíaco. Sabe quantos bilhões de segundos existem numa semana?

Cris deu uma risada.

- Não. Quantos?

- Não sei. Por isso é que perguntei. Não sei contar tão alto, lembra?

Cris deu um tapa de brincadeira no ombro de Rick, e depois seguiu-o para fora do

ginásio, até o estacionamento. Era uma noite agradável, típica da Califórnia. Rick estava

de short e uma blusa de malha amarela e capuz. Ela sentia-se vestida demais com sua

calça marrom e camisa branca, abotoada até a gola, onde havia um broche antigo de

ouro que sua avó lhe dera.

Ficaram fazendo gozação um com o outro até chegarem ao Mustang vermelho-


cereja do Rick. Desde o dia em que ele lhe dera uma carona da Pizza Hut até sua casa,

havia dois meses, ela vivia olhando em volta - na escola e na igreja - para ver se

encontrava seu carro. Geralmente estava cheio de gente, e Rick andava tão ocupado

com seu fã-clube que não a notava olhando-o de longe.

Entretanto, duas semanas atrás ele puxara conversa com ela na igreja e, desde

então, sem saber bem por que, os dois começaram a disputar quem provocava mais ao

outro. Conversavam todos os dias, e as pessoas começaram a perguntar a Cris se

estavam namorando.

Agora, de pé ali no cantinho do estacionamento, em frente ao carro dele, tudo

parecia tão silencioso depois da barulheira do ginásio de esportes... Rick abriu a porta

da frente, abaixou-se e pegou um embrulho de presente, com uma enorme fita vermelha.

- Pra você, disse.

- Não precisava, Rick!

- Eu sei, eu sei.

- Será que abro agora?

Ela estava empolgada e cheia de curiosidade. Sentia-se aliviada por ter trazido um

presente para ele também.

- Claro, abra! Viva perigosamente, disse ele, cruzando os braços. Sinceramente, eu

não sabia o que comprar. Minha irmã sugeriu um livro. Ela disse que a maioria das

garotas gosta de ler.

Cris abriu o presente, que era mesmo um livro. Levantou-o para ler o título à luz

fraca: Cento e doze utilidades para um hamster morto. Sua empolgação murchou.Que

presente mais esquisito! Será que ele pensou mesmo que ela gostaria de ganhar um livro

de piadas como presente de Natal?

Rick sorriu:

- Consegui uma das poucas cópias que sobraram. Este ano vai ser um best-seller.

- Rick, você tá doido?!


Cris teve vontade de jogar aquele livro esquisito nele.

- Dê uma olhadinha no número quinze, disse ele, virando as páginas. É o meu

predileto. Veja só, você dobra um cabide, coloca um hamster em cada ponta e faz um

protetor de orelhas.

Cris não olhou a ilustração, mas encarou-o. Ele fitou-a também e em seguida

bateu na testa com a palma da mão, dizendo:

- Puxa vida! Como pude ser tão bobo? Você já tem este livro, certo?

Cris caiu na risada.

- Você é tão estranho, Rick Doyle! É o cara mais esquisito da face da terra!

- É por isso que preciso de uma pessoa como você: bonita, charmosa, que pode me

influenciar com sua boa educação.

Cris parou de rir. Ficou quieta, olhando para ele, os olhos azul-esverdeados

procurando decifrar os dele. Como ele conseguia fazer isso? Provocá-la sem dó e logo

em seguida elogiá-la.

- Você é mesmo. Quer dizer, charmosa, falou ele e aproximou-se mais de Cris e,

com voz abafada, completou: na verdade, o que eu queria lhe dar não se pode pôr numa

caixa.

- É mesmo? E o que é? perguntou Cris, sentindo-se meio tensa. Não estava

acostumada a falar sério com ele.

- Isto.

Rick puxou-a pelos ombros, curvou-se ligeiramente e deu-lhe um beijo. Então

ergueu-se novamente e olhou em volta, como se estivesse verificando se alguém os

tinha visto.

Cris engoliu em seco e tentou não parecer tão chocada. Por que ele fez isso? E

agora? O que é que digo? O que é que eu faço?

Rick ficou parado, na expectativa da reação de Cris.

- Eu... ééé... também lhe trouxe um presente, disse ela.


- Ah é? perguntou ele, com um sorriso meio de lado.

-Aqui, disse Cris, tirando da bolsa a fita cassete embrulhada para presente e

entregando-lhe. Espero que você ainda não tenha esta.

O sorriso de Rick desapareceu. Parecia desapontado por ela ter reagido como se o

beijo nem tivesse acontecido.

Será que ela deveria ter esperado mais antes de dar-lhe o presente? Cris sentia-se

sem jeito e pouco atraente.

Rick abriu o presente e disse com pouco entusiasmo:

- Ah, obrigado. Ainda não tenho esta.

Os sentimentos estranhos e desconcertantes que dominaram Cris quando Rick a

beijou começaram a evaporar-se. Ela ficou pensando que agora eles iriam voltar para o

ginásio, como se nada demais lhes tivesse acontecido. Seriam apenas amigos novamente

e voltariam a flertar um com o outro. O clima embaraçoso entre eles desapareceria, e

tudo voltaria a ser divertido novamente.

- Muito obrigado, Cris. Foi muito legal da sua parte, disse Rick, jogando a fita no

banco da frente do carro e trancando a porta. Colocando então as chaves no bolso,

murmurou: Mas eu estava com esperança de que o seu presente também fosse do tipo

que não se põe numa caixa.

O coração de Cris começou a bater mais forte. Ele queria beijá-la de novo. Mas

será que ela queria? Será que aquilo fazia parte da brincadeira, e agora seria sua vez de

tomar uma atitude?

Antes que ela conseguisse coordenar os pensamentos, Rick deu-lhe outro beijo.

Mais longo que o primeiro.

Ela afastou-se depressa. Ele estava indo rápido demais, e isso estava

desconcertando-a. O que será que ele estava pensando? Ela abaixou a cabeça, e ele

soltou-a, colocando as mãos nos bolsos.

Ficaram ali parados, em silêncio. O coração e a mente de Cris estavam


tumultuados, cheios de idéias contraditórias.

- Bem, acho melhor a gente voltar, disse Rick, limpando a garganta e apontando

para o ginásio com um aceno de cabeça.

A expressão do rosto dele demonstrava que estava magoado. Ou zangado. Ou as

duas coisas. Cris não sabia o que dizer. Os dois saíram dali caminhando rapidamente.

Um clima de tensão pesava entre eles.

De volta ao ginásio, Cris sentia-se como se as cenas ao seu redor estivessem se

passando em câmera lenta. Não conseguia parar de pensar no que acabara de acontecer.

O que será que deu errado? Todas as garotas que ela conhecia eram loucas pelo Rick.

Ela também gostava dele. Sentia-se bem quando estavam juntos e quando as pessoas os

viam assim. Gostava de provocá-lo e das brincadeiras que ele fazia com ela. Ele tinha

um jeito de ser diferente de todos os outros rapazes que ela já conhecera. E além disso,

era tão bonito!... E quando a olhava, tendo nos lábios aquele sorriso meio de lado, ela

também se sentia bonita.

É verdade que ela ficara imaginando como seria se eles se beijassem. Mas o que

aconteceu no estacionamento foi bem diferente do que esperava. O beijo que sonhara

era doce, inocente e romântico, como o que Ted lhe dera nas férias passadas, em

Newport Beach. Fora bem no meio da avenida, com todo mundo olhando, e ela sentira

uma emoção tão grande, que a deixara radiante de felicidade.

Com Rick, sentiu-se meio assustada e desconcertada, como se eles estivessem

escondendo-se de todos naquele estacionamento escuro. Não estava preparada para o

que acabara de acontecer.

Agora, ali no ginásio, durante todo o tempo em que Rick jogava basquete, Cris

não tirava os olhos dele. Ele, entretanto, nem olhava para o lado onde ela estava. Será

que ele também estava confuso? Ou zangado? Será que ela estragara tudo por não ter

tido uma reação que demonstrasse que gostava dele?

Resolvida a conversar com ele antes de ir embora, Cris foi para perto da saída e
ficou esperando. Rick passou por ela, discutindo com um rapaz sobre quem cada um

deles deveria ter marcado na última jogada, e nem olhou para ela.

Pior de tudo foram as perguntas de Katie na volta para casa.

- Então ele lhe deu um livro bobo. E daí?

- Aí eu dei a fita cassete pra ele.

Cris não queria contar mais detalhes, ainda mais que a mãe de Katie estava ali,

dirigindo o carro e escutando tudo.

- E então, ele gostou da fita?

- Disse que sim.

- Então o que é que houve de errado com vocês hoje? Ele passou pertinho de você

quando estava indo embora, e nem se despediu...

- Não houve nada, Katie. Nós somos apenas amigos, disse Cris, assumindo uma

atitude defensiva. Katie deu um tempo e mudou de assunto.

- E então? Quando é que você vai pra casa de seus tios?

- Amanhã. Voltaremos no dia 1° ou 2 de janeiro.

- O Ted telefonou? Você vai vê-lo na semana que vem?

- Não sei, Katie. Ele ainda não telefonou, respondeu Cris, sentindo as palavras lhe

doerem no coração.

Katie calou-se novamente.

Na semana anterior, as duas haviam discutido sobre o Ted. Katie aconselhara Cris

a esquecê-lo - já que fazia meses que ele não escrevia nem telefonava - e a dar em cima

do Rick, que começara a demonstrar um interesse repentino por ela.

Cris argumentara que seu relacionamento com Ted era tão sólido que mesmo que

eles não se vissem durante meses, ainda assim poderiam continuar de onde tinham

parado nas férias passadas. Nada teria mudado entre eles.

Agora ela estava prestes a confirmar se o que dissera era realidade ou não. No dia

seguinte faria uma viagem de carro, de uma hora e meia, de Escondido a Newport
Beach. Iria com os pais e o irmão David, de oito anos de idade, para a casa dos tios Bob

e Marta. Ted estaria lá, morando na casa do pai dele.

E então, o que será que iria acontecer? Será que Ted se lembraria que em outubro

telefonara e a convidara para tomar um café da manhã na praia, quando ela fosse a

Newport Beach? Será que o relacionamento deles ainda seria como antes? E o que

aconteceria com o Rick enquanto ela estivesse fora?

Ao chegar em casa, Cris refugiou-se no quarto. Pegou na penteadeira uma lata

decorativa e, virando-a, despejou sobre o edredom amarelo uma porção de cravos secos.

Era o que restara do buquê de cravos brancos que Ted lhe dera no dia em que a beijara.

Revirando entre os dedos uma das pétalas secas, Cris murmurou:

- Senhor, como irá ficar meu relacionamento com o Ted? Como devo agir em

relação ao Rick? Até hoje tudo parecia tão bem!... Será que o Senhor se interessa por

essas pequenas coisas? Claro que sim. O que é que estou dizendo? O problema é que tu

não falas comigo pra me dizer o que devo fazer. Assim seria tão mais fácil...

Fazendo uma pequena pausa, ela apertou uma flor contra a bochecha e, então,

continuou:

- Gostaria de ter uma segunda chance com o Rick e começar de novo, sem deixar

que as coisas se compliquem. Gostaria também que o meu relacionamento com o Ted

continuasse como era nas férias passadas. É isso que quero no Natal, Senhor. Ah, mais

uma coisa: quero te agradar e não fazer nada que entristeça ao Senhor ou a qualquer

outra pessoa.

Preparando-se para ir dormir, Cris pensava se agira corretamente ao apresentar a

Deus aquela lista de pedidos, como se ele fosse Papai Noel.

Pelo menos fui sincera. Não quero esconder nada de Deus. Ele sabe tudo

mesmo!

Então, deslizando sobre o lençol macio, ela cobriu-se com o edredom, apertando-o

bem sob o queixo, e ficou segurando um cravo seco, até dormir.


Uma Promessa Cumprida
2
- Está pronta, Cris? perguntou seu pai, batendo na porta do quarto.

- Já estou indo, respondeu ela, agarrando a bolsa e a necessaire com cosméticos, e

correndo para o carro.

Sua mãe, uma senhora baixa e gordinha, em pé ao lado da porta da frente, ajeitou

uma mecha de cabelo branco que saíra do lugar.

- Norton, disse ela, você devia levar sua Bíblia. Não sei se Bob e Marta têm uma

em casa.

- Talvez devêssemos ter comprado uma Bíblia, em vez da caixa de queijos

importados, respondeu ele, com voz forte e grave.

Cris sabia que ele estava brincando. Sua mãe tivera dificuldade de encontrar um

presente adequado para Bob e Marta, pois o casal tinha tudo. No dia em que chegou do

shopping com uma caixa enorme de queijos importados, embrulhada para presente, por

alguma razão ele achou aquilo muito engraçado, e vinha mexendo com ela por esse

motivo havia dias.

- Cris, disse sua mãe, ignorando a gozação do marido, faça o favor de colocar o

resto das coisas no carro e diga a seu irmão que estamos saindo!

Cris encontrou David no quintal, em cima de uma árvore, e convenceu-o a descer.

David era um menino grande, de cabelo castanho-avermelhado e parecia-se com o pai.

Tinha começado a usar óculos havia algumas semanas e estava desenvolvendo o hábito

de franzir o nariz para evitar que escorregassem.

Cris achava aquilo horrível, e vivia falando: "Não faça isso, David!" Aí ele franzia

ainda mais o nariz e perguntava: "Não faça o quê?"


Ele repetiu o gesto umas vinte vezes durante a viagem. Finalmente, Cris disse:

- David, você está parecendo um hamster.

- Não to não! replicou ele imediatamente. Mãe, a Cris me chamou de hamster!

- Vocês dois não vão começar agora, né? Estamos quase chegando. Olhem só para

o mar. Não é lindo? Está com uma cor tão diferente hoje! Parece de vidro, disse a mãe.

- Sinto falta da neve, disse David, fazendo beicinho. Sem neve não parece Natal.

- Isso é porque você nunca teve de passar quatro horas no dia do Natal tirando

neve da frente da garagem com uma pá, para poder sair com o carro, disse o pai. Não

sinto a menor falta disso.

A mãe sorriu e, estendendo a mão, apertou o ombro do marido. Cris sentiu uma

satisfação interior. Fazia anos que não via os pais tão contentes. As coisas tinham sido

muito difíceis para eles na fazenda no Wisconsin. Contudo, desde que se mudaram para

Escondido, em setembro, a família estava muito mais unida. As maiores transformações

que Cris notou nos pais ocorreram depois que eles começaram a freqüentar a igreja e a

participar de um grupo de estudo bíblico em lares. Estavam adaptados ali, tranquilos e

felizes.

- Posso ir à praia na hora que chegarmos lá? perguntou David.

- Vamos ver... respondeu a mãe.

*****

Bob recebeu-os à porta de sua luxuosa casa, com vista para a praia de Newport.

- Bem-vindos! Bem-vindos, todos vocês! Feliz Natal! Entrem, entrem.

Ele estava com um colete vermelho e uma gravata borboleta da mesma cor, com

luzinhas brancas que acendiam e apagavam.

- Legal! exclamou David, tocando na gravata borboleta. Como é que você faz

isso?

Bob apontou para o bolso direito da calça, mostrando uma caixinha com pilhas.
Então levantou o colete, revelando o fio que a ligava à gravata.

- Nós, os caras dos efeitos especiais, nunca revelamos nossos segredos, disse com

uma piscadela para David. Mas talvez tenhamos mais um desses apetrechos por aqui.

Quem sabe?...

Marta veio correndo.

- Por que não me avisou que eles estavam aqui, querido? Entrem, entrem.

Ela estava usando um suéter grande, com aplicação de uma árvore de Natal cheia

de enfeitinhos de lã amarrados.

Cris deu uma olhada rápida em sua família, todos de jeans e blusas amarrotadas.

Começou então a perturbar-se com sentimentos de inferioridade e vergonha. Entretanto,

como sua mãe não parecia estar-se incomodando, resolveu fazer o mesmo.

Entraram na sala, e todos admiraram os enfeites elegantes. Tudo era branco,

inclusive um conjunto novo de sofás de três e dois lugares. Havia guirlandas brancas e

prateadas dependuradas na imensa janela e acima da lareira. Perto da janela havia uma

árvore coberta de flocos brancos, abarrotada de bolinhas prateadas e enfeites em forma

de carneirinhos, com dezenas de presentes em sua base.

- Cris, lembra-se de quando escolhemos esses enfeites de carneirinhos em San

Francisco, nas férias passadas? Não ficou lindo?

- Está bonito mesmo, tia Marta, respondeu Cris educadamente.

No fundo ela sentia falta do cheiro de pinheiro vivo e das fileiras de pipoca e

frutinhas vermelhas que costumavam enfeitar a árvore de Natal que faziam em casa.

- Trouxemos nosso presépio, disse Cris. Podemos armá-lo na mesa de café?

- Acho que sim, disse Marta devagar. Desde que não arranhe o vidro, querida.

- Pode deixar que vou tomar cuidado.

O pai de Cris foi tirar as malas do carro, a mãe foi ajudar na cozinha, e ela foi

montar o presépio. Enquanto trabalhava nisso, volta e meia dava uma olhadinha pela

janela, vendo a praia lá fora. Não parava de pensar no Ted. Onde estaria ele agora?
Quando telefonaria? Será que iria procurá-la? Será que tomariam mesmo aquele café da

manhã na praia, como ele prometera? A essa altura, ela nem se lembrava de Escondido,

do Rick e da Katie. O que lhe interessava agora era Ted e os seus amigos que conhecera

nas férias passadas.

A família sentou-se à mesa da cozinha para jantar. Havia sopa e salada. Enquanto

tomavam a sopa francesa de cebola, Marta explicou:

- Planejei um jantar bem levinho, porque tem tanta coisa pra se comer aqui hoje!

Imaginei que ficaríamos beliscando até tarde da noite. Muitos amigos nos presentearam

com comida este ano. E deve ter havido uma liquidação de queijos em alguma loja,

porque ganhamos três caixas de queijos importados!

O pai de Cris tentou conter uma gargalhada, mas não conseguiu. Acabou

espirrando sopa por toda a mesa. Então inclinou a cabeça para trás, soltando uma risada

contagiosa. David ria como um louco e fingiu cair da cadeira para chamar ainda mais a

atenção. Cris dava risadinhas incontroláveis. A pobre mãe parecia prestes a chorar, mas

depois, devagarinho, foi começando a rir também...

- Será que foi alguma coisa que eu disse? perguntou Marta, confusa, sem saber se

eles estavam rindo dela ou de alguma coisa que dissera sem querer.

Olhou para o marido como a pedir socorro. Bob, sempre gentil e sábio, continuou

tomando sua sopa calmamente.

- Talvez entendamos melhor quando abrirmos o presente deles hoje à noite, disse

ele, dando uma piscada para a mãe de Cris. Pessoalmente, gosto muito do queijo de

Brie.

Marta ainda parecia confusa, mas assim que todos pararam de rir, voltou a agir

como se estivesse no controle da situação.

- Acho que deveríamos abrir os presentes hoje à noite, disse ela. Assim poderemos

dormir até mais tarde amanhã e ter nosso almoço especial de Natal à uma da tarde. A

que horas vocês precisam voltar para Escondido?


- Eu e Norton temos de trabalhar depois de amanhã cedo, então vamos tentar sair

daqui lá pelas cinco ou seis da tarde, disse a mãe de Cris.

- Isso me faz lembrar uma outra coisa, disse o pai, inclinando-se sobre a mesa,

balançando a colher e apontando-a na direção de David e Cris. Vocês dois vão ficar aqui

com seus tios na próxima semana, mas não se esqueçam de que eles não tinham

obrigação nenhuma de convidá-los. Tratem de encaixar-se nos planos deles, viu?! Nada

de ficar inventando moda!

Os dois acenaram concordando.

- Muito bem, disse ele, colocando a colher de volta no prato.

Então Cris desligou-se do papo do pessoal e começou a sonhar acordada com o

momento em que encontraria o Ted, imaginando como seria.

Aquela noite, todos reuniram-se na sala, em frente à lareira. Antes de atacar o

monte de presentes, o pai de Cris ofereceu-se para ler a história do Natal, no Evangelho

de Lucas. Ele fazia isso todos os anos, desde que Cris era pequena, e ela sabia a

passagem quase de cor.

Entretanto este ano tudo era diferente para Cris. Não só porque estavam na casa

dos tios, mas porque agora ela realmente conhecia a Jesus. Não o via mais apenas como

um nenezinho na manjedoura. Nas férias passadas, ela havia entregado a vida a Cristo,

consagrando-lhe todo o coração. Ele era real para ela, e seu Espírito habitava nela.

- Que lindo! É bom lembrar o verdadeiro sentido do Natal, disse Marta, quando

Norton terminou de ler. Então ela endireitou-se na poltrona e apontou para um pequeno

pacote. David, você será o primeiro, está bem? Foi uma dificuldade encontrar este

presente. O preço subiu muito desde que comprei o do Bob há três anos, mas eu sabia

que o David iria gostar.

David rasgou o papel e era uma gravata borboleta, com pisca-pisca.

- Legal! exclamou. Como é que a gente liga, tio Bob?

Isso foi só o começo. Ficaram ali mais de duas horas, abrindo presentes e mais
presentes caros.

Ao lado de Cris, no sofá, havia uma pilha de coisas maravilhosas: roupas,

perfume, maquiagem, um CD player e um walkman AM/FM. Entretanto, embora ela

achasse aquilo muito legal, sentia que era meio vazio. Já havia vivenciado com os tios

esse tipo de situação - dinheiro e presentes - e nunca se sentira muito bem com isso.

Agora mesmo, o que ela realmente queria era que seu pai lesse novamente a narração

bíblica sobre os anjos e os pastores.

Além disso, Cris estava meio chateada também porque ninguém demonstrara

muito entusiasmo pelas camisetas que ela dera. Ela e Jane, uma amiga de Escondido,

haviam passado três dias pintando-as. Tinham comprado tinta, estênceis e camisetas

lisas, e ela gastara nisso todo o dinheiro que tinha. Divertiram-se bastante, e Cris ficara

satisfeita com o resultado.

Contudo agora, observando a tia segurar a blusa de flores amarelas e alaranjadas

tão cuidadosamente pintadas, percebeu que fora um desperdício. Marta jamais usaria

aquela peça.

Pelo menos David gostou da dele. Tinha a estampa de um surfista em cores bem

vivas.

Bob tirou um envelope de um dos galhos da árvore de Natal e entregou-o a Cris.

- Feliz Natal para nossa querida sobrinha! disse ele.

Era uma caderneta de poupança no nome de Cris, no valor de cinco mil dólares.

Ela engoliu em seco e mostrou a caderneta para os pais.

- Bob, disse Norton com voz seca, isso aí é demais. Não podemos aceitar...

Parecia ofendido e zangado ao mesmo tempo.

- Deixe-me explicar, disse Bob calmamente. Um dos meus investimentos

imobiliários lá no Rancho Califórnia rendeu bem mais do que eu esperava este ano.

Achei que seria proveitoso para mim reinvestir esse dinheiro numa causa promissora,

que valesse a pena: o futuro da Cris. Registrei essa conta como um fundo para a
faculdade. Ela só pode mexer no dinheiro depois que completar dezoito anos. Não sei

como os jovens conseguem cursar uma boa faculdade hoje em dia sem um pezinho de

meia.

A mãe de Cris parecia que ia chorar. O pai ainda estava com uma expressão

zangada.

- Acreditem, se aceitarem vocês estarão prestando-me um lavor. Abrindo uma

conta para bolsa de estudos, posso abater nos impostos.

A mãe de Cris sorriu e olhou para o marido. Ele agradeceu com voz rouca. Cris

levantou-se e deu um beijo no rosto do tio.

- Muito obrigada, disse sorrindo.

- Que chateação! disse David. Todo esse dinheiro e ela só pode mexer nele quando

fizer dezoito anos!

- David! repreendeu-o a mãe.

Bob riu e tirou outro envelope da árvore.

- Essa "chateação" é para você, David. Você também só poderá receber seu

dinheiro quando completar dezoito anos. Calculo que em dez anos, deve dar um bom

rendimento.

- Puxa vida! Mil dólares! exclamou David, olhando o total. Será que eu podia tirar

só um pouquinho pra comprar uma bicicleta nova?

- Não! exclamaram os pais.

- Bob, disse Marta, animada. Por que não entregar o último presente do David?

Bob puxou uma caixinha de cima de um galho e entregou-o ao sobrinho, que

abriu-a, tirou um bilhete e leu em voz alta:

"Vá ao armário do corredor e veja o que Papai Noel deixou para você!"

Todos foram com ele até o armário. Ele abriu a porta e encontrou no chão um

enorme laço, com uma fita comprida que passava por cima da porta e continuava pelo

chão da cozinha.
- Que legal! exclamou David.

Então todos o seguiram. Atravessaram a cozinha, passaram pela sala de jantar,

voltaram novamente à cozinha, partiram então para a lavanderia e, enfim, chegaram à

garagem. Bem no meio dela, havia uma bicicleta nova, com um grande laço branco.

David pulou e gritou de alegria, e todos fizeram tanto barulho que Cris só percebeu que

o telefone estava tocando quando Bob lhe disse:

- Você pode atender o telefone, Cris?! Deve ser a sua avó. A garota correu até a

cozinha e atendeu animada:

- Feliz Natal!

- Olá, como vão as coisas?

-Ted?

- Sim, sou eu. Tudo bem com você?

- Oi! Você está na casa do seu pai?

- Estou.

- E está tendo mesmo um "Feliz Natal"? perguntou ela, achando a própria

pergunta meio boba.

- Médio. Ei, quer tomar café da manhã comigo na praia amanhã?

- Na manhã do Natal?

- Não sabia se você e sua família tinham planejado alguma coisa, então resolvi

arriscar o convite.

- Sim, quer dizer, não. A idéia era dormir até mais tarde. Vou perguntar aos meus

pais rapidinho, tá bem? Dá só um tempinho. Não desliga não.

Cris correu até a garagem, sem fôlego. Como ia pedir-lhes isso? Será que seus

pais entenderiam o quanto significava para ela?

- Mãe? começou Cris, interrompendo a conversa dos adultos, que observavam

David andar em círculos com a bicicleta na garagem vazia. Mãe, um dos amigos que

conheci nas férias passadas está no telefone. Estão me convidando pra tomar café da
manhã com eles amanhã cedo.

- Na manhã de Natal?

- Bem, é que eu pensei que vocês iriam dormir até mais tarde...

Marta intrometeu-se na conversa.

- É isso mesmo que nós planejamos. Não vejo motivo pra você não ir.

- E onde vai ser esse café da manhã? perguntou a mãe.

- Na praia. Vamos preparar lá mesmo.

- Sei não, Cris, disse a mãe, hesitando. Bob aproximou-se e disse com voz calma:

- É totalmente seguro. A gente vê as churrasqueiras ali da janela da sala.

- Acho que não há problema. Vou perguntar ao seu pai. Norton, a Cris está

querendo ir tomar café da manhã na praia com uns amigos amanhã cedo. O que você

acha?

- Mas por que você quer fazer uma coisa dessa? perguntou ele, virando-se e

fitando a filha.

Cris deu uma olhadinha para a mãe, e para os tios. Todos olhavam para Norton

com expressão positiva.

- Ah, tudo bem. Pode ir sim, disse ele. Cris correu de volta ao telefone.

- Ted? Você ainda está aí?

- Sim.

- Tudo bem. Vou poder ir. A que horas nos encontraremos, e o que eu preciso

levar?

- Às sete é cedo demais?

- Não, está ótimo. O que é que eu levo?

- Já fui ao mercado e comprei bacon, ovos e suco de laranja. Lenha para a

fogueira nós já temos. Você só precisa vir. Cris sorriu.

- Tudo bem. Estou ansiosa pra te ver, Ted.

- É, vai ser bom te encontrar. Agora acho melhor desligar. Já tomei muito do seu
tempo. Não quero atrapalhar seu convívio com os familiares.

- Não se preocupe. Você não atrapalha. A gente se encontra amanhã cedo então.

- Até mais, disse Ted, desligando.

- Tchau, Ted. Te vejo amanhã, sussurrou Cris com o fone ainda no ouvido.
Alvorada de Dezembro
3

- O quê?! Quer dizer que vou ter de levar o David comigo? reclamou Cris.

- Eu e seu pai achamos que seria bom o David conhecer alguns dos seus amigos.

Ele não conhece ninguém por aqui. Já que vocês dois vão passar a semana com seus

tios, achamos que seria bom se ele pudesse fazer algumas amizades também.

- Mas, mãe! começou Cris, escolhendo as palavras com cuidado, não vai ter

ninguém por lá com a idade dele. Acho que ele não iria gostar. Não mesmo!

- Então cabe a você fazer com que ele goste. Já está decidido: ou vão os dois para

esse café da manhã maluco na praia, ou não vai ninguém! O que você prefere, Cristina?

- É, parece que o David vai comigo, disse Cris bem devagar.

- Ótimo, disse a mãe, dando-lhe um abraço e dirigindo-se para a porta do quarto.

Bons sonhos. E divirtam-se amanhã.

A mãe fechou a porta, deixando Cris sozinha no quarto que fora dela durante as

férias que passara ali, na casa dos tios. Ela deslizou sobre o lençol de algodão cor-de-

rosa e deu uns bons golpes de caratê no travesseiro.

- Não é justo! murmurou. David vai estragar tudo! Era pra ser só eu e o Ted! Há

semanas estou esperando esse café da manhã, e agora o David vai atrapalhar tudo!

No fundo, sabia que era sua culpa. Ela havia torcido um pouco a verdade com os

pais, dando a entender que seria uma reunião com um monte de amigos e não só com o

Ted. Se eles soubessem que seria só com o Ted, não teriam permitido que ela fosse. Ou

teriam? Em vez de abrir o jogo e perguntar, Cris tentou encobrir a verdade, e agora

estava enfrentando as consequências.


No entanto, dentro de poucas horas estaria com o Ted. Não podia deixar nada

estragar isso. Nem mesmo o David. Por que Ted esperou até o último momento para

convidá-la? Por que ele era tão desligado?

Ted, você é imprevisível! Me deixa tão frustrada! Por que você me

provoca tantos sentimentos fortes e profundos? Como vai ser amanhã?

Você vai me abraçar? Vamos poder bater aqueles longos papos como nas

férias? Será que você gosta de mim?

- Claro que sim, respondeu Cris em voz alta. Ele telefonou, não telefonou?

Cumpriu a promessa sobre o café da manhã. Até comprou comida! Está vendo, ele gosta

de você! Ele quer ver você. Não seja assim tão insegura!

Ela esforçou-se para dormir, concentrando o pensamento no Ted. Depois de quase

cinco meses sem vê-lo, como será que ele estaria; como ela o cumprimentaria, o que

vestiria, sobre o que conversariam? Sorriu. Como criança na véspera de Natal, que

sonha com um brinquedo novo, Cris caiu no sono. Hoje ela sonharia mais alto. Sonhos

mais complicados, mas muito mais interessantes. E ao acordar não seria para ver Papai

Noel e uns presentes, mas para ir a um café da manhã na praia, com o Ted.

Às cinco e meia o despertador tirou-a dos seus doces sonhos. A sua vontade era

dormir mais uns dez minutos, mas sabia que não podia. Levou mais de uma hora para

tomar banho, lavar o cabelo e fazer escova. Então resolveu passar um pouco da sombra

nova que Marta lhe dera de presente de Natal. Experimentou a lilás e a marrom, mas

achou que ficara com aparência apagada, com o aspecto de quem não dormiu direito.

Lavou rapidamente o rosto, escolhendo então três tonalidades de sombra azul e um

delineador azul-escuro. Não costumava usar tanta maquiagem, mas hoje queria se

produzir melhor e parecer mais velha. Será que o Ted notaria?

Escolher a roupa foi fácil. Marta lhe dera um suéter de que gostara muito. Era de

tricô, cheio de coraçõezinhos vermelhos.

Vestiu então sua calça jeans predileta, um pulôver de gola rulê e o suéter de
corações. Sentia-se aquecida e romântica. Pronta para encontrar-se com o Ted.

- David, acorde! disse Cris, em pé ao lado da bicama na sala de televisão, onde

seu irmão dormia profundamente.

- Vá embora.

- Está bem.

Cris começou a sair de fininho, com uma idéia em mente. Se o David não se

levantasse, embora ela tivesse tentado acordá-lo, não seria sua culpa se ele não fosse

para a praia com ela, seria?

De repente David levantou a cabeça.

- ’Peraí! A gente vai à praia, não é?

Droga!

- É, David. Você vem ou não?

- Que cheiro é esse?

- Que cheiro?

- De flor podre.

Era o odor do perfume novo, Jungle Gardenia, que Cris borrifara no cabelo e na

roupa para durar mais. Talvez tivesse exagerado um pouco.

- Vamos depressa, David. Vou sair daqui a cinco minutos. Arrume-se rápido.

O garoto saltou da cama exclamando:

- Já vou! Já vou! Fecha a porta.

Cris entrou na cozinha e encontrou o tio Bob preparando uma cesta de piquenique.

Surpresa por vê-lo já acordado, ela perguntou:

- O que você está fazendo?

- Bom dia, Olhos Brilhantes. Você está linda! disse ele, respirando fundo ao sentir

o perfume. Eta cheirinho... ãa... "bonito", falou Bob, com uma tosse forçada... bonito, é

isso. Você está com cheiro de menina bonita.

Ela deu uma risada.


- Acho que vai diminuir com a brisa da manhã, quando eu sair.

- Espero que sim, isto é, imagino que sim, disse Bob, piscando para a sobrinha.

Coloquei algumas coisas gostosas nesta cesta para você e seus amigos. Espero que

sejam suficientes. Não sei quantos amigos seus irão ao piquenique...

Cris estava com um sentimento de culpa terrível.

- Tio Bob? Posso confessar uma coisa? Bob parou de arrumar a cesta, voltando

toda a atenção para Cris.

- Claro que sim.

- Bem, uns dois meses atrás o Ted telefonou pra mim. Ele ainda estava na Flórida.

Disse que a mãe dele iria se casar e mudar pra Nova Iorque, e ele voltaria a morar com o

pai, aqui em Newport Beach. Bom, então ele me convidou pra tomar um café da manhã

na praia com ele. E aí só voltou a ligar ontem à noite.

Bob sorriu.

- Então você ficou com medo de que seus pais não a deixassem ir sozinha, e deu a

entender que a turma toda iria, não foi? Cris acenou que sim com a cabeça.

- Eu desconfiei, disse Bob, apertando a mão de Cris. Olha, ontem à noite, depois

que seus pais disseram que o David teria de ir com você, eu bati um papo com eles.

Falei muito bem do Ted, e eles acharam que não haveria problema, já que o David

estaria com você. Mas Cris, você precisa entender que esse tipo de coisa machuca seus

pais. Vai acabar perdendo a confiança deles agindo assim. Eu acredito em você, Cris. E

seus pais não merecem esse tipo de atitude da sua parte.

A essa altura ela já estava chorando, e as lágrimas escorriam pelo seu rosto,

deixando riscos azuis do delineador. Sentia-se horrível. Então perguntou, quase

sussurrando:

- O que é que eu devo fazer?

Bob endireitou o corpo e, com uma expressão de ternura, disse:

- Vá ao seu passeio, aproveite bastante e, hoje à tarde, quando tiver uma


oportunidade, conte tudo aos seus pais. Eles vão entender. Já foram jovens um dia.

David empurrou a porta da cozinha e foi direto à bandeja de doces que estava em

cima do balcão.

- Quando é que nós vamos? perguntou, enfiando dois chocolates na boca de uma

vez.

Cris pegou uma toalha de papel e limpou os olhos.

- Estou quase pronta.

- Ainda tem uma manchinha na bochecha, disse Bob, enquanto ela limpava a

última mancha azul.

- Aí. Conseguiu. Está ótima.

Cris olhou para ele como se perguntasse: "Tem certeza?"

Ele deu uma piscadinha.

- Gosto mais de você ao natural. Seus olhos não precisam de nenhum realce.

Ela sentiu-se um pouquinho melhor.

- Aqui, leve um cobertor para sentar e essa garrafa térmica de chocolate quente. É

receita minha, disse Bob. As canecas estão na cesta junto com os croissants e as frutas.

Cris ajuntou tudo e chamou o irmão:

- Vamos, David!

Ele enfiou mais dois chocolates na boca.

- Tá bem! Tá bem! murmurou, pegando mais quatro chocolates e dando um

"tchau" para o tio, com a mão cheia.

- Obrigada, tio Bob, disse Cris, jogando o cobertor para o irmão. Você leva isso,

David!

- Vou ter de levar isto? reclamou ele, com a mão cheia de chocolates.

- Prefere carregar a cesta e a garrafa térmica?

- Não, respondeu, colocando o cobertor debaixo do braço e saindo na neblina da

manhã, com a irmã.


O céu daquela manhã de Natal combinava com o mar cinza-azulado cheio de

espuma. O ar, a areia e até mesmo a respiração rápida de Cris, pareciam frios e úmidos.

- Senhor, sussurrou ela. Peço-te perdão pela confusão que fiz. Não quero esconder

nada dos meus pais, e muito menos de ti. Perdoa-me.

Então, com o coração cheio de expectativa, respirou fundo, enchendo os pulmões

com o ar úmido da manhã. De repente parou.

Lá estava ele!

Alto, de ombros largos, loiro, vestindo short e uma blusa de esqui preta e amarela,

Ted estava agachado, ajeitando as brasas da churrasqueira.

Cris começou a apressar os passos. David seguia logo atrás. Ted estava lá a

poucos metros, mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.

De repente David exclamou:

- Ei, cara!

Ted virou-se depressa.

- David! exclamou Cris, por que você falou isso?

- É assim que os surfistas falam. Eu vi na televisão.

Cris olhou para cima. Ted estava logo ali, confiante e sorridente.

Então ela parou. Parecia que tudo que sentia por ele virara um novelo de emoções

e se alojara na boca de seu estômago. Não conseguia dizer nada.

Ted só sorria. Então ele olhou para David e perguntou:

- Olá, como vão as coisas, cara?

- Tá vendo, Cris? Não falei que todos os surfistas dizem "cara"?

Ted deu uma risada.

- E então? Como você se chama, "cara"?

- David.

- Já andou de prancha skim, cara? disse Ted, em tom de brincadeira.

- Quer dizer, na água?


- Vem cá, cara. Eu te ensino.

Ted deu um largo sorriso para Cris. Seus olhos azul-prateados penetravam os dela.

Então ele virou-se, pegou a prancha de fibra de vidro e pôs a mão no ombro de David.

Os dois correram para a água, e Cris ficou ali, imóvel.

Espere um pouco! O que está acontecendo? Ted! Por que você saiu

assim com meu irmão e me deixou aqui desse jeito?

Cris ainda estava segurando a cesta e o cobertor. Eu devia ter jogado essas

coisas no chão assim que vi você! Devia ter largado isso e ter corrido

para abraçá-lo, do jeito que eu tinha planejado ontem à noite.

Agora ela estava ali feito uma idiota, parada, abraçando o cobertor.

Vamos lá, Cris! Dê um jeito! Faça alguma coisa, finja que esta se

divertindo. Daqui a pouco eles voltam.

Então ela começou a agir. Estendeu o cobertor e verificou o que eles tinham para

comer. Enquanto isso tentava elaborar um "Plano B", no qual ela própria, e não David,

seria o centro de atenção. Logo ela encontrou tudo de que precisava e, arrumando as

fatias de bacon na frigideira, colocou-a sobre a grelha.

Volta e meia ela dava uma olhada para a beira do mar, onde Ted demonstrava a

técnica de utilização da prancha skim. Ele esperava a onda retroceder, jogava a prancha

sobre a areia molhada, corria, pulava nela e descia alguns metros na linha da costa, antes

de chegar outra onda. Quando esta também recuava, ele repetia os mesmos passos.

Ted parecia mais alto e atlético, e seu cabelo estava um pouco mais escuro, mas

ele ainda o usava bem curtinho. Observando-o à distância, Cris sentia-se como se

estivesse assistindo a uma fita de vídeo, e não ali na praia, preparando o desjejum dos

seus sonhos.

O bacon pipocando chamou sua atenção de volta para o fogo. O cheiro estava

delicioso. Ela virou cada fatia com cuidado, evitando que ficassem torradas demais.

Parecia que Ted tinha-se lembrado de tudo: pratos, talheres, e até toalhas de papel para
tirar o excesso de gordura do bacon.

Ela teve um pouco de dificuldade para quebrar os ovos. (Talvez porque seus dedos

tivessem ficado engordurados ao fritar o bacon.) Contudo eles ficaram prontos bem

depressa. Cris sentia-se a própria "pioneira", e estava ansiosa para que Ted chegasse

para vê-la.

- Ôoo gente! gritou ela na direção da praia.

Como eles não responderam, ela aproximou-se mais de onde eles estavam e gritou

de novo. Ainda não escutaram. Ela correu os olhos de um lado a outro da praia. Não

havia mais ninguém lá além deles.

- Vamos lá, pessoal!

Afinal eles escutaram e acenaram, mas continuaram surfando.

- Vem logo, gente! insistiu ela, com as mãos na cintura, demonstrando

impaciência.

Finalmente eles voltaram. Ted, sem fôlego e com o rosto vermelho, correu até ela,

com a prancha molhada debaixo do braço, e deu-lhe um rápido abraço. A garota sentiu-

se estremecer.

Sem dizer nada, ela passou o braço pela cintura dele, e eles se dirigiram em

direção à churrasqueira, numa atmosfera romântica.

De repente Ted soltou-a e saiu correndo, gritando e balançando os braços.

- O que é que foi? gritou Cris.

David aproximou-se e os dois correram para a churrasqueira.

- O que foi que aconteceu?

- As gaivotas, disse Ted, segurando um prato de papel com uma fatia de bacon.

Acho que elas pensaram que era um presente de Natal pra elas.

- Ah, não! exclamou Cris. Olhe só para os ovos! Elas estragaram tudo!

As gaivotas voavam em círculos e, com seus pios estridentes, pareciam pedir

mais.
- Tudo bem, disse Ted. Ainda temos suco de laranja.

- Mas Ted, disse Cris, tentando não chorar. Tudo estava tão perfeito!

- Eu já comi, disse David, com marcas de chocolate no lábio inferior. Posso usar

sua prancha skim mais um pouco?

- Claro, cara, disse Ted, mastigando a fatia de bacon que restara. Virando-se então

para Cris, falou: Nada mal. Foi por isso que as aves gostaram tanto.

Ele parecia tranquilo e nada incomodado com a situação. Cris sentia-se frustrada,

mas, ao mesmo tempo, calma.

- Ah, acabei de me lembrar! Meu tio preparou .algumas coisas pra gente, disse ela,

levantando a tampa do cesto. Tem bastante comida aqui. Você gosta de croissant?

- Claro. E o que é isso aqui? perguntou Ted, pegando um pedaço de queijo

importado.

Cris riu e contou a história do excesso de queijos que Bob e Marta ganharam no

Natal.

Ele sorriu, mostrando as covinhas. Esticado sobre o cobertor, partiu um croissant e

passou geléia de morango nele. Então colocou os pés úmidos perto da fogueira e disse:

- Bom dia, Senhor Jesus. Seu aniversário está sendo bom?

Cris não sabia se devia fechar os olhos e abaixar a cabeça, ou olhar para o céu

como o rapaz estava fazendo. Ela nunca ouvira ninguém falar com Deus daquele jeito.

Mas Ted era mesmo um cara diferente, e não costumava orar como as pessoas em geral.

Ele terminou dizendo "Amém" e, comendo então o croissant, que soltava

casquinhas em seus dedos, olhou para Cris e disse:

- Ei, agradeça ao seu tio por mim. Está uma delícia.

- Tem um pouco de geléia bem aqui, disse Cris, limpando com cuidado o canto da

boca de Ted, com uma toalha de papel.

- Obrigado.

Ele olhou para Cris de um jeito diferente, como ela nunca vira antes. Era um olhar
forte, profundo, intenso, que reacendeu todas as lembranças que a moça tinha dele,

todas as emoções. Naquele momento, ela se deu conta de que era mesmo o Ted que

estava com ela ali na praia. Esta era a manhã com a qual tanto sonhara e seu sonho

estava se tornando realidade.


O Caminho Para o Coração de Um
Homem
4

Parece que quando os sonhos se tornam realidade, eles nunca

acontecem do jeito que esperávamos. Eles vêm alterados e nos deixam

desapontados, com a sensação de que não obtivemos o que queríamos.

Não sei a quem culpar: ao sonho em si ou à realidade que o modifica.

Foi assim que Cris começou a página do diário na noite de Natal, enrolada nos

cobertores, sozinha em "seu" quarto.

A manhã na praia não fora exatamente como ela esperava. Tinha passado depressa

demais. Enquanto comiam, Ted falou sobre o casamento de sua mãe. Mas quando Cris

começou a sentir-se à vontade para curtir o encontro, ele se levantou de repente e disse

que havia prometido aos pais do Sam que estaria na casa deles às nove horas. Foi

embora sem dizer nada especial. Não a abraçou e nem sequer comentou quando lhe

telefonaria ou voltaria a procurá-la.

Ela sabia que Ted e Sam haviam sido muito amigos durante anos, mas Sam

morrera havia alguns meses. Por que Ted estava deixando-a para passar o dia com os

pais do amigo? Não fazia sentido.

Escreveu como se sentira sentada.ali sozinha, ao lado da fogueira que se apagava,

olhando o Ted ir embora, carregando os apetrechos do piquenique. E nem olhou para

trás. O café da manhã dos seus sonhos acabara e ela se sentia abandonada. Desprezada.

Provavelmente teria ficado por lá mais algum tempo, apesar da friagem, sentindo

pena de si mesma, se não fosse pelos choramingos do irmão que estava molhado até os
ossos e insistia em voltar para casa. Então, juntou as coisas, e saiu andando pela areia,

irritada e chateada. Para trás ficou só a fogueira, que dentro em pouco viraria cinzas.

De volta em casa, seus pais lhe perguntaram sobre "aquele desjejum maluco". Cris

sentou-se com eles à mesa da cozinha e começou pedindo desculpas por não ter

explicado claramente a situação.

Marta ficou entrepondo seus comentários favoráveis sobre o Ted e David fez o

mesmo, dando todos os detalhes de como Ted lhe ensinara a usar a prancha de skim.

- Parece um bom rapaz! Gostaríamos de conhecê-lo algum dia, comentou a mãe.

- Mas lembre-se, você só poderá namorar depois que completar dezesseis anos,

acrescentou o pai. Pode passear na companhia do Ted e sair com seus outros amigos

esta semana, desde que não vá sozinha com ninguém, como se namorasse.

O tom do pai era um tanto firme, e ele acrescentou:

- Não minta nem para sua mãe, nem para mim; nunca. Se quiser ter mais liberdade

e privilégios, precisa demonstrar que é digna de nossa confiança.

- Ela é, interferiu Bob rapidamente.

- Queremos confiar em você, Cris, disse o pai, abrandando um pouco o tom. Mas

a confiança é algo que se conquista fazendo decisões acertadas e falando a verdade

sempre.

Cris se sentia humilhada. Todo mundo olhava para ela enquanto seu pai lhe dava

aquele sermão.

- Se não confiássemos em você, Cris, não a deixaríamos ficar aqui esta semana,

acrescentou a mãe. Só pedimos que não abuse do privilégio, está bem?

Cris concordou com um aceno de cabeça. Tinha uma sensação horrível no

estômago. Queria dizer muitas coisas, tais como:

Podem confiar em mim. Já fiz uma porção de decisões certas que

vocês nem sabem. Estou-me esforçando muito, apesar de errar de vez

em quando.
Mas não disse. Limitou-se a dar um sorriso amarelo e assentir com a cabeça. A

mãe sorriu. Marta e Bob também. Ninguém disse nada. Apenas sorriram. Mas eram

sorrisos forçados, tensos.

- Bem, disse Cris, obrigada por deixarem eu e o David passarmos a semana aqui.

Podem confiar em mim. Vou fazer o máximo.

- Sabemos disso, querida, disse seu pai.

Ela saiu da cozinha e foi se trocar, colocando um moletom. Sabia que o pai tinha

razão ao falar sobre honestidade e confiabilidade, e bem que ela merecia o sermão.

Mesmo assim, sentia-se pequena e abalada, como se tivessem arrancado dela as poucas

alegrias que tivera pela manhã.

Agora, no final do dia, tentando escrever tudo que passara, sentia-se ainda mais

deprimida. Sabia que não poderia dar bola fora durante esta semana. Mas de alguma

forma, sem desobedecer às instruções dos pais, tinha de arrumar um jeito de passar mais

tempo com Ted. Eles haviam dito que ela podia vê-lo. Só não podia sair com ele.

Então teria de pensar num monte de coisas que se poderia fazer em grupo. Juntar a

turma das férias para que pudesse passar mais tempo na companhia dele.

Sua última frase na página daquele dia foi: Esta semana tenho de descobrir

como o Ted me vê - só como amiga ou o quê. Preciso saber em que pé

está nosso relacionamento e no que vai dar.

Ela tinha o número do telefone dele. Ao apagar a luz, Cris resolveu que se ele não

telefonasse até o meio-dia, ela ligaria para ele e planejaria alguma coisa para fazerem.

No dia seguinte, o telefone tocou exatamente às 11:45. Mas era Trícia, não o Ted.

De início, Cris sentiu-se frustrada de que Trícia tivesse telefonado bem àquela hora, mas

depois lembrou-se de algo.

Afinal de contas, Trícia era sua amiga! E queria encontrar-se com ela também.

Trícia era muito amiga de Ted. Podiam todos fazer algum passeio juntos. Cris mudou

rapidamente o tom de voz e convidou a amiga para vir à casa da tia. Juntas poderiam
fazer brownies* ou algo semelhante.

* Brownies - bolo de chocolate que pode ser coberto de

calda de chocolate e nozes picadas. (N. da T.)

Assim que desligou, viu Marta descendo a escada, de calça preta, blusa branca e

um suéter preto de decote em V profundo, com alguma espécie de emblema no bolso.

Estava bonitinha. Como uma escolar de uniforme novo.

- Está pronta, Cris?

- Pronta pra quê?

- Para irmos fazer compras, querida. Pensei em fazermos algumas compras. Já

está meio tarde. Se você quiser ir assim mesmo, está bem.

Marta pegou sua bolsa chique, pendurada no chapeleiro estilizado do hall de

entrada, e olhou por cima dos ombros para a sobrinha.

- Vamos, Cris, disse, não fique aí parada.

Cris suspirou fundo e deu dois passos para ela. No momento estava mais alta que

sua tia e esse pequeno detalhe ajudou-a a recobrar a coragem,

- Tia Marta, eu não sabia que íamos fazer compras. Você falou comigo sobre isso

mais cedo?

- Creio que não, mas...

Cris interrompeu com educação.

- Como eu não sabia dos seus planos, fiz os meus. Convidei a Trícia pra vir aqui.

Tio Bob disse que podíamos.

- Bbbem, bom, então eu... gaguejou Marta, meio sem jeito.

- Eu não pretendia estragar seus planos. É só que você não tinha me falado.

- Entendi, declarou Marta, apertando os lábios. Com uma virada brusca, ela gritou

em direção à sala de televisão, onde David assistia no volume máximo.

- David! David, venha cá, querido.

- O quê? gritou o garoto, sem se mexer.


- David, quero que você desligue essa televisão imediatamente e venha comigo,

querido.

- David! gritou Cris mais alto que a tia, faça o que a tia Marta está mandando;

agora!

- Tá bem, tá bem! replicou David.

Daí a pouco ele aparecia na porta vestido com uma calça de moletom e uma

camiseta de skate. Torceu o nariz e apertou os olhos através dos óculos.

- Que foi? indagou.

- David, vamos sair para fazer compras agora. Vá pentear o cabelo e calçar os

sapatos, disse Marta, parecendo assumir o controle da situação.

- Ah! Tenho de ir?

- Tem, disse Cris com firmeza, embora por dentro estivesse tentando conter uma

risada.

Não sabia quem deixaria o outro maluco primeiro, Marta ou David. Sem dúvida

seria uma experiência inesquecível.

Cinco minutos depois, eles tinham saído e David já estava implorando à Marta

que o levasse ao McDonalds para lanchar.

Bob ajudou Cris a procurar o que precisava na cozinha. Ela ficou muito surpresa.

Em casa, eles nunca tinham tanta comida na geladeira. A despensa de sua casa não tinha

tanta variedade ou quantidade. Ali havia até diversos tipos de chocolate granulado,

inclusive de chocolate branco, e muitos outros ingredientes. Poderiam fazer uns

brownies maravilhosos!

Trícia chegou e entregou-lhe um prato de chocolate caseiro.

- Isso é pra você, disse. Eu e minha mãe fazemos chocolate todo ano. Espero que

goste.

- Está brincando! Adoro tudo que é de chocolate. Obrigada, Trícia. Mas agora me

sinto mal porque não tenho nada pra lhe dar.


A voz de Bob veio lá de dentro:

- Você gosta de queijo, Trícia?

- O quê? gritou Trícia em resposta.

- Não liga não, disse Cris rindo e conduzindo Trícia para longe do tio maluco, em

direção à cozinha. Vamos! Vamos fazer os brownies. Temos ingredientes pra umas duas

receitas. Acho que poderíamos fazer uns a mais pra levar pra algumas pessoas hoje à

tarde.

- Quer dizer, para o Ted? indagou Trícia, com um sorriso significativo.

Era uma garota tipo mignon, com o cabelo castanho amarrado num rabo de

cavalo.

- É, replicou Cris, sentindo o rosto avermelhar-se. E pra todos os outros também: a

Helen, a Melissa, o Douglas e a turma das férias passadas.

Trícia colocou a mão no braço de Cris, e disse com jeito brincalhão:

- Não precisa explicar, Cris. Sei o que você quer dizer. É, acho que o Ted vai

gostar muito. As duas garotas deram risadas.

- Existe alguém em especial pra quem você gostaria de levar alguns brownies7

perguntou Cris, curiosa para saber se Trícia estava de coração inclinado para algum

rapaz em particular.

- Bem, na verdade... principiou Trícia com os olhos baixos. Estou meio

interessada em alguém, continuou hesitante, mas acho que ele não se interessa por mim.

- Quem é?

- Não posso dizer. Eu me sentiria muito mal se todo mundo ficasse sabendo que

gosto dele, principalmente porque ele não se interessa por mim.

- Ora vamos! Conte quem é!

- Se ele demonstrar algum interesse por mim, eu lhe conto. Se não, vou ter de

desistir dele.

- É melhor você me contar...


- Eu conto. Prometo. Mas só se eu achar que posso ter esperança, está bem?

- Tudo bem.

As meninas concordaram e passaram a trabalhar.

A cozinha de Bob e Marta era maravilhosa. Havia muito espaço para trabalhar e

toda espécie de medidas e tigelas. Começaram com uma tigela enorme e fizeram a

receita dobrada que tio Bob lhe dera, utilizando manteiga batida com açúcar. Depois

vinham os ovos, farinha, essência de baunilha e o chocolate.

- Que tipo de castanha vamos usar? perguntou Cris, colocando na boca um

punhado de amendoins.

- Que tal nozes e amendoins? disse Trícia, pegando os dois pacotes.

Cris deu risada e pegou um pouco de massa.

- Vai ficar tão gostoso!

Trabalharam juntas, comendo punhados de castanhas, e, finalmente, colocaram a

massa nas formas.

- Quer tomar alguma coisa? perguntou Cris, olhando na geladeira.

- Tem algum refrigerante diet?

Cris virou e caiu na risada.

- O que é que há de tão engraçado? perguntou Trícia, enfiando mais um punhado

de castanhas na boca.

- Acho engraçado que nós acabamos de comer umas dez mil calorias em castanhas

e massa e aí você pede refrigerante diet!

Trícia riu e lavou as mãos.

- Não liga não. Vou tomar é água. Já estou um pouco enjoada de tanto amendoim

que comi.

- Eu também, replicou Cris. Vamos enfiar essas duas assadeiras no forno para

podermos levar logo para o Ted. Você coloca no forno e eu vou procurar umas caixas.

E pôs-se logo a trabalhar, forrando duas caixas bonitas com papel de seda. Daí a
meia hora, já pusera nelas os brownies quentinhos e cheirosos.

- Será que devemos levar agora? indagou Cris, pensando ao mesmo tempo que

não gostaria que Trícia a considerasse mandona nem que achasse que ela só queria a

companhia do Ted e não a dela.

- Claro, concordou Trícia prontamente. Podemos congelar o resto dessa massa. É

o que a minha mãe sempre faz. Mas é melhor darmos uma limpada na cozinha.

- Eu lavo as vasilhas. Você quer colocar uns brownies num pratinho de papelão

pra seu namorado misterioso? Como era mesmo o nome dele...?

- Cris! Cris! disse Trícia fingindo reprovação. Eu já lhe disse que só lhe conto se

ele demonstrar algum interesse. Não gosto quando vira uma brincadeira e todo mundo

sabe que a gente gosta de um cara, menos ele. Depois os amigos todos chegam pra ele e

dizem: "Sabe da última? A Trícia gosta de você..." Daí o pobre coitado tem de decidir se

vai quebrar o meu coração ou entrar na brincadeira da turma. Não quero fazer esse tipo

de jogo com... e aqui ela parou.

- Com...? disse Cris, tentando fazê-la falar. Trícia cobriu a boca com a mão.

- Não acredito! Quase falei o nome dele!

- Eu não contaria seu segredo pra ninguém!

- Eu sei, Cris. Mas já não aconteceu com você de estar no meio de um

relacionamento assim e de repente viu o que estava acontecendo, e disse: "Espere aí!

São os outros que querem isso, não eu!" E a vontade era começar tudo de novo e ser

apenas amigos sem as pressões que os outros fazem pra gente namorar? Cris puxou uma

banqueta e sentou.

- Trícia, sei exatamente o que você quer dizer. Tem um rapaz na minha escola, o

Rick, e eu não sei se realmente gosto dele ou se gosto dele só porque todo mundo fica

dizendo: "Ah, o Rick perguntou por você hoje. Ele gosta de você. Dá pra notar". É, eu

sei exatamente o que você quer dizer, e não vou chateá-la mais.

- E você gosta do Rick?


- Sim e não. Não sinto por ele o mesmo que sinto pelo Ted. Fizemos o café da

manhã na praia, mas nada saiu como eu achei que sairia. O Ted foi embora sem dizer se

telefonaria nem nada. E fiquei muito chateada, mas não estou me preocupando em saber

se ele gosta de mim ou não. Acho que na próxima vez em que nos encontrarmos,

continuaremos nosso relacionamento naturalmente.

- O Ted é mesmo desse jeito, não é? É o cara mais leal que existe. Assim que

somos amigos dele, somos amigos pra sempre, concordou Trícia.

- Exatamente! Mas não é assim com o Rick! Quando vim pra cá, dois dias atrás,

ele estava meio de mal comigo. Nem sei como será nosso relacionamento quando a

gente se encontrar de novo.

- Isso é horrível, não é?

-É!

Trícia tirou a última assadeira do forno e o desligou.

- E é por isso que apesar de eu gostar muito desse cara, vou esperar que ele

demonstre algum interesse por mim, sem os "empurrões" de amigos bem-intencionados.

- Você é muito sensata, Trícia. Acho bom isso, disse Cris voltando-se para a pia e

terminando de colocar as vasilhas na lavadora. Não sei se lhe agradeci pela Bíblia que

você e Ted me deram.

- Agradeceu. E falando no Ted, vou telefonar pra ele e verificar se está em casa,

disse Trícia.

- Boa idéia! exclamou Cris, que mal podia esperar para sair. Vou só escovar o

cabelo e avisar ao meu tio aonde nós vamos, e aí estarei pronta.

Cris estava gostando muito desse sentimento de independência, de poder mexer na

cozinha, conversar abertamente com Trícia, como se sempre tivessem sido ótimas

amigas, e agora, de ir até a casa do Ted.

Essa parte parecia boa demais para ser verdade. Depois de ter passado cinco

meses a milhares de quilômetros de distância e mantido uma correspondência unilateral


com ele, agora ele estava tão próximo que ela podia simplesmente caminhar até sua

casa, vê-lo, conversar com ele e estar perto dele.

A parte triste era que teria apenas mais alguns dias para gozar desse convívio. Cris

sabia que todos os momentos que passasse com Ted tinham de ser bem aproveitados.
Amigos de Todas as Horas
5

- Esperem um pouco, meninas! gritou Bob quando elas estavam saindo da porta.

Quase me esqueci. Também tenho um presente para o Ted, continuou ele, aparecendo na

por»ta com uma sacola de presente fechada. Divirtam-se, senhoritas!

- O que é que é? perguntou Cris, sacudindo a sacola.

Tio Bob deu uma de suas risadas alegres e respondeu;

- Um presentinho que acredito que um cara como o Ted vai apreciar muito.

A tarde estava um pouco quente, mas ventava um pouco e Cris ficou alegre por

estar de blusa de moletom, a que sua tia lhe comprara em San Francisco, nas férias

passadas. Era azul e branca, com uma estampa de veleiros na frente. Ficou pensando se

o Ted ainda usava o moletom que ela lhe comprara no mesmo lugar. E outra pergunta

ainda mais importante era: "Será que o Ted vai gostar da camiseta que pintei pra ele?"

- Você comprou alguma coisa pro Ted? perguntou Cris a Trícia.

- Sim, todo ano eu o presenteio. Este ano comprei uma fita. A última da Debbíe

Stevens. Você já tem?

- Não, comprei uma, mas acabei dando-a para o Rick. Depois achei que era

melhor não ter dado, pois ele pareceu não gostar muito.

- E o Rick, o que foi que lhe deu?

- Um livro bobo. Foi uma brincadeira. Alguns caras têm idéias tão estranhas!

- E eu não sei disso?! falou Trícia, rindo.

- Comprei uma camiseta para o Ted, explicou Cris, mas não sei se devo dar. Pintei

um surfista nela. Ia entregar a ele ontem, mas esqueci completamente. Provavelmente


foi melhor assim, porque ele não me deu nada.

- A não ser o café da manhã, lembrou Trícia. Fiquei impressionada quando soube

que ele comprou as coisas e aprontou tudo. Isso é um bom presente, pelo menos na

minha opinião.

- Você tem razão. Eu deveria ser mais grata. É que as gaivotas comeram tudo, e o

Ted acabou passando mais tempo com meu irmão do que comigo!

- Ainda assim, Cris. Que garota não adoraria que o namorado tivesse esse trabalho

todo por ela?

- Meu namorado?

- Bem, o Ted é muito seu amigo. A impressão que dá é essa. Trícia e Cris viraram

a esquina entrando na rua onde Ted morava.

- Sabe duma coisa? Eu queria que existisse uma palavra pra quando a gente é mais

do que "amigo", mas não é "namorado".

- Sei bem o que você quer dizer, completou Trícia. E tinha que existir uma palavra

entre "gostar" e "amar". A gente só pode falar que "gosta" de um cara, ou então que está

apaixonada. Definitivamente há uma situação intermediária, mas não existe um nome

pra ela.

- Então vamos inventar um!

Trícia riu e comentou:

- Vamos pedir ao Ted pra nos ajudar? A casa dele é aqui.

Parou em frente de um sobrado estreito, de frente para a rua, não para a praia.

Vista de fora, parecia menor que a casa de Bob e Marta, mas mais nova.

- Feliz dia depois do Natal! exclamou Cris animada, quando Ted atendeu a porta.

- Olá! Como vão? disse Ted, fazendo-as entrar.

Era a sala mais bagunçada que Cris vira em sua vida. Folhas de papel, louças

usadas e roupas estavam espalhadas por todo lado. O mais óbvio, porém, era a ausência
de qualquer enfeite de Natal. Não havia árvore, nem guirlandas, nem arranjos. Nenhuma

evidência de que ali morava uma família ou de que tivessem comemorado o Natal.

- Desculpe a bagunça, falou Ted, ajeitando um lugar no sofá para elas sentarem. A

faxineira ainda não veio esta semana. Meu pai está na Suíça.

- Suíça? exclamou Cris surpresa.

- Há quanto tempo ele está viajando? perguntou Trícia.

- Uns quatro ou cinco dias. Acho que volta no sábado.

- Ted! exclamou Trícia.

A moça parecia transtornada com o fato e Cris sentia o mesmo.

- E o que você fez no Natal? indagou Trícia. O rapaz virou-se para Cris, e sorriu.

- Tomei o café da manhã na praia com a Cris e depois fui para a casa dos pais do

Sam.

Trícia parou um instante e depois comentou:

- Aposto que eles gostaram de você ter ido lá. Em seguida, estendeu a sacola de

presentes. Cris fez o mesmo, entregando-lhe sua sacola e dizendo:

- Nós duas lhe desejamos feliz Natal com um dia de atraso, ou um ano adiantado,

o que você preferir. Vamos! Abra os presentes!

Ted sentou-se e juntou as caixas no colo. Abriu primeiro a sacola que Bob

mandara. Cris soltou uma exclamação ao ver Ted tirar um punhado de triângulos de

queijos importados.

- Legal! disse o rapaz. Será que é do mesmo tipo que nós comemos no desjejum?

- Quem sabe? respondeu Cris, abanando a cabeça. Temos uma variedade tão

grande de queijos em casa! Foi meu tio que mandou. Eu não sabia o que ele tinha

colocado na sacola. Abra a caixa. Sei que vai gostar do que tem nela.

- Ummm! exclamou Ted, tirando a tampa e pegando um dos quadradinhos de

brownie. Foi você que fez?

- Eu e a Trícia. Gosta?
Ted enfiou mais dois na boca antes de responder.

- Definitivamente!

- Agora experimente meu chocolate, falou Trícia abrindo a caixa para ele.

Ted acedeu, enfiando o maior dos pedaços na boca. As meninas riram dele

tentando engolir o docinho e elogiar a Trícia ao mesmo tempo.

Em seguida, ele abriu a fita cassete e agradeceu efusivamente a amiga.

- Obrigado, Trícia! Você não imagina o quanto gostei!

- Tem mais uma coisa, disse Trícia, entregando-lhe a caixa de Cris.

Cris sentiu medo de que ele não gostasse. Será que a usaria? Não teria sido melhor

ter-lhe comprado uma fita?

- Legal! gritou Ted levantando a camiseta e encostando-a ao corpo.

Trícia também soltou exclamações de admiração.

- Gostou mesmo? perguntou Cris.

- Definitivamente! disse Ted, com um olhar caloroso de apreciação.

- Está realmente bonita, Cris, comentou Trícia. Foi ela mesma que pintou, Ted.

Sabia?

- É mesmo?!

Cris sentia o rosto avermelhar-se. Acenou que sim, aliviada por ele ter mesmo

gostado. Ted ficou de pé, passou por cima de uma pilha de jornais e deu um abraço em

Cris e outro igual na Trícia.

- Muito obrigado, Cris. Muito obrigado, Trícia. Pegou outro chocolate e dirigiu-se

à cozinha.

- Querem tomar alguma coisa? Temos suco de framboesa e Seven-up.

- Aceito um Seven-up! respondeu Trícia.

- Eu também, completou Cris.

- Estou com muita vontade de pegar o aspirador de pó e começar a dar uma

arrumada neste lugar, cochichou Trícia para Cris, enquanto Ted ainda estava na cozinha.
Está uma bagunça total.

Pela primeira vez na vida, Cris sentiu pena de Ted e isso a surpreendia. Antes, o

rapaz lhe inspirara diversos tipos de emoção, mas nunca pena. Agora, vendo-o nessa

casa com seus móveis caros, mas toda desarrumada, e sabendo que ele passara o Natal

totalmente sozinho, sentiu o coração condoer-se. Como os seus pais podiam abandoná-

lo assim? E logo no dia do Natal!

Talvez o café na praia tivesse sido um momento muito especial para o Ted

também. Cris estava descobrindo um lado do rapaz que era totalmente diferente, e

queria tanto poder dizer-lhe o quanto gostava dele.

- Posso colocar a fita? perguntou Trícia quando Ted voltou.

- Claro.

Ela ligou o aparelho de última geração e tirou a fita que estava no toca-fitas.

Olhou para ela antes de colocar o novo cassete da Debbie Stevens, e exclamou:

- Ted! Por que você não me disse que já tinha esta fita?

- Ela é legal, explicou ele entregando-lhes os refrigerantes. Vou ficar com uma

aqui em casa e a outra na "Kombi Nada".

- Mas se não tivesse tirado o papel celofane, eu poderia ter trocado por outra fita

diferente ou outra coisa que você quisesse.

- É o seu presente de Natal, Trícia. Eu jamais devolveria uma coisa que uma

amiga de todas as horas como você me tivesse dado.

- Essa é boa, hein, disse Trícia virando-se para Cris. "Amigos de todas as horas."

Que é que você acha?

Cris pensou um pouco e afinal disse:

- Boa, mas não exatamente o que queremos.

- Não exatamente o quê? perguntou Ted, sentando-se ao lado de Cris no sofá.

- Quando vínhamos pra cá, estávamos discutindo que nome seria melhor para o

sentimento que está entre "gostar" e "amar" e entre "apenas amigos" e "namorados".
Você teria uma sugestão melhor do que "amigo de todas as horas"?

- Eu não. Não sou o escritor do grupo. Você, Cris, é que é a escritora!

Cris levantou as mãos como que se defendendo.

- Eu não tenho lá nenhuma grande idéia.

- Vamos ter de pensar mais nisso, sugeriu Trícia. E sabe o que mais eu gostaria de

fazer esta semana, para aproveitar que estamos todos juntos? Queria conversar sobre

coisas da Bíblia. Quem sabe, podemos todos ler o mesmo trecho e depois nos reunirmos

e conversar a respeito dele.

Ted e Cris olharam-na como se não soubessem ainda o que responder à sugestão.

- Que é que você quer ler? perguntou Ted.

- Que tal Filipenses? Ou a Primeira Carta de João? Ou um dos Salmos?

- Primeira João é uma boa, replicou o rapaz.

- Ótimo! exclamou Trícia parecendo muito satisfeita por ter feito a sugestão.

- Querem fazer alguma coisa amanhã? indagou Cris.

Ted e Trícia olharam-na, esperando que ela ampliasse a sugestão.

- Quer dizer, vocês poderiam ir lá em casa ou a gente podia fazer alguma coisa

juntos.

- Claro, respondeu Ted, sem hesitação. O que é que você sugere?

- Podíamos ir ao cinema, sugeriu Trícia. Isto é, se tiver passando algum filme que

valha a pena. Ou locar uma fita e assistir na minha casa.

- Vocês costumam ir ao rinque de patinação no gelo? perguntou Cris.

Quando morava no Wisconsin, desde que se entendia por gente, ela ia com os

amigos patinar na lagoa que havia perto de sua casa e que congelava no inverno. Sem

dúvida na Califórnia deveria existir lugares para patinação no gelo.

- Boa idéia! disse Trícia. Vamos juntar a turma e ir à pista de patinação de Costa

Mesa. Se todo mundo ajudar na gasolina, você leva a gente na kombi, Ted?

- Claro. Quando é que vamos?


- Sei lá. Uma ou duas da tarde. Podíamos nos encontrar na minha casa, disse

Trícia. Podemos almoçar lá por volta do meio-dia. Minha mãe não se importa. Daí a

gente sai de lá.

- Parece boa idéia. E agora, que horas são? perguntou Ted.

Trícia olhou seu relógio.

- Puxa! Cris, já são quase cinco horas.

- Também vou ter de sair, falou o rapaz. Combinei de encontrar com o Douglas.

Eu falo com ele sobre a patinação amanhã.

- Posso ir com você até a casa dele? indagou Trícia.

- Claro! Vamos, Cris, no caminho deixo você na sua casa.

Entraram na velha kombi de Ted, que ele chamava afetuosamente de "Kombi

Nada". As duas meninas sentaram no banco da frente, com a Cris no meio, junto ao Ted.

Quando chegaram em frente à casa de Bob e Marta, ela desceu. Ted agradeceu mais

uma vez pela camiseta e pelos brownies, virando ligeiramente o rosto para ela. Disse o

seu breve "Até logo" de sempre, e saiu rodando com a Trícia a seu lado.

Cris acenou para seus dois "amigos de todas as horas" e entrou animada em casa.

Agora não se importava de que o café da manhã com o Ted tivesse sido meio

decepcionante. No dia seguinte iriam patinar no gelo, e ele seguraria a sua mão. Na

verdade, estariam mais do que apenas "se gostando". Talvez até começassem a estar "se

amando".
Patinando Por Aí
6
Naquela noite, à mesa do jantar, David remexia a verdura no prato e falava das

compras com tia Marta.

- Ela me fez comprar uma camisa cor-de-rosa. Cor-de-rosa! disse ele franzindo o

nariz com seu jeito característico.

- David fica muito bem em tons pastéis. E na verdade não é cor-de-rosa. Eu diria

que é lilás bem claro, explicou Marta.

- É cor-de-rosa, murmurou David. E o McDonald's aonde fomos nem tinha

parquinho de brincar.

- Você está ficando meio grandinho para brincar no parquinho, não acha, querido?

comentou a tia.

Seu rosto bem maquiado parecia alterado. Cris ficou a imaginar como teria sido

realmente. Quem fora o mais teimoso. Marta ou David?

- Lá em Balboa tem um parque para crianças grandes, disse Bob. Que tal irmos lá

amanhã, David? Se ainda posso brincar lá, tenho certeza que você também pode.

David concordou, sorrindo, a boca cheia de batata assada - uma cena nada

atraente.

- Então eu e Cris passaremos o dia fazendo compras, propôs Marta.

- Eu já tenho planos pra amanhã, tia, disse Cris devagar. A Trícia me convidou pra

almoçar com ela e depois a turma vai patinar no gelo. O Ted nos levará no carro dele.

Pode ser?

- Parece que vai ser divertido, disse Bob.

Marta deixou o garfo cair no prato com certa força.


- Estou surpresa, Cristina, falou em seguida, como você conseguiu preencher tão

depressa sua agenda social para esta semana! Acha que sobrará algum tempo para nós?

- Resolvemos isso hoje, tia Marta. Não sabia que tinha outros planos!

Tempos atrás, querida tia, você me "empurrou" pra praia pra que fosse

conhecer esses novos amigos! Agora fica chateada de eu querer passar algum

tempo com eles?!

Em voz tensa, Marta disse:

- Diga-me, querida, estará disponível, digamos, depois de amanhã? Talvez

pudéssemos sair para almoçar.

Cris olhou para o tio Bob e a seguir respondeu numa voz doce demais:

- Claro! Vai ser ótimo.

Satisfeita, Marta sorriu, olhou para o prato e devagarinho deu mais uma garfada.

Cris só podia pensar: Um dia inteirinho. Vou ter que acabar passando

um dia inteirinho com minha tia, e eu bem que poderia passá-lo na

companhia do Ted.

Quando Marta deixou Cris na casa de Trícia, no dia seguinte, disse:

-Agora lembre-se! Temos planos para amanhã. Nada de combinar outro programa

com seus amigos. Está bem?

Cris concordou e agradeceu-lhe a carona, mas por dentro ficou chateada. Nas

férias passadas sua tia tinha conseguido manobrá-la em tudo, mas agora isso a irritava

profundamente. Não queria que Marta se intrometesse em sua vida.

Contudo seu pai lhe pedira que se lembrasse de que era hóspede e deveria

submeter-se aos planos dos tios. Simplesmente teria de esforçar-se mais.

Helen e Lillian abriram a porta e a abraçaram alegremente. Ela entrou na sala,

onde dois rapazes estavam plantados na frente da televisão, jogando vídeo game.

Dali avistou o Ted na cozinha, ajudando a Trícia e a mãe dela a fazer as pizzas.

Ele salpicava um punhado de queijo ralado sobre a massa e em seguida enfiava outro
punhado na boca. Trícia deu-lhe um safanão no braço, de brincadeira. Cris ficou

Indecisa, sem saber se entrava na cozinha ou esperava que ele a notasse.

- Cris! exclamou Douglas, surgindo de repente à sua frente.

Ele havia mudado bastante desde as férias passadas. Viera passar em casa as festas

de fim de ano, após seu primeiro semestre na Universidade Estadual de San Diego.

Parecia mesmo um universitário: o cabelo loiro curto dos lados, mais cheio na frente,

camisa xadrez bem passada e combinando perfeitamente com o blusão amarelo atado

em torno do pescoço.

- Oi, Douglas!

- Oi! Como vai? indagou, dando-lhe um abraço desajeitado. Vem sentar aqui.

Conte pra gente como estão as coisas em Escondido. Como vai a escola? Gosta mais

daqui do que do Wisconsin?

Conversaram descontraidamente alguns minutos. Douglas sentara-se virado para

ela, apoiando o braço no encosto do sofá.

- Você fica bem de azul, falou ele. Realça seus olhos.

- Obrigada, replicou Cris, sentindo o rubor subir-lhe ao rosto.

Com o canto dos olhos ela percebeu que naquele momento Ted entrava na sala.

Será que vinha conversar com ela? Não, voltou para a cozinha.

Douglas falava sobre a faculdade e sua camionete nova. Então, sem mais nem

menos, exclamou:

- Sabe, Cris, estou tão contente de você estar aqui e de saber que tudo está indo

bem!

Deu-lhe outro abraço rápido e desajeitado. Isso era típico do Douglas. Estava

sempre abraçando as pessoas e dizendo-lhes palavras de ânimo e incentivo.

Naquele instante, Trícia apareceu na sala. Quando viu os dois ali, fez uma

expressão estranha que durou apenas um instante. Em seguida gritou:

- Vamos lá, gente! A pizza está na mesa!


Todos foram para a cozinha, reunindo-se em volta do balcão, onde havia

refrigerantes, pratos de papel e três pizzas fumegantes. Douglas surrupiou uma azeitona

e Cris deu-lhe um tapinha de brincadeira na mão. Percebeu o olhar de Trícia e mais uma

vez, por um instante, teve a impressão de que a amiga parecia zangada.

- Vamos orar, gente, sugeriu Brian, pegando as mãos dos que estavam ao seu lado.

O resto da turma seguiu o exemplo. Douglas pegou a mão de Cris e ela segurou a

de Helen do outro lado. A mão de Douglas era forte, um pouco áspera mas muito

quente.

As sensações confundiam-na. Eles deviam estar orando, como irmãos em Cristo,

mas ela se sentia dominada por emoções diversas.

Queria estar segurando a mão do Ted em vez desta. Ou será que

queria? Douglas parece interessado em mim, mas será que está mesmo?

Por que será que a Trícia anda me dirigindo uns olhares de zangadona?

Será que ela queria que eu fosse ajudar a fazer as pizzas? E por que está

ao lado do Ted, onde eu queria estar?

- Amém, disse Brian.

Todos soltaram as mãos e puseram a servir-se de pizza.

Cris sentiu vergonha por não ter escutado nem uma palavra da oração do Brian.

Colocou uma fatia de pizza num prato, pegou uma lata de refrigerante e foi sentar-se à

mesa da cozinha, ao lado da Helen. Manteria distância dos rapazes por alguns minutos

até conseguir pôr as idéias em ordem.

- Seu cabelo está uma graça, disse para Helen.

- Tenho a impressão de que vai desmanchar todo, comentou a outra, alisando a

trança francesa que Lillian lhe fizera.

- Não parece, não, disse Cris, examinando mais detalhadamente o penteado.

- O seu cabelo já dá pra fazer trança, disse Lillian. É incrível como cresceu

depressa!
- Gosto dele comprido, disse uma voz masculina. Cris virou e viu o Ted sentando-

se ao seu lado.

- O quê? indagou Helen com voz aguda. Você gosta do cabelo da Cris comprido?

Quando foi que a viu de cabelo longo?

Ted deu uma mordida na pizza, "puxando" um longo fio de queijo derretido.

Douglas estendeu a mão e rebentou o fio de queijo e em seguida sentou-se à frente

de Cris. A moça se sentiu animada com a repentina atenção recebida, mas ao mesmo

tempo, meio sem jeito. Ted engoliu, e olhou direto para Cris com uma expressão que ela

ainda não conhecia.

- Chegava quase à cintura, disse. Gostava dele daquele jeito, Calou dando mais

uma dentada na pizza.

Cris ficou parada, repassando as recordações que tinha dele. Ela viera à Califórnia

em julho com cabelo comprido, mas cortara-o curtinho um dia antes de conhecer o Ted.

Como é que ele sabia que ela tinha cabelo comprido?

- Eu também gostava dele longo, acrescentou Douglas.

Nesse instante, Trícia veio para a mesa e sentou-se ao lado do Douglas.

- Do que é que vocês estão falando? perguntou.

- Trícia, disse Helen. Você já viu a Cris de cabelo comprido? Estes caras aqui

estão sendo malvados, dizendo que gostavam mais dela de cabelo comprido.

As meninas olharam para a Cris, esperando que ela esclarecesse os fatos. Os

rapazes continuaram comendo, a entreolhar-se como se soubessem de um grande

segredo.

Rapidamente Cris deu a explicação.

- Quando cheguei aqui nas férias, eu tinha mesmo cabelo comprido! Mas cortei

um dia antes de conhecer vocês. Não sei onde esses caras me viram de cabelo comprido

a não ser que... ela parou. Oh não! Eram vocês os caras que debocharam do meu maiô

antiquado naquele dia na praia? indagou Cris fitando-os apavorada.


- Que maiô? perguntou Trícia.

- Que dia? indagou Helen. Do que vocês estão falando?

Douglas e Ted continuaram comendo, com a expressão de quem sabia algum

segredo. Cris teve vontade de jogar alguma coisa neles.

Douglas deve ter percebido a sua intenção porque engoliu a pizza rapidamente,

inclinou-se para a frente, e disse:

- Não fomos nós que dissemos aquelas piadinhas não. Mas notamos você naquele

dia, sim.

- Era meio difícil não notar, murmurou Ted.

Douglas quase engasgou com sua coca quando Ted disse isso. Agarrou um

guardanapo e cobriu a boca e o nariz, tentando segurar o riso.

- Aí já não foi legal, Ted; não foi legal mesmo!

Cris sentiu vontade de sair correndo e chorar até não poder mais. Como podiam

fazer uma coisa dessas com ela? Aquela experiência fora horrível. Alguns surfistas

tinham rido do seu maiô que parecia uma "vagem". Que maldade do Ted e Douglas

mencionar o fato agora! Ela baixou a cabeça e ficou piscando

depressa procurando segurar as lágrimas.

- Alguém quer mais pizza? perguntou Ted, levantando-se.

Antes de deixar a mesa, ele se inclinou e cochichou baixinho no ouvido de Cris:

- Gosto do seu cabelo agora, mas gostava bastante também quando estava

comprido.

E saiu para buscar mais pizza.

Cris sentiu o coração bater forte. A impressão deixada pelo sussurro de Ted, o

hálito quente em seu pescoço perduraram alguns instantes. As lágrimas estancadas

evaporaram, mas aí veio a raiva.

Por que você sempre faz isso comigo, Ted? Sempre me coloca nessa
montanha russa, e, o que é pior, parece estar-se divertindo muito!

Helen, a magrinha, ficou com o rosto vermelho e bateu a lata de Coca Cola na

mesa.

- Vocês rapazes são todos uns... uns...

- "Malas"? perguntou Douglas, soltando uma gargalhada. Ted voltou rindo

também. Parecia estar curtindo muito a situação.

- Bem, talvez nós, meninas, simplesmente não queiramos patinar com vocês

"malas". O que vocês acham, Trícia, Cris, será que deixamos esses caras aqui e vamos

ao shopping!

- Não! replicou Trícia imediatamente, e todos a fitaram surpresos. Quer dizer, já

liguei para o rinque de patinação e eles vão nos dar um desconto porque somos mais de

oito pessoas.

- Devíamos deixar os rapazes irem sozinhos e pagarem mais caro, disse Helen,

mostrando a língua e fazendo careta para Ted e Douglas.

- Eu também não guardaria uma coisa suja dessas na minha boca, não, disse

Douglas.

E os dois rapazes tiveram outra crise de riso.

E foi assim o tempo todo, na ida para o rinque. Pareciam dois meninos de oito

anos, soltando piadinhas infantis. Cris ficou irritada com o jeito deles. E falou de sua

frustração para Helen num momento em que estavam sentadas num banco, olhando o

grupo patinar ao som da música estridente.

- O Ted está me deixando louca! Age como um garotinho. Não me surpreenderia

se daqui a pouco ele arrancasse um sapo do bolso!

- Você realmente gosta dele? perguntou Helen.

Alguns fios de seu fino cabelo loiro haviam-se soltado da trança e dançavam em

volta de seu rosto. Ela dava a impressão de ser muito simples, uma pessoa totalmente

confiável.
- Posso lhe dizer uma coisa? indagou Cris, baixando a voz.

- Claro, replicou Helen, arregalando um pouco os olhos.

- Eu realmente gosto muito do Ted. Mas não consigo saber o que represento para

ele. Um dia, ele age como se gostasse de mim, e no outro, é uma peste.

- Isso é porque não sabe o quanto você gosta dele! Você é bonitinha e amável com

todo mundo. Aposto que ele não tem a menor idéia de que você está mesmo interessada

nele mais do que no Douglas.

- E isso é que é mais esquisito, confessou Cris. Lá na casa da Trícia, quase pensei

que ele estivesse com ciúme porque me viu conversando com o Douglas. Mas aí ele e

Douglas ficaram falando todas aquelas coisas sem graça. Minha vontade foi de dar uns

tapas nos dois.

- E devia ter dado! exclamou Helen. Sabe, acho que talvez seja por aí mesmo!

- Como? Bater no Ted?

- Não! falou Helen rindo. Fazer ciúmes nele. Ele é meio devagar, você sabe.

- É, eu sei.

- Então, dê um jeito de estimulá-lo. Dê uma flertada com o Douglas e o Ted vai

ver que se não agir rapidamente perderá você.

- Sei não, Helen. Acho que não é certo fazer esse tipo de jogo com os sentimentos

dos rapazes não. Com nenhum deles.

- Ah, experimente! O que você tem a perder? Chame o Douglas pra patinar e veja

o que acontece. Vá!

Relutantemente, Cris atravessou a pista e ficou em pé junto à grade olhando o

pessoal girando por ali. Viu Ted patinando devagar na periferia do rinque com duas

meninas mais novas a cercá-lo, prontas para "atacar" se ele caísse, o que acontecia com

certa frequência. Talvez Ted fosse um grande surfista, alto e bonitão, mas nos patins era

bastante desajeitado. As garotas o tinham notado no instante em que ele chegara, e


desde então passaram a segui-lo.

Cris sorriu, lembrando de quando ela e Paula, sua amiga do Wisconsin, tinham

aquela idade. As duas costumavam ficar em volta dos rapazes mais velhos e mais

atraentes, sonhando com o dia em que estariam no segundo grau e exagerando as

histórias sobre os rapazes cada vez que as recontavam.

Agora Cris estava no colegial e era bastante grandinha. Será que ainda seria capaz

dessas infantilidades? Será que a idéia da Helen de "fazer ciúmes no Ted" não seria tão

tola quanto algumas das que ela e Paula tinham inventado, quando cursavam o primeiro

grau?

Naquele instante a música parou. Os patinadores pararam e a iluminação foi

diminuída. O disc-jóquei anunciou a patinação de casais.

Cris queria estar no meio da pista com o Ted a segurar-lhe a mão, do jeito que

sonhara na véspera.

- Ainda bem que você está aí, disse Douglas, chegando de repente por trás. Estava

procurando você. Quer patinar comigo?

- Eu... bom... principiou ela.

Cris detestava quando gaguejava desse jeito. Não queria entrar no "jogo" de fazer

o Ted ficar com ciúme, mas fora Douglas que a convidara e não o contrário. O que

deveria fazer?

- Vamos! disse Douglas, tomando-a pela mão. Você sabe patinar, Cris. Eu a vi na

pista. Não finja que não sabe!

Douglas também patinava bem. Para frente, para trás, e ela o vira até mesmo

rodopiar com a maior perícia. Agora patinavam de mãos dadas pela pista meio

escurecida. Iam deslizando com arte.

- Vamos tentar uma coisa, sugeriu Douglas.

Em seguida, colocou-se à frente de Cris, passando a patinar de costas, virado para

ela. Segurou-a pela cintura e ela firmou as mãos nos braços dele.
- Me avise se eu for trombar com alguém, pediu o rapaz.

- Espero que você saiba patinar bem de costas, falou a moça meio tensa. Eu só sei

patinar normal.

- Que nada! Você sabe patinar de costas, não sabe não?

- Cuidado! gritou Cris.

Douglas olhou para trás e conseguiu desviar de duas crianças que tinham acabado

de cair.

- Essa foi raspando! Boa! Vamos, eu lhe ensino a patinar de costas.

No restante do período da patinação de casais, Douglas e Cris ficaram treinando:

primeiro ele ia de costas, depois girava a Cris e ela ficava de costas, dirigida por ele. No

começo, ficava só olhando para trás, com medo, mas depois, relaxou e se divertiu

bastante, deslizando com a graça de uma bailarina. Era maravilhoso.

A música suave chegou ao fim e todas as luzes foram reacesas. A pista se encheu

de gente. Douglas dirigiu Cris para o centro do rinque onde ela rodopiou segura numa

das mãos dele e acabou na outra. Era tão divertido! Cris mal notou que a iluminação

fora diminuída novamente e eles anunciaram as "tríplices" .

- Vamos arranjar mais alguém, disse Douglas. Olha ali a Helen.

Ele apontou para a jovem que lhes acenava na beirada da pista e chamou-a para se

juntar a eles. Helen pegou a outra mão de Douglas e os três se puseram a dar voltas na

pista.

No momento em que Douglas não estava olhando, Helen fez um sinal para Cris;

como que dizendo:

- Bom trabalho! Você está flertando com ele do jeito que eu falei!

Cris ficou em silêncio. Havia se esquecido da idéia de fazer ciúmes no Ted. Ela e

Douglas estavam apenas se divertindo. E nem era grande coisa. Ela nem sentia mais

aquela emoção diferente ao segurar a mão dele. Aliás, as mãos dele estavam um tanto

suadas.
- Olha aí! exclamou Helen com voz de ratinho, apontando para um trio

desajeitado à frente deles.

Era Ted e as duas "deslumbradas" meninas do primeiro grau.

- Oi cara! gritou Douglas ao passar por eles. Gostei das suas muletas.

As meninas deram risada e puxaram o braço de Ted, que parecia totalmente

chateado. Cris sentiu-se culpada e com ciúmes. Tinha sentimentos de culpa por estar

com o Douglas e, embora parecesse bobagem, tinha ciúmes das meninas. Afinal de

contas, o que aquelas "garotinhas" estavam fazendo patinando com o seu "namorado"?

Não fora assim que pensara passar o dia. Mas tinha de melhorar. Precisava

conversar com o Ted.


O Cachorrinho Ferido
7

Por volta das 17:30 o pessoal devolveu os patins e entrou na kombi do Ted.

Seguiu-se uma discussão do que fariam a seguir: iam para casa, jantar fora, ao cinema,

ou comer pipoca e chocolates em lugar do "jantar".

Cris tinha vontade de ir para casa e começar novamente o dia. Passara o tempo

todo na pista de patinação com o Douglas e não trocara uma palavra sequer com o Ted.

Agora, sentada ali no banco da frente, achava-se bem próxima dele. Era a primeira vez

que isso acontecia nesse dia. Ele parecia bem. Não estava zangado e nem chateado, mas

também não se podia dizer que estivesse ótimo. Só bem.

O grupo decidiu ir jantar no Richie's. Ted ligou o carro, que arrancou com um

solavanco e saiu do estacionamento como um antigo trem de ferro.

- É melhor eu ligar pra meus tios e perguntar se posso ir, disse Cris.

- É no caminho. Nós damos uma parada lá. Se eles disserem que não, você já

estará em casa, replicou Ted sem rodeios e sem olhar para ela.

O que será que você quer dizer com isso? Que não quer que eu vá

junto? Deseja que eles digam "não", pra me deixar em casa e livrar-se de

mim? Ted! Há meses estou esperando uma chance de encontrar-me com

você, e agora não conseguimos nem conversar!

- Traga alguns daqueles brownies que você e a Trícia fizeram, gritou Douglas do

carro, quando ela ia entrando na casa.

Cris correu e chamou o tio.


- Aqui dentro, respondeu Bob da sala de televisão, onde lia o jornal.

Estava esticado na poltrona, os pés levantados. A televisão estava ligada e David

ora assistia, ora mexia com seu carro de controle remoto.

- O pessoal está lá fora esperando, explicou a garota. Querem ir a um lugar

chamado Richie's pra jantar. Posso ir?

- Você disse Richie's? Boa escolha. Claro. Aqui, falou ele enfiando a mão no

bolso, tenho só trinta dólares. Será que dá?

- Ah, é muito! Só preciso de uns cinco ou seis.

- Leve os trinta. Ofereça-lhes o meu milkshake predileto: fantasia oreo. É de

matar! Divirtam-se!

- Onde é que ela vai? perguntou David, no momento em que Cris saía correndo

pela porta da frente.

Ela voltou para a "Kombi Nada" com vigor renovado.

- Meu tio me deu trinta dólares e disse pra pagar pra todo mundo.

A turma estava envolvida em várias conversas e Helen ria às gargalhadas no

banco de trás. Só o Ted escutou.

- Legal, replicou ele, sem olhar para ela.

Vamos lá, Ted, converse comigo! O que é que há?

Naquele instante, o Douglas se inclinou para a frente metendo a cabeça entre Cris

e Ted e perguntou onde estavam os brownies.

- Não tinha mais.

- Aqueles brownies estavam de primeira. Você não achou, Ted?

Ted acenou que sim, mas não disse nada.

Agora Cris começava a ficar zangada. Por que ele age dessa maneira?

- E então, Cris, continuou Douglas. Quando é que vamos patinar de novo?

Estávamos ficando bons no negócio, hein? Você viu, Ted? O que foi que achou? Nada

mal, hein?
Ted respondeu devagar e em tom firme:

- É. Vocês dois ficaram muito bem juntos.

Cris já ouvira essas palavras antes: a mesma frase passara pela sua cabeça dezenas

de vezes na noite anterior, quando sonhara em patinar de mãos dadas com o Ted, não

com o Douglas! Não era o Ted que devia estar dizendo isso! Outra pessoa devia estar

fazendo esse comentário sobre ela e Ted! Estava tudo ao contrário!

Ted foi entrando no estacionamento perto do cais. O grupo saiu do carro

conversando e dando risada. Douglas abriu a porta do lado de Cris.

- Você não vem?

Ela desceu do carro e juntou-se à turma que seguia pelo cais. Ted ia na frente, e

Trícia andava ao lado de Brian e Helen. Douglas ficou bem ao lado de Cris.

O vento do oceano soprava forte e Cris estava congelada até os ossos. Alguns

pescadores mais obstinados, de casacos bem grossos, estendiam as varas de pescar em

direção à água escura lá embaixo. As ondas batendo nas pedras atiravam no ar uma

névoa fina. Cris cruzou os braços e passou as mãos neles, tentando se aquecer.

- Está com frio? perguntou Douglas.

Antes que ela respondesse, ele já tinha tirado seu casaco e o colocara nela, pondo

o braço esquerdo no ombro de Cris e puxando-a para mais perto de si.

Espere aí! disse ela em pensamento. Por que o Douglas está fazendo isso? E

se alguém vir? E se o Ted vir?

Afastou-se um pouco, procurando ver se alguém no grupo havia notado. Mas

todos continuavam à frente, de costas para eles. Então, como se Douglas lesse seu

pensamento, tirou o braço. Engraçado. Enquanto estavam patinando, ela não se

incomodou de que ele segurasse sua mão ou pusesse o braço em volta dela. Mas agora,

ali, sentia-se constrangida. Não sabia se ele agia "como um irmão", porque estava

fazendo frio, ou como se eles fossem namorados.

Douglas deu uns passos à frente e abriu a porta do pitoresco restaurante, situado
na ponta do cais. Era um ambiente pequeno e aconchegante, com decoração dos anos

cinquenta, assentos forrados em vinil e um balcão com banquetas vermelhas.

O grupo ficou aguardando que o reservado maior, de canto, fosse desocupado para

que pudessem sentar todos juntos. Cris retardou os passos na esperança de sentar-se ao

lado do Ted. Mas ele já se instalara junto à parede e não havia lugar ao seu lado.

Assim mesmo ela se armou de coragem e foi até onde ele se encontrava,

esperando que o rapaz se afastasse para dar-lhe um espaço. Mas ele fez que nem viu.

Nem dava para acreditar! Estava ignorando-a completamente!

- Cris, disse Douglas. Tem um lugar aqui.

Ótimo! Vou sentar perto de você, Douglas, e vou rir e me divertir e

vou até esquecer que o Ted está aqui.

Trícia chegou e correu os olhos pela turma avaliando a disposição dos lugares.

Provavelmente ela fora ao banheiro, enquanto eles estavam-se ajeitando, pois seu

cabelo, normalmente preso num rabo-de-cavalo, agora estava solto. Pegou uma cadeira

e colocou-a bem entre Douglas e Cris. Olhou feio para a amiga e disse:

- Belo casaco!

- É do Douglas, defendeu-se a moça. Estava gelado lá fora.

- Sei, replicou Trícia num tom frio.

Não acredito que isso esteja acontecendo! São todos meus amigos,

crentes perfeitos, espirituais, e estão a ponto de me trucidar. O que é

que há com esse povo hoje?

Cris abriu o cardápio e ficou olhando-o sem ver as palavras.

- Fritas com chili parece uma boa pedida! exclamou Douglas com animação

forçada.

- Parecem muito sem graça! disse uma das garotas.

- Ó Ted! gritou o Douglas, olhando para a ponta da mesa. O que é que você

costuma pedir?
- Burger praiano, respondeu o outro sem entusiasmo, olhando para Cris e

mantendo o olhar fixo nela.

Em seguida, fez uma expressão diferente. Nada de extraordinário; não mexeu as

sobrancelhas, nem os olhos, ou talvez os tivesse movido ligeiramente. Mas foi um olhar

diferente e profundo, como se via nos filmes antigos, quando o herói fitava a mocinha à

procura de uma resposta no seu rosto.

O olhar de Ted com sua mensagem silenciosa penetrou fundo. Cris desviou os

olhos para o cardápio. Contudo só via os olhos azul-acizentados do rapaz que pareciam

gritar: O que você fazendo comigo, Cris?

Será que ele também estava chateado pelo modo como o dia tinha acabado?

Talvez, mas também não estava se esforçando muito para mudar a situação.

- E você? indagou o garçom dirigindo-se à Cris, batendo levemente o lápis sobre o

cardápio dela.

A garota levantou o olhar e viu um rapaz com camisa branca e gravata borboleta

preta, parecendo um personagem de um filme antigo.

- Aã... acho que vou comer um burger praiano também, e... vocês têm milkshake

de oreo?

- Fantasia oreo, respondeu ele. É uma de nossas especialidades.

- Quero um.

Ela permaneceu em silêncio, observando o Douglas que demonstrava para a Trícia

como se faz uma "minhoca" com o invólucro do canudinho. Primeiro, ele o amassou

bem apertado, como fole de acordeão. Depois, com o canudo, pingou água sobre a

"minhoca" e ela cresceu imediatamente. Trícia parecia estar muito à vontade. Ria e

incentivava as brincadeiras bobas do Douglas. O rapaz, por sua vez, estava adorando a

atenção recebida e em seguida pôs-se a fazer um truque de mágica com duas moedas e

um guardanapo.

Agora era a Cris que estava sendo ignorada enquanto Douglas e Trícia faziam suas
brincadeiras. Achava que Ted ainda estava olhando para ela, mas não tinha certeza. Deu

uma olhada despistada na direção dele e percebeu que não estava. Continuou calada

durante a meia hora seguinte, mordiscando sem entusiasmo o seu hamburger. Nem pôde

se deliciar com o famoso milkshake.

Enquanto os outros comiam e conversavam, ela foi ao banheiro. Surpreendeu-se

com sua imagem no espelho. O cabelo estava encrespado por causa do ar úmido e as

bochechas e o nariz avermelhados devido à patinação no gelo. A sombra tinha virado

um risco azul-esverdeado no meio da pálpebra. O rímel formara manchas negras no

canto dos olhos.

Rapidamente pegou uma toalha de papel, molhou-a e tentou consertar a

maquiagem dos olhos. Em seguida falou, um pouco para Deus, um pouco para si

mesma:

Viu só como tudo deu errado? Claro que viu! Bem, não quero ser

insolente nem nada, mas não acho que é isso que os teus crentes

deviam estar fazendo comigo.

Parou, olhou seu reflexo e acrescentou:

Sei que, como amiga dos outros, não sou nada de excepcional; mas

pelo menos não tenho sido mal educada, como a Trícia.

Naquele instante a porta do banheiro se abriu e Helen entrou, quase sem fôlego.

- Cris! Está dando certo! Nem acredito! Nunca vi ele agir desse jeito...

- Quem? Agir de que jeito?

- O Ted! Ele tá parecendo um cachorrinho ferido. Está zangado com o Douglas.

Ele está morrendo de ciúme!

- Mas não quero que ele fique com ciúme! Não quero que ele fique com raiva de

ninguém, reclamou Cris. Helen, não era pra ser assim!

- Não era? indagou Helen parecendo surpresa.

- Não. Esse tipo de jogo com as pessoas não dá certo. Pode crer.
- Mas claro que dá. Você patinou com o Douglas e o Ted ficou com ciúme, não

foi?

- Helen, não foi pra provocar ciúmes no Ted que patinei com o Douglas. Acabei

patinando com ele porque nós dois sabíamos patinar. Só isso.

- Ah é? E o casaco? falou Helen olhando para o blusão do Douglas que Cris ainda

estava usando.

- Eu estava com frio e ele me emprestou.

Helen girou os olhos para cima e pôs as mãos na cintura.

- Cris, é bom decidir o que quer, porque me parece que você está atrás do

Douglas.

- Não estou não. Verdade.

- Então não diga isso pra mim. Diga ao Ted.

- Adoraria dizer ao Ted. Tem um monte de coisas que eu queria dizer a ele! Só que

no momento ele não está querendo conversar comigo! falou Cris cada vez mais

zangada.

Helen virou-se, verificou o cabelo no espelho, e disse:

- Então era melhor que você não tivesse provocado ciúme nele.

- Helen! exclamou Cris, jogando a cabeça para trás e fechando os olhos.

- O quê?

- Primeiro você me diz pra provocar ciúme no Ted. Agora, depois que ele ficou

enciumado e todo mundo está com raiva de mim, vem me dizer que eu não deveria ter

feito isso?!

- E como é que eu ia saber? Achei que era uma boa idéia. O que vai fazer agora?

indagou Helen, inclinando a cabeça de lado, como um passarinho.

Era difícil continuar zangada com essa garota de olhar tão puro.

- Sei lá! Vou pensar em alguma coisa.

Atravessaram o labirinto das mesas retornando ao seu lugar no momento em que


os outros estavam tentando decidir sobre a conta.

- Aqui, falou Cris, tirando do bolso os trinta dólares e colocando na mesa. Meu tio

mandou pagar por todos.

- Tem certeza?

- Mesmo?

- É sim. Pode pegar!

Resolveram deixar uma boa gorjeta ao garçom, já que a mesa ficara muito

bagunçada. Uma das meninas comentou que o rapaz tinha visto quando eles oraram

antes de comer, e seria feio se após uma atitude tão espiritual não fossem generosos em

recompensá-lo pelo serviço.

Cris ficou para trás, esperando o Ted. Ele não disse nada. Passaram juntos pela

porta que Douglas segurava aberta. Trícia estava ao lado deste, com uma expressão um

pouco mais amena do que quando haviam chegado. Acabaram os quatro -Ted, Cris,

Douglas e Trícia - descendo juntos pelo cais. O vento estava ainda mais cortante, e

Trícia comentou:

- Puxa! Está frio mesmo hoje!

Imediatamente Cris tirou o casaco de Douglas, e disse:

- Tome aqui, Trícia. Eu já me esquentei lá dentro. Veste isso!

Ela queria que fosse um gesto carinhoso para a amiga, mas quando Trícia pôs o

casaco, dirigiu um olhar zangado para Cris, como se esta fosse uma intrusa.

Intrusa por quê? Se Trícia estava com frio, precisava de um

agasalho, não é? Ou será que ela queria que Douglas pusesse o braço no

ombro dela? Isso ele não fez.

De repente as peças do quebra-cabeças começaram a encaixar-se. Por que não

percebera isso antes? Trícia gostava do Douglas! Era ele o namorado misterioso! E Cris

tinha interferido o dia inteiro. Fora por isso que ele pedira os brownies. Trícia tinha ido

para a casa dele no dia anterior com o Ted e lhe levara seu pratinho de brownies. Era por
isso que a Trícia estava zangada! Que alívio saber qual a razão do problema! Agora,

como é que ia consertar tudo?

Ted não disse uma palavra a caminho de casa. Cris ficou meio decepcionada com

ele por tê-la deixado em casa primeiro. Antes de descer, ela tocou no braço dele e disse

baixinho para que os outros não ouvissem;

- Ted, será que uma hora dessas podemos conversar?

Ele virou-se e olhou para ela, ainda com a expressão de cachorrinho ferido nos

olhos. Num tom de quem estava chateado e sem entusiasmo algum, ele concordou.

- Claro! falou.

Douglas enfiou a cabeça no meio dos dois e disse:

- Quer fazer alguma coisa amanhã, Cris? A garota se retraiu, meio tensa. Com o

canto dos olhos observou que a Trícia não estava nada contente.

- Prometi a minha tia que passaria algum tempo com ela amanhã, respondeu

rápido.

- Oi gente, tenho uma idéia! interveio Helen em sua vozinha fina, Vamos fazer

uma festa de ano novo na minha casa? Minha mãe não se importa. Ela prefere que eu

leve os amigos pra lá a que eu saia na passagem de ano. Vamos?

Todo mundo aprovou a idéia e começou a dar sugestões. Cris olhou para o Ted,

procurando na expressão dele alguma indicação de quando o veria novamente. Ele

desviou o olhar e engatou a primeira.

- Mais tarde, foi tudo o que disse.

Cris desceu e bateu a porta da Kombi. Ficou parada na calçada, tremendo de frio,

acompanhando com os olhos o carro que se afastava levando seus amigos de todas as

horas, distanciando-se mais e mais dela.


A Mulher Silenciosa
8

Dentro de casa as luzinhas da árvore de Natal piscavam, iluminando a sala. Todo

mundo tinha ido dormir, deixando Cris sozinha com seus pensamentos.

Que dia péssimo! Será que o Ted me telefonará amanhã, ou devo

ligar pra pedir desculpas? Mas o que foi que fiz de errado? Eu não queria

ter passado tanto tempo com o Douglas, mas acabou acontecendo. Além

do mais, o Ted nem se esforçou pra patinar comigo. Talvez fosse eu que

devesse estar sentindo-se ferida, não ele.

Subiu até o quarto e jogou-se na cama. Havia uma carta sobre o travesseiro. Era

de Alissa, uma garota que conhecera nas férias passadas. No começo Cris admirava

muito a Alissa e até queria ser igual a ela, mas depois descobriu como a jovem era de

verdade e como sua vida era cheia de problemas. Elas se escreveram algumas vezes,

mas fazia meses que Cris não recebia carta dessa amiga. E se esta fosse parecida com as

anteriores, provavelmente não teria boas notícias.

Cris se espichou sobre a cama, respirou fundo, e leu:

Querida Cris,
Perdi seu endereço em Escondido. Espero que esta chegue certinho.

Desejo a você e sua família um feliz Natal.

Muita coisa está acontecendo na minha vida, e sinto que você é a

única pessoa com quem posso me abrir. Por favor, não pense muito mal

de mim, mas Cris, não sou inocente como você. E até gostaria de ser!

Mas a verdade é que estou grávida.

Ela parou um instante para digerir a notícia. Depois continuou a ler, mas antes de

chegar ao final da segunda página as lágrimas já rolavam, embaralhando as palavras.

Pensei em fazer um aborto porque achava que isso facilitaria tudo e

meu problema desapareceria. Mas é como dizem: "Dois males somados

não viram um bem". Certamente você pensará muito mal de mim, e sei

também que nunca deveria ter chegado a essa situação, mas cheguei.

Uma amiga minha fez um aborto e disse que se arrependeu muito,

porque até muito tempo depois ela ainda tinha pesadelos com o negócio.

Disse que se tivesse de fazer tudo de novo, teria o nenê e depois o

entregaria pra ser adotado. Acho que é o que vou fazer: entregar meu

nenê pra ser adotado.

Cris enxugou as lágrimas antes de continuar a leitura. Estava tão chateada pela

situação de Alissa! Contudo a última parte da carta era um pouco mais animadora.

Lembra que em sua última carta você disse que eu deveria procurar

arranjar uma Bíblia e conhecer outros crentes? Pois fui a um centro de

gravidez de risco e minha conselheira, Frances, é cristã. Ela está me

ajudando e me deu uma Bíblia. Tenho ido à igreja com ela. Sei que você

ficará feliz em saber isso.

Obrigada, também, por estar orando por mim. Estou mesmo

precisando muito de suas orações - lembre-se disso. Sei que não vai ser

fácil, mas acho que estou no caminho certo.


Bem, isso explica por que f az algum tempo que não escrevo. Não

se sinta na obrigação de me escrever. Eu só queria lhe informar sobre o

bebe. Queria também pedir que ore sempre por mim.

Alissa.

Após ler a carta Cris só podia orar. Não sabia ao certo como devia fazê-lo, mas

derramando sentidas lágrimas por Alissa, apresentou a Deus os seus pedidos, meio

desajeitadamente, até cair no sono.

*****

- Cris, querida... Já acordou? indagou Marta batendo as unhas de acrílico na porta

do quarto. Já se levantou?

- Sim, tia Marta, respondeu Cris com voz rouca, mal levantando a cabeça.

- Muito bem. Acho que devemos sair dentro de, digamos, meia hora?

Cris deixou a cabeça cair bruscamente no travesseiro.

Ah é. Dia de ir as compras com tia Marta. Como fui me esquecer?

- Estarei pronta, replicou.

Na verdade Cris duvidava de que conseguisse se arrumar em apenas meia hora,

mas estava decidida a não irritar a tia.

Saíram de casa dentro do horário previsto por Marta, que até mesmo aprovou o

jeans e a blusa escolhidos por Cris. Era a blusa nova com os coraçõezinhos vermelhos,

que ganhara de presente de Natal.

- Você se divertiu ontem com seus amigos?

- Sim.

Não era bem verdade, mas Cris não estava disposta a entrar em detalhes.

- É maravilhoso ver o Ted de volta, não acha?

- Aã, ha, respondeu Cris com um sorriso forçado. Vamos lá, Cristina! Não vá

dizer nada negativo. Diga o que ela quer ouvir e tudo estará bem.
- E aquela garota, Trícia, é uma gracinha, não acha? Bob disse que vocês se

divertiram muito fazendo brownies. Estou tão contente que tenha bons amigos aqui,

Cristina. Sabe que é difícil arranjar amigos queridos assim.

Ela não disse palavra alguma. Nenhuma palavra. Meus "amigos queridos"

estão todos prontos a me chutar pra longe. Meu relacionamento com

eles nunca mais vai ser o mesmo. Tudo que sobrou da amizade que

tivemos nas férias está murcho e estraçalhado - igual àquelas pétalas de

cravo que guardei dentro da lata. O que é que faço com um monte de

recordações ressecadas?

Naquele instante, Marta parou num sinal fechado. O mesmo sinaleiro, o mesmo

cruzamento onde, nas férias passadas, no meio da rua, Ted tinha lhe dado um buquê de

cravos brancos e um beijo.

Não conseguia mais afastar o nó de autopiedade que a engasgava. Virando para a

janela, deixou as lágrimas caírem.

Só durou um instante. O sinal abriu. Cris fingiu uma crise de tosse e mexeu na

bolsa à procura de um lenço de papel. Com uns retoques e um pigarro na garganta,

conseguiu controlar as emoções. Mas Marta nem notou. Que contraste com as férias

passadas, quando Cris derramava suas tristezas por todo lado e deixava a tia juntar os

pedaços.

As coisas haviam mudado entre elas. Não apreciava mais a personalidade

dominadora da tia. Cris sentiu como que o sabor de uma vitória vendo que conseguira

conter as emoções, e interiormente se congratulou pelo autocontrole e amadurecimento.

Agora, se conseguisse fazer desaparecer aquele aperto dolorido que sentia na boca

do estômago...

- A primeira coisa do dia, começou Marta, é o seu horário das 9:30 com o

Maurice. Ele vai ficar surpreso ao ver como seu cabelo cresceu!

- Você marcou hora pra eu cortar o cabelo?


- Sabia que você não se importaria. Já cresceu tanto, querida. Está precisando de

cortar.

- Não, interrompeu Cris. Não vou cortar o cabelo! Manobrando dentro do

estacionamento da Fashion Island, Marta olhava espantada para a sobrinha.

- Cristina, estou chocada. O que está dizendo?

- Não quero cortar o cabelo, disse ela proferindo cada palavra devagar e com

determinação. Estou querendo deixar crescer.

Respirou fundo olhando para Marta que estacionou o Mercedes, desligou o motor

e virou-se para encará-la.

- Você nem me perguntou, tia! continuou a garota. Podia pelo menos ter

perguntado o que eu achava!

Marta se retraiu parecendo uma tartaruga que se enfia no seu casco. Sua voz saiu

controlada como a de Cris, mas, mais suave e educada.

- Querida, eu estava pensando no que seria melhor para você.

Por uns instantes reinou o silêncio. Em seguida Marta pigarreou e depois

literalmente botou a cabeça para fora de novo.

- Vamos ao cabeleireiro. Você lava e faz escova. Daí, se quiser fazer mais alguma

coisa, diga para o Maurice exatamente como quer seu cabelo. Assim está bem?

Cris queria gritar "Não, não está bem! Não me agrada a sua Interferência na

minha vida!" Mas, embora a dor no estômago fosse só aumentando, ela se controlou e

respondeu:

- Tudo bem.

Maurice lavou o cabelo de Cris conversando animadamente com Marta. Cris ficou

muda. Depois de condicionar e enxaguar, ele enrolou uma toalha em sua cabeça e

conduziu-a para o lugar de pentear.

Cris olhou-se no espelho. Sua expressão era inquietante. Dura e fria, de dentes

cerrados. Não gostou.


Vieram-lhe à mente as palavras de uma canção da Debbie Stevens que ouvira na

casa do Ted. Silenciosamente começou a cantarolá-las como se fosse uma oração:

Toca este coração tão cheio de dor,

Cura-me com o teu amor.

Abranda-o e aquece-o,

Quebranta-me com o teu amor.

Não quero que te afastes de mim.

Volta ao meu coração,

Volta para ficar,

Quero ser amoroso, como tu és,

Quebranta-me com o teu amor.

- Tão comprido! Tão precisado de um corte, de um trato! disse Maurice que

removera a toalha e afofava o cabelo de Cris com os dedos. Da próxima vez não espere

tanto tempo para voltar aqui!

Cris encontrou o olhar dele no espelho e falou com firmeza, mas educadamente:

- Estou deixando meu cabelo crescer. Não quero cortar hoje.

- Mas então só uma aparadinha? insistiu Maurice já com a tesoura na mão.

- Não. Quero deixar crescer.

Maurice e Marta trocaram olhares no espelho atrás de Cris. A garota se sentia

meio desconfortável. Não queria ser uma chata.

Quero ser amorosa, como tu és,

Quebranta-me com o teu amor.

Maurice jogou a tesoura sobre o balcão e afastou-se da cadeira. O olhar de Marta

dizia: "Ah não! Agora você atrapalhou tudo! Ofendeu o mais famoso cabeleireiro de

Newport Beach!"
Cris deu um sorriso amarelo para sua tia. Não um maldoso sorriso de vitória, mas

um sorriso legal, suave. Era um sorriso que mostrava que seu coração estava-se

amolecendo, mas não a sua decisão. Demonstrava que ela já sabia o que queria, e

ninguém iria "fazer" sua cabeça.

Maurice colocou no colo de Cris um livro grande com uma variedade de

penteados. Folheou-o rapidamente até chegar à seção que mostrava modelos mais

longos.

- Como este? indagou ele apontando a gravura de um cabelo ondulado que dava

pêlos ombros com franjas compridas penteadas mais para os lados. Examinando o

desenho atentamente, Cris amoleceu um pouco mais.

- É bonito. Gostei. Mas o meu cabelo não é tão encorpado. Só fica um pouco

anelado.

- Aha! exclamou Maurice, pegando o livro e fechando-o. Faremos um suporte.

- Quer dizer uma permanente? Marta se aproximou.

- Cris, quer fazer uma permanente de suporte hoje, querida?

Parecia estar falando com uma criança de dois anos, exagerando cada palavra para

verificar se Cris concordava mesmo com a idéia.

- Não tinha pensado nisso, mas, está bem! Desse jeito posso manter o cabelo

comprido.

- Tem certeza de que é isso mesmo que quer, minha querida? falou Marta com um

sorriso meio tenso.

As emoções de Cris se conturbaram, provocando de novo o aperto no estômago.

- Sim, tia Marta. É o que quero.

Parece que todo mundo ficou aliviado horas depois quando Maurice se afastou um

pouco para admirar sua obra. O cabelo de Cris ficou lindo. Muito bonito. Ela adorou.

Embora o anelado desse a impressão de que estava um pouco mais curto, deixou-o mais

espesso e cheio.
Maurice tinha arrumado as franjas um pouco altas demais para o seu gosto. Mas

sabia que podia abaixá-las assim que saísse do salão.

Cris cumprimentou o cabeleireiro e agradeceu, dizendo-lhe que fizera um

excelente trabalho. Ele ficou contente. Marta parecia satisfeita.

- Quer fazer algumas compras, Cris? Ou prefere comer alguma coisa antes?

- O que você quiser.

Foi como se Cris tivesse acabado de entregar-lhe as rédeas de uma parelha de

cavalos bravos. Marta agarrou-as e lá se foram elas, como um pé de vento, entrando em

várias butiques e lojas da moda. Cris comprou um enfeite de cabelo, esmalte para unhas,

um espelho "dobrável" para levar na bolsa e meias de náilon. Nada empolgante demais,

mas Marta parecia satisfeitíssima a cada compra que a garota fazia. Estava claro que

Cris poderia escolher o que quisesse.

Contudo ela não se soltou, nem saiu comprando roupas e acessórios à vontade.

Ainda se sentia meio chateada por causa do Ted, do problema com Trícia e da situação

de Alissa. Ademais, estava sendo mimada, e não gostava disso. Via-se controlada pela

tia, e detestava isso também.

Além do mais sua vontade não era estar fazendo compras. Preferia estar em casa,

tomando alguma providência para resolver a situação com o Ted. Tinha a sensação que

cada minuto que passava com a tia afastava-a mais dele.

Às 14:30 Marta anunciou que era hora de almoçarem. Cris sugeriu que fossem

para casa e fizessem uma salada, mas a tia insistiu em dirigir até Corona del Mar.

Estacionou em frente de um pequeno restaurante na estrada costeira, com o sugestivo

nome de A Mulher Silenciosa. A velha placa acima da porta da frente era em estilo de

taverna inglesa e trazia a gravura de uma mulher sem cabeça. Aparentemente, essa era a

"mulher silenciosa".

Sentadas confortavelmente num dos reservados, Marta pediu "vitela à Oscar" para

si e o mesmo para Cris, e depois indagou:


- Está bem para você, Cristina?

- Claro, qualquer coisa.

Na verdade ela preferia um hamburger, mas não se importava, desde que

comessem logo e pudessem chegar em casa, onde ela tentaria resolver algumas das

complicações de sua vida.

O garçom trouxe as bebidas e colocou-as à frente delas. Cris esperou que ele

saísse e em seguida abaixou a cabeça para orar.

- Você realmente levou a sério esse negócio de religião, hein? Cris sentiu-se um

pouco constrangida ao ver que a tia percebera que ela havia orado.

- Nossa família sempre ora antes das refeições, disse.

- Sim, sei disso, querida. Contudo notei que você faz isso mesmo quando seus

pais não estão por perto. É algo que faz por sua própria iniciativa. Isso merece um

elogio, não acha?

Cris deu de ombros.

- É. Acho que sim. Nunca pensei na oração como algo que a gente faça pra

receber elogios.

Minutos depois o garçom estava à sua frente, servindo os pratos saborosos e

enchendo suas taças de água. Cris deu uma provadinha na tal "vitela à Oscar" e achou-a

deliciosa. Marta parecia extremamente satisfeita com a refeição e, entre uma garfada e

outra, conversava sem parar.

- Estou contente por ver como você está amadurecendo, Cristina. Confesso que,

meses atrás, em Palm Springs, fiquei preocupada quando você e suas amigas saíram do

quarto do hotel no meio da noite.

Cris abriu a boca para se defender, mas Marta balançou o garfo fazendo-lhe sinal

para escutar.

- Não precisamos falar daquela noite, e eu só a mencionei para dizer que gostaria

de exercer uma influência maior sobre sua vida.


Cris esperou que a tia continuasse. Sentia-se na defensiva, como quem espera

alguma crítica. Marta era mestra em despejar críticas ferinas.

- Percebi que você estava relutante em sair comigo hoje. Nos últimos dias, tem

estado totalmente absorvida por suas amigas, e entendo isso. Contudo, acho que você

está dificultando meu envolvimento em sua vida. Acho ótimo que esteja tomando

posição e assumindo aquilo que quer. Mas gostaria que você discutisse as coisas comigo

e pedisse minha opinião. Acredito que posso fazer muito por você e dar-lhe aquilo que

ninguém mais pode dar.

Cris se remexeu, meio incomodada. Amava a tia, mas não apreciava sua mania de

agir como se fosse sua mãe.

- Para deixar isso bem claro vou-lhe dizer algo: Cristina, você é a filha que nunca

tive. Eu a vejo assim: como uma filha. Quero só o melhor para você. Entende o que

estou dizendo?

Cris fez que sim. Entendia perfeitamente. Só que não queria outra mãe. Nem uma

"produtora" ou fosse qual fosse o papel que Marta quisesse desempenhar.

- Percebo um grande potencial em você. Talvez mais do que seus pais. Poderia

fazer de você uma pessoa muito importante. Você tem um corpo, um rosto, uma

personalidade - é, poderia chegar a ser realmente importante!

Nunca antes os elogios doeram tanto!

- Vejo você tornar-se o tipo de jovem que se destaca numa multidão, continuou

Marta, aparentemente alheia ao desprazer que se estampava no rosto de Cris. Se deixar

que eu me envolva mais em sua vida, posso ensinar-lhe a tornar-se alguém que

consegue tudo que quer; uma jovem belíssima, dessas que marcam presença. Uma

garota como, bem, como aquela sua amiga das férias, a Alissa.

Bóoóoing!

Cris sentiu algo explodir dentro dela.

- Como a Alissa? É isso que você quer?! Quer que eu seja como a Alissa?
- Abaixe a voz, querida.

- AH! fez Cris rindo alto, e depois abaixou um pouquinho a voz. Acontece, tia,

que a Alissa está grávida de cinco meses!

Marta deixou cair o queixo e arregalou os olhos.

- O nenê vai nascer antes dela se formar do colegial. É isso que você quer que

aconteça comigo?

Agora as lágrimas corriam pelo rosto de Cris. Ela não se importava quem estava

olhando ou o que iriam pensar dela.

Mas Marta se importava. Levantou-se depressa, como se precisasse sair correndo.

Examinou rapidamente a conta, e jogou-a de volta na mesa com duas notas de vinte

dólares.

Cris enxugou os olhos e foi atrás da tia que, muito tensa, caminhava depressa pelo

centro do restaurante e corria até o carro.

Agora estraguei tudo! Por que não fiquei de bico calado?

Marta bateu a porta do carro e arrancou, entrando na corrente do trânsito. Mas

havia tanto carro na pista que só conseguiram rodar alguns metros. Pararam com um

solavanco. Andaram mais alguns metros e, a seguir, outra parada brusca, com Marta

sempre metendo o pé no freio. Nesse ritmo, iriam levar meia hora para chegar em casa.

Ansiosa por acalmar as coisas, Cris perguntou:

- Compreende agora por que não quero ser como a Alissa? Marta fez que sim sem

olhar a sobrinha, e mais uma vez pisou no freio.

- Só quero ser eu mesma. Não. Na verdade é mais que isso: só quero ser como

Deus quer que eu seja.

- Isso é muito bom, Cristina. Muito nobre. Contudo... e Marta parou, freiou de

novo com outro solavanco como que enfatizando mais seu ponto de vista, a vida nem

sempre é do jeito que a gente espera ou que a gente quer.

Havia um peso entre elas. Cris percebia que Marta não entendia. Mas também,
talvez nem Cris entendesse completamente.

Mais uma parada do carro e Marta começou a tossir: uma tosse fingida, meio

engasgada. Cris teve a impressão de ver lágrimas em seus olhos.

O que há comigo? Por que estou deixando todo mundo irritado? Não

faço nada direito!

- Tia Marta, me desculpe. Não queria entristecê-la, falou Cris sentindo sua

determinação acabando.

Marta não respondeu. O resto do tempo até chegar em casa foi de silêncio total.

Quando iam subindo a rampa da casa, uma Toyota amarela, de tração nas quatro

rodas, seguiu-as e estacionou à frente da casa. Era a camionete do Douglas. David

estava sentado no banco da frente com ele, todo sorridente.

- Nós nos divertimos mais do que vocês! cantarolou o garoto, pulando do carro

para ir ao encontro de Cris e Marta, que estavam de cara amarrada. Nós fomos andar de

skate.

- David! exclamou Marta. Você estragou seu jeans novinho em folha!

E despejou no garoto um monte de palavras irritadas. Cris entendeu que o pobre

do David estava recebendo as bofetadas verbais que a tia tencionava dirigir a ela.

- Eu sei. Caí uma porção de vezes, confessou o menino meio sem graça, apagando

toda a chama de animação de sua voz.

- Vá para dentro e troque-se imediatamente!

Sem dizer mais nada, David correu para dentro. Cris sentiu muita pena dele.

Douglas viera aproximando-se lentamente de onde Cris e Marta estavam,

esperando acabar o conflito. Marta virou-se para ele e sorriu; mostrava-se calma e

charmosa, exibindo a elegância de sempre.

Cris pigarreou, controlando as emoções e fez as apresentações, explicando que o

Douglas era amigo do Ted. O rapaz disse que sabia que Cris tinha saído para fazer

compras, mas resolvera dar uma passada por lá assim mesmo. Como a garota ainda não
tinha voltado, resolveu levar o David a uma pista de skate.

Marta parecia contente e disse:

- Que bondade a sua, Douglas! É um prazer conhecê-lo. Cris, por que não convida

seu amigo para ficar para o jantar se ele quiser? Ainda não sei bem o que está sendo

planejado mas... e então virou-se para o Douglas com uma doçura exagerada, pode

jantar conosco.

- Obrigado, disse ele, sem se comprometer.

Marta pediu licença e saiu. Cris e Douglas ficaram sozinhos na rampa.

- Seu cabelo está bonito, disse Douglas. Você arrumou ou fez o quê?

- Fiz permanente. Estou deixando crescer, respondeu com um olhar significativo.

Ele sorriu e continuou:

- Você fica bem de cabelo comprido, comentou e deu uma cheirada. Tem perfume

de flores ou algo parecido.

- É o condicionador que usaram, explicou pegando uma ponta do cabelo e

puxando perto do nariz. Acho que tem cheiro de maçã verde.

- É isso então? Falou ele.

Em seguida, com um gesto natural, colocou uma mão sobre o ombro dela e se

inclinou para frente, cheirando-lhe o cabelo perto da orelha.

Naquele instante, Cris ouviu um barulho muito conhecido. Olhou para a rua e viu

a ”Kombi Nada” passando.

O que devo fazer?

Não dava pra ver o rosto do Ted, mas sabia que ele vira o Douglas inclinado sobre

ela, cheirando seu cabelo. Ted descia a rua em disparada como se não tivesse nenhuma

intenção de parar na casa dela.

- É isso mesmo, concordou Douglas, afastando-se um pouco, completamente

alheio ao que acabava de acontecer. É cheiro de maçã verde.

Cris sentiu vontade de gritar, mas ficou parada, congelada. Não acredito que
tudo isso acaba de acontecer!

- Parei para conversar com você. Será que posso?

- Sobre o quê? retrucou Cris com rispidez.

- Bem, podíamos sentar um instante na minha camionete? perguntou Douglas

afastando-se um pouquinho.

- Está bem, acho que sim, respondeu ela, procurando acalmar-se.

Assim que entraram na cabine da Toyota, Cris ficou correndo os olhos para um

lado e outro da rua, para ver se o Ted iria voltar. Desejava que ele voltasse, mas depois

já não queria, pois tudo estava muito confuso naquele momento. Precisava resolver uma

coisa de cada vez. Primeiro o Douglas.

- Bom, espero que não me entenda mal. Não sei direito como vou dizer isso.

Pela primeira vez Cris reparou no Douglas. Ele parecia estar sério.

- Pode dizer, Douglas. Pode me dizer qualquer coisa. Pode confiar em mim.

Ao mesmo tempo sentiu-se insegura, sem saber em que estava-se metendo.

- Sei que posso, disse o rapaz sorrindo. Notei isso quando a conheci. Você é muito

accessível. Deixa os outros bem à vontade para conversar sobre qualquer coisa.

Ah é! Muito accessível. É por isso que todo mundo que conheço está

furioso comigo no momento?

Então lembrou-se da carta de Alissa. A jovem abrira o coração para ela, e no

entanto Cris mal a conhecia. Ela havia dito "Sinto que você é a única pessoa com quem

posso me abrir".

Douglas foi direto ao assunto.

- O que eu queria dizer é que, bom, vou dizer. É que vou sair com a Trícia hoje à

noite.

- Vai? perguntou Cris animada, e impulsivamente inclinou-se para a frente, pôs as

mãos nos ombros dele e exclamou: Que maravilha!

Douglas ficou meio surpreso e se afastou. Cris soltou-o depressa. Não queria que
Ted passasse de carro novamente e a visse com a mão no ombro do Douglas dentro da

camionete dele.

- Eu queria lhe dizer porque, bem, gosto muito de você e não queria que isso

atrapalhasse a nossa amizade.

- Não se preocupe. Não atrapalha em nada. Estou contente por saber que vocês

dois vão sair.

- Acho que como nós ficamos patinando e tudo o mais, talvez alguma coisa

estivesse começando entre nós, mas eu não tinha certeza. Quer dizer, eu sei o quanto

você significa para o Ted, e nunca vou querer ficar entre os dois, mas assim mesmo,

creio que estamos nos tornando bons amigos e gostaria que continuasse assim.

Ele disse tudo num fôlego só e em seguida respirou fundo, como que para ganhar

coragem.

- É, o que eu queria dizer é que desejo ser seu amigo, mas às vezes, quando a

gente sai com alguém, todo mundo fica pensando que não queremos ser amigos de mais

ninguém, e queremos ficar o tempo todo só com aquela pessoa. Sabe o que eu quero

dizer?

Ele parecia muito sincero. Cris sorriu. Era a primeira vez que sorria naquela tarde.

Deu-lhe um aperto de mão.

- Douglas, eu entendo, sim. De verdade! Podemos ser amigos - bons amigos - e só

porque você está namorando a Trícia, isso não muda nossa amizade. Pode até melhorar

as coisas.

- Como assim?

- Só posso dizer que estou muito contente por saber que você e a Trícia vão sair

juntos, disse Cris após uma pequena hesitação.

- Ótimo! exclamou Douglas sorrindo.

- Posso lhe perguntar uma coisa? O Ted sabe que você vai sair com a Trícia hoje?

- Não. Ainda não falei com ele hoje.


- Então me faça um favor e conte a ele, tá?

- Claro. Por quê?

- Só pra ele ficar sabendo. Está bem?

- Tudo bem, falou Douglas estendendo a mão e tocando-lhe novamente o cabelo.

O que eles fizeram? Puseram fios elétricos no cabelo e ligaram a um gerador ou coisa

parecida?

Cris olhou-o fingindo-se irritada e se afastou dele.

- Douglas, você precisava ter uma irmã para ensiná-lo com relação às questões

mais delicadas para as garotas. Na verdade, tanto o Ted quanto você precisavam de uma

irmã.

- Está interessada na "vaga"?

- Talvez, respondeu ela brincando.

Douglas caiu na risada, olhando para a janela, às costas de Cris. Ela virou-se e viu

seu irmão fazendo caretas grotescas e babando em cima do vidro.

- É, mas pensando bem, acrescentou Cris em tom mais sério, talvez eu já tenha

"irmãos demais", e não precise de mais nenhum.

Confidências à mamãe
9
Cris teve muito em que pensar aquela noite. No dia seguinte seus pais voltariam, e

isso significava que ela teria de acertar as coisas com a tia. Restavam-lhe só mais alguns

dias para gozar da companhia dos amigos da praia, e precisava falar com o Ted. Além

do mais, ela queria acertar tudo entre ela e Trícia. Pretendia escrever logo para Alissa,

mas não sabia direito o que dizer. Esses problemas todos a deixavam com uma estranha

sensação interior.
Resolveu começar pelo Ted. Vestiu o robe e calçou os fofos chinelos de coelhinho.

Foi ao quarto dos tios para telefonar. Corajosamente discou o número de Ted,

planejando dizer a primeira coisa que lhe viesse à mente. Iniciaria a conversa e deixaria

que Ted a conduzisse a partir dali.

Tocou quatro, cinco vezes, e afinal uma voz grave de homem atendeu. Não era o

Ted. Seria o pai dele?

Cris abriu a boca e... não saiu nada. Bateu depressa o fone no gancho e ficou

olhando o aparelho como se ele fosse um bicho de estimação que de repente a mordera.

Tudo aconteceu depressa demais e .ela se sentia ridícula. Não tinha coragem de ligar de

novo. Por que desligara? Por que o coração batia tão depressa? Voltou para a cama e

soltou uma gargalhada nervosa.

Tão ousada e corajosa! Havia corrido de volta para o seu quarto, como um

ratinho, os chinelos de pelúcia espalhando pelinhos brancos sobre o carpete do corredor.

Na manhã seguinte tentou telefonar duas vezes para o Ted, mas cada vez desligava

antes mesmo de o telefone começar a chamar. Qual era o problema?

Helen ligou por volta do meio-dia, contando, toda animada, uma porção de

novidades e os planos da festa que teriam na noite seguinte.

- Você conversou com mais alguém hoje sobre a festa? perguntou Cris.

- Com quem, por exemplo? indagou Helen, parecendo saber aonde Cris queria

chegar.

- Bem, o Ted já deu certeza que vai? Eu precisava muito conversar com ele,

Helen.

- Por que você não telefona pra ele?

-Já tentei, mas...

- Está bem, eu ligo pra ele, depois ligo pra lhe contar o que ele disse.

- Não é preciso, Helen.

- Não, eu preciso mesmo falar com ele. Se por acaso eu mencionar que você tem
tentado se comunicar com ele, não dou muita ênfase não.

Cris suspirou ao telefone.

- Vou ligar pra ele agora mesmo, está bem?

- Está bem, replicou Cris dando outro suspiro. Não quero complicar ainda mais a

situação.

- Não se preocupe. Vai dar tudo certo. Olha como tudo está dando certo para o

Douglas e a Trícia. Hoje ele vai jantar na casa dela. Não é ótimo?

- Sim, formidável!

No fundo, Cris estava sendo sincera, mas no momento não era consolo algum

saber que Douglas e Trícia estavam juntos. Ela ainda não tinha acertado as coisas com a

Trícia, e aquele negócio da Helen ligar para o Ted era só mais uma parte desse jogo.

Por que ela não conseguia ser corajosa e franca como o Douglas? Ele tinha sido

tão atencioso no dia anterior quando viera falar-lhe em particular e verificar se ela não

se ofenderia por ele sair com a Trícia. E o Douglas era o único amigo cuja personalidade

não tinha mudado nos últimos dias. Quando patinara com ela, ele a tratara do mesmo

jeito de quando lhe contara que iria namorar uma outra garota, isso era ser um amigo

verdadeiro de todas as horas.

Quando Helen ligou instantes depois, falou algo que perturbou Cris

profundamente.

- Ted disse que talvez ele não possa vir à festa. Disse que vai a um jantar amanhã.

- Jantar? Com o pai dele?

- Não disse, mas deu a impressão de um jantar com uma garota ou coisa parecida.

Cris sentiu o coração apertar.

- Eu achava que ele não estava namorando ninguém.

- E não está, pelo que sei. Talvez alguém pediu pra sair com ele, sabe; como, por

exemplo, uma prima de outra cidade que veio passar as festas aqui, e ele não pôde fugir

do compromisso.
- Formidável!

- Mas eu lhe disse que você estava tentando comunicar-se com ele. Ele explicou

que o seu pai acabou de chegar da Suíça e ele tem ficado em casa pra passar algum

tempo com o velho. Talvez você deva ligar de novo.

- E por que ele não telefona pra mim? Seria pedir demais?

- Não fique assim na defensiva! Eu tentei, está bem?

- Desculpe, Helen. É que achei que ele fosse à sua festa e aí seria a hora perfeita

pra conversar com ele.

- Bem, ele disse que ia a esse jantar, mas que depois talvez desse uma passada

aqui. Por que você não telefona?

- É, vou pensar no caso.

Mas não telefonou. Não poderia. Pelo menos não imediatamente. No momento,

com os sentimentos em frangalhos, não aguentaria outro baque se o Ted não

correspondesse do jeito que ela queria.

Sabia que devia ligar para ele. Mas decidiu adiar e foi refugiar-se na sala de

televisão, evitando contato com Marta ou qualquer outra pessoa. Passou a maior parte

do dia assistindo a filmes antigos na TV e comendo tudo que encontrava. Tudo, isto é, a

não ser queijo importado.

Os seus pais chegaram no final da tarde, quando assistia à última parte de Capitão

Janeiro, um antigo filme de Shirley Temple, a que ela nunca tinha assistido.

- Cris! gritou o pai ao entrar na casa. Por favor, venha ajudar-nos. Busque a última

mala.

- Está bem! Daqui a um minuto! replicou ela, com os olhos grudados na TV.

Seu pai parou na porta da saleta, e disse:

- Eu preciso muito de sua ajuda neste instante, Cristina.

- Está bem, me desculpe, disse ela, levantando de um salto e correndo ao carro.

- Onde é que coloco, pai? perguntou ao entrar com a mala.


- No quarto de visitas do térreo, por favor, respondeu o pai, encaminhando-se para

a cozinha.

Cris apressou-se, esperando pegar o final do filme. Empurrou a porta do quarto

com o ombro e parou. Na cama estava sua mãe, com o pé engessado.

- Mãe, o que aconteceu?

- Não é nada, minha filha. Ontem, eu escorreguei e caí. Uma fratura fininha. Nem

dói, mas o médico não quer que eu fique andando.

- Mãe, eu não sabia!

- Não tinha por que lhes avisar. Não é tão ruim assim, falou a mãe sorrindo e

ajeitando o cabelo castanho que começava a ficar grisalho.

- Pelo seu pai, continuou ela, eu provavelmente estaria internada no hospital, mas

o médico o convenceu de que estou bem.

Ela ajeitou o travesseiro para apoiar-se nele e agradeceu a Cris por ter trazido sua

mala.

- E então, me conte: como foi a semana aqui? Foi boa?

Naquele momento, Cris sentiu como se ainda tivesse quatro anos de idade.

Deitou-se ao lado da mãe, encostou a cabeça no ombro dela, e chorou até não poder

mais.

Mas as lágrimas duraram só alguns minutos. Cris levantou a cabeça, limpou os

olhos e, sentindo-se ridícula, ficou pedindo desculpas várias vezes. Como é que ela fora

descontrolar-se assim tão de repente?

Sua mãe sorriu e lhe entregou um lenço. Fazia tempo que elas não viviam um

momento de intimidade como esse. Em voz suave, a mãe sussurrou:

- Deve ter sido uma semana bem ruim. Cris hesitou um instante.

- Não foi tão ruim, mãe. É só que todo mundo ficou zangado comigo e agora

entrei aqui e a vi com o pé engessado e eu nem sabia... explicou Cris, desviando os

olhos. Oh, minha mãe! Minha vida está caindo aos pedaços!
- Quer conversar sobre isso?

Geralmente Cris não contava à mãe muitos dos detalhes de suas amizades, mas

agora que começara a abrir-se com ela, resolveu falar.

Numa longa conversa, relatou tudo sobre o Ted, sobre o ciúme que a Trícia tinha

dela com o Douglas; e, embora isso já estivesse solucionado, ela ainda não tinha visto a

Trícia. Contou da festa que a Helen ia dar, se bem que talvez o Ted não fosse...

- Quando é essa festa? perguntou a mãe. E onde vai ser? Cris disse que seria no

próximo dia, na casa da própria Helen, e em seguida indagou:

- Posso ir, não posso? Preciso conversar com o Ted. Quer dizer, se ele for, mas

preciso mais ainda conversar com a Trícia e deixar bem claro pra ela que eu não estava

tentando roubar o Douglas dela.

- É. Acho que sim. Parece que vai dar tudo certo, isto é, assim que você conseguir

conversar com seus amigos e esclarecer as coisas.

Nervosa, Cris roía as unhas.

- Você não me parece muito convencida disso, disse a mãe. A propósito, seu

cabelo está muito bonito. Marta levou-a ao cabeleireiro?

Cris fez que sim, com um leve aceno de cabeça.

- Fizeram compras também? Ela acenou confirmando.

- Só que acabamos discutindo no almoço.

- O que foi que aconteceu?

Cris nunca imaginara que seria tão fácil conversar com a mãe. Talvez fosse porque

não tinham tido essa oportunidade antes. Ou talvez fosse porque ela nunca tivesse

tentado, achando que a mãe não a entenderia. Mas o que fora que Bob dissera na manhã

de Natal? Que os pais de Cris também tinham sido jovens. E como sua mãe fora criada

junto com Marta, sabia que de vez em quando era difícil comunicar-se com ela!

Cris contou sobre o Maurice e como Marta lhe dissera, no almoço, que Cris era a

filha que ela nunca tivera. Os olhos azul-acinzentados de sua mãe se embaçaram.
- O que mais Marta lhe disse?

- Que queria que eu fosse como a Alissa, uma garota que conheci nas férias

passadas.

- É, disse a mãe pensativa. Lembro-me de ter ouvido a Marta mencionar essa

moça.

- Mãe, disse Cris, fitando-a nos olhos, recebi uma carta da Alissa uns dias atrás, e

ela me contou um monte de coisas... disse e aí parou um instante, e em seguida concluiu

de chofre: Mãe, a Alissa está grávida!

A mãe ficou séria, mas com uma expressão terna e compreensiva.

- Assim que ela ficou sabendo, foi a um centro de aconselhamento. É que na

última carta que lhe escrevi, eu disse que estava orando por ela e que talvez fosse bom

se ela procurasse conhecer outros crentes. E ela procurou informar-se e encontrou esse

centro de gravidez de risco, dirigido por cristãos, e eles a têm ajudado.

Sua mãe continuava escutando atentamente.

- Disse também que sua conselheira do centro de gestantes era uma senhora

chamada Frances, e que a estava levando à igreja. Essa era praticamente a única notícia

boa da carta.

- E onde a Alissa mora?

- Em Boston, com a avó. O seu pai morreu e sua mãe está num centro de

recuperação para alcoólatras.

- Que tristeza! exclamou sua mãe abanando a cabeça. Você contou tudo isso a

Marta?

- Não, replicou Cris, abaixando a cabeça. Quando tia Marta disse que queria

transformar-me numa pessoa como a Alissa, repliquei que ela estava grávida.

- E qual foi a reação de sua tia?

- Não conversou mais comigo. Pedi desculpas, mas desde aquela hora, ela mal

fala comigo.
A mãe de Cris inclinou-se para a frente, colocou um travesseiro sob o pé

engessado, e se aprumou.

- Cris tenho que lhe contar uma coisa.

Agora era a vez da mãe se abrir e Cris não sabia o que esperar.

- Marta teve uma filha certa vez, contou ela em tom doloroso e terno. Uma

semana antes de você nascer, Marta deu à luz uma menininha.

Cris olhou surpresa para a mãe, mal acreditando no que ouvia.

- Era prematura, de seis meses, e nasceu com o cérebro seriamente afetado. Os

médicos fizeram o que foi possível, mas ela morreu. Parou um instante e depois

acrescentou: No dia seguinte você nasceu.

Cris deixou as lágrimas correrem.

- Eu não sabia, mãe. Por que nunca me contou?

- Marta não gosta de falar sobre isso. Nunca, e com ninguém.

- Por que eles não tiveram outros filhos?

- Tentaram. Apesar de o médico aconselhar que não o fizessem, eles tentaram.

Marta não conseguia engravidar.

- Por quê? indagou Cris, sentindo pela tia uma avalanche de emoções que nunca

sentira antes.

- Bem, continuou a mãe, escolhendo as palavras com cuidado, às vezes uma

pessoa toma uma decisão que no momento parece a mais fácil ou a melhor, mas depois

descobre que a escolha teve um alto preço.

- Não entendi.

A mãe de Cris parou um instante, e disse:

- Se Marta conversar sobre o assunto, daí você lhe pergunta, está bem?

Cris ficou calada, lembrando uma série de conversas, discussões e atos de sua tia

que antes parecia não ter sentido, mas que agora tinha. Fora por isso que Marta lhe

dissera que Cris era a filha que ela nunca tivera! Ela era como uma espécie de substituta
da filha que Marta perdera.

- Mãe, eles deram nome à menininha?

Uma expressão de ternura estampou-se no rosto de sua mãe.

- Johana. Johana Grace. O nome de nossa avó, da sua bisavó.

- Johana. É um bonito nome.

- Quase que foi o seu segundo nome. Eu e seu pai íamos dar-lhe o nome de

Cristina Johana. Mas depois da morte da pequena Johana, bem...

Cris enxugou as últimas lágrimas e abanou a cabeça.

- Mas que esquisito, mãe! É engraçado saber que meu segundo nome quase que

foi outro e que tive uma prima e nunca soube. Existem outros grandes segredos da

família que eu deveria saber?

- Acho que por agora estas são as únicas coisas que você deveria saber. Eu não

planejava contar-lhe sobre a Johana, mas achei que isso a ajudaria a entender melhor a

sua tia. Ela realmente gosta de você, Cris. Acho que sabe disso, não é? Não tem de

concordar com tudo que ela planeja, mas entenda que ela age por instinto maternal.

Você é muito importante para ela.

Naquele momento o pai entrou no quarto e perguntou se a mãe desejava alguma

coisa.

- Não, obrigada, replicou ela. Está tudo bem. Escorada assim fica muito melhor,

falou a mãe apontando para a perna engessada, elevada pelo travesseiro.

- Pai, disse Cris, virando-se na cama e olhando para ele. Eu queria saber se posso

ir à casa da minha amiga Helen amanhã à noite. Ela vai dar uma festa de ano novo. Os

seus pais estarão lá e tudo o mais.

O pai sentou-se na beira da cama, e abanou a cabeça.

- Não me agrada a idéia de você estar fora de casa na passagem de ano.

- Mas na casa da Helen não tem perigo algum. Não é longe daqui. E é a última vez

que vou me encontrar com todos os meus amigos.


- Sua tia me disse que você passou a maior parte da semana com eles, disse seu

pai.

- Na verdade, não passei não. Fomos patinar um dia, e foi só, falou Cris meio

tensa.

Parecia que seu pai não ia permitir que ela fosse à festa e isso significava que

talvez não visse mais o Ted.

- Vou pensar no assunto, Cris. Nós não conhecemos os seus amigos daqui, nem a

família deles.

Cris sentiu o coração apertar. Talvez ele não me deixe ir, e aí o que é que vou

fazer?

- Podemos conversar sobre isso mais tarde, Cris, disse a mãe. Você me faz um

favor e veja se a Marta precisa de ajuda para preparar o jantar?

- Pelo jeito, já está tudo pronto, informou seu pai.

- Tudo pronto? O que é que vai ter para o jantar? Perguntou a mãe.

- Pelo que vi, vamos ter um bufe de queijos importados. Mamãe resmungou e fez

"não" com a cabeça.

- Por favor! exclamou Cris. Qualquer coisa, menos queijo!


O N úmero Errado
10
Na verdade, o principal prato do jantar foi frango. E durante a refeição Cris não

fez nada do que planejara. Pretendia levantar de novo o assunto da festa da Helen, com

um objetivo em mente: se o Bob soubesse do caso, talvez convencesse seu pai a deixá-la

ir. Mas não teve coragem de falar.

Depois do jantar, os homens foram para a área na frente da casa brincar com o

carro de controle remoto do David. Cris tirou a mesa sozinha e arranjou a louça na

lavadora enquanto sua mãe e Marta conversavam na sala. Desde o conflito do dia

anterior, a tia mal olhava para Cris. Isso inquietava a garota. Não sabia se deveria pedir
perdão novamente ou deixar passar.

A sós na cozinha, ela ficou a pensar sobre as questões que a perturbavam. Parecia

que todos os seus relacionamentos agora estavam "em compasso de espera". Colocou o

detergente na máquina e ligou-a. A máquina começou a funcionar e Cris encostou-se no

balcão, desejando poder remover os eventos desagradáveis da semana com a facilidade

que uma lavadora lava a louça.

O telefone tocou. Tocou novamente, e Cris atendeu.

-Alo?

- Olá, Cris! Como vão as coisas?

-Ted?

- Eu mesmo. Como vai?

-Bem.

Ele a pegara desprevenida. Não sabia o que dizer.

- Tem certeza? perguntou ele com voz calma. Cris hesitou. O que devo dizer?

A verdade?

- Na realidade, as coisas já estiveram bem melhores. Pronto, agora ela estava

falando a verdade.

Seguiu-se uma pausa estranha. Uma pausa que deixou Cris completamente

insegura, sem defesa, achando que Ted talvez estivesse arrependido de ter ligado.

- A Trícia me disse que você queria que eu lhe telefonasse.

- Trícia?

- Ela disse que a Helen falou que você queria que eu telefonasse pra você.

Oh não! Outro daqueles "triângulos". Pegou o telefone sem fio e sentou-se

à mesa da cozinha, com a testa apoiada na outra mão.

- Na verdade não, Ted. Quer dizer, eu queria conversar com você, sim. A semana

toda estou querendo falar com você. Parece que não deu certo. Mas não mandei

ninguém lhe dar o recado.


Ted não respondeu nada. Cris achou que deveria ser sincera e dizer o que

realmente sentia.

- Ted, o que eu queria lhe dizer era que...

Naquele momento, Marta entrou na cozinha, e de repente Cris parou de falar; seu

coração parecia que havia parado também.

- O quê? indagou Ted.

Cris desviou o olhar da tia, que tirava um refrigerante diet da geladeira. A garota

caminhou calmamente até a janela, parecendo olhar o pai que manobrava o carrinho de

controle remoto na rampa da entrada.

- É que a semana não foi como eu esperava. Gostaria que tivéssemos passado mais

tempo juntos.

-Sim.

É só isso que você sabe dizer, Ted? "Sim"? Estou abrindo meu cora-

ção e só o que você diz é "sim"?

Houve outra pausa constrangedora e, dando a impressão de haver-se esforçado

muito para escolher as palavras certas, Ted falou:

-As coisas também não foram do jeito que eu desejava. Mas está tudo bem. Vai

dar tudo certo. Quanto a mim, nada mudou.

Foi só o que ele disse. Ela ficou aguardando que ele continuasse, que explicasse

como tudo iria dar certo, que marcasse uma hora, que dissesse que iria à casa dela. Mas

não falou nada disso. Não marcou nenhum compromisso. Marta colocou um copo

debaixo do picador de gelo. O gelo caía nele com muito barulho.

- Acho que estou tomando muito do seu tempo, disse Ted.

- Não, não tem importância. Está tudo bem, replicou Cris observando a tia que

saía da cozinha. O que é que você ia me dizer?

- Não quero impedi-la de passar mais tempo com seus familiares.

- Mas não está impedindo não, Ted. De verdade.


- Conversaremos mais quando nos encontrarmos. É melhor eu desligar agora. Até

mais tarde.

- Quando? indagou Cris com firmeza.

Mas só ouviu o som do telefone que acabava de ser desligado. O que você quer

dizer com "mais tarde"? Quando vamos conversar? Ted! O que você quis

dizer ao falar que "nada mudou"?

Cris atravessou a cozinha, recolocou o telefone no suporte e correu para a sala de

jantar. Lá deu de cara com a tia. Cada uma olhava firme para a outra, a princípio sem

dizer nada.

Após uns instantes, Marta abaixou a cabeça, e com o copo de gelo na mão,

murmurou:

- Com licença, querida.

Cris não estava aguentando mais aquela frieza e o distanciamento entre elas.

- Espere um minuto, tia!

Marta virou-se. A frustração que Cris tivera com o Ted encheu-a de ousadia, e ela

resolveu abrir-se com a tia, embora se expressasse meio asperamente.

- Tia Marta, minha mãe me contou sobre a Johana. Fiquei muito sentida. Eu nunca

soube...

- Ela o quê! gritou Marta furiosa.

Cris não se deixou intimidar, mas abrandou a forma de abordar o assunto.

- Mamãe me contou sobre o seu nenêzinho, a menininha, e como...

- Ela não tinha o direito de fazer isso!

- Bem, mas estou muito contente de que ela tenha contado, pois me ajudou a

entender por que você faz tantas coisas pra mim e por que você...

Marta levantou o indicador e sacudiu-o a poucos centímetros do nariz de Cris,

resmungando entre dentes cerrados:

- Você não entende nada, Cristina. Absolutamente nada!


Virou-se e saiu, deixando-a sozinha na sala de jantar. Cris ouviu a porta dos

fundos abrir-se e a voz de seu pai na cozinha. Correu para seu quarto, sentindo-se

arrasada, resolvida a ficar longe de todo mundo.

O objetivo de conversar não era exatamente resolver conflitos? As pessoas não

deviam falar de seus sentimentos abertamente? Então por que a situação ficava cada vez

pior quando ela tentava conversar com a tia e por que, por que será que ela se sentia

mais confusa e frustrada depois de haver falado com o Ted?

O que é que estou fazendo de errado? Ficou deitada na cama, a cabeça a mil por

hora, tentando coordenar os pensamentos. Depois de muito tempo, pegou a Bíblia.

Tinha visto um versículo no visor da camionete do Douglas. Falava algo sobre Deus

conhecer nossos pensamentos. Era do Salmo cento e trinta e alguma coisa.

Abriu no Salmo 130 e começou a ler: "Das profundezas clamo a ti, Senhor..."

Puxa, é assim que estou me sentindo hoje!

Continuou a ler. Alguns versículos não tinham muito sentido para ela e saltou

alguns trechos. Afinal chegou no Salmo 139, e encontrou o verso do Douglas:

"Senhor, tu me sondas e me conheces. Sabes quando me assento e quando me

levanto; de longe penetras os meus pensamentos. Esquadrinhas o meu andar e o meu

deitar e conheces todos os meus caminhos. Ainda a palavra me não chegou à língua, e

tu, Senhor, já a conheces toda."

Fechando a Bíblia, deitou-se com as mãos sob a cabeça e fitou o teto.

"Senhor, seja sabes o que estou pensando e o que vou dizer, então por que deixas

que eu atrapalhe tudo o tempo todo? Por que não podes dirigir minha vida um pouco

melhor? Todo dia tenho de voltar e confessar de novo que fiz tudo errado. O Senhor não

se cansa disso? Eu não podia acertar pelo menos agora, uma vez só, para não ter de

voltar e pedir-te outra chance? Não quero viver sempre nessa agonia com meus amigos

e parentes. Quero que tudo dê certo, tranquilo. E quero te agradar."

Sua oração foi sincera. Ela dissera isso de todo coração. E sabia que Deus ouvira
tudo que ela dissera. Afinal de contas, ele sabia até mesmo os seus pensamentos, não é

mesmo?

E então, por que no dia seguinte tudo estava do mesmo jeito? Nada parecia ter

mudado.

Marta nem olhou para Cris no café da manhã. Ninguém tocou no assunto da festa

e papai não parecia estar muito accessível. Então Cris simplesmente ficou calada e

esperou.

Quando conseguiu ficar a sós com a mãe, Cris contou-lhe que falara sobre a

Johana para a tia Marta e como a tia ficara zangada. Estava na expectativa de ter outra

conversa aberta e franca com a mãe, como no dia anterior. Mas esta soltou um

resmungo e abanou a cabeça.

- Por quê? Por que você lhe falou?! Eu não lhe contei aquilo para você ir jogar

tudo de volta para a Marta!

- Eu não joguei. Quer dizer, não foi essa a minha intenção. Eu só queria contar a

ela que eu sabia.

- Mas por quê?

- Porque isso mudou tudo pra mim. Agora eu a entendo muito melhor e sei por

que ela me trata do jeito que trata. Você disse que eu poderia perguntar para ela sobre o

problema.

- Não, não, não! O que eu disse foi que se Marta mencionasse o assunto ela

poderia lhe dar maiores detalhes, porque eu não me sinto com liberdade de fazê-lo. No

momento, é melhor não conversarmos mais sobre esse assunto.

- Está bem. Desculpe. Eu não quis...

- Sei que não, disse a mãe, em tom mais suave. Me dá aquela almofada ali? pediu

indicando uma almofada na poltrona de canto na sala.

Cris foi pegá-la e entregou-a à mãe, que a colocou sob o pé engessado.

- Mãe, arriscou Cris. Você acha que vou poder ir à festa da Helen hoje à noite?
- Acho que não, Cristina. Talvez no ano que vem, quando você estiver mais velha.

- Mas mãe! Preciso ver meus amigos e conversar com eles como nós duas

conversamos!

Certamente a mãe a compreenderia, sabendo o quanto aquilo era importante para

Cris. Ela poderia convencer o pai a deixá-la ir, não poderia?

- Sei que você vai ficar chateada, Cris, mas haverá outras festas de passagem de

ano. Eu diria que o melhor que você tem a fazer é telefonar para a Trícia e para o Ted.

Tente resolver as coisas por telefone.

Que golpe arrasador! O que o tio Bob dissera sobre os seus pais? Que eles já

tinham sido jovens? Talvez sim. Mas naquele momento, Cris se recusava a acreditar que

sua mãe e seu pai tivessem sido adolescentes normais. Afinal, seja tivessem sido,

saberiam da importância daquela situação toda.

Então era melhor mesmo telefonar para os dois. Melhor do que voltar para

Escondido sem resolver nada. Não faria mal nenhum. Indo para o andar de cima, Cris se

muniu de coragem e discou o número da Trícia.

- Alo? era a mãe dela.

- A Trícia está?

- Não, saiu com uns amigos. Quer deixar recado?

- Sabe quando ela volta?

- Hoje de tardezinha.

- Então tentarei ligar depois. Até logo.

Cris desligou e ficou olhando o telefone. Era agora ou nunca. Tinha de ligar para o

Ted. Ele atendeu na primeira vez que o telefone tocou.

- Olá Ted! disse ela corajosamente.

-Oi!

- Posso falar um pouco com você?

- Claro!
Que barulho era aquele nos fundos?

- Ted, eu queria saber se você vai à festa da Helen hoje à noite.

- Talvez.

- Bem, é que eu queria conversar um pouco com você. Vou embora pra minha

casa amanhã.

- Compreendo.

Vamos lá, Ted! Você só sabe responder com frases de uma palavra?

E que barulheira é essa nos fundos?

- Então? Quando poderemos conversar?

- Mais tarde, respondeu ele com um risinho fraco. Cristina perdeu as estribeiras.

- O que você quer dizer com mais tarde?! Seria muito pedir que você desse uma

resposta certa? Que negócio é esse de sim, tá bem, talvez, mais tarde?! Por que você não

pode dar uma resposta definida?

Ted não respondeu. Ela nunca tinha gritado com ele antes. Escutava a respiração

dele e ouviu claramente a voz do Douglas dizendo:

- Vamos lá, Ted! Vai ficar no telefone o dia inteiro?

Então o Douglas estava lá! Significava que a Trícia também estava. Todos os

"amigos de todas as horas" se encontravam na casa do Ted, e ninguém pensara em

convidá-la. Como isso doía!

De repente ela lembrou que durante meses achara que seu relacionamento com o

Ted não mudaria, mas isso não era verdade. O fato é que ela não sabia o que

representava para ele. Não sabia mesmo!

- Ô Cris... principiou Ted.

Mas ela o cortou dizendo algo que não havia pensado dizer e de que se arrependeu

assim que o disse.

- Ah, desculpe, falou com voz amarga e fria. Devo ter discado o número errado.

Pensei que fosse outra pessoa.


Bateu o telefone e caiu no choro. Um minuto depois, o telefone tocou. Ela deixou

tocar duas vezes procurando controlar a voz tremula, e afinal atendeu.

- O que é que está acontecendo? perguntou Ted. Ela não conseguia responder.

- Cris, disse ele, num tom que foi direto ao coração dela. Não sei o que está

havendo, mas seja lá o que fiz de errado, me desculpe, tá bem?

- Não é culpa sua, Ted, replicou Cris, piscando e deixando cair as lágrimas. O

problema é comigo. Desculpe-me por ter-lhe incomodado.

- Você não me "incomodou", falou o rapaz parecendo irritado, mas em seguida

amenizou a voz e continuou: Escuta, vamos deixar assim por enquanto. Mais tarde

conversaremos mais um pouco, está bem?

Era uma afirmação direta. Uma daquelas declarações firmes que Ted costumava

fazer. Com isso Cris sentiu ainda mais o vazio.

- Está bem, concordou com voz rouca, e, em tom mais brando, repetindo a

expressão do Ted: Mais tarde, bateu o telefone.

E agora, quando é que vamos conversar? Ted está com todos os

amigos na sua casa hoje e à noite vai ter um importante encontro. E

mesmo que eu vá à f esta da Helen, será que vamos poder conversar, ou

o Ted irá levar a convidada com ele - se ele for, né?

De repente David entrou no quarto.

- Cris? Ah, você está aí. Quer jogar vôlei?

-Não!

- Quer andar de bicicleta?

-Não!

- Vamos lá! Vamos à praia!

- Não quero, David. Simplesmente me deixe em paz.

- Aposto que você iria se o Ted estivesse lá!

Cris deu um salto e empurrou o irmão para fora do quarto.


- Nunca mais fale nesse nome!

E saiu do quarto feito um raio enquanto David cantarolava atrás dela:

- Ted! Ted! Ted! Ted! Ted! Ted!

O Tocador de Bandolim
11
- Cris! era Bob chamando-a com voz suave. Eu queria informá-la de que hoje

teremos visitas para o jantar. É uma espécie de tradição. Sempre temos um jantar formal

na passagem de ano. Você terá de usar um traje de festa.

Ela não queria se arrumar. Não queria jantar. E mais do que tudo, não queria ir à

festa da Helen. Estava convencida de que não tinha amigos de verdade em Newport

Beach. Seria melhor voltar para casa, embora lá as coisas também não estivessem muito
melhores. Toda vez que estava na companhia de várias pessoas, cabava por chateá-las e

ela própria também ficava chateada. Por que sua vida não podia ser calma, simples e

sem complicações?

Alguns minutos mais tarde, ouviu a batida forte da mão de seu pai na porta.

- Cris?

Ela se aprumou e limpou a garganta.

-Oi!

Ele abriu a porta, aproximou-se e sentou na cama.

- Sobre a festa na casa da sua amiga hoje. Pensei um pouco e conversei com sua

mãe a respeito do assunto. Decidimos que você pode ir.

- Bem, agora não quero mais ir, disse Cris, com voz baixa. Seu pai olhou-a com

expressão de incredulidade e abanou a cabeça.

- Talvez mais tarde você mude de idéia. De qualquer jeito, quero que ponha seu

vestido mais bonito e desça para o jantar às dezoito horas, está bem?

Cris concordou, mas durante o tempo em que ficou no quarto, permaneceu em luta

consigo mesma, com sua maneira sonhadora de enfrentar a vida, com sua raiva e

frustração, e com a impressão de estar sempre decepcionando a Deus, apesar de

esforçar-se tanto para acertar.

A semana de Cris havia sido um grande fracasso. Seus amigos crentes a tinham

decepcionado. Ted a deixara completamente desiludida, e o impacto dos segredos de

Alissa e de Marta deixaram-na fraca e vazia.

Era assim que se sentia. Vazia. Completamente vazia.

Às 17:15 olhou o relógio e resolveu terminar a luta. Orou com sinceridade e

franqueza total.

"Você sabe o que estou pensando, não sabe, Deus? Sabe tudo que sinto. Por que

tem de ser assim? Detesto estar sempre caindo de cara no chão o tempo todo."

Veio-lhe à mente uma cena que vira dias atrás, quando saíra com a tia Marta. Uma
linda garotinha de tênis cor-de-rosa andava com a mãe. Tinha cabelinho loiro e

bochechas rechonchudas e estava começando a aprender a andar. A mãe colocou a

menina no chão enquanto olhava umas roupas. A menininha deu uns cinco passos

vacilantes e em seguida caiu de cara no chão. A mãe pegou seu anjinho, que berrava aos

ouvidos de todos, beijou-a na ponta do nariz, e a colocou de novo no chão.

Cris pensou que a menininha fosse ficar sentada onde a mãe a colocara, mas não.

Assim que parou de chorar, levantou e deu mais uns seis ou sete passinhos e foi para

junto da mãe. E ficou ali sorrindo, agarrada à sua perna.

Nesse instante Cris entendeu que era como aquela menininha, tentando andar, mas

sempre caindo.

- Está na hora de eu ficar de pé e tentar novamente, não é, Deus? Sentindo as

forças renovadas para encarar a família, entrou em ação. Tomou um banho e se vestiu

em tempo recorde.

O único vestido realmente chique que tinha trazido era um preto com uma barra

de babados. Era um vestido de festa, e ela o usaria embora a única festa que tivesse em

vista fosse ali mesmo na casa de Bob e Marta, com um monte de velhos amigos do

casal.

O vestido deixava-a parecendo mais velha. Todas as suas amigas diziam isso. Seu

pai, que sempre lhe dizia para "ir mais devagar", provavelmente não gostaria dele.

Entretanto, era o único vestido chique que trouxera.

Às dezoito horas David bateu na porta do quarto.

- Mandaram chamar você.

Cris abriu a porta de sopetão, e a primeira coisa, a única coisa que viu foi a

gravata borboleta piscante do seu irmão.

- David, você vai usar isso?

- Por que não? Eu desligo as luzinhas. Ninguém nem vai saber que ela pisca.

Olha, eu até vesti essa camisa cor-de-rosa.


E abriu o casaco para mostrar a roupa, mas Cris só notou os fios da gravata.

- Venha cá, disse, abanando a cabeça. Se quer ficar todo "ligado", pelo menos

esconda os fios.

Com poucos minutos ela arrumou os fios da gravata do irmão. Enquanto ela

ajeitava a gola atrás, David apertou o botão do bolso, fazendo a gravata piscar duas

vezes. Cris sorriu.

- Desculpe por aquela minha estupidez, David. Eu não devia ter lhe dado um

empurrão. Sabe, você é meu irmãozinho "hamster" predileto.

- Ah é? indagou David com um sorriso maroto. Então, você é o meu besouro

predileto.

- Besouro? indagou ela franzindo o nariz.

- É. Besouro. Você parece um besouro, com esse vestido preto, esse laço preto

grudado na cabeça e essa coisa escura nos olhos. Parece um besouro preto.

Cris correu ao espelho do corredor. Gostava do laço no cabelo, e não iria tirá-lo,

apesar do que David dissera. Mas talvez o irmão tivesse razão quanto ao delineador. Ela

nunca conseguia passá-lo sem manchar ou deixar riscos. Rapidamente limpou debaixo

do olho.

- Vamos! Estou escutando música lá embaixo. Música de verdade.

E era mesmo. Enquanto desciam juntos, Cris constatou que a música que ouviam,

Greensleeves, vinha de um instrumento de verdade, não do aparelho de som. E parecia

bandolim.

Cris e David viram a mãe e o pai, bem vestidos, mas sem exageros, sentados ao

lado da árvore de Natal. Centenas de luzinhas piscavam na sala escurecida, fazendo um

jogo de luz sobre a blusa da mãe. Bob estava ao lado da lareira acesa, com um copo de

gemada na mão, vestindo um smoking preto, com uma faixa azul-safira na cintura.

Os três se viraram quando viram David e Cris aproximarem-se da entrada, e Marta

veio do canto, onde estava, deslumbrante num vestido azul-safira com strass prateada.
- Vocês dois estão maravilhosos! disse Marta. Olhe, Bob, Cris está vestindo o traje

que comprei para ela em Palm Springs. Não está linda?

Cris olhou para o pai para ver se ele aprovava. Dava para ela perceber que ele não

gostou muito. Mas sorriu e disse:

- Tem certeza de que esses dois são os meus filhos? Não me recordo deles assim.

Todo mundo riu e a música continuou. Cris entrou na sala, curiosa para ver de

onde vinha aquela melodia tão doce. Um músico, vestido de fraque preto, achava-se

sentado num canto escuro, perto da janela, cabeça baixa, tocando um bandolim.

Cris parou perto do sofá, escutando com prazer a canção até o fim. Quando o

tocador de bandolim tocou o último acorde, levantou a cabeça. Seus olhos azuis-

prateados foram direto ao coração dela.

Ele levantou-se e inclinou-se num agradecimento, depois fitou-a novamente. Ela

gelou.

- Ted? sussurrou ela.

Ele levantou-se e inclinou-se num agradecimento, depois fitou-a novamente. Ela

gelou.

- Ei cara! gritou David cumprimentando o rapaz e correndo para bater as palmas

das suas mãos nas dele.

- Surpresa? perguntou Marta, aproximando-se de Cris.

Sua expressão, seu cabelo, seu vestido, tudo reluzia. A garota fez que "sim" com a

cabeça, ainda olhando para o Ted. Ele estava incrivelmente elegante.

- Ótimo! exclamou Marta, contente com a surpresa que tinha preparado. Ou será

que fora o Bob?

Um sininho de cristal soou na sala de jantar.

- Ah! falou a tia, parecendo mais contente consigo mesma. O jantar está servido.

Vamos?

Como se estivessem num baile real, Marta ofereceu sua mão a Bob e ele a
conduziu com elegância para a sala de jantar. O pai de Cris levantou sua mãe da cadeira

com a graça de um fazendeiro que ergue um bezerro manco. Os dois riram e David

pegou as muletas e as entregou para ela.

Sem dizer nada, Ted ofereceu o braço a Cris, entrando na brincadeira de seguirem

aos pares para a sala de jantar. Ela hesitou um instante, mas em seguida pegou-lhe o

braço.

- Você está bem? perguntou Ted num sussurro. Ela acenou que sim.

- Ted, sobre o telefonema hoje. Me desculpe!

- Tudo bem! Bem, mesmo. Não se preocupe.

Mas ela se preocupava. Tinha praticamente desistido de continuar o

relacionamento com ele. Na sua cabeça, Ted já estava quase noivo de alguma outra

menina com quem ia jantar fora à noite. Nunca poderia suspeitar de que a garota era ela

mesma! Era este o jantar que ele não poderia perder. Sentia-se totalmente sem graça.

Chegando à mesa, Ted puxou a cadeira para Cris sentar. Em seguida, sentou-se ao

seu lado, e colocou o guardanapo branco no colo, como se estivesse acostumado a jantar

desse jeito toda noite.

Cris tentou relaxar. Ted parecia tão seguro de si, tão à vontade de fraque num

jantar formal. Ela nunca o teria imaginado nessa situação! Havia tanta coisa que não

sabia sobre ele!

Uma empregada ou funcionária de um bufe trouxe tigelas de sopa fumegante.

Creme de brócolis. Bob e Marta levaram suas colheres à sopa e notaram que ninguém

mais os seguia.

- Ah sim! exclamou Bob, baixando o talher. Norton, você dá graças por nós?

O pai levantou-se e orou agradecendo a comida, o ano vindouro, o que passara e,

em seguida, orou em favor de cada um dos que estavam à mesa, citando-os

nominalmente. Cris nunca ouvira o pai fazer uma oração tão eloqüente. Desde que

haviam mudado para Escondido e a família toda passara a frequentar a igreja, muita
coisa ganhara vida para eles.

- Bem, Norton, você está se saindo um excelente pregador! exclamou Marta, após

o "amém".

O pai tomou uma colherada de sopa. Franziu as sobrancelhas espessas, que

pareciam duas lagartas em colisão.

- Qualquer um pode orar, Marta. E hoje em dia há tanta coisa pela qual

precisamos orar! Marta não respondeu.

- É claro que, continuou ele, quando se está um pouco enferrujado, não custa nada

tentar de novo.

Marta baixou devagar a colher. Não parecia ofendida: apenas queria ter a última

palavra.

-Alguns de nós fazemos uma segunda e uma terceira tentativas de orar e falar com

Deus, mas não obtendo resposta, ficamos "espertos", disse erguendo a colher para dar

mais ênfase, e desistimos!

Ah, não! Vocês não vão começar uma discussão sobre coisas

espirituais agora! Não na frente do Ted!

Cris já tinha visto discussões assim entre os seus pais e seus tios. Ela própria tinha

conflitos com eles sempre que lhes falava sobre um compromisso com Deus. Mas hoje a

presença do Ted mudava as coisas.

- É disso que mais gosto a respeito de Deus, disse Ted com seu jeito natural, e

quebrando um pedaço de pão. Às vezes nós desistimos dele, mas ele nunca desiste de

nós.

- Não tenho tanta certeza disso, disse Bob.

- Lembra-se do rei Davi? perguntou. Ele é chamado de "um homem segundo o

coração de Deus". Mas ele errou muito na vida: praticou adultério, assassinato. Assim

mesmo, Deus não o largou.

Ninguém disse nada. Continuaram comendo, escutando educadamente.


- E Moisés, continuou Ted. Lembram-se dele? Foi um grande líder, certo? Pois

bem, ele matou um egípcio. E tem também o Abraão. Mentiroso. Disse que Sara, a

mulher dele, era sua irmã para que um rei não o matasse e ficasse com ela.

- Que crápula! exclamou Cris.

- É. E Abraão fez a mesma coisa duas vezes. No entanto foi chamado "amigo de

Deus"!

- Então o que você está dizendo, resumiu Bob, é que os heróis da Bíblia eram

pecadores, não santos. Na verdade, não eram heróis. Apenas gente como nós.

- Creio que não era bem isso que ele estava querendo dizer, interveio a mãe.

- Não, interpôs Ted. Era exatamente isso que eu queria dizer. Veja o Pedro, por

exemplo. O cara passou três anos andando com Jesus, e na noite do julgamento de

Cristo, ele se acovardou na frente de uma simples empregada e disse que nem conhecia

o Senhor! Mas Cristo não desistiu dele!

- Não vamos ter uma discussão religiosa no jantar, disse Marta, pegando o sininho

e tocando-o.

A empregada apareceu e tirou os pratos de sopa.

- Salada de espinafre com molho quente de bacon, anunciou a anfitriã, enquanto a

salada era servida.

- Então, Ted, você acredita que Deus não desiste das pessoas, e, sim, que as

pessoas é que desistem dele? perguntou Bob.

Cris não saberia dizer se o tio estava concordando com o Ted ou tentando pegá-lo

numa armadilha.

Ted fez que sim.

- É claro que tudo se baseia na entrega, na nossa entrega pessoal a Deus. Porque

mesmo se errarmos, Deus nos perdoará. Mas só se nos entregarmos a ele e procurarmos

o seu perdão.

- Mas a gente tem de se arrepender, interrompeu David. A professora da escola


dominical disse isso. A gente tem de se arrepender do que fez, não apenas quando

somos pegos fazendo coisas erradas, falou arrumando os óculos e enfiando um biscoito

inteiro na boca.

Os pais trocaram olhares de surpresa ao ouvirem o filho. Cris mal acreditava que

todos estavam conversando sobre Deus e ninguém estava achando ruim nem brigando.

- Você acha, Ted, perguntou Bob, que todas essas pessoas da Bíblia que você

mencionou mereciam uma segunda oportunidade, ou deviam ter sido castigadas por

aquilo que fizeram, os assassinatos e tudo o mais?

- Mereciam morrer. Todos nós merecemos morrer.

- Mas Deus lhes deu outra oportunidade? perguntou Bob.

- Deu várias! Veja bem, mesmo depois que uma pessoa torna-se cristã, ela ainda

erra, explicou o rapaz.

- Então de que adianta? perguntou Marta com voz doce, embora parecesse

irritada. Se as pessoas "salvas" não são melhores que as outras, e se todos são

"pecadores", conforme você diz, então por que vocês que dizem que "nasceram de

novo" (e com isso não quero ofendê-lo), por que vocês insistem em afirmar que quem

não "nascer de novo" não é cristão?

Os pais de Cris trocaram olhares de incerteza. Bob olhou para o Ted e Cris

pensou: Sabe de uma coisa, tia Marta, essa pergunta é ótima. Esta

semana parece que não fez a menor diferença o fato de meus amigos

serem cristãos ou não - principalmente a Trícia. Foi uma confusão geral,

apesar de serem todos crentes.

Ted recostou-se na cadeira, e Cris sentiu que ele estava prestes a dar um de seus

famosos exemplos. Ela gostava de escutá-lo nesses momentos. Achava geniais as suas

ilustrações.

- É como um nenê. Quando uma criancinha começa a andar, cai muito.

Imediatamente Cris se lembrou da menininha que vira no shopping, quando estava


com Marta.

- Apesar disso ela não desiste. Fica tentando até melhorar. Mas veja só, se um

nenê não nascer nunca tentará andar.

Cris teve a impressão de ter visto um leve tremor no rosto de Marta, mas

continuou escutando.

- É o que ocorre quando nos tornamos cristãos, dizia Ted. No começo a gente

ainda cai bastante porque estamos aprendendo a andar com o Senhor. Quanto mais

crescemos, mais peritos ficamos. Mas precisamos "nascer de novo" porque se o nosso

lado espiritual não nascer, não pode crescer.

Cris baixou o garfo e ficou olhando para o prato, vendo apenas uma mistura de

cores. É isso aí! É por isso que ando caindo. Estou apenas aprendendo.

Vou melhorar à medida que for crescendo. Está tudo bem. Deus me

entende, e ele está bem ao meu lado pra me pegar e levantar toda vez

que me arrepender.

Sentiu um alívio tão grande que teve vontade de levantar e dançar em volta da

mesa, dizendo:

Não sou um fracasso! Deus me dá uma segunda oportunidade!

- E então, rapaz, falou Bob. A próxima pergunta é a seguite: na sua opinião,

quando é que a pessoa esgota todas as oportunidades com Deus?

- A gente nunca esgota, disse Ted olhando para Marta, que o fitava meio confusa.

Só esgotamos o tempo. Se a gente morrer sem entregar o coração ao Senhor, a Bíblia

diz que ficamos separados dele para sempre.

O rapaz fechou um pouco os olhos que se encheram de lágrimas, uma expressão

que Cris vira nele no enterro do Sam, nas férias passadas. Em seguida, ele baixou o

olhar e disse com firmeza:

- No inferno não existem mais oportunidades.

Marta engasgou com uma folha de espinafre e Bob deu a impressão de estar
frustrado, como se esperasse continuar essa discussão teológica sem chegar a nenhuma

conclusão e sem ofensas pessoais. Mas não era assim. Seguiu-se um momento em que

todos se limitaram a comer silenciosamente, quando ficou claro que Ted lhes dera algo

em que pensar.

- Esta salada está deliciosa, disse a mãe de Cris com animação. Você disse que o

molho é de bacon? É uma delícia!

Aos poucos Marta foi reassumindo seu estilo de "comandar tudo", e quando foi

servido o galeto recheado ela já tomara as rédeas da conversa.

- Há quanto tempo você toca bandolim, Ted?

- Uns dois anos. Toco violão desde os seis anos de idade.

- E onde estudou?

- Meu pai me ensinou.

- E o que é que seu pai faz? indagou Bob.

- Vendas internacionais para uma companhia de computação de Irvine.

- Pensei que você tivesse dito que ele era hippie, disse Cris. Ted deu uma risada.

- E foi mesmo, mas depois ele descobriu o dinheiro.

Estava aí uma área da vida do Ted que Cris não conhecia. Havia tanta coisa que

ela gostaria de saber sobre ele. Começou a ficar mais à vontade e sentindo-se um pouco

menos culpada pelo jeito como o tratara no telefone. Mas ainda continuava a incerteza:

o que sou para o Ted? Como será que vai ficar o nosso relacionamento? Será que ele

veio aqui hoje em cortesia a Marta, ou porque realmente queria minha companhia?
Hora de Conversar
12
- Estava uma delícia! exclamou a mãe elogiando Marta quando saíam da mesa.

- Vamos tomar café na sala? convidou a tia.

Entrando na sala viram que o presépio tinha sido mudado para um canto da mesa

de café. No centro, havia uma bandeja de prata com bule, açucareiro, servidor de creme

e xícaras de porcelana fina. Ao lado dela, havia outra com doces e biscoitinhos redondos

açucarados.
- Posso comer doce? perguntou David.

- Sirva-se, respondeu Bob.

David enfiou um chocolate inteiro na boca e, pela primeira vez na noite, apertou

seu botão escondido, acendendo a gravata e chamando a atenção de todos.

- Uhmm! Gostoso! disse o garoto, fazendo a gravata piscar e se deliciando com a

atenção recebida, quando todos riram.

Marta serviu o café. Cris mordiscava um biscoito e Ted tocou outra música.

Quando ele terminou, o pai de Cris disse:

- Se estiver na hora de você ir, não se constranja!

Cris olhou para o Ted, que sorria e apertava a mão de seu pai.

- Obrigado, Sr. Norton. A que horas devo trazer a Cris de volta?

- Meia-noite e meia.

Vamos à festa da Helen! Não posso acreditar! Meus pais permitiram

que eu vá com o Ted!

- Agora vocês vão à festa? Deixa eu ir também? Por favor? Posso ir junto?

choramingava David.

- Não senhor! disse o seu pai.

- Ah, por que não?

- Filho, hoje só vai a Cris. A sua vez chegará também e mais cedo que você pensa.

Dirigindo-se ao corredor, Cris sorriu e pensou. Deus, você sabia disso tudo

de antemão, não é? Por que eu estava tão paranóica sobre tudo?

Marta seguiu-a.

- Cris, você gostaria que eu lhe emprestasse meus brincos para essa festa?

- Claro, respondeu Cris, ansiosa para fazer qualquer coisa no sentido de consertar

seu relacionamento com a tia.

-Aqui, disse Marta estendendo-lhe uma caixa de veludo azul. Estes brincos são

muito especiais. Ganhei do seu tio no nosso décimo aniversário de casamento. Aquele
ano nós o comemoramos em Paris, e ele me entregou o presente num café de beira de

calçada no Champs-Élysées.

- Em Paris? Verdade?! falou Cris abrindo a caixa e exclamou: Mas são

maravilhosos! Tem certeza de que posso? perguntou ela, levantando as jóias.

Eram cachos de brilhantes e pérolas.

- É claro, Cris. Agora não vá desmanchar o meu prazer recusando usá-los. É o

meu jeito de contribuir com algo especial para essa noite memorável.

- Obrigada, tia Marta. Você é demais! E as duas trocaram sorrisos calorosos.

Enquanto Marta ajudava a sobrinha a colocar os brincos, disse bem baixinho:

- Esta semana foi muito difícil para mim, Cristina. Você tem a capacidade de

atingir o âmago de uma pessoa, sabia? A jovem abanou a cabeça.

- Estou arrependida daquelas coisas que eu disse e que a aborreceram, tia. Não sei

a hora de calar a boca. Talvez eu devesse ser mais como aquela "mulher silenciosa" da

placa do restaurante.

- Não, minha querida. Continue sendo você mesma. Você tem tenacidade, Cris, e

jamais deve perder essa qualidade.

- Não sei bem o que é isso, mas espero que seja bom. Marta limpou uns

grãozinhos de açúcar de confeiteiro que ficaram no rosto de Cris:

- Sim, é bom.

E olhando demoradamente os brincos, completou:

- As mulheres tenazes sabem dar uma segunda oportunidade aos outros.

Cris queria muito dizer alguma coisa profunda e bonita, como no cinema, mas o

que lhe veio à mente foi:

- Então você também deve ser uma mulher de muita tenacidade. Talvez eu tenha

herdado isso de você.

- É possível.

- Pronto? perguntou Ted, chegando-se mais próximo delas.


- Sim, respondeu Cris, dando um rápido abraço em Marta. Obrigada por ser minha

segunda mãe, tia Marta. Gosto muito de você. E obrigada pelo empréstimo dos brincos!

- Agora podem ir, vocês dois! exclamou Marta, rapidamente mudando de tom.

Creio que nem preciso dizer, Ted, que se você beber demais, não tente dirigir o carro.

Nós estaremos acordados; portanto pode nos telefonar, está bem?

Ted começou a rir mas depois percebeu que Marta falava sério.

- Não se preocupe. Eu não bebo. Verdade!

- Bem, mas hoje é o reveillon e você nem sabe o que a Helen vai servir na festa.

- Se conhecesse a Helen, nem pensaria nisso, disse Cris.

Mas logo em seguida, percebeu que a tia estava se recordando de uma festa a que

a garota fora, nas férias passadas, em que rolaram bebidas e drogas à vontade. Aquela

foi uma experiência que Cris jamais desejaria repetir.

- Não se preocupe. Nós estaremos muito bem, assegurou Ted.

Cris deu tchau para seus familiares na sala e notou que David estava-se

esbaldando nos últimos chocolates com aquela gravata borboleta maluca, que acendia e

apagava sem parar.

Sinto muito, David, mas desta vez você não vai tirá-lo de mim.

Finalmente, estariam juntos.

Estranho! Embora houvesse tanto assunto que Cris queria conversar com o Ted,

eles rodaram os primeiros quarteirões a caminho da casa da Helen em silêncio total. A

garota queria desenvolver a conversa, mas agora que finalmente estavam juntos, não

sabia o que dizer. Será que ele também se sentia meio sem jeito?

Naquele momento Ted parou num sinal fechado. Cris olhou pelo vidro da frente.

Era o lugar deles! Fora ali que ele lhe dera um beijo nas férias passadas. Será que ele se

lembrava? Será que estava pensando a mesma coisa?

O sinal ficou verde e Ted disparou.

- Eu queria lhe perguntar uma coisa, disse Ted, quebrando o silêncio.


Ótimo. Finalmente! Ele vai iniciar a conversa!

- Ultimamente tenho pensado muito sobre a Alissa. Você tem notícias dela?

Alissa! Você anda pensando na Alissa?! E nós?

- Tenho. Aliás recebi uma carta dela outro dia, replicou meio sem graça.

- Como está ela?

- Não muito bem, disse Cris, baixando suas defesas e pensando em dar a notícia

para o Ted aos poucos. Ela pediu que eu orasse por ela. Está numa pior agora.

- Ela precisa de Jesus, declarou Ted.

- Concordo, disse Cris, quando estacionavam numa vaga apertada, no final da

quadra onde ficava a casa da Helen, mas também precisa de pessoas que possam ajudá-

la e ampará-la enquanto passa por tudo isso.

- Passa pelo quê? perguntou Ted, desligando o motor e olhando-a de frente.

- Ted, ela está grávida.

- Grávida? Quanto?

- O que você quer dizer?

- De quantos meses?

- Cinco. Por quê?

- Eu sabia! gritou Ted, batendo a palma da mão contra o volante. Puxa, isto é

ótimo!

- Ted! exclamou Cris, mal acreditando na reação dele. Acabei de contar que ela

vai ter um bebe!

Ele continuou rindo.

- Sabe de uma coisa? É o filho do Sam!

- Do Sam? E como é que você pode ter certeza?

- Ela está de cinco meses, certo? Bem, conte para trás.

- Sei lá. Pode ser daquele outro cara: o Erik. Aquele do Porsche preto que ela

ficou conhecendo na festa do Sam.


- Não. E do Sam.

- E como você sabe?

- Conheço o Erik. Ele nunca foi para a cama com ela. Tentou mas não conseguiu.

Cris se lembrou do dia que Erik tinha ido à casa da Alissa e ficara irritado porque

ela estava lá.

- Será que foi por isso que o Erik disse tantas coisas ruins para a Alissa no dia que

ela foi embora?

- Pode ser, falou Ted recostando-se no banco do carro. O clarão da luz da rua

iluminou o seu rosto, revelando uma expressão de contentamento.

- Ted, você devia ver seu rosto agora! Acho toda essa história horrorosa, e você

está rindo! Quer dizer, imagine como deve ser difícil para a Alissa estar grávida, sem os

pais para ajudá-la, e ela nem pode falar com o pai do bebe, porque ele morreu!

-Ainda não entendeu? indagou Ted inclinando-se para a frente. Ela está dando

vida a esse bebe! O filho do Sam! Ela podia ter abortado. Mas resolveu dar-lhe vida!

- Ted, ela engravidou! Não é uma coisa tão boa assim. E você está agindo como se

ela fosse uma heroína. Do jeito que eu vejo as coisas, ela errou e agora está sofrendo as

consequências.

- Tá certo. E está mesmo. Mas todos nós erramos às vezes, de um jeito ou de

outro, não erramos?

-Bem, sim, mas...

- E Deus não nos perdoa e nos dá uma nova oportunidade?

- Não sei se ela já pediu a Deus que lhe perdoasse.

- Verdade, e esse seria o primeiro passo. Mas pelo menos ela não tentou resolver o

problema abortando. Vai dar vida àquela pequena alma, e quem sabe o que essa criança

pode vir a ser quando crescer? Ele pode até ser o maior evangelista que o mundo jamais

conheceu!

- Por que você acha que vai ser "ele"?


- Está bem, ela pode se tornar a maior evangelista que o mundo já conheceu! disse

Ted rindo; mas em seguida ficou sério. Puxa, precisamos orar por ela e pelo bebe.

Temos de orar para que ela conheça crentes que a ajudem.

- Ela já conheceu alguns. Cris lhe falou sobre a Frances e o centro de gravidez de

risco. Enquanto ela falava, Ted deu um largo sorriso.

- Puxa, mas isso é incrível!

- Ted, ainda não entendo por que você está tão contente com tudo isso. Achava

que um crente nunca poderia ficar tão alegre com o pecado.

Ted deu aquela risada calorosa novamente.

- Não é com o pecado que estou alegre, Cris. Você está totalmente certa. Sam e

Alissa nunca deveriam ter dormido juntos. Isso é totalmente errado. Na época, eu soube,

e fiquei muito zangado e nervoso.

- Você sabia?

- Sim, mas o caso é que Deus não fica limitado pelos nossos erros. Não está

vendo? O Sam e a Alissa criaram uma vida humana. Uma alma! Apesar de terem feito

uma coisa errada, criaram algo que vai durar eternamente. Uma alma! exclamou Ted

parecendo muito empolgado, prestes a gritar. Uma alma, Cris! Nem os anjos conseguem

isso!

Cris arregalou os olhos. Ted era surpreendente. Ele a deixava completamente

espantada. Então ele encarou-a com uma expressão nova: uma expressão de prazer.

- Você sabe que a Alissa foi àquele centro de gravidez e procurou uma pessoa

cristã por sua causa, não sabe? Talvez tenha sido você quem salvou a vida desse nenê!

- Mas eu não fiz nada! replicou a garota abanando a cabeça.

- Você demonstrou amor e interesse para com ela. Foi uma verdadeira amiga. E

isso tem valor! explicou Ted rindo e fazendo aparecerem as covinhas. Vamos lá! É

melhor chegar logo à festa. Fique aí. Eu abro a porta.

Cris se sentia bem de estar com o Ted, apesar de eles terem conversado só sobre a
Alissa. Era como se tivesse entrado numa casa aquecida, num dia muito frio. A ira, a dor

e a confusão que sentira à tarde tinham evaporado.

Ted abriu a porta da kombi, pegou sua mão para ajudá-la a descer, e continuou

segurando enquanto caminhavam até a casa da Helen. Naquele momento não tinha

importância definir ou não o relacionamento deles. Ela não precisava saber o que

significava para ele. Não agora que estavam de mãos dadas e tão perto um do outro.

- Bem! exclamou Helen ao abrir a porta, estávamos nos perguntando quando

vocês dois iam aparecer! Parece que vão ao baile de formatura!

Cris sentiu o rosto avermelhar, e Ted também parecia não estar acostumado a ver

tanta gente prestando atenção ao seu traje.

- Onde arrumou o fraque? indagou Helen.

- Foi minha mãe que me deu. Precisei para o casamento dela. Ela é uma dessas

pessoas que pensam: "Pra que alugar se pode comprar?"

- Bem, vocês dois parecem que poderiam estar na capa duma revista. E Cris!

Esses brincos são incríveis! São de brilhante mesmo?

- Sim. Minha tia me emprestou.

Helen continuou a olhá-los soltando exclamações. Ted dirigiu-se à sala e se pôs a

conversar com os rapazes. Trícia, que estivera sentada no sofá ao lado do Douglas,

aproximou-se de Cris.

- Olá! disse.

Estava muito bonita com uma blusa cor-de-rosa e o cabelo castanho encaracolado

e cheio, solto.

- Vamos à cozinha pra conversar um pouco? pediu.

- Claro, respondeu Cris, seguindo-a até a um canto da cozinha, perto da janela.

- Quero pedir desculpas, Cris. Fui grosseira com você naquela noite no Richie's.

Estou muito sentida.

- Está tudo bem, Trícia. Não se preocupe.


- Tem certeza? Sem ressentimentos?

- Sim, definitivamente. E você precisa saber que eu não estava tentando chateá-la

quando patinei com o Douglas. Nem sabia que você gostava dele.

- Eu sei. Não contei pra você, lembra? falou Trícia com seu sorriso costumeiro.

- Bem, talvez você devesse ter contado, disse Cris, com uma leve gargalhada. Aí

eu teria ficado bem longe dele!

Trícia tocou no braço da Cris.

- Não, não quero que se afaste do Douglas nem de ninguém, só porque eu ou outra

pessoa gosta de algum deles. O melhor é que todos possamos ficar juntos sem essas

brincadeiras de despertar ciúmes. E eu acabei fazendo exatamente isso no dia que fomos

ao rinque de patinação! Depois fiquei tão irritada comigo mesma! Não foi uma grande

besteira?

- Não. Sei exatamente como essas coisas acontecem. Já estive nessa.

- Bem, Cris, se um dia você me vir fazendo uma besteira dessas de novo, pode me

dar um tapa; promete?

As duas riram. Naquele momento o Douglas se aproximou e comentou:

- Cris, você está muito bonita!

Impulsivamente, Cris passou o braço em volta do pescoço do rapaz, do jeito que

ele abraçava todo mundo, e lhe deu um rápido abraço. Daí virou para a Trícia:

- Assim pode, não pode?

- Claro! E assim que as coisas devem ser entre nós!

- Por que fez isso? indagou Douglas.

- Porque você é o cara mais atencioso que conheço. Douglas olhou para a Trícia e

perguntou:

- Será que mandei flores para ela ou alguma coisa assim sem saber?

- Não, não, não! exclamou Cris. Quando você foi lá em casa e me contou que iria

sair com a Trícia, mas que ainda queria ser meu amigo, achei a coisa mais doce!
Continuo me sentindo muito bem em sua companhia, apesar de você e Trícia estarem

namorando.

- Puxa, que legal, Cris! exclamou o rapaz.

Helen apareceu na cozinha naquele momento, e disse:

- "Legal"? Você ainda usa o termo "legal", Douglas? Eles não lhe ensinam

palavras novas na faculdade?

- Ei, manera aí! Legal é uma palavra legal.

- Vamos lá, turma! gritou Brian da sala. Vamos jogar "Ganha, Perde ou Empata".

Para Sempre
13

Cris acabou ficando no time da Helen, Douglas, Trícia e Brian. O Ted estava no

time oposto. Desenhavam com canetas hidrográficas num grande bloco branco. Com

quinze minutos o grupo do Ted estava bem à frente do outro.

- Essas frases são difíceis demais para nossa turma! reclamou Helen. Eles não têm

palavras como "legal" ou "massa". O Douglas acertaria muito mais depressa!


Todos deram risadas e de um salto Douglas agarrou a Helen pelos ombros, e

gritou:

- Vamos lá, minha gente! Vamos jogá-la na piscina!

Ted e os outros se levantaram e agarraram-na. Ela gritou e esperneou até que a

pusessem de volta no chão.

Cris olhava o Ted, e se perguntava por que fora que naquela tarde pensara em

riscá-lo para sempre da sua lista de amigos. Ele era amigo de todos, mas para ela

representava muito mais. Ele havia demonstrado isso arranjando aquele café da manhã

na praia e indo ao jantar da tia Marta. Por que ela precisava definir o relacionamento?

Era mais do que "gostar", mas ainda não era "amar" de verdade. Estavam em algum

ponto entre os dois vocábulos.

Lá pelas onze, Helen chamou todo mundo para ir ao quintal, onde havia uma

fogueira perto da piscina. Distribuiu marshmallows e cabides de arame. Na mesa de

piquenique, havia bolachas e barras de chocolate. A turma começou a fazer s'mores*.

* s'mores - uma tradição americana de acampamentos em que as

pessoas torram os marshmallows no espeto sobre a fogueira e fazem

"sanduíche" com as bolachas, os marshmallows derretidos e o

chocolate. (N. da T.)

Douglas logo começou a fazer gracinhas, dobrando seu cabide de arame ao meio.

- Trícia, me dê dois marshmallows. Cadê o Ted? Onde ele foi parar?

- To aqui, Douglas, respondeu Ted, da mesa onde estava. Douglas colocou o

arame sobre a cabeça e um marshmallow em cada extremidade, cobrindo-lhe as orelhas.

- Ted, olhe só. Número quinze. Protetores de orelha.

Ted deu tanta risada que o biscoito que tinha na mão se esmigalhou. Segurando o

lado, as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Cris nunca tinha visto o Ted rir tanto.

- Não entendi, disse Helen, olhando para o Douglas, depois para o Ted.

- É um livro bobo, que o Ted deu para o Douglas de Natal, explicou Trícia,
abanando a cabeça.

- O Ted deu esse livro para o Douglas? perguntou Cris.

- Deu... Você já viu? E alguma coisa sobre o que fazer com hamsters mortos,

explicou Trícia.

- Credo! Que nojo! gritou Helen com sua vozinha estridente.

- É. Eu conheço, replicou Cris, chegando seu arame ao fogo e torrando os seus

marshmallows.

- O Ted me deu o mesmo livro, reclamou Trícia. Você não acha que é muito

esquisito um cara dar um livro desse para uma garota?

- É. Deve ser mesmo, concordou Cris. Esquisito, mas legal. Os rapazes

gostam de dar esse tipo de presente para os amigos. Provavelmente o

Rick me vê como uma colega, uma amiga. Mas então, por que ele me

beijou? Não se beija quem é apenas colega!

Ela e Rick eram colegas. Tinham forçado um pouco seu relacionamento para se

tornar algo que não era, tentando ser românticos. É claro que isso não excluía a hipótese

de um dia serem namorados. Mas esse definitivamente não era o caso agora, e era

bobagem fingir que era, ou deixar os outros tentarem convencê-los disso. Ela gostava do

Rick e queria voltar a ser uma boa colega para ele. Dar uma segunda chance à amizade

deles. Dar o tempo que fosse necessário para que crescesse naturalmente, sem tentar

transformar essa amizade em algo que não era.

Teve a impressão de que um peso tinha sido tirado de seus ombros. Agora sabia o

que tinha dado errado. Embora não soubesse ao certo como poderia consertar as coisas,

não desistiria enquanto não tivesse resolvido tudo. Afinal de contas, ela era uma pessoa

de muita "tenacidade", ou não era?

Enquanto Cris estava imersa em seus pensamentos, seus marshmallows se

queimaram, mas ela não se importou. "Descascou" a parte queimada e tentou de novo,

assando o miolo visguento. Era assim que ela fazia, de propósito, quando era criança.
Aprendera a deixar queimar camada por camada e ir descascando até permanecer

apenas o miolinho do marshmallow.

- Cuidado! Estão pegando fogo! exclamou Ted, aproximando-se dela, os olhos

ainda brilhando das lágrimas do ataque de riso que tivera.

Cris tirou o arame do fogo e soprou. Ted ficou a olhá-la. Ela descascou a crosta

queimada e enfiou o marshmallow na boca.

- Tentando dar uma segunda chance ao marshmallow, hein? brincou Ted, quando

ela colocou o espeto novamente no fogo.

- Acho que todo mundo merece uma segunda oportunidade; até mesmo os

marshmallows.

Naquele momento Douglas chegou no quintal com uma enorme caixa nas mãos.

- Olhem só, minha gente! Fogos! Guardei desde o Quatro de Julho*. Vamos ver se

ainda funcionam.

* Dia da Independência dos Estados Unidos, comemorado com

fogos de artifício. (N. da T.)

Terminaram de comer os s'mores pegajosos e todo mundo pegou rojões e os

acendeu na fogueira. De repente surgiram brilhos de luz por todo lado e o grupo riu

girando os flashes faiscantes.

Mas eles duraram apenas alguns minutos e depois todos jogaram os pauzinhos que

sobraram na fogueira. Alguns entraram, enquanto outros tostavam um último

marshmallow.

Cris estava perto da pia na cozinha, lavando as mãos, quando Ted chegou perto

dela e perguntou:

- Vamos embora? Ela olhou-o surpresa.

- Ainda não é meia-noite. Não quer ficar?

- Prometi levar você de volta antes de meia-noite e meia. Acho que devemos ir

agora.
- Tudo bem, disse Cris, sem entender bem a razão de estarem indo embora tão

cedo.

Despediram-se da Helen e dos outros. Enquanto Ted manobrava a kombi para sair

da apertada vaga onde a tinha estacionado, Cris disse:

- Muito obrigada por tudo, Ted. Por ter ido jantar conosco e ter-me trazido à festa.

- Mas você gostaria de ter sabido antes o que estava acontecendo, não gostaria?

Cris ficou surpresa de que ele adivinhasse tão bem os seus sentimentos.

- É, gosto de surpresas, mas fiquei bastante insegura sem saber quando me

encontraria com você e quando poderíamos conversar.

- Foi por isso que quis sair mais cedo da festa. Queria que tudo ficasse bem

acertado entre nós.

- E ficou?

- No que me toca, ficou. Nada mudou. E com você, está tudo bem?

Cris recostou-se no banco.

- Provavelmente a pergunta é meio boba, e é provável que eu me arrependa de ter

falado, mas Ted, o que foi que não mudou? Quer dizer, o que é que nós somos?

- O que é que nós somos? ele repetiu a pergunta olhando para ela.

- Somos apenas amigos, mais que amigos, colegas chegados ou o quê?

- Acho que não existe uma palavra que defina isso. Está entre a "amizade" e o

"namoro", como você e a Trícia falaram outro dia lá em casa.

- E o que isso quer dizer? indagou Cris, esperando que não estivesse sendo

atrevida demais por perguntar.

- Significa que eu gosto muito de você, Cris. Significa também que não quero

afastá-la de seus outros amigos.

- Como quando estávamos patinando?

- Exatamente. Você e o Douglas estavam-se divertindo. Eu não queria ficar entre

os dois. Mas sinceramente, eu me senti deixado de lado. Achava que passaríamos a


tarde juntos.

Cris sentiu uma ponta de tristeza quando ele disse isso.

- Ted, eu também queria passar o dia com você. Mas deu tudo errado. E daí, no

dia seguinte quando você passou de carro por minha casa e o Douglas estava cheirando

o meu cabelo...

Ted riu.

- Então era isso que ele estava fazendo?

- Eu tinha feito permanente e meu cabelo estava com perfume de maçã verde.

O rapaz riu novamente.

- Puxa! Quando passei por lá e vi vocês dois, senti como se tivesse comido maçãs

verdes! Cris também deu risada.

- Ted, sinto muito que tenham acontecido essas confusões todas.

- Acho até que foi bom. Me fez pensar sobre um monte de coisas. Mais tarde eu

me encontrei com seu tio no posto de gasolina e ele me convidou para o jantar. Disse

que provavelmente eu poderia levar você à festa da Helen se pedisse pessoalmente ao

seu pai, e foi o que fiz hoje à tarde. Quando ele respondeu que podia, eu ia perguntar a

você, pois parecia estar muito nervosa na hora que telefonou. Mas o David disse que

você estava no quarto e que não era para ele mencionar o meu nome nunca mais para

você... concluiu Ted com um sorriso.

Cris abaixou a cabeça.

- Não acredito! Eu estava no quarto, nervosa e irritada por nada enquanto você

estava lá embaixo na sala! Dá pra acreditar? Me comportei como uma imatura!

- Não tem importância. Eu estava mais ou menos assim naquele dia no Richie's.

Os dois ficaram em silêncio alguns momentos. Depois Cris disse:

- É. Acho que ainda não sabemos direito o que somos.

- Somos amigos, Cris. Amigos de verdade. Amigos leais. O que isso significa

exatamente, vamos ter de aprender à medida que continuarmos o relacionamento. Uma


coisa eu sei: aconteça o que acontecer conosco, haja o que houver no futuro, vamos ser

amigos pra sempre.

- Penso a mesma coisa, Ted, falou Cris em voz delicada e sincera. Não importa

onde estamos entre o "gostar" e o "amar", e o que vai acontecer depois. Também quero

ser sua amiga pra sempre.

Naquele momento, Ted parou num sinal fechado. Sem dizer nada, desligou a

kombi, abriu a porta, saltou para fora e correu para o lado da Cris. Abriu a porta do lado

dela e agarrou a mão da garota, dizendo:

- Não acredito! É perfeito!

- O quê? Ted! O que é que você está fazendo?

Puxando Cris pela mão, tirou-a da kombi e conduziu-a para a frente onde os faróis

iluminavam os dois destacando-os como se estivessem sob holofotes.

- É isso mesmo! Estamos em algum ponto no meio dos dois extremos. E é mais ou

menos como estar num cruzamento movimentado, no meio da rua!

Os olhos de Cris correram do Ted para o sinal de trânsito. Foi então que percebeu.

Era o "lugar" deles! Estavam bem no meio do cruzamento. Ted enfiou a mão no bolso

do fraque e tirou uma caixinha retangular amarrada com uma fita branca. Com a

animação de um garotinho, disse:

- Eu não sabia qual era a melhor hora para lhe dar isto, mas parece que tanto faz

agora ou qualquer outra hora. Vamos! Abra!

Os carros zarpavam ao lado deles. Cris riu alto. Só mesmo o Ted para fazer isso!

Arrancou a fita e o papel. Dentro havia uma pulseira com uma delicada plaquinha de

ouro.

- Ted, é linda!

- Leia o que está gravado.

Ela virou-a para a luz do carro e leu a plaquinha de ouro: Para Sempre.

O sinal abriu e o carro atrás deles buzinou. Ted deu a volta no carro e acenou para
que o ultrapassassem, como se fosse um guarda de trânsito.

Ela sabia que todo mundo estava olhando-a, ali de pé, toda produzida, com o

vestido preto de festa e os brincos de brilhantes de sua tia, segurando a caixinha de

presente numa mão e a pulseira de ouro na outra. Mas não se importava. Estava bem no

meio da rua, bem no meio do seu relacionamento com o Ted, e era bem onde ela queria

estar: nem mais para um lado, nem mais para o outro. E no momento, nada mais tinha

importância.

- Deixe que eu ajudo a colocar, disse Ted prestativo, voltando para onde Cris

estava.

Colocou a pulseira no braço dela, abriu o minúsculo fecho e, após várias

tentativas, conseguiu fechar com segurança. Pegou então a sua mão, e disse:

- Estou realmente sendo sincero nisso, Cris. Não importa o que vier depois, não

importa se você conhecer outros caras, ou se ficarmos distanciados por muitos

quilômetros. Um pedaço de você estará sempre aqui, afirmou batendo levemente no

peito. Você está no meu coração. É minha amiga. Sinceramente não sei o que vai

acontecer daqui pra frente, mas não estou preocupado. Deus sabe. Vamos passar a

eternidade com ele. Com esta pulseira, estou querendo dizer: "Aqui está a minha

amizade. Prometo sempre ser seu amigo. É sua para sempre."

Cris ficou emocionada. Nunca imaginara que Ted fosse tão romântico. Se bem que

não era tudo só emoção. Era sólido e bem pensado. E o mais surpreendente era que

embora no momento ela estivesse se sentindo incrivelmente ligada a ele, também se

sentia bem mais próxima de Deus.

De repente um estrondo ecoou a algumas quadras dali, seguido de buzinadas,

gritos e um foguete brilhante voando pelo céu.

- Deve ser meia-noite, disse Cris. Feliz Ano Novo, Ted. Ele sorriu e envolveu-a

nos braços.

- Feliz para sempre, Cris.


Então ele a beijou duas vezes. Primeiro nos lábios, um beijo rápido e terno, no

meio da rua, na frente do farol da Kombi Nada. Em seguida conduziu-a de volta para o

carro e abriu a porta. Aí beijou-a novamente. Dessa vez, no lado direito da testa, meio

no cabelo, meio na sobrancelha. Foi um beijo doce. Terno, cuidadoso, protetor.

Correu então para o seu lado do carro, fazendo sinal para o veículo que estava

atrás deles e gritando:

- Feliz Ano Novo pra vocês também, amigos!

Engatou a marcha e arrancou, mal conseguindo sair antes de o sinal fechar

novamente.

Cris girava o punho para diante e para trás, olhando a pulseira pegar os reflexos da

luz.

- Gostei demais dessa pulseira, Ted! Ele ergueu o queixo um pouco mais num

gesto de satisfação.

- Estou contente de que tenha gostado. Desculpe o atraso. Levei muito tempo para

decidir sobre o que ia gravar nela.

- E por que "Para Sempre"?

- Tirei de Primeira João. Lembra que a Trícia disse que queria que lêssemos esse

livro e quando nos reuníssemos conversássemos sobre o que aprendemos? Bom, apesar

de não termos reunido, eu o li algumas vezes.

- Eu também li, disse Cris.

- O que entendi é que o amor de Deus permanece para sempre, e é assim que ele

quer que nos amemos.

- Legal. Pena que não tivemos oportunidade de conversar sobre isso.

- Hoje à tarde falei com o Douglas e Trícia a esse respeito.

Eles me ajudaram a fazer o embrulho.

Cris entendeu que fora essa a razão de Douglas e Trícia terem estado na casa do

Ted à tarde, quando ela telefonou. Puxa, e ela tinha feito uma porção de deduções
erradas! Ainda bem que Ted era um cara tranquilo e perdoador. Depois de tudo que ela

falara ao telefone, qualquer outro teria dito "Tchau pra você!"

- Obrigada, Ted, disse ela, colocando a mão de leve no ombro dele.

- Por nada!

- Quero dizer, obrigada pela pulseira, mas obrigada também por não ter me

mandado "passear" mesmo quando eu estava insuportável.

- Eu já lhe perdoei. Vamos deixar pra lá, está bem? Vamos nos dar uma segunda

chance.

Chegaram em frente da casa de Bob e Marta, e Ted desceu para abrir a porta para

Cris. Colocou o braço no ombro dela e foram andando devagarinho até a porta da frente.

A certa altura Ted inclinou a cabeça para trás, olhou para o alto e parou. Cris

passou o braço na cintura dele e olhou para cima também. O céu se estendia como

veludo negro, salpicado de mil diamantes cintilantes.

- Sabe, é ali que Deus espalha os nossos pecados quando os confessamos. Ele diz

"quanto dista o Oriente do Ocidente", assim afasta de nós as nossas transgressões.

E ficaram a contemplar maravilhados a imensidão do céu.

- Quando eu era pequena, sussurrou Cris, achava que à noite o céu era um

cobertor preto bem grande que separava o céu da terra, e que as estrelas eram furinhos

que os anjos tinham feito no cobertor para poderem olhar pra gente.

Ted deu-lhe um aperto no ombro e riu.

- Às vezes você me surpreende demais, Cris!

- Ah é? disse ela e afastou-se um pouquinho, para encará-lo. Ted, você me deixa

totalmente desnorteada quase que o tempo todo!

- Ótimo! replicou ele, puxando-a de volta para junto de si e caminhando em

direção à porta. E é assim mesmo que deve ser. Será que eles acharão ruim se eu entrar,

mesmo sendo tarde? Deixei meu bandolim na sala.

- Acredito que não, disse Cris. Pode ser que minha tia até lhe aplique um teste pra
ver se bebeu!

Os dois riram e entraram, encontrando toda a família ainda na sala de televisão.

No momento em que entraram, o pai de Cris olhou o relógio.

- Chegaram cedo!

- Devemos sair e voltar mais tarde? brincou Cris.

- Claro que não! replicou sua mãe que estava recostada no sofá; e virando-se para

eles, indagou: Como foi a festa?

- Ótima, disse Cris. Fizemos algumas brincadeiras e depois assamos

marshmallows em uma fogueira no quintal. Douglas trouxe uma caixa de fogos de

artifício e nos divertimos bastante.

- Tenho de reconhecer que essa é uma maneira muito melhor de comemorar o Ano

Novo do que beber até ficar tonto! comentou Marta. Você deve se sentir muito grata por

ter bons amigos assim, Cris.

- E me sinto, tia, respondeu ela, olhando para o Ted. Acredite, sou muito grata.

Ted retribuiu-lhe o sorriso e disse:

- Preciso pegar o meu bandolim. Ainda está na sala?

- Sim, é claro!

Então ele fez algo que deixou Cris muito satisfeita. Atravessou a sala e

cumprimentou o pai e o Bob, depois beijou o rosto de Marta e agradeceu-lhe pelo jantar.

Bateu a palma da mão na do David, e se abaixou perto do sofá para dar um rápido beijo

no rosto da mãe de Cris.

- Agradeço a todos por deixarem que eu fizesse parte da família hoje, disse.

Talvez somente a Cris soubesse o quanto era importante para Ted estar com uma

família nessa época festiva.

- Você sempre será bem-vindo em nossa casa, disse Marta. E falo isso com toda

sinceridade.

- Nós dizemos o mesmo, afirmou o pai de Cris. Venha visitar-nos um dia desses.
Cris mal podia acreditar no que ouvia! Seu pai estava convidando o Ted para ir à

casa deles!

- Obrigado. Irei. É melhor me despedir agora. Até logo!

Ted foi rapidamente à sala de visitas enquanto Cris o esperava à porta da entrada.

Com o bandolim numa das mãos, deu-lhe um abraço e disse:

- É, parece que vou ter de ir a Escondido um dia desses.

- Mais tarde? indagou Cris brincando. Ele sorriu e disse:

- Sim, mais tarde, Cris.

A seguir deu-lhe um beijo carinhoso, em parte na testa, parte no cabelo. Então,

quando fechava a porta, perguntou com ar zombeteiro:

-Ah! maçãs verdes, hein?

Só depois que a porta estava totalmente fechada foi que Cris compreendeu, e

quando entendeu, deu uma risada alta. O coração estava leve, contente, de bem com a

vida.

- Não se preocupem, gente! Ele só beijou na cabeça dela! gritou David para os

outros que se encontravam na sala de televisão, a ponta do nariz franzido aparecendo no

canto da porta.

- Seu atrevido! gritou Cris e começou a correr atrás dele, atravessando a sala de

jantar e a cozinha. Vou dar um curto-circuito nessa sua gravata borboleta!

- Tente se puder, sua cara de besouro! gritou o garoto desafiando-a e postando-se

atrás do balcão da cozinha.

- Ei, vocês dois! Chega! ressoou a voz do pai no corredor. Está na hora de dormir!

Reassumindo a pose, Cris alisou o cabelo e passou pelo pai, com David logo atrás,

ainda tentando arrancar o laço do cabelo dela.

- Boa noite pra todos, disse ela ao pé da escada. E boa noite, David. Espero que

não sonhe com um besourão preto que come garotinhos!

- Ah é?! fez ele enrugando a cara. Espero que... que você nem consiga sonhar!
Cris subiu a escada flutuando. E quem precisa sonhar? Hoje a vida real fora

melhor do que qualquer sonho. Então, só para certificar-se de que tudo aquilo realmente

tinha acontecido, tocou a pulseira e passou o dedo sobre a gravação "Para Sempre".

Pra sempre, Senhor. Sentiu o coração comover-se, ditando-Ihe as

palavras da oração: Aconteça o que acontecer, e seja o que for que o

Senhor planejou para mim, e aconteça o que acontecer entre mim e o

Ted, quero que o Senhor saiba que sou tua. Sou tua, ó Deus, pra sempre.

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