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José Murilo de Carvalho Cidadania no Brasil O longo caminho o CIVILIZAGKO BR Introdugao: Mapa da viagem O esforgo de reconstrugéo, melhor dito, de construgao da democracia no Brasil ganhou fmpeto ap6s o fim da ditadura militar, em 1985. Uma das marcas desse esforgo é'a voga que assumiu a palavra cidadania. Politicos, jomalistas,intelectuais, lideres sindicais, dirigentes de associagées, simples cidadaos, todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do Povo. Mais ainda, ela substitain o préprio povo na retérica politica. Nao se diz mais “o povo quer isto ou aquilo”, diz-se “acidadania quer”, Cidadania virou gente. No auge do entu- siasmo civico, chamamos a Constituigéo de 1988 de Consti- tuigdo Cidada. Havia ingenuidade no entusiasmo. Haviaa crenga de que a democratizagéo das instituigdes traria rapidamente a felici- dade nacional. Pensava-se que o fato de termos reconquista- do o direito de eleger nossos prefeitos, governadores e pre: dente da Repablica seria garantia de liberdade, de participa- so, de seguranca, de desenvolvimento, de emprego, de justi- 4 social. De liberdade, ele foi. A manifestacao do pensamen- ©. De participacéo também. O direito do voto nunca foi tZo difandido. Mas as José MuaiLo Of CARVALHO centrais de nossa sociedade, como a violéncia urbana, o de- semprego, 0 analfabetismo, a mé qualidade da educacao, a oferta inadequada dos servigos de satide ¢ saneamento, € as grandes desigualdades sociais ¢ econémicas ou continuam sem solugéo, ou se agravam, ou, quando melhoram, é em ritmo muito lento. Em conseqiiéncia, os proprios mecanismos ¢ agentes do sistema democratico, como as eleigGes, 0 patti- ‘dos, 0 Congresso, os politicos, se desgastam e perdem a con- fianga dos cidadaos. Nao ha indicios de que a descrenga dos cidadaos tenha gerado saudosismo em relagéo ao governo militar, do qual a nova geragio nem mesmo se recorda, Nem hé indicagao de perigo imediato para o sistema democratico. No entanto, a falta de perspectiva de melhoras importantes a curto prazo, inclusive por motivos que tém a ver com a crescente depen déncia do pais em relagao & ordem econémica internacional, 6 fator inquietante, no apenas pelo sofrimento humano que representa de imediato como, a médio prazo, pela possivel tentagdo que pode gerar de solugées que signifiquem retro- cesso em conquistas jé feitas. E importante, entio, refletir sobre 0 problema da cidadania, sobre seu significado, sua evolugao histérica ¢ suas perspectivas. Seré exercicio adequa- do para 0 momento da passagem dos 500 anos da conquista dessas terras pelos portugueses. Inicio a discussio dizendo que o fendmeno da cidadania é complexo e historicamente definido. A breve introducao aci- ma 4 indica sua complexidade. O exercfcio de certos dire’ como a liberdade de pensamento e 0 voto, nao gera automati- camente 0 gozo de outros, como a seguranca ¢ o emprego. O exercicio do voto nfo garante a existéncia de governos atentos aos problemas bésicos da populacéo. Dito de outra maneira: a CIOADANIA Wo BRASIL liberdade e a participagio no levam automaticamente, ou ra- pidamente, a resolucio de problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui virias dimens6es e que algumas podem estar presentes sem as ontras. Uma cidadania plena, que com bine liberdade, participagao e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente etalvez inatingtvel. Mas ele tem ser- Vido de parametro para o julgamento da qualidade da cidada- nia em cada pais e em cada momento hist6rico. _ Tomou-se costume desdobrar a cidadania em direitos ci- vis, politicos e sociais. O cidadio pleno seria aquele que fosse _ dos trés direitos. Cidadaos incompletos seriam os que ssem apenas alguns dos direi el i Posse aca ag direitos. Os que nio se benefici- 0s conceitos. Dircitos civis sao os direitos fundamentais avi a liberdade, a propriedade, a igualdade perante a lei. Tse desdobram na garantia de ir ¢ vir, de escolher o trabalho, de manifestar 0 pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a nviolabilidade do lar e da correspondéncia, de nio ser preso.a no ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de nio ser condenado sem processo legal regular. Sao direitos cuja Sarantia se baseia na existencia de uma justiga independente, eficente, barata e acessivel a todos. Séo eles que garantem as ee cs ilvadas ene as pessoas ¢ a prdpria existéncia da ‘civil surg com: i italis eee ae o desenvolvimento do capitalismo. E possivel haver direitos civis sem direitos. politicos, Estes se referem & participacao do cidadao no governo da socieda- de. Seu exercicio ¢ limitado a parcela da populagao e consiste na capacidade de fazer demonstragées politicas, de organizar partidos, de votar, de ser votado. Em geral, quando se fala de direitos politicos, ¢ do direito do voto que se esté falando. Se

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