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1 DOS MEIOS AS MEDIACOES COMUNICAGAO, CULTURA E HEGEMONIA JesGs Martfn-Barbero PREFACIO Néstor Garcfa Canclini TRADUGAO CAPITULO 1 © LONGO PROCESSO DE ENCULTURAGAO ESTADO-NACAO_E OS pispositIvOs DE HEGEMONIA De onde parte ¢ sobre que se apdia a repressio das culturas populares na Europa moderna? Em fungio de que interesses € em virtude de que mecanismos se ucionaliza a desval zagio ¢ desintegragio do popular? Apenas se comeca a tematizar storicamente esse proceso, a deixar de ser visto a partit das genera- idades economicistas ou culturalistas e reatav'o ao vasto processo de transformagio politica que acarreta, do século “VI a0 XIX, a formagio do Estado moderno e sua consolidacio definit.va no Estado-Nagao. A Nagio como mercado nfo ser4 uma realidade até 0 momento de maturagio do capitalismo industrial, pois foi durante os séculos de desenvolvimento do mercantilismo que se configurou 0 Estado moder- na: aquele no qual a economia deixa de ser “doméstica” e se converte em economia politica, aquele que leva a cabo uma primeira unidade do mercado baseada na identificacio dos interesses do Estado com 0 serd a unidade monetiti “interesse comum” ¢ cujo {ndice simb AA fragmentacio introduzida no cristianismo pela Reforma protestante vai justificar algumas guerras de rligido nas quais 0 sentido do nacional vai exercer um papel preponderante. De forma pioneira, a luta dos Paises Baixos contra Fi ito 0 contedido do que comesa a chamar-se “sent interesses da burguesia integrando reivindicagbes de lingua e religiio. A integraggo que se materializa na delimitagio de uma matriz territorial cujo verdadeiro alcance se acha, bern mai exterior, na centralizagio “interior” do poder politico. DOS MEIOS As MEDIAGOES Centralizagae politica ¢ unificagio cultural Dois sio os dispositivos bisicos sobre os quais funciona a centralizagio.? De uma parte a integragao horizontal, O Estado que se constitui mostra progressivamente sua incompatibilidade com uma sociedade polissegmentada como aquela conformada pelas culturas populares regionais, locas; isto é, uma sociedade organizada sobre um sistema composto de multiplicidade de grupos e subgrupos — classes, linhagens, corporagées, fraternidades, grupos de idade etc. — e cujas relagées ¢ equibrio internos estio regidos por complexos rituais € sistemas de normas. Os foros e particularidades regionais, em que se expressam as diferengas culturais, se convertem em obstéculos & uni- dade nacional que sustenta o poder estatal. De outra parte, a integrago vertical a implantacio de determinadas relag6es sociais novas median- te as quais cada sujeito € desligado da solidariedade grupal e religado A autoridade central. Desligamento que ao romper a sujeigo a0 grupo “liberava” cada individuo, convertendo-o em mio-de-obra livre, isto & dispontvel para o mercado de trabalho. A Igreja cumpriu a este respeito um trabalho pioneiro ao proclamar uma fé que integrava 0 individualismo — na doutrina do livre arb{trio — com uma submissio cega 4 hierarquia, concepcio que minava j as solidariedades tradicio- nais em que estava baseada a cultura popular, as solidariedades de cli, de familia etc.: “todas as velhas relacées cram substituldas por uma relagio vertical, que une cada cristéo 4 divindade por intermédio da hierarquia sclesidstica”.’ E 0 Estado, frente 4 complexa rede de estava associagbes de que estava tecida a vida dos individuos, as q sujeito, ¢ das cuais recebia seguranca, se erguerd mais a frente, bem como a lei do soberano, enquanto uma insticui¢io-providéncia que garante a seguranca de todos. O Estado seré o tinico aparato juridico da cocsio social Esse Estado encontraré sua plenitude no Estado-Nagio racio- nalizado pelos ilustrados, e sua “realizacio” se deu a partir da Revolu- fo Francesa. Para os ilustrados Nagio significa a0 mesmo tempo a 128 MATRIZES HISTORICAS DA MEDIACAO DE MASSA soberania do Estado ¢ a unidade econdmica e social. E a idéia de do bem piiblico sobre os interesses particulates ¢ a aboligio dos privilégios. A soberania testemunha a “vontade geral” dos cidadios, encarnada no poder do Estado, Mas 0 Estado afirma sua unidade paradoxalmente no momento histérico em que emergem as classes em uta. A soberania envio, mais que a morte do principe, resuleard, na realidade, em seu deslocamento. “Ao sustentar a soberania como principio de Estado, os revolucionsrios perpetuavam o ‘principe’, quer dizer, 0 modelo estatal(...). Ao situar a N: io no primeiro plano da cena politica os revoluciondrios deslocaram monarca. Mas nesta ampla transformagio nfo se buscou senao uma coisa: ocupar o lugar do Rei.‘ O paradoxo encontra sua melhor expressio no movimento pelo qual a Nagio, ao dar corpo a0 povo. acaba substituindo-o. Do plural dos povos & unidade do povo conver: ido em Naso, e integrado a partir da centralidade do poder estatal, poe-se em marcha a inversio de sentido que tornaré visivel a cultura chamada popular no século XIX. E quando a culeura de massa se apresenta como cultura popular, no fard senio continuar a substituigo que a Nagio fez do povo, no plano politico. Substituigo que s6 foi possivel mediante a dissolugao do plural que, instituindo a integrasio, realizava.a centralizagio estatal. O que possibilita a passagem da unidade de mercado & unidade po- ica serd a integragio cultural. A estabilizagio mesma das fronteiras com o exterior estava ligada & “superagéo” das barreiras interiores cerguidas pelos costumes e foros. As diferencas culturais entravavam a livre cicculagio das mercadorias e representavam pata 0 absolutismo uma inadmissfvel divisio do poder. Para superar ambos os obstéculos contribuira a construgio de uma cultura nacional. E & justo nesse momento que as culturas populares, locais, ficam sem cho, no mo- mento em que se Ihes nega 0 direito a existir, quando os estudiosos se interessam por elas. “A repressio politica esta na origem da curiosidade cientifica (..). Foi necessério censurar (a culeura popular) para que ela 129 CEE C BOs MEIOS AS MEDIAGOES. fosse estudada” > Inicia-se af uma constante histérica: € s6 quando os pobres so impedidos de falar que os “estudiosos” se interessam por seu idioma. ‘A cficésia da repressio nao provém contudo de alg dese nio malvado, provém ¢ se produz a partir de uma multidéo ie mecanismos e procedimentos dispersos ¢, 3s vezes, inclusive contradi- tiios. Como na andlseeetunda por Foucault asim wmbem a destruigao das culturas populares salva da destruicao seu auadio de vida, mas opera desde o contol da sexalidade — devaloisagio das imagens do corpo, da “topografia corporal” investigada por Bakhtin — até a inoculagéo de um sentimento de culpabilidad ade ¢ respeito mediame a univerliegio da “principio de obedient que, patndo da auordade pater, desembocs a do soberano, Em dois campos se fr especialmente claro o sentido romado peo proceso de enculturagio: a transformasio do sentido de tempo que, aba indo 0 clclico, impée o linear, centrado sobre a producao, a transformagio do saber e seus modos de transmissio mediante a perseguigfo das bruxas ¢ 0 estabelecimento da escola. Rupturas no sentido de tempo O tempo ciclico é um tempo cujo eixo esté na festa. As festas, com sua repetigio, ou melhor, com seu reromno, balizam a tempo- ralidade social nas culturas populares. Cada estagio, cada ano, possui 2 organizagao de um ciclo em torno do tempo denso das festa, dae enquanto cartegado pelo méximo de participagio, de vida coletiva. festa nfo se constitui, contudo, por oposigio & cotidianidade; é, antes, aquilo que renova seu sentido, como se a cotidianidade 0 despa « petiodicamente a festa viesse a recarregé-lo novamente no sentido de pertencimento & comunidade. E isso é realizado pela festa, que pto- porciona & coletividade tempos periédicos para descarregar as tenses, al I de angéstia acumulado ¢, através de rituais ee tacgur a feillde don campos e dos animais. O econdmicos, assegurar a fe 130 MATRIZES HISTORICAS DA MEDIACAO DE MASSA kempo balizado pelas fests, 0 tempo dos ciclos, & por outra parte 0 tempo vivid nao s6 pela coletividade e sua memeéria recorrente, mas também pelos individues enquanto “tempo da vida” balizado pelos 8 de iniciagio das idades,” e enquanto duragdo-medida, isto 6, ‘definigéo ocupacional” de uma tarefa pelo tempo empregado na feitura do pio ou numa reza. O sentido do tempo nas culturas populares seré bloqueado por dois dispositivos convergentes: o que de-forma as festas e 0 que as desloca, situando na produgio o novo eixo de organizacio da tem- potalidade social. A deformagto opera pela transformagio da festa em expetdculo: algo que ja nao é para ser vivido, mas visto ¢ admirado, Convertida em espeticulo, a festa, que no mundo popular constitula 0 tempo c 0 espaco de maxima fuséo do sagtado e do profano, passari a sero tempo € 0 espago em que se fard especialmente visivelo alcance de sua separagdo: a demarcagio nitida entre religigo e produgio agora sim opondo festa e vida cotidiana como tempos do cio e do trabalho, S6 0 capitalismo avangado, o da “sociedade do espetéculo” refuncio. nalizard a oposigio produzindo uma nova verdade para sua negaczo. O deslocamento que situa na produsio 0 eixo da nova oxganizagio da temporalidade é um disposiiy. de longo alcance que faz sua aparigio, segundo Le Goff, no século XIV. A apari¢éo do relégio possibilita a wnificagzo dos tempos, © a “descoberta” pelo mercador do velordo tempo dé origem a uma nova moral ea uma nova Piedade: “Perder © tempo se converte em necado grave, em um sscindalo espiritual, Sobre 0 modelo do din-.viro, 4 semelhanga do ‘mercador que se converte num contador do tempo, desenvolve-se uma moral calculadora e uma piedade avara”.* Do tempo do mercador 20 do capitalismo industrial se conserva a primaziaalcangada pelo tempo- medida e pelo tempo-valor frente ao tempo-vivido, mas se produz uma mudanga profunda: o tempo valorizado, ou melhor, a fonte do valor, jf ndo & 0 da cireulagdo do dinheiro ¢ das mercadorias, mas 0 da produgdo, o do trabalho enquanto tempo irceversvel e homogéneo, “E 131

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