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CONTRIBUIGOES DA DEMOGRAFIA HISTORICA. AHISTORIOGRAFIA BRASILEIRA. José Flavio Motta! INTRODUGAO Esta apresentagio filia-se ao interesse em estabelecer um dossié sobre os avangos realizados pela demografia historica no Brasil e os desafios com que ela se depara. Tal interesse, que encontra aqui, no ambito da ABEP, espaco valioso para concretizar-se, implica um esforco conjunto dos estudiosos vinculados & "nossa" ciéncia, esforgo esse que se revela, antes do mais, oportuno, se nio mesmo necessério, a vista do vulto - seja em termos quantitativos, seja qualitativos - dos traballios que tém sido produzidos na 4rea, em um ritmo crescente nos tiltimos lustros. Trata-se de uma tomada de folego, um olhar para trds com o intuito de aperceber-se do quanto foi feito, um olhar para a frente visando a explicitar 0 muito que ainda ha a fazer, ordenar os esforgos, somé-los, nunca cerceando as iniciativas individuais, mas sim levantando formas de alavancagem de tais iniciativas. © objetivo aqui perseguido, parte desse esforgo conjunto, restringe-se a um apanhado ligeiro dos avangos realizados. Em sua consecugio perfilha-se, de um lado, uma definigio abrangente de demografia hist6rica. Assim, nao obstante se caminhe sempre no sentido do conhecimento dos caracteres demogrificos das populagdes do passado brasileiro, os estudos empreendidos extrapolaram largamente o elemento demografico stricto sensu, tendo encontrado na histotiografia terreno fértil onde se imiscuir, alargar, multiplicar. De outro lado, privilegia-se uma aproximagio de natureza tematica. Afasta-se, pois, qualquer pretensio de um arrolamento exaustivo da produgio em foco, sclecionando-se alguns Ppoucos trabalhos com fundamento, sobretudo, em sua utilidade na tarefa de evidenciar 0 amplo espectro tematico que marca de mancira distintiva as contribuigées da demografia hist6rica 4 nossa historiografia. Cabe ressaltar também, de imediato, estar-se ciente de que a selegio feita propicia, inevitavelmente, a detecedo de lacunas no elenco de 1 Professor da FEA/USP. 273 autores c/ou estudos contemplados. Est4-se cientc, igualmente, de que essas faltas, ao menos em certa medida, podem ser atribufdas quer 2 formacao de economista do autor, quer ao seu contato mais estreito com determinados segmentos dentre os diversos grupos de pesquisadores dedicados 4 demografia histérica, ou ainda, si0 omissdes que se explicam pelas dificuldades de acesso a alguns dos trabalhos produzidos na area. DEMOGRAFIA HISTORICA E HISTORIOGRAFIA Tomem-se, de inicio, os estudos sobre a regio das Minas Gerais no perfodo colonial realizados, isoladamente ou em co-autoria, por Iraci del Nero da Costa e Francisco Vidal Luna’. Utilizando-se de registros Pparoquiais de nascimentos, casamentos ¢ dbitos, de livros anotados tendo em vista a preocupagio fiscal de arrecadagio dos quintos c de um conjunto de listas nominativas de habitantes, os autores aludidos deram inequivoco contributo ao avanco do conhecimento acerca da economia e da sociedade que se constituem em tomo a atividade mineratéria. As contribuigdes de Costa ¢ de Luna sao aqui enfocadas segundo duas vertentes, ainda que com esse ptocedimento incorra-se em certo simplismo. Dessa forma, em seus livros e artigos, vé-se eferuada ampla caracterizagao das populagdes - livre, escrava e forra - de algumas localidades mineiras, ao passo que se delineia o perfil da estrutura da posse de cativos nas Gerais. Em ambas as vertentes, patenteia-se 0 mttuo condicionamento entre os ambitos econdmico ¢ demografico. Os comentarios tecidos a partir de cada uma delas permite, ademais, encadear uma série de temas, caros & nossa historiografia, pelos quais se derramam copiosamente os resultados dos estudos de demografia historica. O estudo da estrutura da posse de escravos e seus desdobramentos No que respeita a estrutura da posse de escravos, o trabalho pioneiro de LUNA (1981) e 0 conjunto de estudos dedicados a esse tépico que a ele se seguiu produziram trés efeitos que se devem salientar’. Em 2 Entre tantos, por exemplo, COSTA (1979 ¢ 1981), LUNA (1981) e LUNA & COSTA (1982). 3 Outros autores que, anteriormente a Luna, haviam tangenciado o tema, fizeram-no, via de regra, enfatizando a distribuigdo dos cativos ao nivel dos domicilios, ¢ néo ao nivel dos proprietérios de escravos. Fo caso, por exemplo, de COSTA (1979), MARCILIO (1973) e MOTT (1978). 274 primeiro lugar, tais trabalhos implicaram uma revisdo da nogdo presente na historiografia tradicional acerca dos padrdes de distribuigio da propriedade escrava, em especial no que concerne A atividade mineratéria €, outrossim, embora com menor intensidade, no que tange & produgio acucareira. Em segundo lugar, possibilitaram aos estudiosos 0 aprofundamento nesse tema de relevancia inegdvel para o entendimento da economia escravista brasileira, nfo apenas no que concerne as regides particularmente comprometidas com a extrac%o do ouro ¢ o fabrico do agticar, mas igualmente com relagao a outras 4reas do pafs, com destaque para Sio Paulo ¢ Parana. Em terceiro lugar, como um corolério da andlise da estrutura da posse de escravos propriamente dita, ¢ que aqui se comentar4 no bojo da primeira vertente acima referida, muito se avancou no conhecimento das caracteristicas de escravistas ¢ de cativos no Brasil. Nas cinco localidades mineiras analisadas por Luna, contra- riamente ao que se poderia esperar em termos da eventual dominancia da grande unidade de exploragio, evidenciou-se a presenga majoritéria dos proprietarios de 5 ou menos cativos, que chegavam a perfazer mais de quatro quintos do total de escravistas. Esses proprietarios, ademais, detinham significativa parcela da massa escrava, em nenhum caso inferior a um quarto em varios superior a um tergo. Tais proporgées verificaram-se para pontos distintos no perfodo de 1718 a 1804, vale dizer, quer na etapa ascendente, quer na fase de decadéncia da mineragaot. O estudo da estrutura da posse de escravos para o caso da economia agucareira trouxe a luz resultados que também podem ser considerados, em certa medida, inesperados, embora nem de perto to surpreendentes quanto os verificados para Minas Gerais. Assim, Stuart B. Schwartz, em sua anilise da Bahia colonial, observa que no obstante as plantagdes baianas de agticar apresentassem "as mais elevadas concen- tragdes de escravos da colénia", apenas cerca de 15% dos 165 engenhos computados - mais de dois tercos dos engenhos do Recéncavo e quase metade dos da capitania - possufam 100 ou mais cativos, ¢ tiv-somente um, o de Sérgipe do Conde, contava com mais de 200 escravos’. Era de 65,5 0 nimero médio de escravos por senhor de engenho, 0 que conduz a afirmativa do autor de que "propriedades com uma escravaria dessa mag- 4 Em dois outros trabalhos, Luna concentra-se em dois pontos determinados do tempo, representativos de etapas bem definidas no desenvolvimento da atividade mincrat6ria: 18 localidades em 1718 séo analisadas em LUNA (1983) ¢ 10 em 1804 em LUNA (1986). 5 Schwartz baseia-se, fundamentalmente, em um conjunto de listas dos cativos existentes na Bahia, que compéem a documentagio remanescente de um recenseamento de escravistas realizado entre setembro de 1816 e janeiro de 1817. 275

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