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Revista da Faculdade de Letras «LINGUAS E LITERATURAS Porto, XX, 1 2003, pp. 91/103, EL-REI JUNOT E VIDA E MORTE DE GOMES FREIRE DE RAUL BRANDAO: NEM HISTORIA NEM ROMANCE De 1912 a 1915, Raul Brando deve ter sentido uma espécie de tentagao hist6rica, que alias se enquadrava perfeitamente no gosto e nas tendéncias da época, © que deu origem a duas obras, El-Rei Junot ¢ Vida e Morte de Gomes Freire, seguidas do prefacio, no iltimo ano, a O Cerco do Porto do Coronel Owen. ‘A introdugdo a este livro, da autoria do pai da célebre Fanny Owen que Camilo Castelo Branco! e, mais tarde, Agustina Bessa Luis” e Manoel de Oliveira’ ajudaram a imortalizar, contém, em poucas paginas, os conceitos fundamentais para se estabelecer uma tipologia do discurso histérico de Brandio. Ao apontar as virtudes do texto do inglés, 0 autor de Hiimus revela as suas obsessdes ¢ indica-nos subrepticia c tacitamente a sua arte poética: 0 fascinio pela testemunha ocular («Eu estive ld, eu vi, é uma grande forga.»*) que nos faz. lembrar as primeiras pessoas narrativas dos seus relatos; a importdncia do fait-divers («Leiam os quadros, as s, 08 descriptivos. Sdo répidos e curiosos. E tem mais alguma coisa: sente- -se ternura na forma porque elle falla do cerco, dos soldados, do perigo, da fome, ¢ das pobres mulheres do povo, todas de lengo preto na cabega, levando ao penhorista, escondidas sob o chale, as pequeninas coisas inuteis 4 vida quotidiana e de que s6 2 «Sete de Junho de 1849, in Duas Horas de Leitura, Lisboa, Parceria Anténio Maria Pereira, Sted, 1967 e «1854», in No Bom Jesus do Monte, Obras Completas, Porto, Lello & Irmio, XI Vol. 1990. 2 Fanny Owen, Lisboa, Guimaries Ed, 1979. 2 Realizou o filme Francisca (bascado na figura de Fanny Owen), em 1980. + Raul Brando, «Preficion a O Cerca do Porto Contado por uma Testemunha o Coronel Owen com Documentos Novos, Porto, Renascenga Portuguesa ¢ Rio de Janeiro, Luso-Brasiliana, 2ed, 1920 (ied, 1915), p17. 91 MARIA DE FATIMA MARINHO Se separavam, como de pedacos de alma — com lagrimas.»*); as semelhangas entre © liberalismo e a repiblica nascente, explicitamente feitas e por mais de uma vez: «A discussio é a mesma e até quasi nas mesmas phrases, a desillusio é a mesma e até, iamos a escrever, so os mesmos homens.»®; «O que se esta a passar de 5 de outubro para cé ~ é exactamente o que se passava de 5 de outubro para Ié: tudo estava vivo, tudo actuava da mesma maneira.»?. Fundamentalmente, so estes os principios que vamos encontrarnas duas obras, Publicadas em 1912, El-Rei Junot ¢ 1914, Vida e Morte de Gomes Freire, cujo Primitivo titulo era A Conspiragao de 1817 — Gomes Freire’, modificado na 2edigio para 1817—A Conspiragio de Gomes Freire?, titulo que se manteve na 3*edigd0, € finalmente projectado, com outro titulo, o definitivo, para uma 4"edigZo, s6 vinda a lume recentemente. Ambos os textos constituem paradigméticos casos de escrita, dificilmente catalogavel num género rigido. Se se afastam do discurso romanesco pela auséncia de caracteristicas varias, também se distanciam do ensaio histérico propriamente dito, na medida em que se valem de ingredientes impensdveis numa obra rigorosamente cientifica, de acordo com os critérios normalmente utilizados pelos historiadores. Se é certo que alguns romances histéricos, sobretudo no inicio deste século, possuem uma intriga incipiente, concentrando-se na vida de uma ou outra personagem histérica, a verdade & que todos eles acabam por efabular, criando ersonagens inventadas com enredos paralelos préprios ou, como alerta Manzoni, narrando os efeitos privados dos acontecimentos publicos!”. & o caso, por exemplo, de Pinheiro Chagas que, em A Mascara Vermetha ou O Juramento da Duquesa, pretende mostrar o modo como a revolugao de 1640 e suas consequéncias afectaram alguns nobres e populares, nas suas vidas piiblicas e privadas. Como diz o proprio Pinheiro Chagas, «encarregimo-nos de um improbo e desgostoso trabalho, o de narrarmos as pequenas infamias, as pequenas traigdes que macularam essa grande epocha de 1640.»!! 5 tdem, i. Idem, p27, "idem. p30, * Porto, Typ. da Emprésa Literaria e Tipographica, 1914, * Porto, Renascenga Portuguese, 2ed, 1917, Cf, Alessandro Manzoni, «Del Romanzo Storico e, in genere, de’componimenti di storia © 'invenzione», in Tutte le Opere, Vol. Secondo, Milo, Sansoni Ed., 1993, p.1728:wefTeti privati degli avvenimenti pubblicin, "" Pinheiro Chagas, O Juramento da Dugueza, Lisboa, Livt. de Anténio Maria Pereira, nova digo, sd (Ied., 1873), p89, 92 EL-REI JUNOT E VIDA E MORTE DE GOMES FREIRE DE RAUL BRANDAO ‘Mesmo se considerarmos os romances mais ou menos biogréficos de Antero de Figueiredo (D. Pedro e D. Inés, Leonor Teles “lor de Altura” ¢ D. Sebastiaio), Faustino da Fonseca (/gnez de Castro), Rocha Martins (O Mestre de Aviz) ou Ruy Chianca (Desventurado Amor, sobre Mariana Alcoforado), para s6 citarmos alguns dos varios que apareceram nas primeiras décadas do século XX, facilmente nos daremos conta de que sio os préprios autores a arrogarem-se 0 direito de modificar tum ou outro aspecto que melhor se adapte as exigéncias romaneseas. Antero de Figueiredo afirma que as suas obras so «um trecho de historia pdsto em arten, declarando implicitamente que a arte, isto é a composigio cuidada e de certa forma livre, é fundamental para a apresentacao da biografia das suas personagens que, se tiveram existéncia real, ndo a tém menor no campo do mito e da efabulacao. ‘Ao invés, 0 discurso histérico propriamente dito baseia-se numa tentativa de objectividade e rigor, mesmo se os itimos tedricos que se tém debrugado sobre 0 assunto, chamam a atengdo para a impossibilidade de um conhecimento Gnico € universal de determinado facto, pois que a mesma realidade empirica pode e deve ser passivel de pelo menos duas leituras. © sentimento da necessidade de reconstrugiio do pasado", leva a que ele surja tio cadtico e complexo como 0 presente, o que facilita o aparecimento de duas narragdes diferentes da mesma ocorréncia, pondo em causa uma objectividade absoluta, tal como o positivismo a concebia. Contudo, e apesar dos limites da objectividade ou cientificidade, para que Paul Ricoeur nos alerta', a verdade é que os tratados de Historia se apoiam sempre em dados aparentemente inquestiondveis, nio havendo lugar para interpretagdes subjectivas, interpelacdes ao leitor ou multiplicidade de focalizagdes das varias personagens em jogo, mesmo se é 0 discurso narrativo (afinal de contas semelhante ao do romance), que, em iiltima andlise, Ihe permite transformar-se num todo coerente. A auséncia de narratividade levaria a um acumular de datas € eventos, sem qualquer ligagao ou explicagao'®, tendo forgosamente a Historia de se tornar subsidiéria da narrativa, "2 Antero de Figueiredo, preficio a Leonor Teles “Flor de Altura”, Pais-Lisboa, Liv, Aillaud ¢ Bertrand, Rio de Janeiro, ivr. Francisco Alves, 1916, p.VIL Cf, Hayden White, The Content ofthe Form Narrative Discourse and Historical Representa- tion, Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 1987, .188: «Here arses a division ‘between the historian who wishes primarily to “reconstruct” or “explain” the pest and one who is inler- ested either in “interpreting” it or using its detritus as an occasion for his own speculations on the present (and future). "Cf, Paul Ricoeur, Temps er Récit, Paris, Seuil, 1983, Tome I, pp.137-172. SCE, Hayden White, op cit, p43: ela historical discourse, the narrative serves to transform into «8 story alist of historical events that would otherwise be only chronicle» 93

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