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A REFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90: LOGICA E MECANISMOS DE CONTROLE LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA A grande tarefa politica dos anos 90 € a reforma ou a recons- trugdo do Estado. Entre os anos 30 e os anos 60 deste século, 0 Estado foi um fator de desenvolvimento econdmico e social. Nesse perfodo, e parti- cularmente depois da Segunda Guerra Mundial, assistimos a um perfodo de prosperidade econémica e de aumento dos padrées de vida sem prece- dentes na hist6ria da humanidade. A partir dos anos 70, porém, face ao seu crescimento distorcido e ao processo de globalizagao, o Estado entrou em crise e se transformou na principal causa da redugdo das taxas de cresci- mento econdmico, da elevacdo das taxas de desemprego e do aumento da taxa de inflagiio que, desde entdo, ocorreram em todo o mundo. A onda neoconservadora € as reformas econdmicas orientadas para 0 mercado foram a resposta a esta crise — reformas que os neoliberais em um certo momento imaginaram que teriam como resultado 0 Estado mfnimo. Entretanto, quando, nos anos 90, se verificou a inviabilidade da proposta conservadora de Estado minimo, estas reformas revelaram sua verdadeira natureza: uma condigio necesséria da reconstrucao do Estado — para que este pudesse realizar_néo apenas suas tarefas classicas de garantia da pro- priedade e dos contratos, mas também seu papel de garantidor dos direitos sociais e de promotor da competitividade do seu respectivo pats. A reforma do Estado envolve quatro problemas que, embora interdependentes, podem ser distinguidos: (a) um problema econdmico- politico — a delimitaco do tamanho do Estado; (b) um outro também econémico-politico, mas que merece tratamento especial — a redefini¢ao do papel regulador do Estado; (c) um econdmico-administrativo - a recupe- ragdo da governanca ou capacidade financeira e administrativa de imple- mentar as decisdes politicas tomadas pelo governo; e (d) um politico — 0 50 LUA NOVA N? 45 — 98 aumento da governabilidade ou capacidade politica do governo de inter- mediar interesses, garantir legitimidade, e governar. Na delimitagéo do tamanho do Estado esto envolvidas as idéias de privatizagao, “publiciza- do” e terceirizagao. A questo da desregulacio diz respeito ao maior ou menor grau de intervengiio do Estado no funcionamento do mercado. No aumento da governanga temos um aspecto financeiro: a superagao da crise fiscal; um estratégico: a redefinigdo das formas de intervengdo no plano econémico-social; ¢ um administrativo: a superagdo da forma burocrdtica de administrar 0 Estado. No aumento da governabilidade estéo inclufdos dois aspectos: a legitimidade do governo perante a sociedade, e a ade- quagao das instituigdes polfticas para a intermediagao dos interesses. Neste trabalho vou tentar analisar os quatro aspectos basicos da reconstrugdo do Estado: a delimitagao de sua abrangéncia institucional e os processos de redugdo do tamanho do Estado, a demarcagdo de seu papel regulador e os processos de desregulamentagaio, 0 aumento de sua capaci dade de governanga, e o aumento de sua governabilidade. Nos quatro casos, 0 objetivo nao é enfraquecer 0 Estado, mas fortalecé-lo. O pressu- posto sera sempre o do regime democritico, néio apenas porque a demo- cracia é um valor final, mas também porque, no estdgio de civilizago que a humanidade alcangou, € 0 nico regime que tem condigdes de garantir estabilidade politica e desenvolvimento econdmico sustentado. Deixarei em segundo plano a questdo do porqué da crise do Estado, e farei apenas uma breve referéncia & discussao tedrica sobre o problema das limitagdes da coordenagao pelo mercado que tornam imperativa a intervengo com- plementar do Estado. O tema central deste artigo € 0 processo de reforma do Estado em curso e a sua fundamentagio pratica e tedrica. E a andlise dessa reforma e das instituigdes que dela derivam a partir de uma ldgica de controle econémico e social. Partirei da premissa de que o Estado € funda- mental para promover o desenvolvimento, como afirmam os pragmdaticos de todas as orientages ideolégicas, bem como uma maior justiga social, como deseja a esquerda, e nao apenas necessério para garantir 0 direito de propriedade e os contratos — ow seja, a ordem —, como quer a nova dire- ita neoliberal. Como & mais apropriado para a andlise dos problemas econémicos € politicos, usarei essencialmente 0 método histérico. Nao examinarei a crise do Estado e as reformas decorrentes em abstrato, mas a partir da realidade desta segunda metade dos anos 90. Utilizarei, entretan- to, instrumentos I6gico-dedutivos e gerais sempre que forem titeis para a andlise. Nesse sentido desenvolverei alguns modelos: a distingao das ativi- dades exclusivas de Estado dos servigos sociais e cientificos; a definigaio de uma propriedade publica ndo-estatal entre a propriedade estatal ¢ a pri- AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 51 vada; a conceituagio das novas instituigdes que definirdo 0 novo Estado que est4 surgindo; as principais formas de controle ou coordenacio econdémica e social existentes no capitalismo contempordneo; e, final- mente, 0 que chamarei de a “Iégica do leque de mecanismos de controle”, que fundamenta a escolha de instituigdes e formas de atuacdo do Estado. CRISE E REFORMA A Grande Crise Econdmica dos Anos 80 reduziu a taxa de crescimento dos pafses centrais & metade do que foram nos vinte anos que se seguiram & Segunda Guerra Mundial, levou os pafses em desenvolvi- mento a terem sua renda por habitante estagnada por 15 anos, e implicou no colapso dos regimes estatistas do bloco soviético. Quando dizemos que esta Grande Crise teve como causa fundamental a crise do Estado — uma crise fiscal do Estado, uma crise do modo de interveng’o do Estado no econdmico e no social, e uma crise da forma burocratica de administrar 0 Estado — esté pressuposto que o Estado, além de garantir a ordem interna, a estabilidade da moeda e 0 funcionamento dos mercados, tem um papel fundamental de coordenagao econdmica.! Ou, em outras palavras, est implicito que a coordenagio do sistema econdmico no capitalismo con- temporaneo é, de fato, realizada ndo apenas pelo mercado, como quer 0 neoliberalismo conservador de alguns notdveis economistas neoclissicos,” mas também pelo Estado: o primeiro coordena a economia através de tro- cas, o segundo, através de transferéncias para os setores que o mercado no logra remunerar adequadamente segundo o julgamento politico da sociedade, Assim, quando h4 uma crise importante no sistema, sua origem deverd ser encontrada ou no mercado, ou no Estado. A Grande Depressio dos anos 30 decorreu do mal funcionamento do mercado, a Grande Crise dos anos 80, do colapso do Estado Social do século vinte. O mercado é 0 mecanismo de alocagio eficiente de recursos por exceléncia, mas mesmo nesta tarefa sua agdo deixa muitas vezes a desejar, dada ndo apenas a formagao de monopélios, mas principalmente a existén- cia de economias externas que escapam ao mecanismo dos precos. O Estado moderno, por sua vez, € anterior ao mercado, na medida em que | Examinei inicialmente a crise do Estado em “O Cardter Ciclico da Intervengao Estatal” {1988) € nos ensaios publicados em A Crise do Esiado (1991) Refiro-me a economistas como Friedrick Hayek, Milton Friedman, James Buchanan, Mancur Olson e Anne Krueger.

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