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? OS MOVIMENTOS DE RESISTENCIA NA AFRICA! O desafio A autoridade: aconcretizacdo das resisténcias E preciso um cuidado especial para entender que, mesmo compartilhando um conjunto de pressupostos, 08 sistemas coloniais apresentavam-se diversos quanto & forma ¢ a intensidade com que utilizavam seus mecanis- mos ¢ instrumentos de dominagio diante da rica varie- dade de culturas pré-coloniais africanas. Também nao resta duvida de que a dominacao nao foi efetiva em todos os espasos geopoliticos, ficando, na pratica, cir- cunscrita aos pequenos centros € seus arredores, nos es- pacos econdmicos produtivos ¢ ao longo dos caminhos de escoamento dos pro- dutos de exportagao. De todo modo, © processo de colonizagao foi sempre marcado pela violén- cia, pelo despropésito ¢, nao raro, pela irracionalidade da dominagao. © con- fisco de terras, as formas compulsérias de trabalho, a cobranga abusiva de im- postos ¢ a violéncia simbélica constitutiva do racismo, feriram o dinamismo histérico dos africanos. Nao surpreende, portanto, que os movimentos de resis- téncia tenham pipocado em vodo o continente, criando o enorme e quase invié- vel desafio de pesquisé-los criteriosamente. Por sua ver, os estudos efetuados sobre algumas dessas experiéncias histéri- cas caractetizam-se, no seu conjunto, por ui eurocentrismo manifesto por trés equivocos bdsicos. O primeiro deles diz respeito ao fato da pouca importéncia 1, Cabe saliemtar que este capiuulo € uma versio revisada e ampliada do artigo de HERNANDEZ, Leila M. G. Leite, “Movimentos de resisténcia na Africa”. Revista de Histéria, Departamento de Histévia, EPLCH/USP. Sao Paulo, n, 141, 2° semestre, 1999, p. 141-150. 110 LEILA LEITE HERNANDEZ atribuida ao préprio tema da resisténcia, justificada pela crenga de que os afti- canos teriam se resignado A “pacificagao” européia. © segundo equivoco refere-se aos estudos que identificam os movimentos de resisténcia como de pequena envergadura, desorganizados e impulsionados por ideologias qualificadas como irracionais, uma vez que compostos por ceengas “fetichistas” e, em decorréncia, “conservadoras”. Dal o fato de serem considerados “insignificantes”, ndo apresentando conseqiiéncias importantes em seu tempo. Jo terceiro equivoco é o despropésito de classificar as sociedades africanas entre aquelas que possuem organizacéo social hierarquizada ¢ poder politico fortemente centralizado ¢, por isso, so consideradas “naturalmente belicosas”, © as que se apresentam hierarquizadas de forma débil e difusa e tém um poder politico descentralizado, sendo por conseqiiéncia caraccerizadas como “natural- mente pacificas”.? Ora, essas andlises nio se sustentam historicamente, uma vez que a grande maioria das organizagées sociopoliticas afticanas buscaram, em algum momento, uma base de colaboragio com os europeus €, em outros, eh- traram em confronto com eles em defesa de interesses on valores que considera- vam fundamentais. Ao lado desse conjunto de equivocos, o historiador Terence Ranger, um dos grandes especialistas dos movimentos de resisténcia na Aftica, em particular na ocidental, ressalta que convém reconhecer com clareza a necessidade de uma soma de esforgos para que, mediante um maior niimero de cuidadosas pesqui- sas, torne-se possivel identificar ¢ classificar os movimentos de resisténcia com maior rigor. ‘Uma observacio rem de ser feita, nese ponto, sobre a dificuldade de pen- sar os movimentos de resisténcia, Hé diferencas, mas também razbes comuns, que fazem esses movimentos praticamente impossiveis de ser tratados por qual- quer discurso linear. Também esse € um problema que dificulta a selegzo dos movimentos ¢ a sua rigorosa classificagao. No momento em que se constituf- ram, assim como naqueles em que ecloditam, os movimentos permitiram identificar um entrelacamento de diferentes planos, como o politico e 0 econd- mico, ou o politico € 0 cultural (no sentido amplo do termo), desafiando o pesquisador a identificar qual motivo predominou sobre os demais. Nesse sen- tido, € possivel reconhecer como razées relativamente diretas das revoltas que eclodiram, em particular, (mas no s6) entre 1880 ¢ 1914: a perda da sobera- 2, THORNTON, op. cis., v. IV. 3. Este capitulo foi inspizado no artigo de RANGER, Terence “Iniciativas e zessténcia afticanas ew face da parclha e da conguista”, Jae BOAHEN, op. it, p. 69-86. APRICA NA SALA DE AULA it ria, a quebra da legitimidade, as idéias religiosas, o despropésito de mecanis- mos econdmicos € a corrosio ea repressao as manifestagses culturais, salientan- do que grande parte das vezes alguns desses elementos apresentatam-se de mmancira articulada.* Quando se fala em perda de soberania € preciso deixar claro que cla apresentava-se historicamente combinada com a prépria conjuncura de consti- tuicdo do sistema colonial, dando ensejo para que um movimento de resisténcia refletisse muiltiplas razoes de descontentamento, Exemplo significativo foi o da Argélia, em 1830, quando o governo francés, invocando os ataques piratas nos postos do Medicerr’inco, ocupou o territério argelino. ‘A resposta foi uma resistencia constante ¢ organizada por parte da popu- lagio arabe que, alm de ser zelosa de sta soberania, nao accitava as politicas ¢ os métodos executados pela burocracia colonial européia, os quais eram in- compativeis com uma administragao com raizes islamicas, funcada em um sistema moral santificado. Cem anos depois, em 1930, Ferhat Abbas observou com justeza: ‘A.colonizagio constitu’ apenas uma emperirada militar € econémica, posteriormente defendida por um regime administracivo apropriados para os argelinos, contudo, & uma verdadeiza revolugao que vem ttanstornar codo um antigo mundo de crengas ¢ idéiss, um modo secular de existéncia, Coloca todo um povo diante de sibita mu- obrigada a se adaptat danga, Uma nagio inteira, sem estat preparada para isso, ou, sendo, sucumbir. Tal situacio conduz necessariamente a um desequilibrio moral ¢ material, cuja esterilidade nao estd longe da desintegragio completa. Fssas consideragées dao conta de como a alienago da soberania trouxe a petda da independencia e da liberdade, dando ensejo & resistencia constante por parte das populagbes locais a0 governo colonial francés, destacando-se a guetta fiderada por Abd-al-Qadir que durou de 1834 a 1847, quando foi sufocada por tum exército de cerca de cm mil soldados franceses, O exemplo deste ¢ de outros movimentos de sesisténcia pela perda da soberania permitem observar que o significado de “soberania”, para a maior parte das sociedades afiicanas, teve limites que excediam 0 poder politico considerado de forma resteia, Ein oucras palaveas, em grande parte das sociedades afficanas 0 poder de mando era 4. Sobre o coma das huras de resisigncia na costa atkintica consultar: MACGAEPEY, Wyatt, Dialogue of the deaf Europeans on the Ailantie Coast of Africa. Cambridge: University of Cambridge Press, 1994. 5, Apud BERQUE, J. Les Maghreb enore dewe gueries, 2. ed. Paris: Du Seuil, 1970.

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