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in Fhnologe , n-3, n°G-8, 199%, ppp. 14-3F Os.Argonautas do Pacifico Ocidental * ta Bronislaw Malinovski Introdugio: objecto, método e alcance desta investigagio As populagées costeiras das Ihas dos Mares do Sul, com muito raras excepg6es, so, ou eram antes da sua extincio, peritas em navegaco e comér- cio. Algumas delas desenvolveram excelentes tipos de canoas de navegacao em alto mar, nas quais embarcavam para expedigSes comerciais distantes ou incursées de guerra e conquista. Os Papua-Melanésios, que habitam a custa 2 as ilhas longinquas da Nova Guiné, nao sdo excepgdo a esta regra. Trata-se, de um modo geral, de marinheiros corajosos, artesdos habilidosos e nego- ciantes argutos. Os centros de manufactura de artigos importantes, como a cermica, instrumentos de pedra, canoas, cestaria fina ornamentos valiosos, distribuem-se por diferentes locais, de acordo com a habilidade dos habitan- tes, a tradigao tribal que herdaram ou as condicées propicias oferecidas pela regio; por isso, estes produtos so comercializados através de vastas regides, chegando a percorrer-se centenas de quilémetros. Entre as vdrias tribos estabeleceram-se formas de trocas definidas ao longo de rotas comerciais precisas. Uma das formas de comércio intertribal mais notdvel é a que existe entre os Motu de Port Moresby e as tribos do Golfo de Papua. Os Motu navegam centenas de quilémetros em canoas pesadas e desajeitadas chamadas lakatoi, que tém velas caracteristicas em forma de tena- zes de caranguejo. Trazem ceramica e ornamentos feitos com conchas ~e anti- gamente traziam laminas de pedra - para os Papuas do Golfo, dos quais obtém, em troca, sagti e as pesadas canoas escavadas em troncos de érvore, que mais tarde utilizam para a construgio das suas Jakatoi', Mais a Leste, na costa Sul, vive a populacdo maritima e diligente dos Mailu, que liga o extremo oriental da Nova Guiné as tribos da costa Central, através de expedigdes comerciais anuais’. Por fim, os nativos das ilhas e dos arquipélagos dispersos pelo Extremo Oriental, mantém constantes relagdes comerciais entre si. O livro do Prof. Seligman oferece-nos uma excelente des- crigdo deste tema, especialmente das rotas comerciais mais préximas entre as x eo 18° Ethnologia varias ilhas habitadas pelos Massim do Sul’. Existe, todavia, outro sistema comercial muito alargado e altamente complex, que inchui nas suas ramifi- cagées, nao s6 as ilhas préximas do Extremo Oriental, mas também as Luis{adas, a Iha de Woodlark, 0 Arquipélago de Trobriand e o grupo de Entrecasteaux, penetrando no continente da Nova Guiné e influenciando indi- rectamente varias regiées distantes, como a Ilha de Rossel e algumas partes da costa Norte e Sul da Nova Guiné. Este sistema comercial, o Kula, é o tema que me proponho descrever neste volume e tornar-se-4 evidente que se trata de um fenémeno econémico de considerdvel importancia tedrica. Reveste-se de um significado extremo na vida tribal dos nativos que vivem dentro do seu Gireito, Sendo a sua importincia totalmente reconhecia pelos préprios cus idelas, ambigies, desejos e vaidadies esto directamente relacionados com o 0 Antes de prosseguir com a descricio do Kula, serd conveniente fazer uma descrigéo dos métodos utilizados na recolha do material etnogrdfico. Em qual- quer ramo do conhecimento, os resultados de uma pesquisa cientifica devem “; Ser apresentados de maneira totalmente neutra e honesta. Nao ocorreria a nin- ” guém fazer uma contribuiggo experimental no Ambito da ciéncia fisica ou qui- mica sem dar conta detalhada de todos os passos das experiéncias que efec- tuou, uma descri¢o exacta dos instrumentos utilizados, da maneira como as observages foram conduzidas, do seu mimero, da quantidade de tempo que Ihe foi dedicado e do grau de aproximaco com o qual cada medida foi reali- zada. Nas ciéncias menos exactas, como na Biologia ou na Geologia, isto ndo pode ser feito de forma tdo rigorosa, mas qualquer estudioso fard o seu melhor de maneira a fornecer ao leitor todas as condigdes em que as experiéncias ou observagées foram efectuadas. Lamentavelmente, na Etografia, onde a apre- sentaggo desinteressada dessa informagio se toma talvez ainda mais necessé- ria, isto nem sempre tem sido devidamente explicitado e muitos autores limi- tam-se a apresentar os dados adquiridos, fazendo-os emergir, perante nés, a partir da mais completa obscuridade, sem qualquer referéncia aos processos utilizados para a sua aquisigao. - ; Seria fécil citar obras de grande reputacdo e de cunho cientifico reco- nhecido, em que somos confrontados com generalizagées por atacado, sem qualquer informacao relativa as experiéncias que conduziram os autores as suas conclusées. Nao encontramos af nenhum capitulo ou pardgrafo espe- cial dedicado & descrigdo das condigdes sob as quais as observagées foram ‘efectuadas e as informacées recolhidas. Ora eu penso que a linha que separa 0s resultados da observagao directa e as declaracées e interpretacies nativas das inferéncias do autor baseadas no seu senso comum e capacidade de penetragao psicoldgica‘ s6 pode ser tracada com base nessas fontes etno- graficas de inquestiondvel valor cientifico. Na verdade, um sumdrio como o else, que estd inclufdo no quadro abaixo (Div. IV deste capitulo), deveria ser sem- Pre exibido, de forma a que, num'olhar répido, o leitor possa avaliar com preciso o grau de conhecimento pessoal do autor sobre os factos que des- creve e formar uma ideia relativamente as condig6es de obtengao de infor- magio junto dos nativos. Se pensarmos na ciéncia histérica, nenhum autor esperaria ser levado a sério se envolvesse as suas fontes em mistério e falasse do pasado como se 0 estivesse a adivinhar. Na Etmografia, o autor é, simulianeamente, o seu pro- Ptio cronista e historiador; e embora as suas fontes sejam, sem duivida, facil- mente acessfveis, elas so também altamente duibias e complexas; nao estio materializadas em documentos fixos e concretos, mas sim no comportamento na meméria dos homens vivos. Na Etnografia, a distancia entre o material informativo bruto — tal como se apresenta ao investigador nas suas observa- ges, nas declaragdes dos nativos, no caleidoscspio da vida tribal - e a apr>- sentacao final confirmada dos resultados é, frequentemente, enorme. C Etnégrafo tem que salvaguardar essa distancia de anos laboriosos, entre 0 momento em que desembarca numa ilha nativa e faz as suas primeiras tenta- tivas para entrar em contacto com os nativos eo perfodo em que escreve a sua versio final dos resultados. Uma ideia geral e breve das atribulagdes de um. ales longa dace oe eaten mais ix oobpe eva queso ro que qualquer longa discussio em abstracto. Wy Imagine o leitor que, de repente, destin sbatnbo sims plata top cal, perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu material, enquanto a lancha ‘ou pequena baleeira que o trouxe navega até desaparecer de vista. Uma vez que se instalou na vizinhanca de um homem branco, comerciante ou missio- nério, nao tem nada a fazer sendo comegar imediatamente o seu trabalho etno- gréfico. Imagine ainda que é um principiante sem experiéncia anterior, sem nada para o guiar e ninguém para o ajudar, pois o homem branco estd tem- Porariamente ausente, ou entao impossibilitado ou sem interesse em perder tempo consigo. Isto descreve exactamente a minha primeira iniciagao no tra- balho de campo na costa Sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visi- tas que efectuei as povoagées durante as primeiras semanas e da sensacao de desanimo e desespero depois de muitas tentativas obstinadas mas intiteis com © objectivo frustrado de estabelecimento de um contacto real com os nativos ou da obtengio de algum material. Atravessei perfodos de des4nimo, alturas em que me refugiava na leitura de romances, tal como um homem levado a beber numa crise de depressio e tédio tropical. Imagine-se, agora, 0 leitor, entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho ou na companhia do seu cicerone branco. Alguns nativos juntam-se em seu redor, especialmente se pressentirem ‘ue hd tabaco. Outros, mais distintos e

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