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MORTE
DA
LEI
- Introdução ................................................................................................................. 2
- I - Deus e a Lei ......................................................................................................... 8
- II - O Nascimento da Lei ....................................................................................... 9
- III - A Função da Lei .............................................................................................12
- IV - Mandamentos da Lei e Mandamentos do Senhor ................................... 14
- V - Rompimento Necessário ................................................................................ 23
- VI - Rejeição ao Pecado e Renovação da Consciência ................................... 26
- VII - Mas, e os Nossos Pecados? ...................................................................... 32
- VIII – A Mente Autojustificada ....................................................................... 38
- IX - O Relacionamento com os Legalistas ....................................................... 77
- X – Acerca do Mérito Humano ............................................................................ 86
- XI – O Evangelho de Paulo ................................................................................... 94
- XII – A Inutilidade da Lei ................................................................................... 99
- XIII – Lei e Graça: Absolutamente Excludentes Entre Si ........................ 102
- XIV – A Verdade Que Liberta .......................................................................... 104
- XV – Sempre Atuantes, Mesmo Diante das Dificuldades .......................... 106
- XVI – O Mundo ..................................................................................................... 108
- Considerações Finais ........................................................................................... 109
- Por que quem está sob a Lei não pode estar na Graça? (Gl 5:4)
- Por que a força do pecado é a Lei, e não a Graça? (I Co 15:56)
- A Graça incentiva o pecado? (Rm 5:20 – 6:2)
- A morte da Lei é uma licença para a libertinagem? (I Co 6:12)
- “E conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará” (Jo 8:32). Que
verdade? Libertará de quê? Para quê?
- “Por que há de ser julgada a minha liberdade pela consciência alheia?”
(I Co 10:29) O que o apóstolo Paulo quis ensinar aqui?
- “A fé que tens, tem-na para ti mesmo, perante Deus. Bem-aventurado
é aquele que não se condena naquilo que aprova” (Rm 14:22). O que
significa isso, na prática?
- “Se o coração não nos acusar, temos confiança diante de Deus” (I Jo
3:21). E aí?
- Se a salvação é pela Graça e a Graça é favor imerecido, o mérito
humano não tem valor algum nem deve ser buscado?
- O fato de que a salvação é pela fé e não tem a ver com a moral
significa que o cristão não precisa zelar por sua imagem?
- Se morremos para a Lei/legalismo (justificação diante de Deus pelos
nossos méritos através de parâmetros legitimadores da nossa
justiça), estamos desobrigados de uma vida na “legalidade”?
- Por que a letra mata e o Espírito vivifica? (II Co 3:6)
- O que é Justiça da Lei e o que é Justiça de Deus? (II Co 5:21; Fp 3:9)
- O que é justiça que procede de lei e justiça que procede de fé?
- O que é “aperfeiçoar-se na carne”? (Gl 3:3)
- O que é a “Lei do pecado e da morte”? (Rm 8:2)
- “Tudo que a Lei diz, aos que vivem na Lei o diz” (Rm 3:19). Você vive
na Lei ou na Graça de Cristo?
- O que é o ministério da morte e da condenação? (II Co 3:7-9)
- Por que, afinal, a Palavra da Cruz é escândalo e loucura? (I Co 1:23)
- No episódio da mulher adúltera (Jo 8:1-11), Jesus desmoralizou os
moralistas de plantão em vez de julgar e condenar a transgressora.
Por quê?
- “...temos posto a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os
homens, especialmente dos fiéis” (I Tm 4:10). O que significa isso?
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- Por que e como a lei domina o homem enquanto ele vive? (Rm 7:1)
- Por que o domínio do pecado é sobre quem está debaixo da Lei, e não
sobre quem está livre dela, na Graça de Cristo? (Rm 6:14)
- Por que a Lei desperta toda sorte de concupiscência? (Rm 7:8)
- O que é estar sujeito à Lei e o que é estar livre da Lei? (Rm 7:6)
- O que é o evangelho da “circuncisão” e o da “incircuncisão”? (Gl 2:7)
- Por que precisamos morrer para o estatuto da autojustificação (a Lei)
a fim de pertencermos àquele que ressuscitou dentre os mortos e
assim vivermos e frutificarmos para Deus? (Rm 7:4; Gl 2:19)
- Qual o comportamento de quem busca justificação na justiça da Lei?
- Qual a opinião de Cristo sobre esse comportamento?
- O que é um legalista?
- O que é autojustificação?
- Por que, no reino dos céus, publicanos e meretrizes precedem
religiosos moralistas e autojustificados? (Mt 21:31)
- Deus disse: “Achei a Davi, filho de Jessé, um homem segundo o meu
coração, que fará toda a minha vontade” (At 13:22). Jesus é chamado
de “O Filho de Davi”. Mesmo com tanto prestígio diante de Deus, por
que, na religião dita cristã, ninguém aconselha: “Seja como Davi”?
- O que havia de tão bom em Davi (adúltero, assassino frio, desbocado,
atrevido...) que fazia dele um homem segundo o coração de Deus?
- Como é, afinal, um homem segundo o coração de Deus?
- Por que Paulo tratou de vários pecados na igreja (muitos dos quais
constavam claramente no estatuto mosaico), mas não se referiu à Lei
como referencial de acusação e condenação por esses pecados?
- Por que Paulo jamais citou a Lei como parâmetro de conduta para os
discípulos nem ordenou a submissão a ela?
- Por que a Lei é fraca e inútil para o aperfeiçoamento? (Hb 7:18)
- Como é possível o homem interior renovar-se de dia em dia, ainda que
o homem exterior se corrompa? (II Co 4:16)
- Por que o poder de Cristo se aperfeiçoa na nossa fraqueza? (II Co
12:9)
- O que significa “negar-se a si mesmo”? (Mc 8:34)
- O que significa perder a vida a fim de salvá-la? (Mt 16:25)
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- Por que, para o apóstolo dos gentios, discussões e debates sobre a Lei
são inúteis e fúteis? (Tt 3:9)
- Para Paulo, o que é “desfazer o escândalo da cruz”? (Gl 5:11)
- Por que, para Pedro, impor a Lei aos discípulos é “tentar a Deus”? (At
15:10)
- O que significa: “A Lei não procede de fé”? (Gl 3:12)
- Se a Lei não procede de fé e “sem fé é impossível agradar a Deus”
(Hb 11:6), como pode alguém agradar a Deus com obras da Lei?
- “Se a justiça procede da Lei, Cristo morreu em vão” (Gl 2:21). O que
significa isso?
- Se a justificação pela Lei anula o sacrifício de Cristo (Gl 2:21), por
que muitos ainda insistem na sujeição ao estatuto mosaico?
- Se quem está sob a Lei está sob maldição (Gl 3:10), por que tantos
cristãos sujeitam-se a ela?
- Por que “Quem ama ao próximo tem cumprido a Lei”? (Rm 13:8)
- O que foi que eu destruí e que, se eu tornar a edificar, constituir-me-
ei transgressor? (Gl 2:18)
- O que significa “ser achado nele, não tendo justiça própria, que
procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que
procede de Deus, baseada na fé”? (Fp 3:9)
- Cristo foi constituído sacerdote, não conforme a lei de mandamento
carnal, mas segundo o poder de vida indissolúvel (Hb 7:16). Qual a
diferença? O que é essa “lei de mandamento carnal”?
- “...quando se muda o sacerdócio, necessariamente há também mudança
de lei” (Hb 7:12). O que significa isto?
- “Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo”
(Gl 6:2). O que significa isso? O que é a Lei de Cristo? (I Co 9:20-21)
- O que foi decidido no “Concílio de Jerusalém” sobre a imposição da
Lei aos discípulos (At 15:5-21)? A “religião cristã” segue a decisão
apostólica?
- Religião Cristã, Cristianismo e Evangelho são a mesma coisa?
- Se o fardo de Cristo é leve (Mt 11:30), por que o da religião cristã é
tão pesado?
- Qual a opinião do apóstolo Paulo sobre a tentativa de conciliar Lei e
Graça? (Gl 1:6-9; 5:11)
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I - DEUS E A LEI
II - O NASCIMENTO DA LEI
Mas se a Lei não é Deus, e Deus não é a Lei, qual o papel dela no plano
de salvação dos pecadores? Sabemos que Deus é o juiz, mas um juiz apenas
dá a sentença do réu, que é baseada nas acusações que contra ele pesam e
na defesa que lhe presta o seu advogado. Sabemos ainda que o Senhor
Jesus é o advogado de todo aquele que nele crê e que, obviamente, o tem
como seu advogado (I Jo 2:1), e que esses nem entram em juízo (Cristo é o
nosso advogado hoje, pois os seus não entrarão em julgamento - Jo 5:24); no
próprio Cristo de Deus já fomos julgados, condenados, sentenciados à morte
e tivemos a nossa pena executada. Quem será, então, o acusador?
Sempre que o Senhor Jesus falava da sua própria obrigação de, como
Messias, guardar infalivelmente toda a Lei, ele referia-se a ela como
“vontade do meu Pai” ou como “mandamentos do meu Pai” (Jo 15:10). Mas
sempre que ele falava da sujeição dos homens à Lei, na tentativa de
justificarem-se diante de Deus pela obediência a ela, ele a separava da
pessoa de Deus (“vossa Lei” - Jo 8:17) e a ligava à figura de Moisés (Jo
7:19), e fazia isso porque Deus não tem nada a ver com a justificação dos
homens pela Lei.
Foi fazendo justamente essa separação que o Senhor Jesus respondeu
de forma bastante clara à pergunta sobre quem será o acusador do homem:
“Não penseis que vos acusarei perante o Pai. Quem vos acusa é Moisés (a
Lei), em quem tendes firmado a vossa confiança” (Jo 5:45). Quem não crê
que a Lei aponta para Cristo, e busca justiça própria mediante a obediência
às suas ordenanças (da Lei), está dormindo com seu próprio algoz. A vontade
do Pai para o Filho (entre outras coisas) era que ele cumprisse cabalmente a
Lei. A vontade do Pai para os homens é que todos, morrendo para a Lei
(deixando de buscar justificação nela), creiam na justificação através do
Filho e, assim, tenham a vida eterna (Jo 6:40).
É função da Lei, portanto, acusar e criminalizar os pecados dos homens
– e só! Ela não ama, não tem misericórdia, não dá chance de arrependimento,
não perdoa, não aperfeiçoa nem salva ninguém. Há um só que faz tudo isso:
DEUS - e Deus não é a Lei, e a Lei não é Deus. Ela acusa - e só acusa - os
pecados do mundo inteiro, mas a interferência amorosa de Deus foi para
assumi-los todos (I Jo 2:2), e a sua vontade é “que todos os homens sejam
salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (I Tm 2:4). Para isso
ele “estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, não imputando aos
homens as suas transgressões” (II Co 5:19).
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A Lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom (Rm 7:12). Mas, como
meio de justificação diante de Deus, ela é, para o pecador (por não lhe
permitir um tropeço sequer – Tg 2:10), ministério de morte e condenação
(II Co 3:7-9), inútil para o seu aperfeiçoamento (Hb 7:18-19), de modo que o
mandamento que fora para vida, tornou-se (por causa do pecado) para
morte, porque a Lei é espiritual, mas o pecador é carnal, vendido à
escravidão do pecado (Rm 7:10-14).
A Lei vigorou até Cristo (obviamente para quem nele está), pois ele
aboliu na sua própria carne a Lei dos mandamentos em forma de ordenanças,
para, de judeus e gentios, criar um novo homem (Ef 2:15). Por causa do
pecado, os santos mandamentos da Lei são caminhos de morte, e está
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debaixo de maldição todo aquele que, sendo das obras da Lei, não as cumpre
sem um tropeço sequer (Gl 3:10). Mas, em Cristo, tudo se fez novo (II Co
5:17), e quem está nele tem agora novos mandamentos. Não mais
mandamentos da Lei, em forma de ordenanças - que, por causa do pecado,
levam a condenação e morte eterna - mas mandamentos do Senhor (I Co
14:37), que são parâmetros de Deus para a vida de todo renascido na Graça
e no Espírito de Cristo, pois a questão da nossa condenação já foi resolvida
quando ele mesmo assumiu os nossos pecados e sofreu a sentença que seria
nossa.
Nos ensinos de Jesus e dos apóstolos estão os mandamentos para todo
renascido em Cristo, os quais têm os mesmos princípios espirituais dos
mandamentos da Lei (que é santa), mas não são penosos (I Jo 5:3), pois, não
tendo punições estabelecidas para infrações (como na Lei), são
absolutamente despidos de qualquer possibilidade ou intenção de julgamento
para condenação; são para vida e nos ensinam a viver e a andar no Espírito
(Gl 5:25), como um discípulo de Cristo deve andar, discernindo a vontade
divina e corajosamente tomando decisões em cada situação na vida real, e
não no mundo fantasioso e hipócrita da religiosidade legalista. Por isso os
mandamentos do Senhor serão de muito maior glória, pois são ministério do
Espírito e da Justiça (II Co 3:7-9), e têm no amor a sua causa e efeito,
porque amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo excede
a todos os holocaustos e sacrifícios (Mc 12:33), e quem ama não pratica o
mal contra o próximo, de sorte que o cumprimento da lei é o amor (Rm
13:10).
Cristo anunciou um novo mandamento - base de muitos outros ensinados
por ele mesmo e, posteriormente, pelos apóstolos - que é também o
referencial identificador de seus discípulos (“Novo mandamento vos dou:
que vos ameis uns aos outros. Assim como eu vos amei, que também vos
ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos os que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns aos outros” - Jo 13:34-35). Convém lembrar que tais
palavras de Jesus não são um conselho ou uma advertência, mas um
mandamento para os seus discípulos. Quem está nele “é aperfeiçoado no
amor e deve andar como ele andou” (I Jo 2:5-6). Diferente da expectativa
religiosa mais comum, a maior característica do discípulo de Cristo –
determinada por ele mesmo – não é o “pecado zero”, mas, sim, o amor ao
próximo.
Sempre que leio aqueles que o Senhor Jesus chamou de principais
mandamentos, eu me pergunto: “O que é e para que serve uma fé,
supostamente em Cristo, mas que não gera humildade nem leva o indivíduo a
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por andar segundo as obras da Lei, também de algum modo sentirá as duras
conseqüências de tentar trazer novamente sobre si a justiça da Lei, pedindo
e submetendo-se voluntariamente à sua disciplina (Ez 20:37).
Mas, em Cristo, tudo se fez novo, e não mudou apenas a linguagem dos
mandamentos. A metodologia, a forma e o objetivo do relacionamento são
diferentes. Tudo o que era relacionado ao regime da Lei - instrumentos,
práticas e costumes (e que sempre foram privativos dos israelitas – Rm 9:4)
- foi extinto na Nova Aliança. O voto já tinha sido alvo de ressalvas do
próprio Deus, que o desestimulava já na antiga aliança (“Quando a Deus
fizeres algum voto, não tardes em cumpri-lo, porque não se agrada de tolos.
Cumpre o voto que fazes. Melhor é que não votes do que votes e não
cumpras” - Ec 5:4-5), e foi expressamente proibido por Cristo na Nova
Aliança: “Também ouviste que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas
cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos. Eu, porém,
vos digo: de modo algum jureis, nem pelo céu – por ser o trono de Deus –
nem pela terra – por ser o estrado dos teus pés; nem por Jerusalém – por
ser cidade do grande Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes
tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, a tua palavra: sim, sim; não,
não. O que disto passar vem do maligno” (Mt 5:33-37).
Esse mesmo mandamento do Senhor foi repetido por Tiago: “Acima de
tudo, porém, meus irmãos, não jureis nem pelo céu, nem pela terra, nem por
qualquer outro voto. Antes seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não” (Tg
5:12). Mas o voto sempre foi muito apreciado na religião cristã como um
instrumento eficiente de barganha com Deus (com o nome de “voto” no
cristianismo evangélico e de “promessa” no cristianismo do Vaticano). Da
mesma forma, a pedra de uma tonelada que balança sobre a cabeça de quem
faz um voto - e que está prestes a cair sobre aquele que não o cumpre -
sempre foi também considerada pela religião cristã como um instrumento
muito útil na sua luta, não para derrotar o senhorio do pecado através do
amor, da misericórdia e do perdão gratuito, mas para extingui-lo pela força
da Lei (I Co 15:56).
Apesar da clareza absoluta da proibição dos votos nos textos acima,
sempre ouvimos a tentativa de justificá-los pelo fato de que, já no Novo
Testamento, há relatos de alguns discípulos que fizeram voto. Ora, observa-
se, antes de tudo, que são judeus fazendo votos – pois era um costume do
regime da Lei (que é dos judeus). Nota-se também que tais votos aparecem
inseridos no contexto de demonstrar a tentativa que há, desde o início da
igreja, de que não só os judeus convertidos continuem sob o jugo da Lei (At
21:20-21), mas também os gentios convertidos se submetam à Lei Mosaica
(todo o NT - principalmente as cartas de Paulo – narra a luta contra a
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permanência [dos judeus] e a sujeição [dos gentios] ao jugo da Lei, para que
possamos ser guiados pelo Espírito – Gl 5:8).
Paulo contemporizou em algumas situações com relação aos judeus (que,
como cidadãos, mesmo convertidos, tinham que observar os aspectos civis
da Lei Mosaica - At 23:1-5), como foi o caso da circuncisão do judeu
Timóteo pelo próprio Paulo (At 16:1-3), que jamais circuncidaria o gentio
Tito (Gl 2:3), pois quanto aos gentios convertidos, Paulo sempre exigiu a
separação total da Lei, proibiu a nossa sujeição a ela (Gl 5:2-4), e o seu
ministério caracterizou-se pela luta contra a influência mosaica e todas as
suas formas de legalismo na igreja gentílica (no início houve uma nítida
separação entre igreja judaica e gentílica – At 15:1-28; Gl 2:7) e a sua
conseqüência direta, o farisaísmo; de modo que, quem está justificado em
Cristo não pode sujeitar-se à Lei nem sentir-se nem declarar-se justificado
pela obediência a ela (Gl 5:4).
A vontade de Deus para judeus e gentios convertidos é que todos
abandonem o jugo da Lei (justiça própria). Mas para judeus convertidos,
mesmo não sendo mais julgados pela Lei (Tg 2:12), o referencial de conduta
continuou sendo o estatuto Mosaico, que era a sua lei civil. Em epístolas
dirigidas aos judeus, tal fato fica bastante claro (At 23:1-5; Tg 2:8-11, 4:11;
Epístola aos Hebreus).
Mas, em suas epístolas, o apóstolo dos gentios (e nós somos gentios
convertidos) deu instruções claras e detalhadas sobre o padrão de
comportamento a ser buscado pelos renascidos na Graça de Cristo, bem
como listou valores espirituais que deveriam guiar todos os discípulos,
tratou de condutas seriamente reprováveis para uma nova criatura em
Cristo, e fez tudo isso sem recorrer à Lei Mosaica. Antes, apontou-a como a
força do pecado (I Co 15:56), instrumento de domínio do pecado (Rm 6:14) e
mandou-nos manter distância de quem busca e quer impor aos outros a
justificação pela obediência à Lei (Tt 1:10-11). Era na doutrina dos apóstolos
que a igreja perseverava (At 2:42), e não na observância da Lei.
A absoluta rejeição de Paulo à Lei Mosaica como referencial de conduta
para os gentios era escândalo para os fariseus e não foi facilmente
compreendida nem pelos demais apóstolos (II Pe 3:14-16).
Voltando à questão do voto, nada impede que um renascido no Espírito
tome uma decisão radical e comprometa-se diante do Senhor (com a devida
seriedade) para redirecionar os rumos de uma determinada situação ou para
corrigir uma postura constante e inadequada para uma nova criatura em
Cristo (Rm 7:19). Entretanto, sua decisão deve ser um “sim” (ou um “não”, se
for o caso) diante de Deus, sem recorrer a barganhas (se me deres isso,
faço aquilo) nem fazer acordos (punições ou “prêmios”) nem tampouco
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que buscam legitimação na rígida “lei dos crentes”, mas inadequada para
corações que verdadeiramente se reconhecem pecadores.
Quando Jesus disse que estaria onde houvesse dois ou três reunidos
em seu nome (Mt 18:20), ele, evidentemente, não estava afirmando que não
estaria com um discípulo quando este estivesse sozinho. Ele falava de
comunhão (papel fundamental da igreja), e mostrou que, para que ela
aconteça, basta que haja duas pessoas reunidas em seu nome. Para Cristo,
esse pequeno ajuntamento já é a sua Igreja. Desse modo, ele deixou claro
que estaria e agiria fora de paredes institucionais e também alertou-nos
para o fato de que o centro de sua atenção são as pessoas (comunhão e
edificação), e não o lugar (Templo – exclusivo para culto e adoração).
O medo da Lei e o medo de discernir as situações espiritualmente são
os dois lados da mesma moeda. Por isso temos que separar o que é da Lei e o
que é da Graça, como obreiros aprovados, que manejam bem (“dividem bem”,
no original) a palavra da verdade (II Tm 2:15), para que não tenhamos zelo
sem entendimento (Rm 10:2), pois, se julgarmos tudo pela religiosidade e
não desenvolvermos a habilidade de identificar até o perfume da Graça de
Cristo, jamais perceberemos sequer a diferença entre uma rosa verdadeira
e uma outra, muito parecida (às vezes, até mais bela), mas de plástico.
Nossas vidas devem ser uma resposta ao amor de Deus por nós, pois,
em Cristo, tudo provém do amor e no amor é feito. As mais duras
exortações e até o afastamento da comunhão são ainda por amor, com amor
e visando à restauração (II Ts 3:14-15). Se não é por amor nem com amor,
não vem do Espírito de Deus, pois Deus é amor (I Jo 4:8) e, por isso, todos
os nossos atos devem ser feitos com amor (I Co 16:14).
Tudo o que Deus quer realizar no coração, na alma e na consciência do
pecador, todo o processo de transformação em uma nova criatura, nascida
do Espírito, tem o seu início, meio e fim no amor a Deus e se revela no amor
ao próximo. Uma suposta fé em Deus, que não se manifesta em atitudes
reais, motivadas pelo amor ao próximo, é uma fé morta (Tg 2:17-18).
Os princípios do Evangelho são alicerçados em dois mandamentos, dos
quais dependem toda a Lei e os profetas: “Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração... e o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22:36-40).
Entretanto, só pode amar a Deus quem se sente amado por ele primeiro (I
Jo 4:19), mas o cristianismo-religião sempre dificultou a percepção do amor
divino e quis vender caro o que Deus dá gratuitamente. O Evangelho diz:
“Descansa no amor de Deus por ti”; o cristianismo-religião te ensina a
negociar com Deus. O Cordeiro crucificado clama: “Eu e o Pai te amamos!”; o
cristianismo-religião sussurra: “Desconfie deles...”.
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V - ROMPIMENTO NECESSÁRIO
Se é por medo, não é por amor e não é pelo Espírito, pois no amor não
existe medo. Antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz
tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor (I Jo 4:18),
pois foi por amor que Deus abandonou toda a sua glória (Fp 2:7) e, como
homem, ofereceu a sua própria vida (absolutamente santa) para sofrer a
condenação da Lei que pesava sobre nós, livrando-nos da morte eterna e, ao
ressuscitar, fazer-nos co-participantes de sua natureza divina (II Pe 1:3-4).
É com muita gratidão a Deus por tão grande amor e com total confiança, que
devemos buscar e submeter-nos à transformação que gradativamente nos
levará não somente a viver no Espírito, mas também a andar nele.
Entretanto, esse processo de renovação (novo nascimento), proposto e
viabilizado na cruz do Calvário, não é muito bem compreendido nem aceito
por muitos que se dizem convertidos, mas que, ainda embriagados com o
vinho velho – a Lei (ninguém, tendo bebido o vinho velho, prefere o novo,
porque diz: o velho é excelente! - Lc 5:39) - vêem aqui o que é para eles uma
inaceitável relativização do pecado. Para os tais, a Graça é um tanto
confusa, frouxa e carente da exatidão e do absolutismo da Lei. Ora, ora...
Nada há de mais legalista do que tal postura, pois é a Lei que olha para o
homem e apenas diz se ele está sadio ou doente. Nela, todo e qualquer
pecado é para condenação eterna. Não há nenhum envolvimento nem
possibilidade de renovação ou aperfeiçoamento, mas apenas análise fria e
óbvio diagnóstico: condenação e morte eterna (Rm 6:23).
Os pecados de quem está debaixo da Graça de Cristo (renascidos no
Espírito – Jo 3:1-8) não são mais motivos para condenação (Rm 8:1), pois não
são mais transgressões da Lei. Eles são agora uma questão de desobediência
ao padrão no qual o nosso Pai (e não juiz) quer que andemos (I Jo 2:5-6). E
esse processo de adaptação a esse novo padrão - o ser nova criatura - não
pode acontecer sob o absolutismo condenatório da Lei, por isso ela está
morta para os que estão em Cristo Jesus.
Quem apregoa o rigor da Lei (infalibilidade) para os outros puxa para si
esse mesmo rigor (Mt 7:2), trazendo sobre a própria alma angústias, culpas
e sofrimentos que seriam absolutamente desnecessários.
Além disso, o medo da condenação apenas leva o pecador a esconder e
não tratar do seu pecado, e a não ser transparente e verdadeiro diante dos
homens, pois o ser humano simplesmente não suporta nem aceita a verdade
acerca de si mesmo (imagine com neurose de condenação!). Aquele que disse:
“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14:6) também disse: “Vim causar
divisão entre o homem e seu pai, entre a filha e sua mãe, e entre a nora e
sua sogra” (Mt 10:34-36). Portanto, a verdade pode causar divisão, sim;
mesmo entre as pessoas mais próximas (entre as não tão próximas, então...).
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“Não vos enganeis: de Deus não se zomba, pois aquilo que o homem
semear, isso também ceifará” (Gl 6:7)
Deus não espera que façamos sempre as escolhas certas, mas ele quer
que tentemos acertar sempre. O nosso direito de falhar foi pago com o
precioso sangue do Cordeiro de Deus.
A vida cristã é um processo de aperfeiçoamento, onde devemos buscar
a sintonia entre a nossa mente e a nossa nova realidade espiritual, para que
vivamos como mortos para a justiça própria que há na Lei (Gl 2:19), e
andemos com fé em Cristo, guiados pelo Espírito, e orientados pelo
misericordioso amor de Deus.
E isso vale para o pior pecador, aquele mais sujo do qual já ouvimos
falar. Mas no ambiente religioso, onde o único reconhecido e valorizado é o
mais “santo”, mesmo quem entende a Graça intelectualmente leva algum
tempo (às vezes, muito tempo) para redirecionar a sua mente legalista e
autojustificada ao Espírito do Evangelho, vindo a pacificar a sua alma e a ter
prazer nessa nova realidade, dedicando-se inteiramente a ela.
Paulo deu-nos uma ótima dica de como entendermos melhor essa
questão: consideremos a nós mesmos o maior dos pecadores (I Tm 1:15) e,
assim, aceitaremos mais facilmente a misericórdia de Deus sobre todos os
outros.
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seu jugo (domínio) legalista, substituindo-o pelo jugo de Cristo, para que em
nós seja vivificado o Espírito de Deus e, efetivamente, tornemo-nos novas
criaturas - que servem em novidade de espírito e não na caducidade da letra
(Rm 7:6) - para as quais as coisas velhas já passaram e se fizeram novas (II
Co 5:17).
Mas o que seria, exatamente, livrar-se do jugo da Lei, ou morrer para
ela (Gl 2:18-19; Rm 7:4)?
Todo o universo funciona mediante regras. Leis naturais de causa e
efeito regem tudo que existe. Há uma conseqüência equivalente e justa para
cada ato, e é esse o princípio natural (e correto – Gl 6:7) de justiça, que
está gravado no coração do homem natural, ou carnal. Quem anda conforme
as regras usufrui as boas conseqüências equivalentes; quem as desobedece,
ou as ignora, também sofre (merecidamente) as más conseqüências.
Essa lógica meritória e legalista é inata e profundamente intuitiva ao
homem natural, de modo que, em qualquer situação, a sua primeira percepção
e análise (julgamento) será automaticamente mediante a justiça meritória.
Daí a sua dificuldade em discernir as coisas espirituais, pois elas não se
encaixam nessa lógica meritória (I Co 2:14). Justiça, injustiça, santidade,
impiedade, sucesso, fracasso, sensatez, insensatez, coerência, incoerência,
miséria, prosperidade... Tudo isso é racionalizado e compreendido pelo
homem natural, segundo a lógica individualista, meritória e justa do
legalismo que lhe é natural.
Em nenhum momento a Bíblia afirma que a justiça meritória – que
provém de obediência à lei - não é justa. Mas, diante da impossibilidade
humana de apresentar justiça própria perfeita mediante obediência infalível
(Tg 2:10), Cristo satisfez toda a Justiça da Lei, a fim de justificar - pela
Graça, mediante a fé (Ef 2:8) - a todos os que crêem na sua obra, para que
agora vivamos pela Justiça do Calvário (Justiça de Deus), que é superior (Hb
8:6) e provém da fé (Fp 3:9).
A lógica legalista - que alimenta a busca da justificação pelo bom
desempenho diante de leis e regras - baseia-se no merecimento e tem como
objetivo o direito adquirido. Essa “dupla do barulho” está no centro de
problemas conjugais, familiares, de relacionamento no emprego, de atritos
entre vizinhos, de brigas entre crianças e até de guerras entre nações, pois
o ser humano já nasce julgando-se merecedor das melhores coisas da vida: o
melhor brinquedo, a mãe mais bonita, a(o) namorada(o) mais atraente, o
melhor emprego, a(o) esposa(o) mais digna(o), os filhos mais lindos e mais
inteligentes, o melhor carro, a melhor casa, a melhor aposentadoria, o
melhor cemitério e, finalmente... o céu. Ele só precisa de alguém que legalize
e autentique o seu direito a tudo isso.
40
próprio exige perfeição absoluta (Tg 2:10), de modo que, pelo desempenho
na lógica meritória natural, ninguém será justificado (Gl 2:16).
Esse autoengano, além de levar à condenação, é profundamente danoso
à alma humana e cria dois seres distintos: um profundamente arrogante e
manipulador, e um outro, inseguro, medroso e manipulável. Ambos são cegos,
mas, via de regra, um será guia do outro. O primeiro se julgará justificado
por sua aparente obediência (apenas exterior - Mt 23:28) a estatutos legais
e morais, e se sentirá apto para liderar. O segundo – ainda inseguro de sua
justificação e manipulável como um boneco – colocará, espontaneamente e
em diversos níveis, a sua vida nas mãos do primeiro, que será o seu honorável
líder e guia. Em busca do direito ao céu, ambos cairão no barranco (Mt
15:14).
Em todo lugar há pessoas com o senso de observação mais aguçado, que
cedo identificam a convicção de merecimento do ser humano e a sua busca
por legitimação do “direito adquirido” e, de variadas formas e em diversas
áreas, manipulam essa realidade para satisfação de suas ambições pessoais.
Nas conquistas amorosas, por exemplo, a manipulação dá-se em um jogo
de interesses de ambas as partes. Aqui, basta sugerir que o alvo da
conquista já tem merecimento (ou direitos) só por seus atributos físicos
naturais. De um modo geral, ressaltar o merecimento tem sido o método
utilizado pelo homem (provavelmente desde Adão) para conquistar uma
mulher. E ela merece o quê? Ora, tudo de bom que ela consiga imaginar.
Inclusive o que nenhum ser humano normal conseguiria realizar para aquela
que é o alvo da conquista.
Mas o conquistador nem precisa trazer à realidade tudo a que a
“princesa”, por mérito natural, teria direito. Basta, sabiamente, manter o
clima de merecimento. E isso pode funcionar por alguns anos, até que a
“merecida” - decorrido um tempo considerável, que varia de conquistada
para conquistada - faça uma avaliação e veja que mimos, aos quais teria
“direito”, ela já recebeu, e qual a possibilidade de receber os que ainda lhe
faltam, no tempo que provavelmente ainda lhe resta. Caso essa avaliação lhe
seja desfavorável, o conquistador conhecerá e sofrerá as conseqüências de
seu engano, pois saberá o que é viver com uma “merecida insatisfeita,
frustrada e enfurecida” (Pv 21:19; 27:15-16).
Relacionamentos iniciados e mantidos sob tal distorção da realidade
são fadados ao fracasso (se não houver mudança), mesmo que, por vários
motivos, a encenação se prolongue até que a morte os separe. Entre outros
problemas que têm tornado difícil e rara a durabilidade dos casamentos
estão as expectativas irreais e a autoimagem distorcida que o amor
romântico pode gerar nos indivíduos. Viver com quem amamos
42
nós, na nossa medida, e não se estender para alcançar pessoas com justiça
inferior à nossa. A minha justiça é o meu parâmetro e a minha alegação para
tentar desqualificar e condenar o meu próximo.
Aceitar a anulação da minha justiça implica reconhecer a plena
igualdade entre mim e quem quer que seja o meu próximo e em qualquer
situação em que ele se encontre. E, sendo assim, inevitavelmente terei que
servi-lo (se sou um discípulo de Cristo), por isso a Graça de Cristo - quando
anunciada sem a justiça meritória da Lei - tira o sono de qualquer religioso...
O cristianismo identifica o bom cristão (católico ou protestante) pelo
seu perfil moral. Cristo disse que seus discípulos seriam identificados pelo
amor ao próximo (Jo 13:34-35). Ora, só podemos ver todo e qualquer ser
humano como alguém digno de amor se entendermos que Deus, rejeitando a
justiça própria do homem (Is 64:6), considerou a todos igualmente
desobedientes, a fim de derramar a sua misericórdia igualmente a todos
(Rm 11:32). Mas abrir mão de sua justiça própria (e rejeitá-la - Fp 3:7-9) é
algo extremamente difícil para o homem natural, principalmente para o
religioso, que vive em busca de legitimação para a sua moral e justiça. E essa
incompatibilidade entre o religioso moralista e o discípulo de Cristo é
abundantemente mostrada na Bíblia.
O simples fato de tentar mostrar ao homem, principalmente ao
religioso, que sua justiça própria não o torna merecedor do favor divino mais
do que qualquer outro ser humano já revela o quanto haveremos de sofrer
pelo nome de Jesus (At 9:16). Depois do encontro com Cristo, o furioso
Saulo, que tinha total confiança em sua justiça própria, agora iria dedicar o
resto de sua vida a anunciar que a nossa justiça não vale nada diante de
Deus (Is 64:6). Toda e qualquer justiça em nosso favor diante de Deus dá-
se através de Cristo (Ef 2:8-9; I Co 1:26-31; Gl 6:14) e, por isso, mesmo
aquele que crê e é justificado pela Justiça do Calvário não é superior a
ninguém e não tem motivos para gloriar-se em si mesmo (I Co 1:30-31).
Até entre muitos dos que se dizem reformados, renovados, batizados,
congregados, escolhidos, iluminados... enfim, mesmo entre os que se dizem
verdadeiramente convertidos à fé cristã, o perdão dos pecados é facilmente
digerido, mas uma simples referência à anulação da nossa justiça própria já
acirra-lhes a ferocidade do velho homem. Aconselha-se mudar de assunto,
caso não se queira trazer no corpo as marcas de Cristo (Gl 6:17).
Pessoas neurotizadas pela busca de justiça própria segundo a lógica
meritória da Lei costumam atribuir um grande valor para a sua abstinência
de práticas que muitas vezes são absolutamente inofensivas para a vida
espiritual, levando-as a vangloriar-se publicamente do seu afastamento do
49
pecado e a torcer pela condenação de quem vive sem tais privações, para
que não venham a ter sido em vão os seus sacrifícios.
Mas uma possível insegurança quanto aos méritos pela abstinência pode
também levar o religioso a entender que injustiças sofridas geram justiça
própria e mérito diante de Deus para o sofredor (mérito pelo sofrimento). A
neurose, então, manifesta-se em um processo crônico de autovitimização em
toda e qualquer circunstância. Numa espécie de masoquismo espiritual, o
indivíduo, de modo compulsivo, sempre busca, e chega mesmo a forçar
situações em que ele, supostamente inocente, apareça como vítima da
maldade dos outros. Assim, o caminho duplo para o céu seria a abstinência
ou o sofrimento (ou, mais comumente, os dois ao mesmo tempo).
Esses dois comportamentos são muito comuns e valorizados no meio
cristão, mas estão em extrema oposição à Graça de Cristo – a verdade que
livra da condenação e liberta da busca por mérito e direitos diante de Deus.
A Graça liberta sem incentivar a libertinagem (Rm 6:1-2) e anula a
nossa justiça própria (Fp 3:9), que nos leva a sentir-nos no direito de julgar
o próximo. Mas abrir mão de sua justiça é algo absolutamente inaceitável
para o homem natural, pois, sem a lógica meritória, amparada na lei natural
de causa e efeito, ele não consegue racionalizar coisa alguma. Imagine
quando se trata de algo tão não racionalizável pela tal lógica quanto o
Evangelho da Graça.
A característica básica e essencial de uma mente legalista é a
incansável tentativa de adquirir direitos (legitimidade para sua justiça
própria) diante de Deus. E nessa busca, o legalista apela para tudo. Ele
exalta suas pretensas virtudes e minimiza seus defeitos e pecados, ao
mesmo tempo em que - a fim chamar a atenção para si (a sua justiça tem que
estar sempre em evidência) - minimiza as virtudes e maximiza os defeitos e
pecados do próximo.
Na mente adoecida do legalista, tudo conta pontos para a salvação,
gerando créditos ou débitos: a aparência física, a roupa que ele veste, o que
ele come, o que não come, o que bebe, o que não bebe, o que fala, com quem
fala, com quem não fala, o que ouve, o que não ouve, onde anda, onde não
anda, o que lê, o que não lê, o que vê, o que não vê, o que pensa, o que não
pensa, como se diverte (se é que se diverte...) e, obviamente, a denominação
religiosa (modelo de lei) à qual ele se sujeita. Para o legalista, cada um
desses itens deve ser praticado a fim de gerar direitos diante de Deus.
Quem crê na justiça plenamente consumada no Calvário anda por fé, e
não por vista (II Co 5:7), mas o legalista anda estrita e estreitamente pelo
que ele vê.
50
Para os pequeninos de alma isso soa como uma melodia doce e suave,
mas para pretensos sábios e entendidos é um enigma indecifrável (Lc 10:21).
E é só por causa dessa verdade que os loucos podem confundir os sábios; os
fracos podem envergonhar os fortes; e os humildes, os desprezados e os
que nada são no mundo podem reduzir a nada os que julgam ser alguma coisa
em si mesmos, a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus (I Co
1:26-29), pois o poder de Cristo se aperfeiçoa, não na nossa força ou
arrogância, mas na consciência da nossa limitação e fragilidade (II Co 12:9).
Ora, falar em amar ao próximo, perdoar ofensas, praticar boas obras,
fazer o bem sem olhar a quem... isso todas as religiões ensinam; por isso se
diz que toda religião é boa. Mas a queda e a anulação da justiça própria do
homem são exclusividades do Evangelho de Cristo. É isso que o diferencia
das religiões; inclusive, em muitos casos, da própria religião cristã. Sem a
anulação da justiça própria do homem, a Graça já não é Graça (Rm 11:6).
Para pessoas de espírito autojustificado, legalista e farisaico –
“cristãos” ou não – o Evangelho é uma péssima notícia, por isso precisa ser
distorcido e adaptado à Lei, para que sua justiça meritória o torne aceitável
pelos fiéis e manipulável pela liderança.
Para quem está sob a Lei, um único erro lhe terá sido fatal (Tg 2:10).
Para quem está na Graça de Cristo, nem um único “acerto” lhe é necessário
para a justificação; apenas a fé naquele que justifica o ímpio (Rm 4:4-5).
O “cristianismo judaizado e legalista” (que mistura Graça e Lei, e não é
nem Evangelho nem Judaísmo, mas a falsificação de ambos) anuncia o perdão
dos pecados em Cristo, mas não ensina a rejeição da justiça própria, pois é
nela, na justiça própria do religioso, que estão muito bem instalados os seus
instrumentos de controle sobre os fiéis (Gl 6:12-13). Contudo, onde não há
anulação da nossa justiça não há igualdade dos homens diante de Deus (Rm
11:32), não há amor ao próximo e, portanto, não há Evangelho de Cristo.
Para os que nele crêem, Cristo aboliu aquela que é o parâmetro de
justiça própria que divide os homens (a Lei - Ef 2:14-15), de modo que, além
de perdoar os nossos pecados, ele anulou a nossa justiça, deixando patente
52
que somos todos iguais perante Deus e que não temos absolutamente nada
para barganhar com ele.
Portanto, quem é de Deus e quer andar segundo a vontade do Senhor
deve tratar o próximo como gostaria de ser tratado (“porque esta é a Lei e
os profetas” - Mt 7:12); e isso não é uma sugestão divina, mas um
mandamento de Cristo para a sua igreja. O diferencial (contraintuitivo para
o homem natural) não é a nossa justiça; é crer ou não crer na Justiça de
Cristo em nosso favor (Jo 17:19).
O pecador que se confessa justificado por Cristo, e não por sua justiça
própria, deixa o juízo vertical (que é mediante a justiça do Calvário) sempre
a cargo de Deus, e ainda, no que depender dele, também sempre permite que
a misericórdia triunfe sobre os juízos horizontais (que são mediante a
“moral da Lei” - Tg 2:13).
Diferentemente da Lei, o Evangelho foi ensinado por Jesus e pelos
apóstolos em meio a conversas informais, à medida que os assuntos
apareciam em situações reais, geralmente em confrontações com
ordenanças mosaicas. Em várias ocasiões, os apóstolos chamaram o
Evangelho de mandamento do Senhor, mas raramente o ensino da Graça foi
chamado de “Lei”; vocábulo que, em toda a Bíblia, refere-se
caracteristicamente ao estatuto Mosaico.
E por que aconteceu isso? Ora, para que ficasse claro que a justiça do
Calvário não provém de lei, mas de fé (Fp 3:9), e também para que (o que,
infelizmente, acabou acontecendo) os cristãos não olhassem para os ensinos
do Senhor Jesus e dos apóstolos com olhos legalistas e ainda
autojustificadores, enxergando-os com lentes meritórias, estabelecendo
punições (penitências) para expiação da culpa e (desprezando o
discernimento do Espírito) exigissem, por exemplo, a infalibilidade legalista
em funções e situações cujos perfis são humanamente inatingíveis (sem
falhas) em sua completude, pois correspondem (como tudo no Evangelho) ao
que seria o perfil do próprio Cristo naquela função ou situação (Cristo como
presbítero [Tt 1:6-9; I Tm 3:2-7], como marido [Ef 5:25], como esposa [Ef
5:22], como homem idoso, como mulher idosa, como jovem, como servo [Tt
2:2-10], etc).
Achar que Paulo traçou um perfil inflexível (lei) para presbíteros,
maridos e esposas, cria um padrão inatingível, que ninguém alcança, mas que
todos fingem que alcançam (hipocrisia) e que - se fôssemos
verdadeiramente sinceros - desabilitaria muitos presbíteros para a função
(restaria algum?), bem como inviabilizaria o casamento, pois que homem ama
a sua esposa como Cristo amou a igreja? Ou que mulher é submissa ao seu
marido como ao Senhor?
53
com tanto sacrifício... - considerando como perda o seu ganho mais precioso
(Fp 3:7-9), anulando méritos pessoais e igualando-se a todos diante de
Deus? Ora, tem alguém maluco nessa história. Provavelmente é o apóstolo
Paulo...
Ora, tais adesões ao padrão moral religioso mais adequado às
necessidades e capacidades pessoais de autojustificação dos “convertidos”
podem camuflar aqueles que o apóstolo Paulo chamou de falsos irmãos (Gl
2:4-5), que incitam à rebeldia (Gl 3:12) e precisam ser confrontados e ainda
render-se ao Evangelho, pois rejeitam a liberdade que há em Cristo
(ausência de parâmetro meritório) e tentam reduzir-nos à escravidão da Lei.
Não somos uma patrulha moralista que deve sair apontando os pecados
do mundo e julgando os homens. Foi-nos confiada a palavra da reconciliação,
para que anunciemos que “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o
mundo, não imputando aos homens as suas transgressões” (II Co 5:19), pois
é a tolerância, a longanimidade e a bondade de Deus que conduzem o
pecador ao arrependimento (Rm 2:4).
Em vez de agir como aferidora da moral, a igreja de nossos dias deve
abraçar a causa da justiça que provém da fé (a Justiça de Deus), ou seja,
aquela que torna todos os homens iguais perante o seu Criador. Se é nessa
justiça que cremos, e por ela e para ela vivemos, então a bandeira da igreja
(dentro de sua missão evangelizadora) deve ser a luta contínua em favor dos
injustiçados (Mt 5:6; I Pe 2:24; I Jo 3:10), amparando aqueles que se
encontram em alarmante estado de desigualdade (pobres, desamparados,
desabrigados, enfermos, desprezados, famintos... – Tt 3:14), para que o
Reino e a vontade de Deus sejam assim na Terra como no céu (Mt 6:10). E
hoje há muito mais instrumentos para fazermos isso do que nos tempos
politicamente nada democráticos da igreja primitiva.
Em tempos livres e democráticos como os que vivemos hoje, a
representatividade comunitária é o maior poder de influência nos rumos da
nação através dos mecanismos políticos. As ações da Igreja são sustentadas
por Deus, através das contribuições dos fiéis (II Co 9:7), e ela não deve
recorrer a mecanismos políticos (que são legítimos, mas geralmente
exercidos de modo conflitante com os princípios cristãos) a fim de
barganhar benefícios para si mesma, como instituição (para que não se faça
refém de manipuladores – Mt 4:9), mas não pode ficar indiferente e deixar
de utilizar o seu potencial representativo para legitimamente pressionar os
legisladores e governantes da nação em questões diretamente relacionadas
aos princípios da Justiça do Calvário, ou seja, da igualdade dos homens
diante de Deus. Se não é possível acabar totalmente com as desigualdades
(e não é mesmo – Mt 26:11), podemos amenizar muitas situações absurdas e
58
Por amor à sua criação favorita, que o rejeitou, Deus, em Cristo, abriu
mão de sua glória (Jo 17:5), esvaziou-se a si mesmo (Fp 2:7), fez-se carne e
habitou entre nós (Jo 1:14) e, tendo absorvido os pecados da humanidade
inteira na cruz do Calvário (1 Jo 2:1-2), gratuitamente imputa justiça a
todos os que, independentemente de suas obras, crêem no seu sacrifício
(Rm 4:6-8).
De modo que, os que cremos em Cristo e afirmamos estar debaixo de
sua Graça, devemos igualmente esvaziar-nos de nossa justiça própria,
abrindo mão de nossos pretensos direitos, reconhecendo a inutilidade de
nossas boas obras para justificação (Fp 3:7-9) e exercendo o pleno amor ao
próximo, também independentemente das obras deles.
Se cremos no Evangelho de Cristo, sabemos que estamos debaixo da
misericórdia divina a todo instante e por ela vivemos cada segundo de
nossas vidas. E a evidência coerente (requerida por Jesus – Mt 25:31-46),
de que reconhecemos a nossa necessidade da misericórdia divina e de que
confiamos que já a recebemos e nela depositamos a nossa fé, é o fato de a
oferecermos ao próximo, na mesma forma gratuita e imerecida que a
recebemos.
A Graça iguala todos os pecadores diante de Deus e requer que nos
amemos uns aos outros como a nós mesmos. Para mentes autojustificadas,
tal fato é o que torna a Graça de Cristo uma loucura escandalosa e
inaceitável, pois, para o homem natural, andar em amor é muito mais difícil
do que andar conforme a moral vigente, seja religiosa ou não.
Dizer que a Graça incentiva o pecado é desculpa esfarrapada de quem
tem como deus o próprio ventre (Fp 3:18-19). A porção amarga da doce
Graça de Cristo (de difícil digestão para o homem carnal) é a revelação de
que Deus tem misericórdia daquelas pessoas que normalmente são julgadas
por nós como não merecedoras de misericórdia. Na lógica da natureza
carnal, que não discerne as coisas espirituais (I Co 2:14), o velho homem
entende que ter misericórdia do pecador é incentivar o seu pecado. E o que
realmente incomoda é: “Assim como eu vos amei, que também vos ameis uns
aos outros” (Jo 13:34), e ainda, ”Tende em vós o mesmo sentimento que
houve em Cristo Jesus” (Fp 2:5).
Ora, Deus quer que sejamos santos e irrepreensíveis diante dele em
amor (Ef 1:4 - ARC), e a correção divina é um ensino muito claro na sua
Palavra (Pv 3:12; Hb 12:5-6), mas vesti-la com os trajes da Lei Mosaica,
dando-lhe as feições da justiça legalista e meritória, é uma tentativa
hedionda de corrupção espiritual contra almas que foram justificadas e
redimidas pela fé na justiça do Calvário.
67
indesculpável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque, no que
julgas a outro, a ti mesmo te condenas, pois praticas as próprias coisas que
condenas” (Rm 2:1), e ainda: “Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o
seu próprio Senhor está de pé ou cai. Mas estará em pé, porque o Senhor é
poderoso para o suster” (Rm 14:4).
No episódio da mulher adúltera (Jo 8:3-11), Cristo não foi conivente
com o pecado em questão nem tinha prioritariamente a intenção de livrar a
mulher da legítima punição prevista (para os judeus) na lei judaica. Se ela
estivesse, naquele instante, sendo penalizada pelas autoridades
competentes, Cristo não teria interferido em seu destino, embora ainda a
tivesse perdoado (assim como perdoou, mas não interferiu no cumprimento
da sentença do ladrão, seu companheiro de crucificação, quando este
suplicou-lhe misericórdia em seus últimos instantes). A ideia de Jesus foi
desautorizar - mediante a contundente revelação da hipocrisia – aqueles
que, sendo igualmente pecadores, não deviam sentir-se superiores e, sem
nenhum direito para tanto, julgar e condenar a pecadora. E ainda, de quebra,
só para não perder o costume, derramou Graça irritantemente abundante e
perdão gratuito...
O cristianismo meritório fala sobre a Graça, mas usa a Lei para manter
os fiéis sob um contínuo bombardeio de culpa (Rm 5:20; 7:5) e constante
tormento produzido pelo medo (I Jo 4:18). O que deveria gerar uma
conscientização rumo à Graça de Deus (pois a Lei aponta para o Messias
perdoador – Gl 3:24) gera apenas uma busca desesperada por justiça
própria, que alimenta e mantém todo o esquema de manipulação religiosa.
Ora, a Lei é a força do pecado (I Co 15:56) e, assim sendo, obviamente
não pode libertar ninguém do domínio do pecado (Rm 6:14). Diferente do
Evangelho (Jo 8:32), o cristianismo meritório e legalista não tem a intenção
de libertar ninguém. Cercando-se de mandamentos mosaicos, que – ligados
umbilicalmente à condenação – são tidos como uma garantia adicional de
intimidação dos fiéis, a religião cristã visa apenas à transformação do
pecador, não em uma nova criatura misericordiosa e que ama ao próximo,
mas em um religioso de moral exterior elevada (Mt 23:27) e que, fazendo-
se espontaneamente prisioneiro de sua própria arrogância, rejeita qualquer
aproximação em igualdade com o próximo (Is 65:5).
Muitos líderes cristãos, portanto, não confiam e ainda rejeitam o que,
na verdade, nem chegam a praticar em suas comunidades (a negação da
nossa justiça própria diante de Deus e a consciência de que é a misericórdia
e a bondade divina que levam ao arrependimento e à transformação do
pecador em uma nova criatura – Rm 2:4) e por isso não podem experimentar
os verdadeiros benefícios do Evangelho como realidade em seu cotidiano.
70
muito bem lubrificadas pela justiça meritória que procede de lei, seja dos
mandamentos mosaicos ou - na inaplicabilidade ou inconveniência temporal
destes - das regras meritórias da própria religião.
A Reforma Protestante reascendeu a chama do Evangelho da Graça de
Cristo, muito enfraquecida – ou praticamente extinta - no legalismo extremo
e violento da maior igreja institucionalizada na época, a Igreja Romana. Ao
compreender a diferença entre justiça e justificação, justo e justificado,
Justiça da Lei e Justiça do Calvário (Justiça de Deus), Lutero reavivou a
pregação da Graça - injusta e imerecida, aos olhos da justiça da Lei - mesmo
dentro de instituições religiosas cujos líderes notadamente só confiam na
força da Lei e na sua justiça meritória.
Embora seja obviamente questionável o alegado maior
comprometimento com a pregação da Graça pelos protestantes (e seus
derivados), a Reforma ampliou a possibilidade de o encontro entre o pecador
e a Graça de Cristo dar-se na igreja-templo, já que, desde a indignação
luterana, a Bíblia tem sido um livro acessível, aberto e lido por muitos que se
reconhecem pecadores necessitados da misericórdia e do perdão divino, de
modo que a Água Viva tem escorrido mais facilmente por entre as rochas
eclesiásticas de grandes e pequenos impérios religiosos, reformados ou não
reformados.
Institucionalmente, porém, quase não houve mudanças. O modelo
seguido em praticamente todo o cristianismo (pré ou pós-Reforma)
continuou a ser a estrutura religiosa judaica - edificada sobre a Lei e que
veio a deturpar-se pela lógica legalista de suas autoridades - alimentada e
mantida por falsas barganhas com Deus, regras comportamentais, intrigas
denominacionais e pela vaidade espiritual e insaciável sede de poder de
muitos de seus líderes.
Contra a essência de tudo isso nunca houve sincero e relevante
protesto nem grande interesse numa reforma realmente significativa por
parte dos herdeiros de Lutero. O que acabou prevalecendo foi apenas uma
mudança de lado e a troca dos nomes de alguns “suportes técnicos e
administrativos”, para serem utilizados em estruturas menores.
Salta aos olhos o fato de que, entre os ditos protestantes de hoje, é
abundante a prática de muito do que Lutero condenou e combateu com todas
as suas forças.
Ora, a batalha de Lutero foi contra o legalismo institucionalizado,
praticado em nome de Cristo, e que gera um falso evangelho. Por isso a
grande rede de escritórios de legitimação do mérito e da autojustificação
humana em que se transformaram muitas igrejas que se entitulam
73
algo de aparência exterior, com muita visibilidade (Lc 17:20-21), que se pode
visitar, freqüentar ou dele tornar-se membro; caracterizado ainda pelo
isolamento do mundo (não do espírito mundano, mas das pessoas do mundo,
às quais fomos enviados), geralmente qualificável pelos benefícios materiais
obtidos pelos fiéis após a conversão ao reino, e mensurável pelo crescimento
estrutural e até pela freqüência das aparições de seus líderes na mídia.
Na Igreja de Cristo, o maior é o que é servo de todos (Mt 23:11), bem
como o primeiro é o último (Mc 9:35). Mas, no reino da religião
institucionalizada, quem quiser ser o maior tem que suar muito para mostrar
que realmente pode ser o maior; tem que deixar claro o seu poder de fogo, a
sua capacidade combativa e a sua habilidade em agilizar forças e valer-se de
qualquer mecanismo para, se necessário, trucidar adversários e
concorrentes. Tentam conquistar na base da força um poder que,
intrigantemente, se aperfeiçoa na nossa fraqueza e fragilidade (II Co 12:9).
Essas habilidades - se ainda acompanhadas de um eloqüente discurso
incisivamente moralista e inspirado na Lei Mosaica – são geralmente aceitas
e aprovadas pelos fiéis como legitimadoras da liderança.
O avanço do Reino de Deus deixa de ser o aperfeiçoamento de cada
nova criatura no reconhecimento e na confiança no amor incondicional de
Deus (gerando o amor ao próximo e sendo sal e luz para o mundo em trevas)
e passa a ser o crescimento da denominação, trazendo orgulho e satisfação
para a ambição carnal de líderes que dariam um braço pelo controle de uma
sólida rede de instituições (o seu tão sonhado reino particular).
Tais distorções do ensino neotestamentário, tornam muitas conversões
parecidas com meras adesões aos tais reinos, onde a mania de grandeza, a
inveja e a cobiça dos membros do clube (sempre tratadas como bênçãos)
estão em muito maior evidência do que a Palavra da Cruz.
A rejeição (intuitivamente natural) ao fato de que o Pai, o Filho e o
Espírito possam literalmente habitar em pecadores desprezíveis como nós
(Jo 14:23; I Co 3:16) - ao ponto de que tudo em que tocamos estamos
expondo também ao toque de Cristo (I Co 6:15-16) - parece requerer uma
moradia mais digna para a Família Divina.
Esse era precisamente o entendimento dos fariseus que, olhando para o
futuro, rejeitaram o reino desinstitucionalizado que chegava. Pelo mesmo
motivo, o cristianismo, olhando para as coisas velhas que passaram,
acompanhou o mesmo raciocínio moralista/legalista/meritório e, igualmente
rejeitando a absurda idéia do santuário humano corruptível (I Co 15:53),
criou a “Igreja-Templo”, que, dependendo da denominação, pode ser ou não
liderada por um Sumo-Pontífice oficialmente incorruptível.
75
justiça mediante a Lei anula o sacrifício de Cristo (Gl 2:21). Mas quem
confia na Justiça do Calvário tem consciência de sua natureza pecadora e
recorre sempre à misericórdia divina (Lc 18:9-14). E a resposta ao amor
gratuitamente oferecido na cruz do Calvário se evidencia na atitude de cada
um para com o próximo: ou o desprezamos ou o servimos (Mt 25:31-46).
Nenhum rótulo religioso é capaz de fazer tal distinção. A postura
diante do próximo é que revela quem entendeu e creu na loucura da Cruz do
Calvário e busca viver a escandalosa misericórdia recebida do Cordeiro de
Deus, pois quem verdadeiramente crê que foi perdoado por tudo é rápido em
perdoar também, e não se sente no direito de julgar ninguém nem se
apresenta para tal.
Para quem se sente justificado por obras da Lei, a transformação pelo
amor e pela misericórdia - e não pela obediência à Lei - é uma historinha
infantil e fantasiosa. Mas, segundo Cristo, aquele que não crê nessa
historinha tal qual uma criança não entrará no Reino de Deus (Lc 18:17).
Nenhuma instituição igreja é totalmente livre do veneno legalista e
autojustificador, pois onde houver um ajuntamento da igreja, haverá sempre
batalhas entre o legalismo (autojustificação) natural do homem e a loucura
da justificação pela fé na justiça do Calvário (independentemente de obras
– Rm 4:6), pois nessa dualidade está a luta de todo renascido no Espírito do
Evangelho da Graça de Cristo (Gl 5:17).
Igreja relevante, contudo, é a que se engaja nessa luta e, com uma
autoimagem bem ajustada à realidade, rejeita os delírios institucionais que
têm envenenado o cristianismo desde o fim do período apostólico, pois o
problema com a instituição igreja não está na instituição em si (que, em
sintonia com o Evangelho, é sempre benéfica), mas na visão que os fiéis – e
principalmente os líderes - venham a ter dela e no rumo que lhe possam dar,
os quais, se equivocados, podem sombrear a visão da cruz de Cristo em
função dos muitos atrativos da institucionalidade (controle, poder e
riqueza).
As Santas Madres Igrejas ainda são cultuadas em todo o cristianismo,
mas a Palavra Viva – que tem vida própria - sempre esteve e permanece
atuante, com seu poder libertador do jugo da lei e da escravidão ao pecado,
dentro de instituições encasteladas e também fora delas...
Povo que diz: “Fica onde estás, não te chegues a mim, porque
sou mais santo do que tu”. És no meu nariz como fumo de fogo,
que arde o dia todo (Is 65:5)
honra, diante de Deus, do que qualquer outro pecador, pois sabe que, sem a
obra do Calvário, estaríamos todos, lado a lado, no mesmo barco a caminho
da condenação, e nossas diferenças no quesito “justiça própria” - ou “mérito
humano” – em nada ajudariam (mérito diante de Deus é a fé no mérito de
Cristo – Rm 4:4-5).
A fé, se em conformidade com o Evangelho da Graça de Cristo, sempre
amadurece na direção da humildade e do sentimento de igualdade com o
próximo. E esse senso (reconhecimento) de igualdade dos homens diante de
Deus leva o renascido a buscar essa igualdade na realidade do seu dia-a-dia
(Mt 6:10). Então ele socorre ao enfermo, porque sabe que a vontade de Deus
é que o enfermo também tenha saúde; ele dá comida ao faminto, porque
sabe que Deus quer que o faminto também esteja alimentado; ele dá guarida
ao desabrigado, porque sabe que Deus quer que o desabrigado também
tenha um lar; ele aquece o que está com frio, porque sabe que Deus quer que
todos estejam aquecidos; ele veste aquele que está nu, porque sabe que
Deus não quer que ninguém esteja envergonhado; ele faz tudo o que estiver
ao seu alcance para suprir os necessitados, como se fossem suas as
necessidades deles (e cada um de nós pode fazer muito...). Ter com que
acudir ao necessitado é, segundo o apóstolo Paulo, uma das principais
finalidades do nosso trabalho (Ef 4:28).
Essas são atitudes reais que manifestam amor ao próximo. São obras
que revelam a nossa fé (Tg 2:18) em um Deus que ama a todos os pecadores
igualmente. São ações feitas na plena liberdade do Espírito, motivadas
exclusivamente pelo desejo de partilhar o amor incondicional que há na
Graça de Cristo, sem a finalidade de acumular e exibir justiça própria e
mérito diante de Deus.
No único momento em que se colocou claramente como juiz, o Senhor
Jesus Cristo revelou o critério que definirá quem são os benditos do Pai que
entrarão no seu reino (Mt 25:31-46). E o referencial do julgamento
(anunciado por Cristo e já realizado na cruz do Calvário – Jo 3:18) não foi
uma lista interminável de pecados “simples, graves e gravíssimos” nem um
padrão moral pré-estabelecido. O referencial foi o amor ao próximo. Crer no
perdão em Cristo é crer no amor de Deus por toda a humanidade, e a única
forma possível de evidenciarmos a nossa fé nesse amor, bem como de
retribuí-lo a Cristo, é manifestando-o através de atitudes de amor ao
próximo. Por isso Cristo disse que o amor seria o sinal identificador de seus
discípulos (Jo 13:34). Precisamos entender e crer que é no amor que somos
aperfeiçoados (e não na Lei – Hb 7:18-19), pois “o amor não pratica o mal
contra o próximo, de modo que o cumprimento da Lei é o amor” (Rm 13:10),
por isso “quem ama ao próximo tem cumprido a Lei” (Rm 13:8).
79
“Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos
vorazes, que não pouparão o rebanho” (At 20:29)
82
paredes da instituição igreja (onde estão muitos dos que dizem “Senhor!
Senhor!”, e que ouvirão: “Nunca vos conheci!” – Mt 7:22-23). É dessa “seita”
(Igreja de Cristo) que ele toma as dores ainda hoje, pois já pagou por todos
os pecados dela (por isso, em Cristo, ela é pura e irrepreensível), de modo
que quem mexe com ela mexe com o Senhor Jesus, e quem traz escândalo
sobre ela o faz sobre o próprio Senhor da Igreja. É sobre ela que não
prevalecerão as portas do inferno nem a corrupção espiritual nem a fé
barganhadora nem o legalismo - que tira a glória de Cristo - nem o
farisaísmo, tão repudiado pelo Senhor Jesus, que virá buscar a sua amada
Igreja e não instituições religiosas.
Uma instituição igreja em sintonia com o Evangelho da Graça de Cristo
não se coloca como mediadora entre Deus e o homem. Ela apenas dispõe-se
como lugar de comunhão e edificação para almas cansadas e oprimidas. E,
ainda diferente de instituições legalistas e farisaicas, ela não toma para si a
exclusividade da ação de Deus no mundo nem tenta empacotar e monopolizar
a Graça de Cristo (extra ecclesia nula sallus = fora da “igreja” não há
salvação).
A tentativa de “controle religioso” pela obediência a mandamentos
abriu as portas da religião cristã para a invasão de lobos devoradores,
disfarçados de ovelhas, inimigos da cruz de Cristo, que falsificam e
corrompem a liberdade do Evangelho, reedificando a Lei (que foi destruída
para os que estão em Cristo - Gl 2:17-19), a fim de, através da manipulação
legalista, se gloriarem no domínio e na manipulação da “santidade” (justiça
própria) de fiéis incautos (Gl 6:13).
Tais lobos - que têm aparência de piedade, mas negam a eficácia dela
(II Tm 3:5 ARC) - espertamente se aproveitam do fato de que o povo
sempre preferiu preceitos e regras ao descanso e refrigério oferecidos por
Deus (Is 28:7-13), e sempre sentiu-se melhor sob a tutela de um legislador
humano (coisa que a religião oferece) do que confiando na misericórdia
divina (I Sm 8:4-7).
Esses lobos constroem para si um reino que precisa ser muito bem visto
para que possa ser crido. Contudo, o Reino de Deus não tem visível aparência
nem está aqui ou ali, mas dentro daqueles que dele fazem parte (Lc 17:20-
21), e precisa ser crido para que possa ser visto (Jo 11:40; II Co 5:7).
A Igreja de Jesus usufrui toda a plenitude da Graça, mas a Graça pode
parecer assustadoramente abundante para instituições religiosas legalistas
e meritórias, pois uma compreensão um pouco mais profunda e corajosa
sobre as conseqüências práticas de se viver na liberdade da Graça – que é
superabundante (Rm 5:20) e multiforme (I Pe 4:10) - leva a conclusões que
contrariam muitos interesses de tais instituições. Por isso muitas delas não
suportam nem ouvir falar na liberdade da Graça.
Quanto mais nos aprofundamos na Graça de Cristo, mais nos vemos
diante de uma decisão inevitável: ou rompemos de vez com toda forma de
legalismo ou retrocedemos e reforçamos as amarras legalistas, optando,
assim, pela falsa e ilusória sensação de “segurança” que elas proporcionam.
No início da década de 1980, ouvi Aníbal Pereira dos Reis dar um
testemunho de sua conversão ao Evangelho, segundo ele, ocorrida nos anos
70. Na ocasião, ele relatou um fato do qual jamais esqueci, mesmo sendo
ainda um adolescente naquela época. O ex-padre Aníbal contou que algum
tempo depois da sua conversão, ele teve uma audiência com o Papa, no
Vaticano. Diante do sumo-pontífice do catolicismo, ele abriu a carta de Paulo
aos Romanos e discorreu sobre a salvação unicamente pela Graça de Cristo.
Entre outras coisas, o sumo-pontífice ter-lhe-ia dito: “Você acha que eu não
sei disso? Você acha que eu não li isso já inúmeras vezes? Eu não consigo é
crer nisso! Não pode ser assim, não pode ser só isso!”. A intuição meritória
do sumo-pontífice católico o havia convencido de que a instituição que ele
liderava não funcionaria a contento só com a Graça de Cristo. E eu, na
ingenuidade da pouca vivência dos jovens (à época), apontei o dedo para a
igreja católica, acreditando que tal falta de confiança na Graça de Cristo
era exclusividade do cristianismo institucionalizado do Vaticano.
Alguns anos depois, um amigo, também renascido na Graça de Cristo,
falou-me de uma ocasião em que ele havia conversado com alguém bem
“antigo” na religião evangélica e, da mesma forma, discorrido sobre a Graça.
Diante de suas afirmações de que morremos para a Lei e seu jugo, e que só
precisamos crer que Cristo pagou pelos nossos pecados e cuidará, ele
mesmo, de nos transformar em uma nova criatura, nascida no seu Espírito, o
comentário do evangélico, bastante sinalizador, foi: “Mas, assim, fica tudo
só nas mãos do Espírito Santo...”.
Realmente, um grande problema para instituições religiosas meritórias.
85
pelo próximo - que é tratado como um concorrente a uma mesma vaga no céu
- e nunca o amor por ele (Lc 18:9-14).
E essa busca por justiça própria necessita, obviamente, de um
referencial; um parâmetro que possa orientar o candidato à vaga no céu,
informando-o em que nível ele se encontra. As epístolas neotestamentárias
(principalmente as do apóstolo Paulo) deixam muito claro que a Lei é esse
parâmetro da justiça própria humana. Por isso Paulo insiste veementemente
em que a Lei morreu para quem é justificado por Cristo (Rm 7:2-4), e que
ela não serve mais nem como referencial de conduta, pois quem está em
Cristo não está sob a Lei e é guiado pelo Espírito (Gl 5:18).
Morremos para a Lei a fim de vivermos para Deus (Gl 2:19) e ela não é
mais o motivo para não fazermos o que desagrada a ele, pois não estamos
buscando justiça própria. A nossa convicção de que somos
incondicionalmente amados por Deus é o que nos leva a amar ao próximo,
tratando-o como gostaríamos de ser tratados (Mt 7:12).
Quanto à sua salvação, aquele que crê na justiça do Calvário considera a
sua justiça própria como perda, por causa de Cristo, a fim de ”ser achado
nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a
fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé” (Fp 3:7-9).
Aqueles que ainda têm a mente cauterizada pelo velho hábito de buscar
justiça própria diante de Deus e só vêem sentido na obediência por força de
mandamentos, saibam que os ensinos de Paulo – inclusive quando ele exige o
rompimento com a Lei - são mandamentos do Senhor (I Co 14:37), os quais,
diferentemente dos mandamentos da Lei, não trazem condenação (Rm 8:1)
nem tampouco justificam a ninguém diante de Deus, mas apontam o caminho
do que já é expectativa da obra do amor de Deus na vida de cada um de nós.
Quem trilha esse caminho (rejeitando a sua justiça própria e amando
ao próximo) está andando em conformidade com a vontade de Deus, pois é o
amor, e não a Lei, o referencial de conduta e de eventual exortação de todo
aquele que é nascido do Espírito.
89
a sociedade em que vivemos (Rm 13:1-5), assim como também não anula o
mérito humano nos relacionamentos horizontais.
O mandamento do Senhor é que sejamos diligentes e sempre façamos
tudo “de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens” (Cl 3:23),
tendo domínio próprio, não sendo displicentes com os nossos talentos e
procurando ter bom testemunho diante dos homens em tudo, sendo ainda
abundantes em boas obras, para as quais fomos criados, tendo Deus, de
antemão, preparado-as para que andemos nelas (Ef 2:10), pois são
”excelentes e proveitosas aos homens” (Tt 3:8).
Quem faz tudo com zelo e seriedade, apresentando bons resultados em
tudo a que se propõe, tem mérito, não para a salvação, mas diante dos
homens (Rm 4:2), e é sempre justa a sua recompensa, pois o princípio da
justiça é o mérito, e assim funciona tudo na vida. A nova criatura em Cristo,
porém, sabe lidar de modo espiritualmente sadio com esse reconhecimento.
Mas, quanto ao mérito humano, percebe-se uma inversão de valores na
religiosidade cristã. Muitos cristãos buscam apresentar justiça própria
diante de Deus enquanto desprezam e até acham maléfico o mérito diante
dos homens, recusando-se até a aceitar qualquer reconhecimento pela sua
dedicação e bom uso de suas habilidades.
Ora, os talentos que Deus lhe deu são seus, e ele os concedeu para que
você os utilize com zelo e diligência e, evidentemente, usufrua as justas
recompensas de seu esforço. Na próxima vez em que o seu mérito for, de
alguma forma, publicamente reconhecido, lembre-se de que foi Deus quem o
capacitou e receba o reconhecimento com tranqüilidade, mas jamais
menospreze quem não se sai tão bem quanto você. É assim que se honra o
Deus dos dons e talentos.
É inútil fazermos algo bem feito e tentarmos ficar no anonimato, com
medo do reconhecimento. A palavra do Senhor é “... a quem honra, honra”
(Rm 13:7), por isso não deixemos de reconhecer, elogiar e aplaudir quem não
desperdiça seus talentos.
Seremos avaliados pelas nossas obras (não para salvação ou
condenação) no tribunal de galardões. O zelo com o fazer tudo bem feito é
mandamento do Senhor, pois é assim que deve agir um nascido do Espírito
de Deus. Uma postura de desleixo e negligência com nossos talentos e
responsabilidades de discípulo e servo, bem como com o nosso compromisso
de amor ao próximo, além de privar-nos do gozo de muitas bênçãos trazidas
pelo viver como uma nova criatura, mesmo não tendo a condenação como uma
possível conseqüência, inspira sérios e prudentes cuidados (I Co 3:14-15).
91
XI - O EVANGELHO DE PAULO
Para mim, está muito claro que Paulo pregava o mesmo Evangelho que
Jesus (pois há uma só Graça), mas também, de certo modo, um Evangelho
muito diferente.
A mensagem era a mesma: “abandonar a neurótica busca de justiça
própria, libertando-se do jugo escravizante e condenatório da
autojustificação, e correr para a justificação em Cristo, pela fé na Justiça
do Calvário”. Entretanto, há um “Evangelho da Circuncisão“ e um “Evangelho
da Incircuncisão”.
E onde está a diferença? Ora, nas pessoas às quais a mensagem -
"única" – de libertação e justificação em Cristo era direcionada. Nos tempos
apostólicos, Paulo e os demais apóstolos obviamente pregaram tanto para
judeus quanto para gentios, mas a Pedro (e aos demais apóstolos) foi
confiado o Evangelho da “circuncisão” (observem as introduções das
epístolas não-paulinas) e, a Paulo, o Evangelho da “incircuncisão” (Gl 2:7).
O referencial de condenação (contraponto do Evangelho) para os
judeus não convertidos era a Lei Mosaica, que a eles foi dada. Assim, os
judeus que se convertiam deixavam de buscar salvação pela obediência à Lei
(autojustificação), embora - como cidadãos - devessem continuar
observando-a e a ela submetendo-se em seus aspectos civis (At 23:1-5).
É da inatingível exigência de justiça perfeita da Lei Mosaica (At 15:10)
que a Graça de Cristo liberta os judeus e todo gentio que, espontaneamente
ou “arrastado” pelo cristianismo judaizado, a ela se submete (Gl 5:3-4).
O apóstolo dos gentios, entretanto, pregou o Evangelho da
incircuncisão, que tinha como contraponto (e deveria ter até hoje, se não
fosse o grande esforço da religião cristã) apenas as normas instaladas na
consciência humana desde a queda no jardim do Éden (Gn 3:5; Rm 2:11-16,
12:2), qualquer que fosse a religião – ou falta de religião - do homem.
Diferente dos apóstolos que escreveram aos “judeus convertidos” (os
quais estavam livres do jugo autojustificador da Lei Mosaica, mas não de
submeterem-se a ela como referencial de conduta social, por isso muitos
cristãos “da Graça” têm problemas para “engolir” a epístola de Tiago e
alguns detalhes das epístolas de João), o apóstolo dos gentios não usou a Lei
95
exigência de perfeição da Lei como caminho para a salvação (Mt 5:20; 19:16-
22), a fim de apontar a urgente necessidade da Graça de Deus.
Ora, como não somos o povo do Messias segundo a carne, a Lei nos é
útil apenas para advertir sobre a sua própria exigência de infalibilidade e
óbvia condenação dos que querem estar sob seu jugo (Gl 4:21). Assim,
tentamos libertar os escravizados que buscam salvação na obediência a
mandamentos meritórios (salvação por obras da Lei - Gl 3:11) e levar
discernimento aos neurotizados pela arrogância legalista gerada pela lógica
meritória religiosa, endoidecidos a ponto de sentirem-se justificados em
Moisés (obediência à Lei), embora muitos afirmem que é pela fé em Cristo.
Quanto à possibilidade de alterar a “salvação pela fé”, palavras sobre a
Lei Mosaica “me entram por um ouvido e saem pelo outro”. Não perco tempo
“gracificando” aspectos condenatórios nas aulas de “legislação mosaica” e
“cidadania judaica” dadas por Cristo como ministro da circuncisão (para
judeus), que assustam muita gente que se diz “da Graça” (Mateus 5:17-48,
por exemplo) e que, justamente por isso são, ao mesmo tempo, úteis para os
muitos “legisladores” de plantão. Dali, o que é Graça e luz para a minha
consciência, recebo. O que é condenação da Lei, não é para mim, pois, no
tocante a ela, já estou crucificado e morto (Gl 2:19). É isso que Cristo diria
para nós hoje (e diz, através do apóstolo dos gentios).
A única serventia da Lei (no plano de salvação) é apontar para a
justificação no Messias perdoador e justificador (Gl 3:24). Se passar disso,
ela só desperta a concupiscência no pecador (Rm 7:8), gerando a cobiça,
dando a falsa sensação de direito adquirido e, ao mesmo tempo, alimentando
o medo neurótico da condenação. Mas o problema da minha condenação já
foi resolvido na cruz do Calvário. E, se o cumprimento da Lei é o amor (Rm
13:10), é nele que preciso aperfeiçoar-me (para andar como Cristo andou - I
Jo 2:5-6), pois nem o medo nem a própria lei de mandamento carnal (Hb
7:15-16) aperfeiçoam coisa alguma (I Jo 4:18; Hb 7:18-19).
Não tenho nenhum interesse em dissecar a Lei Mosaica em busca de
possibilidades de condenação (o que a religião cristã – salvo raras e
preciosas exceções - vive fazendo). Eu, particularmente, concordo com Paulo
em que até os debates sobre a Lei são inúteis e fúteis (Tt 3:9).
Antes, porém, que alguém distorça o que aqui afirmo, quero deixar bem
claro que, para mim, Cristo é o referencial absoluto do Evangelho. Ele “É” a
encarnação do Evangelho e da própria/única Graça de Deus. Mas quanto à
aplicabilidade do Evangelho na vida dos discípulos - no tocante à Lei Mosaica
- Cristo fez uma aplicação voltada exclusivamente para judeus (ou isso não
está claro na Bíblia?), mas separou alguém, antes mesmo que este nascesse,
para pregar o Evangelho entre os não-judeus, sem aplicá-lo vinculando-o às
97
“... tudo que a Lei diz, aos que vivem na Lei o diz” (Rm 3:19)
“Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da Lei,
e, sim, da Graça” (Rm 6:14)
As palavras de Jesus aos fariseus (lei, para legalistas) são sempre bem
aceitas e muito repetidas em todo o meio cristão, mas as palavras dele aos
demais pecadores (Graça, para pecadores confessos) não geram o mesmo
interesse e sempre incomodam mentes e corações ainda sob domínio da Lei,
mesmo que se digam convertidos ao Evangelho da Graça.
A Lei foi abolida para os que estão em Cristo porque ela é o parâmetro
de justiça que separa os homens (Ef 2:14-15), e o discípulo de Cristo, a fim
de negar a si mesmo e tomar para si a justiça do Calvário (Lc 9:23-24),
considera a sua justiça própria como perda e refugo, a fim de ser achado
não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé
em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé (Fp 3:7-9).
A Lei morreu porque Cristo já cancelou, removeu inteiramente e
encravou na cruz o escrito da dívida que tínhamos para com Deus, referente
à nossa justiça própria, o qual constava de ordenanças, era contra nós e nos
era prejudicial, e assim despojou principados e potestades, publicamente os
expôs ao desprezo e triunfou deles na cruz (Cl 2:13-15). Agora precisamos
ser aperfeiçoados no amor (I Jo 2:5-6), e a Lei, que é fraca e inútil, não
serve para esse fim, pois nunca aperfeiçoou coisa alguma (Hb 7:18-19).
A Lei é inútil porque as coisas velhas já passaram e tudo se fez novo
(II Co 5:17) e, quando se muda tudo, inclusive o sacerdócio, há também
necessariamente mudança de lei (Hb 7:11-12). Quem está na Graça passou
da lei de mandamento carnal (Hb 7:16) para a Lei de Cristo (Gl 6:2).
A Lei é inútil porque é desnecessária como referencial de conduta para
aquele que é nova criatura em Cristo, pois ele é guiado pelo Espírito (Gl 5:18)
e sabe discernir o que convém (I Co 6:12).
A Lei morreu para que o pecado não mais tenha domínio sobre os que
estão debaixo da Graça (Rm 6:14). Portanto, estar debaixo da Graça e
continuar alimentando alguma forma de justiça própria diante de Deus para
obtenção de direitos pela obediência à Lei e seus derivados sujeita a nova
criatura a permanecer sob o domínio do pecado.
A Lei morreu porque ela é o caminho da autojustificação, e o nosso
caminho é o da justificação em Cristo (Jo 14:6). Nós, nascidos do Espírito
(Jo 3:8), morremos relativamente à Lei para pertencermos àquele que
ressuscitou dentre os mortos e, deste modo (mortos para a Lei/justiça
própria), frutifiquemos para Deus (Rm 7:2-4).
Talvez precisemos de algumas pregações onde apenas se anuncie,
repetidamente, por horas seguidas: “É pelo Espírito, e não pela Lei! É pelo
Espírito, e não pela Lei! É pelo Espírito, e não pela Lei...”.
102
Lei e Graça não caminham juntas. Sabemos que, ou se está cativo da Lei
ou na liberdade da Graça. Não se pode estar na Graça de Cristo e ainda
depender do desempenho em obras da Lei para obter e manter a salvação.
Quanto à nossa condição espiritual (salvação), a transição da Lei para a
Graça se dá imediatamente, no momento da conversão, ao confessarmos a fé
na obra do Calvário e no senhorio de Jesus Cristo em nossas vidas, mas
precisamos conscientizar-nos de que há uma luta constante para nos
livrarmos do domínio da Lei (Rm 7:1), caso contrário ela poderá atrapalhar, e
muito, o nosso relacionamento com Deus e com o próximo, emperrando e
estagnando a nossa vida espiritual.
Muitos dos que se confessam convertidos à Graça de Cristo ainda
trazem consigo o ranço legalista e, vivendo apenas uma religiosidade
autocultuadora e absolutamente inútil ao Reino de Deus, afirmam viver na
plenitude da Graça e, achando que as muitas algemas que ainda trazem
consigo são aceitáveis e úteis na caminhada com Cristo, ainda as usam como
argumentação contra a liberdade que há no Espírito, pois algumas dessas
algemas têm um nome bonito, bíblico, inspirador, que sugere espiritualidade
e compromisso com Deus. Mas algemas são algemas, e onde está o Espírito
do Senhor, aí há liberdade (II Co 3:17). O novo nascimento implica um novo
crescimento, e só se pode crescer na Graça mortificando a Lei, de modo que
crianças e adultos na fé discutem e questionam coisas diferentes.
A Lei precisa ser mortificada a cada dia em nossas vidas, pois livrar-se
do seu domínio (trocar a justiça meritória da Lei pela justiça do Calvário) é
um processo gradual, que caminha em ritmo diferente em cada um de nós
(espera-se, entretanto, que todos progridam – Hb 5:12). Às vezes imagino
como seria interessante ouvir de cada renascido na Graça de Cristo um
testemunho sobre o que significou a morte da Lei na sua vida. Que mudanças
cada um já observou em si mesmo, no processo de abandono da Lei rumo à
liberdade da Graça no Espírito... O que ouviríamos?
Uns são mais livres, outros nem tanto. Os mais livres são aqueles que
corajosamente reconhecem que ainda têm áreas de sua vida sob domínio da
Lei (justiça meritória), mas estão em constante processo de libertação dela,
103
“Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8:36)
Quem não está em Cristo está sob o jugo da Lei Mosaica ou da “norma
da lei” [critério meritório natural] na consciência (Rm 2:15) e, portanto, sob
maldição e já morto em seus delitos e pecados (transgressões da Lei – Ef
2:1).
Fora da Graça de Cristo, não há ninguém livre. Quem permanece nele
tem vida em abundância (Jo 10:10), e “aquele que diz que permanece nele,
esse deve também andar assim como ele andou” (I Jo 2:6).
Só teremos consciência da imensurável grandiosidade e perfeita glória
da Graça de Cristo se tivermos a exata noção da libertação que ela nos
proporciona, mediante uma profunda convicção daquilo de que ela nos livrou
e salvou de maneira definitiva (Rm 8:1). Sabendo o que significa estar
reconciliado com Deus, compreenderemos por que a sua Graça nos basta (II
Co 12:9) e é melhor do que a vida (Sl 63:3).
Mas, sem que morramos para a Lei (autojustificação), nada disso
acontecerá (Rm 7:4; Gl 2:19). Não seremos guiados pelo Espírito (Gl 5:18) e
não frutificaremos para Deus, pois não aprenderemos a discernir a vida com
os olhos e a mente de uma nova criatura em Cristo, que nasce e amadurece
com uma nova consciência, livre, transformada, pacificada e capaz de
compreender a vontade do Senhor (Ef 5:17).
XVI - O MUNDO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
excede todo entendimento (Ef 3:15-19), para que não sejamos insensatos,
mas, em tudo, procuremos compreender qual a vontade do Senhor (Ef 5:17).
Todo aquele que crê na Palavra da Verdade do Evangelho é
transportado nos braços de Cristo, da assustadora escuridão do medo (da
Lei) para a maravilhosa luz do seu amor (I Jo 4:18), e agora – consciente
disso ou não – vive na gloriosa liberdade dos filhos de Deus (Rm 8:21),
“desde o dia em que ouvistes e entendestes a Graça de Deus na verdade” (Cl
1:5-6).
O principal sintoma da Graça de Cristo em nós é a sensação de leveza
em um espírito livre. Um renascido na Graça de Cristo é alguém
essencialmente “leve”, pois já não mais carrega nos ombros o peso de suas
transgressões e nem a culpa por elas. E essa sensação de leveza é
absolutamente inabalável, de modo que, certamente passaremos por duras
provações, por grandes e sofridas perdas, desilusões e angústias, mas,
inexplicavelmente, “nem morte nem vida, nem anjos nem principados, nem
coisas do presente nem do porvir, nem poderes, nem altura nem
profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8:38-39).
Um renascido na Graça de Deus cuja alma e espírito não transbordam
leveza e liberdade é algo, no mínimo, estranho e ainda inadequado ao
Evangelho do Senhor Jesus Cristo.
Os mandamentos da Lei são um fardo pesado demais, que ninguém pode
suportar (At 15:10); são condenação e morte eterna (II Co 3:7-9), e foram
dados para que todo mundo seja culpável perante Deus (Rm 3:19). Mas a
Graça, o perdão e os mandamentos do Senhor Jesus (Gl 6:2) são Boas Novas
(At 13:41), jugo suave e fardo leve (Mt 11:28-30), não trazem condenação
(Rm 8:1-2), são vida em abundância (Jo 10:10) e foram dados gratuitamente
para que...
Bem, escute do próprio Senhor Jesus:
“TENHO VOS DITO ESTAS COISAS PARA QUE O MEU GOZO
ESTEJA EM VÓS, E O VOSSO GOZO SEJA COMPLETO” (Jo 15:11).
A ele toda a honra e toda a glória, para todo o sempre. Amém!