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Resgatar o Eu Deserdado – A Outra Face Da Sombra
Muitas pessoas não encontram o seu dom divino porque evitam procurar nos
lugares mais fora do vulgar. Um desses lugares é a nossa sombra, o lugar onde
despejamos todas as características da nossa personalidade que não gostamos e
deserdamos. Estas partes deserdadas são incrivelmente preciosas e não podem
nunca ser postas de parte. Aceitar e honrar a nossa sombra é uma arte
profundamente espiritual. Conduz‐nos de volta à totalidade que sempre fomos,
tornando‐se assim na experiência mais sagrada da nossa vida.
Existe em cada um de nós uma persona – a soma das partes que gostamos que os
outros vejam em nós. É como a nossa roupa psicológica e é a mediadora entre o
nosso eu verdadeiro e o ambiente em que nos encontramos, da mesma maneira
que a roupa que trazemos no corpo representa uma imagem de quem somos. O
ego é quem nós somos e conhecemos conscientemente. A sombra é a parte de
nós que não conseguimos ver nem conhecer conscientemente.
Todos nascemos completos e, com algum cuidado, todos morreremos completos.
Algures nos primeiros anos de vida comemos o fruto proibido, separamos as
coisas em boas e más, e damos início ao processo de construção da sombra.
Neste processo cultural separamos todos os aspectos divinos que possuímos em
aceitáveis e inaceitáveis. E escondemos os inaceitáveis.
© Emídio Carvalho, 2009 1
processo, em vez de as expor aos perigos de aniquilarem uma parte importante
de quem são. E é preciso saber quando é que as crianças estão prontas a
adaptarem‐se a uma vida em sociedade. Uma tarefa nada fácil.
É interessante ver como em diversos pontos do planeta as sociedades humanas
atribuem diferentes características ao ego e à sombra. Num pais conduz‐se no
lado direito da estrada, noutro é na esquerda. No Ocidente um homem pode
passear de mãos dadas com uma mulher, mas é mal visto se o fizer com outro
homem. Na Índia é o oposto: dois homens a caminhar de mãos dadas é aceite
pela sociedade, mas um homem e uma mulher é um comportamento muito mal
visto. No Ocidente mostramos respeito pela religião ao entrar nos templos
calçados. No Oriente é precisamente o oposto: entra‐se nos templos e mostra‐se
respeito ao retirarmos os sapatos. No Médio Oriente é considerado uma cortesia
arrotar no final da refeição, como prova do prazer que a mesma proporcionou.
Nos países ocidentais esta prática é vista como falta de educação.
A forma como todo este processo se desenrola é bastante arbitrária. A
individualidade pode ser vista como uma qualidade numa cultura e como um
verdadeiro pecado noutra. A sombra de uma cultura pode ser a delícia social de
outra.
É ainda admirável como existem características muito positivas na sombra.
Normalmente encontramos na sombra os aspectos mais negativos: a inveja,
mentira, desonestidade e infidelidade. Mas aspectos bastante positivos também
fazem parte da nossa sombra! Algum do mais puro ouro da nossa personalidade
é escondido na sombra porque não encontra um lugar neste processo sócio‐
cultural em que as crianças são educadas.
Curiosamente, as pessoas resistem mais depressa os seus aspectos de Ouro,
escondidos na sombra, do que aqueles que são manifestamente negativos
(apesar de também estes poderem ser úteis ao indivíduo). Abraçar o que de mais
negro há em nós é relativamente fácil, mas aceitar o Ouro escondido na sombra é
aterrador. Causa mais medo ao ego saber que possuímos um carácter nobre do
que saber que somos idiotas, por exemplo. E é claro que possuímos ambos. Mas
não descobrimos ambos os aspectos ao mesmo tempo. Isto porque o Ouro está
relacionado com o nosso dom, e isto pode ser difícil de aceitar em determinadas
alturas da nossa vida.
Ignorar o nosso Ouro pode causar‐nos tantos danos como ignorar o lado negro
da sombra. Muitas pessoas têm que passar por um acidente violento, ou uma
doença grave, para descobrir o seu Ouro Interior. Na verdade é muitas vezes
necessário passar por estas experiências intensas para podermos ver a parte de
nós que se encontra adormecida ou sem uso. Ainda nos encontramos a funcionar
sob o arquétipo do curador ferido, o qual aprende a curar‐se e encontra o Ouro
durante o processo.
Independentemente da cultura em que crescemos e da forma como fomos
educados, iremos chegar a adultos com um ego e uma sombra bem delineados.
Um sistema de ‘certos’ e ‘errados’. Um mundo de contradições em que não é
permitido ser‐se bonito e feio, meigo e ríspido, inteligente e burro, altruísta e
egoísta.
© Emídio Carvalho, 2009 2
O verdadeiro processo de reunir o ser total e completo original é, em si, religioso.
A palavra religião tem a sua origem na palavra latina “religare” – voltar a juntar,
curar as feridas da separação. Foi de extrema importância envolvermo‐nos no
processo cultural que deu origem à nossa sombra, caso não o tivéssemos feito
seríamos pouco mais que animais pensadores. Mas é agora ainda mais
importante conseguir o feito espiritual de voltar a ser o humano completo.
Fomos afastados do Jardim do Éden, e agora temos que regressar ao estado
completo que apenas esse jardim permite.
Mas ao ser expulsos do Jardim do Éden, e para sobreviver, tivemos a necessidade
de criar uma sombra, onde escondemos uma parte importante do nosso dom.
De uma maneira generalizada, os primeiros quarenta anos da nossa vida são
dedicados ao processo cultural – aprender o necessário para obtenção de um
salário, criar uma família, disciplinarmo‐nos de mil e uma maneiras. A segunda
metade da vida deveria ser dedicada a restabelecer o ser completo original.
Podemos queixar‐nos que este processo é apenas uma viagem de ida e volta,
desnecessária, com a diferença que o ser completo original se encontrava
inconsciente e o ser humano final será consciente. Esta evolução, por mais que
lhe pareça uma brincadeira, é merecedora de todo o seu respeito e honra. Vale a
pena a dor e o sofrimento que custa chegar à consciência de quem sempre foi. O
único desafio é não se perder a meio do percurso e não conseguir encontrar o ser
completo no final.
Ser‐lhe‐á útil pensar na personalidade como um baloiço, com uma criança em
cada lado oposto. Ambas as crianças são uma parte de si, e só quando as duas
estão presentes é você é verdadeiramente completo. O nosso processo cultural
consiste em colocar no lado direito do baloiço todas as características divinas
aceites pela sociedade em que estamos inseridos, e aquelas que não são aceites
do lado esquerdo. Há uma lei universal inexorável que afirma que nenhuma
característica pode ser abandonada, apenas deslocada para um ponto específico
do baloiço. Uma pessoa que passa pelo processo cultural com sucesso irá
mostrar à luz do dia as características desejáveis pelo sociedade (o lado direito,
correcto), e todas as que são proibidas irá esconder na escuridão da noite (o lado
esquerdo, incorrecto). Mas todas as nossas características têm que aparecer na
altura de fazer um inventário. Nada pode ficar de fora.
Há ainda uma outra lei, terrível, e que poucas pessoas conhecem e a nossa
cultura opta por ignorar: o baloiço tem que estar em equilíbrio para evitar a
quebra. Se passamos a maior parte do nosso tempo a olhar apenas para o lado
direito do baloiço, a mostrar aos outros apenas aquilo que queremos que vejam,
temos que dar um apoio ás características que se encontram do lado esquerdo. O
oposto também é verdade. Se esta lei for quebrada, o baloiço perde o equilíbrio e
parte‐se ao nível do fulcro. O baloiço partido significa apenas a morte do
indivíduo. Para evitar este final, o subconsciente irá procurar maneiras de
restabelecer o equilíbrio. É assim que as pessoas mudam como do dia para a
noite. O alcoólico que de repente se torna fanático na sua temperança, ou o
politico de extrema direita que é apanhado com uma prostituta. Em ambos os
casos passou‐se de um extremo do baloiço para o outro.
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Mas o baloiço pode efectivamente quebrar ao nível do fulcro se ficar
sobrecarregado de um lado apenas. E aqui a pessoa só pode morrer. Ou tornar‐se
psicótica.
A nossa mente, tanto consciente como subconsciente, mantém um equilíbrio tão
perfeito como o equilíbrio orgânico no nosso corpo físico. Da mesma maneira
que mantemos a mesma temperatura, o mesmo equilíbrio ácido‐alcalino, níveis
de açúcar no sangue e muitas outras polaridades.
Sempre que a nossa mão direita pega no fruto da criatividade, pode ter a certeza
que a mão esquerda irá pegar no fruto da destruição. É só uma questão de tempo
até que aquilo que rejeitamos se manifeste. Mas é claro que nós, como pessoas
boas que somos, iremos resistir a esta ideia. Adoraríamos ter o amor criativo
sem o ódio destrutivo – só que isto jamais será possível.
Hoje em dia estamos a criar esta ideia ridícula de que a espiritualidade significa
ser‐se muito bom e amar tudo e todos, vivendo única e simplesmente do lado
direito do baloiço. A imagem perfeita do santo. Só que uma pessoa assim torna‐
se altamente volátil e instável. No momento menos esperado irá cair no extremo
oposto e destruir a sua vida e a daqueles que o rodeiam. Tem que haver um
equilíbrio entre o dia e a noite.
O fulcro do baloiço é o ponto sagrado. Temos mesmo que nos relacionar com o
mundo exterior através dos aspectos do lado direito do baloiço, mas isto só será
possível se mantivermos o lado esquerdo também em equilíbrio. Temos que
esconder o nosso lado negro da sociedade, ou tornar‐nos‐emos um perigo. Mas
não podemos nunca escondê‐lo de nós mesmos!
Os monges beneditinos são um bom exemplo do equilíbrio entre o lado direito e
esquerdo do baloiço. Passavam horas seguidas a orar e honrar a Deus. Mas
dedicavam algum do seu tempo a produzir um rico licor feito à base de ervas
aromáticas. E bebiam! Por que acha que a nossa doçaria nacional nasceu nos
conventos? Dia e noite, doce e amargo, tristeza e alegria. Ambos presentes e
vivenciados de maneiras diferentes.
Nunca conseguirá libertar‐se da sua sombra. Lembre‐se que para criar terá que
destruir. Olhe para a natureza para observar precisamente este equilíbrio –
depois do terramoto surge uma paisagem diferente. O poder destrutivo da
criação! Você não conseguirá fazer luz sem a ajuda da escuridão. Na Índia
equilibra‐se Braham, o deus da criação, com Shiva, deusa da destruição. Vishnu
senta‐se ao meio, para manter o equilíbrio entre os outros dois. Ninguém
consegue escapar ao lado negro da vida, mas qualquer um de nós pode dedicar‐
se ao lado negro e manifestá‐lo sem causar danos a nós próprios nem aos outros
que nos rodeiam. Mas para tal temos que ser inteligentes e deixar a razão literal
de parte.
A razão literal tem sido um dos nossos maiores problemas. Para compreender
melhor a razão literal, vou contar‐lhe uma pequena história.
Na antiga China um exército combatia contra um inimigo poderoso. O exército
estava praticamente derrotado quando os generais se reuniram para decidir se
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deviam continuar a lutar ou se deviam fugir. Seis generais votaram a favor da
fuga e quatro votaram a favor de continuar a lutar. O exército ganhou a batalha!
No final da reunião os generais decidiram lutar porque o quatro é muito mais
interessante e belo que o seis.
A nossa razão literal vai querer obliterar esta história. Irá considerá‐la estúpida e
sem sentido. Sempre que pensar que algo é ridículo, estúpido ou insano, diga a si
mesmo que está “literalizar a razão”. Não vá por aí.
Se vivermos a vida unicamente a partir do lado direito do baloiço, iremos,
consciente ou inconscientemente, equilibrar o humano em nós com um acto do
lado esquerdo. Nem sequer temos que virar a nossa cara para o lado para vermos
que criámos algo a partir da nossa sombra. É por este motivo que muitos artistas
são pessoas difíceis na sua vida privada.
A história está repleta de situações criadas pelas mentes mais geniais e
excêntricas. Uma criatividade que mal se consegue expressar irá dar origem a
uma sombra muito pequena. Enquanto que uma criatividade talentosa, genial, irá
criar uma sombra gigantesca. O compositor Schumann enlouqueceu. O mundo
também conhece o lado negro de Picasso. E todos conhecemos histórias de
artistas, actores e cantores, que nos nossos dias fazem as coisas mais
inacreditáveis.
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Enquanto que aqueles que mostram maior talento parecem ser também os que
sofrem com mais intensidade, todos nós temos que estar conscientes da forma
como utilizamos a nossa criatividade – e da sombra negra que a acompanha.
Fazer um trabalho artístico, dizer umas palavras de amor, ajudar outros, tornar a
casa mais bonita, proteger a família – cada um destes actos irá ter um efeito no
lado oposto do baloiço e poderá conduzir‐nos ao sofrimento desnecessário.
Nós não podemos recusar a nossa criatividade ou deixar de nos expressar de
maneiras criativas. Mas podemos estar conscientes desta dinâmica da sombra e
fazer algo simples, mas simbólico, para compensar a sombra.
Se lhe acontecer algo de muito bom durante o dia, à noite encarregue‐se de ser o
responsável por despejar o lixo, por exemplo. Desta forma estará, de uma
maneira simbólica, a prestar homenagem à sombra. Sempre que passa por um
momento de sucesso crie um insucesso simbólico.
Muitas mulheres têm que carregar o fardo pesado da sombra de um homem
extremamente criativo. O mesmo acontece a muitos homens, que têm que
carregar o mesmo fardo da sombra de uma mulher de sucesso. Mas pior estão as
crianças, que muitas vezes têm que carregar os fardos pesados das sombras de
ambos progenitores.
Nós vivemos agora no século mais criativo na história da humanidade, com uma
tecnologia capaz de muitos milagres, uma enorme facilidade de viajar e uma
nova liberdade que nos permite nunca estar só. Um verdadeiro século de
liberdade! Claro que a sombra deste século só podia ser a solidão e o tédio – os
opostos exactos de uma sociedade eficiente como a que criámos. A um nível
global, aumentámos os conflitos, as guerras e os problemas políticos até
igualarem a visão utópica de uma sociedade justa e sã. A criatividade exuberante
que vemos só pode ser mantida se reconhecermos a sombra que a acompanha e
expressar essa mesma sombra de uma maneira inteligente.
Como podemos nós criar algo belo ou bom sem causar, na mesma proporção,
danos irreparáveis? É possível vivermos os nossos ideais, fazer o nosso melhor,
ser educados, conseguir um bom trabalho e viver uma vida decente se
conseguirmos, em formato de ritual, reconhecer os aspectos escuros presentes. O
nosso subconsciente não é capaz de distinguir entre um facto real e outro
simbólico. Isto significa que podemos experienciar a beleza e a bondade ‐ e
expressar o equivalente sombrio de uma maneira simbólica.
Um exemplo. Eu posso trabalhar a minha sombra depois de ter que ser simpático
para com pessoas antipáticas e, assim, não atirar com a minha sombra para cima
de um amigo. Eu tenho que honrar a minha sombra, uma vez que é uma parte
integral de quem eu sou. Não tenho que a empurrar (projectar) para cima de
outra pessoa. Posso dedicar‐me a uma cerimónia de cinco minutos em
reconhecimento da minha sombra depois de me afastar das pessoas antipáticas
e, assim, manter o meu ambiente livre dos perigos da sombra.
Há alturas em que a nossa sombra pode aparecer no local de trabalho. Eu posso
escrever os melhores artigos e tentar dar o meu melhor na preparação de um
seminário, através de muito trabalho e disciplina. Mas isto irá aumentar de
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imediato a minha sombra. Eu tento mantê‐la longe de vista e, é claro, no
momento menos esperado ela salta cá para fora! Um assistente que se esquece
do material que quero entregar aos participantes, trocar o local onde o seminário
irá ter lugar ou até preparar‐me para uma actividade e depois esquecê‐la
completamente durante o seminário! Por este motivo tenho que prestar
homenagem à sombra antes de qualquer apresentação pública.
Significa isto que tenho que ser tão destrutivo como sou criativo? Tão escuro
quanto luminoso? Sim, claro. Mas tenho algum controle sobre a maneira como
pago o preço da sombra. Posso fazer uma cerimónia, um ritual, logo depois de
um trabalho criativo para restabelecer o equilíbrio. Posso escrever uma história
tenebrosa, medonha, ou criar uma dança da destruição. Ambos irão prestar
homenagem à minha sombra. Estes actos simbólicos servem exactamente para
isso: equilibrar a minha vida, o consciente e o subconsciente, a luz e a escuridão,
sem causar danos a mim mesmo ou a outros.
Onde quer que se encontre, tem sempre que honrar a sua sombra, a parte da sua
vida que é rejeitada. Tem que redimir os aspectos de si que considera
inapropriados ou errados.
Recusar‐se a ver o lado escuro da sua vida é o mesmo que acumular energia na
sua sombra. Mais cedo ou mais tarde pode surgir como uma depressão, cinismo,
uma doença psicossomática ou um acidente sem motivos aparentes.
No presente estamos a lidar com a acumulação de toda uma sociedade que adora
o seu lado de luz e recusa‐se a abraçar a escuridão. Isto tem como resultado a
guerra, caos económico, manifestações sucessivas e intolerância racial. Veja a
primeira página de qualquer jornal para ficar a saber qual é a sombra colectiva
da nossa sociedade.
Temos que ser completos, quer gostemos da ideia ou a repudiemos. A nossa
única escolha é entre abraçar ou não a sombra de uma maneira consciente e com
dignidade, ou atravessar um período de neuroses e mal‐estar generalizado.
Qualquer forma de reparar este nosso mundo tem que começar com aqueles que
têm a coragem, e o discernimento, de abraçar a sua própria sombra. Nada fora de
nós, no mundo exterior, nos poderá ajudar se o mecanismo interior de projecção
tiver o controle, as rédeas, da nossa vida. A tendência de vermos a nossa sombra
“fora de nós”, no nosso vizinho ou no amigo, numa cultura ou nacionalidade
diferente, é o aspecto mais perigoso da nossa mente.
Não são os políticos e líderes “monstruosos” deste mundo os responsáveis pelo
caos, mas sim a sombra colectiva para a qual cada um de nós contribui
diariamente. A Segunda Guerra Mundial mostrou‐nos inúmeros exemplos do que
significa projectar a sombra colectivamente. Uma das nações mais civilizadas do
planeta, a Alemanha, caiu na asneira de projectar a sua sombra sobre os judeus.
Se apenas uma pequena percentagem da população abraçar a sua sombra
individual, é‐nos prometido que o mundo será salvo.
Temos neste momento várias gerações a viver num mundo em que a sombra
individual nunca é tocada. Podemos prever que dentro de uns cinco a dez anos
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essas sombras se tornem explosivas e mostrem a sua escuridão sobre sociedades
inteiras. Aparentemente, a necessidade colectiva de expressar a sombra
ultrapassa a determinação individual para a conter. E assim temos que depois de
uma época de enorme criatividade será seguida por outra de enorme destruição.
É necessário uma sociedade bastante avançada para manter uma guerra durante
muito tempo, como foram ambas as Guerras Mundiais. Sociedades primitivas
ficariam cansadas de guerrear ao fim de poucas semanas. Isto porque as
sociedades primitivas nunca acumulariam uma sombra durante muito tempo,
nunca se afastando muito dos seus aspectos mais escuros. É necessário uma
sociedade evoluída, castrada e criativa para conseguir manter uma acção de
guerra durante anos. Quanto mais avançada a civilização maior o seu poder de
destruição.
O que acontece à sombra, ao lado esquerdo do baloiço, se não estivermos
conscientes dela e não a expressarmos de uma forma saudável?
A menos que trabalhemos este aspecto de nós de uma maneira consciente, a
sobra será sempre projectada. Isto é, atiramos com ela muito suavemente sobre
os outros e, assim, estaremos livres de nos sentir culpados ou responsáveis.
A sociedade medieval era governada por um sistema patriarcal, famosa pela
tendência a cair sobre o lado esquerdo do baloiço: fortes que protegiam cidades,
armaduras pesadas para a guerra, posse pela força, negação de qualquer aspecto
feminino, obediência cega à monarquia, e cidades‐estado em guerra constante
umas contra outras. A própria Igreja fazia parte desta politica da sombra. Apenas
os indivíduos a quem chamamos de santos (nem todos são reconhecidos), os
mosteiros Beneditinos, e algumas sociedades esotéricas, evitavam o jogo da
projecção da sombra.
Hoje em dia temos verdadeiros negócios multimilionários dedicados a conter a
nossa sombra. A indústria do cinema, da moda e literatura oferecem‐nos formas
acessíveis e fáceis onde investir a nossa sombra. Os jornais oferecem‐nos
diariamente um pacote de desastres, crimes e horrores que servem para
alimentar a nossa natureza sombria no exterior, quando na verdade deveria ser
incorporada em cada um de nós como uma parte da nossa personalidade. Somos
deixados como sendo menos do que completos quando investimos a nossa
escuridão em algo fora de nós. A projecção é sempre mais fácil que a assimilação.
É sempre uma página suja da História aquela em que as pessoas obrigam outras
a carregar a sua própria sombra. Os homens atiram com a sua sombra para cima
das mulheres, os brancos sobre os negros, católicos sobre os protestantes,
capitalistas sobre os comunistas, muçulmanos sobre hindus. Bairros irão ter um
bode expiatório numa das famílias, e esta família terá que carregar a sombra de
todas essas pessoas. Em verdade cada grupo, inconscientemente, designa um dos
seus membros como a ovelha negra e obriga‐o a carregar a sombra para
benefício de toda a comunidade.
Poderemos argumentar que as sociedades medievais conseguiam aguentar com
a sua sombra projectando‐a no inimigo. Mas o Homem Moderno não pode
© Emídio Carvalho, 2009 8
continuar a fazer este jogo. A evolução da consciência exige que cada um de nós
integre a sua sombra se quisermos avançar para um Mundo Novo.
Por vezes recorremos a um animal de estimação para carregar a nossa sombra. O
meu pai, por exemplo, é um homem atencioso, calmo, extremamente pacífico a
maior parte do tempo. Ao mesmo tempo, bate nos cães, atira‐lhes com pedras e
bate‐lhes. Ainda não conseguiu ver que os seus cães são o escape da sua sombra.
As ‘asneiras’ dos animais são apenas a nossa projecção.
© Emídio Carvalho, 2009 9
Ser‐lhe‐á fácil recusar a projecção de outro e terminar com um ciclo eterno de
ódios se a sua própria sombra estiver sob controle. Encontrar‐se na presença da
sombra de outro e não reagir exige uma capacidade humana de génio. Ninguém
tem o direito de atirar com a sua sombra sobre você, e você tem o direito de se
proteger. Todavia não é fácil conseguir escapar a este jogo. Em qualquer
relacionamento pergunte‐se se está a reagir emocionalmente. Se a resposta for
afirmativa, pode ter a certeza que há sombras a serem projectadas.
Atirar com a nossa sombra para cima de outro é um abuso e causa muitos danos
– não só sobre aqueles em quem projectamos, mas também sobre nós. Ao
projectarmos a nossa sombra estamos a perder uma parte essencial de quem
somos. Temos uma obrigação de nos unirmos ao nosso lado mais negado para
que possamos crescer enquanto seres humanos e, em simultâneo, não temos
qualquer direito de atirar estes aspectos rejeitados para cima dos outros. O
problema é que a maioria de nós vive dentro de uma teia complexa de troca de
sombras, a qual rouba uma parte significativa de cada uma das pessoas
envolvidas.
Por outro lado a sombra, a nossa sombra, contém uma quantidade enorme de
energia e vitalidade. Um individuo com bastante cultura possui também uma
sombra densa. Se ele estiver consciente desta sombra tornar‐se‐á uma pessoa
com um poder pessoal bastante acentuado.
Por vezes podemos ser bastante úteis a outros ao carregar, conscientemente, a
sua sombra. Fazêmo‐lo quando aceitamos as acusações do outro, sabendo que
não são verdadeiras, sem ripostar. É uma forma de esperar, de dar tempo, para
que a outra pessoa possa tomar consciência da sua própria sombra. Mas isto só é
possível se a nossa sombra estiver sob o domínio consciente, quando a
expressamos de maneiras saudáveis.
Só poderemos amar os nossos inimigos depois de sermos capazes de amar a
nossa própria sobra, o nosso inimigo interior. É ele o responsável por grande
parte da nossa infelicidade e dos nossos problemas. Quando amamos o inimigo
interior, descobrimos um mundo de alegria e poder.
Para abraçar a nossa sombra podemos pegar nos arquétipos de Céu e Inferno. O
Céu representa o consciente e o ego, enquanto o Inferno representa o
subconsciente e a sombra. Ao abraçar a sombra estamos a amar na totalidade a
separação existente entre Céu e Inferno. O diabo (a nossa sombra) foi
inicialmente uma parte do Céu, e terá que eventualmente regressar a casa.
Significa isto que cada um de nós tem que abraçar a sua sombra, o seu diabo
interior, por forma a poder experienciar o Céu que há em si. Se serve de algum
apoio, atrever‐me‐ia a dizer que Deus ama mais a nossa sombra do que o nosso
ego, uma vez que a sombra é autentica, enquanto que o ego é uma falsa
construção da personalidade.
A nossa sombra pode ser‐nos útil em muitas das tarefas do dia‐a‐dia, se apenas a
soubermos escutar. Um exemplo muito específico: antes de dar uma palestra, ou
um seminário, pego numa toalha e encharco‐a até ficar com mais do triplo do
peso original. Depois agarro‐a com bastante garra e atiro‐a com toda a minha
força contra uma parede, ao mesmo tempo que deixo sair um grito. Assim,
© Emídio Carvalho, 2009 10
expresso a minha sombra egoísta e enraivecida. Depois disto posso ensinar e dar
o meu melhor. Depois da destruição só podemos ter acesso à criação. Destruição
e criatividade são apenas dois pólos do mesmo aspecto. Ao experienciar um dos
pólos abrimos caminho para que o outro oposto se manifeste.
Já mencionei antes que há maneiras de expressar a nossa sombra de maneiras
saudáveis, através de cerimónias e rituais. Esta é uma forma criativa de abraçar
a totalidade que somos. Para tal precisa, antes que tudo, de possuir os elementos
da sua sombra numa mão e do seu ego noutra. Uma tarefa nada fácil. Como é que
pode saber qual a parte da sua sombra se ela se esconde nos cantos mais escuros
do subconsciente?
Num ritual simples pode expressar um aspecto da sua natureza não vivenciada.
Terá que agarrar nesse aspecto e satisfazê‐lo, sem causar danos a si ou a outros.
Pode criar uma estátua em barro, escrever uma história, pintar um quadro, ou
criar uma dança! Pode ainda queimar algo. Qualquer forma de manifestar um
aspecto escuro da personalidade sem causar danos. Lembre‐se sempre que uma
cerimónia, um ritual, é autêntico e real para o subconsciente se as emoções
equivalentes ao acto estiverem presentes.
A nossa mente não consegue distinguir entre um acto interior e outro exterior.
As qualidades da nossa sombra podem ser experienciadas, do ponto de vista do
Eu, tanto no exterior como no interior.
Qualquer sociedade culturalmente avançada está carregada de cerimoniais. As
sociedades menos avançadas expressam a sombra de maneira inconsciente:
através da guerra, violência, doenças psicossomáticas e acidentes imprevistos.
© Emídio Carvalho, 2009 11
Imagine que tem um dia de enorme sucesso. Tudo lhe correu bem! Pode, uma vez
em casa, fazer um ritual do insucesso. Por exemplo, despejar o lixo pode ser
transformado neste ritual. Ou a sua criatividade foi invulgarmente alta durante
um projecto. Pode ritualizar a destruição através de uma escultura em plasticina,
a qual é destruída no final.
Mantenha sempre presente na sua mente que a virtude só é possível na presença
do seu oposto. A luz não teria qualquer significado sem a escuridão, o masculino
sem o feminino, o cuidado sem o abandono. A verdade chega‐nos sempre aos
pares. Este é o grande mistério da dualidade, do paradoxo.
O maior, e mais difícil, paradoxo dos nossos tempos é o amor e o ódio. A nossa
sociedade é fracturada em mil pedaços por esta dicotomia e é fácil encontrar
mais erros do que sucessos na tentativa de reconciliar estes dois pólos opostos.
Contudo, é impossível viver humanamente sem a presença de ambos. O ódio sem
o amor torna‐se brutal. E o amor sem ódio torna‐se insípido e fraco. E no
entanto, quando duas pessoas se aproximam uma da outra, mais cedo ou mais
tarde dá‐se uma explosão. A maioria das discussões entre casais centra‐se à volta
da colisão entre o amor e o ódio. Conseguir experienciar ambos é um atarefa
árdua e difícil para a maioria das pessoas. Mas a menos que o faça irá escorregar
sempre nesta ratoeira. Um verdadeiro paradoxo é capaz de uma devoção e união
únicas. Manifeste o ódio de uma maneira saudável, através, por exemplo, de uma
dança. Ou escreva uma carta de ódio, a qual depois queima... Com ódio!
O fundamentalismo é sempre sinal de que se abraçou um dos opostos de algo,
enfraquecendo o outro. A maior parte da energia do fanático (fundamentalista) é
gasta num esforço louco para manter metade da verdade longe de vista,
enquanto a outra metade governa. Este tipo de comportamento está
intimamente relacionado com o acto de “ter razão”. Esteja preparado para deixar
partir a necessidade de ter razão, a qual é sempre um acto do ego.
Mas afinal o quê que a sombra tem haver com o paradoxo? Tudo. Não é possível
existir um paradoxo – aquele lugar sublime de reconciliação – enquanto não
abraçarmos a nossa sombra e a elevarmos até ao ponto da dignidade. Abraçar a
nossa sombra é o mesmo que preparar o terreno para a maior experiência
espiritual permitida ao ser humano.
© Emídio Carvalho, 2009 12