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II – 1 de Janeiro de 2005 – 31 de Maio de 2005

eli miguel
... vai florir

Foto: Wiora
Com a vara calculei a distância entre os dias
A vara, pensei, vai florir
Posso incliná-la para uma criança a colher

Daniel Faria, Poesia


Lusitânia

Os que avançam de frente para o mar


E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo

Trafaria – foto: eli


No Pasaran Malgré la honte et les carnages
Par les grillages de l’attente Le cœur léger sous la nuée
Nous survivrons en tes mirages
Je laisse l’espoir à la mer
Egrener ses ombres mouvantes Qui offrent leur parfum de menthe
Sous la volute enamourée
Face à la mer qui invente
Mon regard lèche la torsade
Du fer forgé envoluté
La brise arrondit sa chamade Jamel Eddine Bencheikh ,"No Pasaran"
In Une salve d'avenir. L'espoir, anthologie poé

Poète Rassemble le monde


Brode la dentelle des marées
Et calligraphie sur leur onde

L’annonciation démiurgique
Qui vibre au chant désespéré
Jailli de ta lèvre magique

Tisse et fais renaître le songe


Où être heureux nous voudra dire
Que nous chasserons le mensonge Foto: eli
QUIEN ME COMPRA UNA NARANJA ¡ay de mí!
como se pierden las nubes
y las barcas, me perdí.

Y pues nadie me lo pide,


¿Quién me compra una naranja ya no tengo corazón.
para mi consolación? ¿Quién me compra una naranja
Una naranja madura para mi consolación?
en forma de corazón.

La sal del mar en los labios José Gorostiza


¡ay de mí!
la sal del mar en las venas
y en los labios recogí.

Nadie me diera los suyos


para besar.
La blanda espiga de un beso
yo no la puedo segar.

Nadie pidiera mi sangre


para beber.
Yo mismo no sé si corre
o si deja de correr.

Como se pierden las barcas


Os amantes sem dinheiro Mas a cada gesto
que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
Tinham o rosto aberto a quem passava.
e deslumbrado penetrava nos espaços.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Eugénio de Andrade
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente


o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro,
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,


e silêncio
à roda dos seus passos. Chagall
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor


É não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flaameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!


Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...


É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

William Mulready, the sonnet


Florbela Espanca, Charneca em Flor
Impressão digital Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Os meus olhos são uns olhos.
Onde Sancho vê moinhos
E é com esses olhos uns
D. Quixote vê gigantes.
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Vê moinhos? São moinhos.
Não vêem escolhos nenhuns.
Vê gigantes? São gigantes.

Quem diz escolhos diz flores.


António Gedeão, Poesias Completas
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas


Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Foto: eli
em fundo

Foto: eli

Bach,
Concerto for Flute, Violin, Harpsichord, Strings and
basso Continuo
in A minor, BWV 1044 "Triple Concerto"

The English Concert


Trevor Pinnock
Não Te Amo

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma. Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
E eu n 'alma – tenho a calma, Quem ama a aziaga estrela
A calma – do jazigo. Que lhe luz na má hora
Ai! não te amo, não. Da sua perdição?

Não te amo, quero-te: o amor é vida. E quero-te, e não te amo, que é forçado,
E a vida – nem sentida De mau, feitiço azado
A trago eu já comigo. Este indigno furor.
Ai, não te amo, não! Mas oh! não te amo, não.

Ai! não te amo, não; e só te quero E infame sou, porque te quero; e tanto
De um querer bruto e fero Que de mim tenho espanto,
Que o sangue me devora, De ti medo e terror...
Não chega ao coração. Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett, Folhas Caídas


Almada Negreiros
Quero-te para além das coisas justas

Quero-te para além das coisas justas


e dos dias cheios de grandezas.
A dor não tem significado quando ma roubam as árvores
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
Edward Hopper entre as coisas vivas.

Joaquim Pessoa, À Mesa do Amor


Encontrou naquele janeiro trabalho erguendo a lenta parede dos dias.
O reboco o triturar a pedra
o cimento quase parte das mãos
a poeira doendo os olhos.
Encontrou naquele janeiro trabalho
nas obras. Sem ninguém, entre fasquias andaimes e
O seu melhor era o abrir da lancheira caliça
o termo de alumínio canelado protegendo sem espaço para legenda bebe café entre
o vigésimo terceiro e quarto andar.
o espelhado vidro João Miguel Fernandes Jorge, O Regresso dos Remadores
o café mantinha-se quente por muitas
horas.
As botas de velhos atacadores já com

buracos
as grossas meias de algodão a camisola
rota num dos braços o fato-macaco
a negra barba mal feita e os tijolos

Raquel Martins
Só eu sei quanto dói a separação!

Só eu sei quanto dói a separação!


Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite: orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa.

Al-Mu'Tamid

Israel Lifvak
Barco solto

Odilon Redon

Dançar na proa
Conquistar
O mastro

Daniel Faria, A Casa dos Ceifeiros


Magritte
A passagem dos dias ao tempo restituo o que é dele, e tudo
o que é dele o tempo me dá, igual e
diferente, com o seu fruto amplo e mudo

Nuno Júdice
Se, com o tempo, perco e encontro o que é
igual e diferente, perdendo o igual no que
é presente e vendo a diferença no passado
da presença, ao tempo dou o mesmo que

penso no que foi pensado sem viver,


vivendo agora o pensamento que não
tive, como vento que por aqui passou
e tudo na mesma deixou: árvore seca

cujo ramo vive, flor amarga num azul


de céu, ribeiro que a margem prende,
ave pousada num fio de silêncio. Assim,
De Chirico
Leur cri parole
avant d'assouvir le torrent de sottises dans le
bruit de

paroles
Il y a ceux qui crient ceux qui appellent parler désormais dans ce monde
sans remuer les lèvres terrassés et debout c'est imposer plus de bruit sans entendre sans
marchant terrassés et debout sur le trottoir illimité des villes écouter
ceux qui crient au secours ceux dont la bouche s'est creusée seul avec l'horreur de soi et l'horreur dans la
d'un trou sans fond d'où sort le cri nuit
le cri éraillé le cri avec des fils de bave entre les lèvres
ceux qui vivent dans le tombeau vivant du cri Pourtant on berce au fond de soi un oiseau de
le cri et qui entend le cri silence
on berce au fond de soi un chant sans
Les rues vomissent les autos les bruits et les images syllabes
sans comprendre une lumière comme une lampe sans flamme
surtout sans ce désir jamais de comprendre une langue sans mots
les portes se referment sur la fraîcheur des appartements un regard qui désire d'autres regards
autour du plat que l'on partage à table dans le mutisme on sait son visage inaccompli sans la présence
et sur l'écran les satisfaits gesticulent privés du son de leur d'autres visages
on sait on sait cela que l'on oublie : on le découvre
est-ce l'espoir alors quand on se dresse dans le vent et la
fougue
l'espoir quand on entend au fond de soi germer les mots
d'une parole
parole vraie confuse petite lumière
quand la main trouve sa voie vers d'autres mains devant
quand les yeux construisent dans le silence une beauté de
regards

Philippe Delaveau, Une salve d'avenir. L'espoir, anthologie


poétique

foto: eli
em fundo

Beethoven
Sonata for Violin and Piano Nº 9
in A major, op. 47, Kreutzer Sonata
Yehudi Menuhin - Violin
Wilhelm kempff - Piano
Vem comigo, tecedeira,
Pára um pouco de tecer;
Há tantas flores no campo,
Que apetece i-las colher.
-"Teça, teça, condezinho,

Que outro tanto farei eu. Júlio Dinis, Poesias

A ver quem faz melhor teia,

Se é o seu tear, se o meu."

Júlio Dinis, Poesias


besa en el coll, la més bella contrada.
Deixa´t besar
Mester d´amor
i si et quedava enyor
besa de nou, que la vida és comptada.

Si en saps el pler no estalviïs el bes


que el goig d´amar no comporta mesura.
Joan Salvat-Papasseit
Deixa´t besar, i tu besa després
que és sempre als llavis que l´amor perdura.

No besis, no, com l´esclau i el creient,


mes com vianant a la font regalada;
deixa´t besar -sacrifici fervent-
Ofício de amor
com més roent més fidel la besada.

¿Què hauries fet si mories abans


Se conheces o prazer, não escatimes o beijo
sense altre fruit que l´oreig en ta galta?
pois o prazer de amar não comporta medida.
Deixa´t besar, i en el pit, a les mans,
Deixa-te beijar e beija tu depois,
amant o amada -la copa ben alta.
que nos lábios sempre é onde o amor perdura.

Quan besis, beu, curi el veire el temor:


Não beijes, não, como o escravo e o crente,
mas como o viandante à fonte oferecida.
Deixa-te beijar - ardente sacrifício -
quanto mais queima mais fiel é o beijo.

Que terias feito se tu morresses antes,


sem mais fruto do que a aragem no rosto?
Deixa-te beijar, e no peito, nas mãos
- amante ou amada - a taça muito alta.

Quando beijes, bebe, o copo sare o medo:


beija no pescoço, o sítio mais formoso.
Deixa-te beijar,
e se ainda te apetece
beija de novo, pois a vida é contada.
Amor e Psique. Fresco. Casa de Terêncio. Séc. I

Joan Salvat-Papasseit - Trad.: José Bento


Um mar rodeia o mundo de quem está só

os contornos desse mar com um lápis de


névoa. Apago, sobre a sua superfície, todos
os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha
nas grutas do litoral: as aves assustadas da
solidão. «É um mundo impenetrável», diz
quem está só. Senta-se na margem, olhando
o seu caso. Nada mais triste para além dele, até
esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se
que está vivo. Então, espera que a maré suba,
nesse mar sem marés, para tomar uma decisão.
Um mar rodeia o mundo de quem está só. É
o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água

é negra; o seu horizonte não existe. Desenho


Nuno Júdice, Pedro, lembrando Inês
A cidade é um chão de palavras pisadas A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não
cubra
A cidade é um chão de palavras pisadas não há rua de sons que a palavra não corra
a palavra criança a palavra segredo. à procura da sombra duma luz que não há.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.
José Carlos Ary dos Santos, In Sofrimento
A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas


como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

Vieira da Silva
Não canto porque sonho
Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
Canto porque o amor apetece.
teu sorriso puro,
Porque o feno amadurece
a tua graça animal.
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
Canto porque sou homem.
ao vê-los nus e suados
Se não cantasse seria
mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
Letra: Eugénio de Andrade
da tua vinha sem vinho.
Música: Fausto; A. P. Braga
Dez chamamentos ao amigo
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio


E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

fractal

Hilda Hilst, poesias


Os silêncios da fala

São tantos
os silêncios da fala

De sede Os gemidos
De saliva nas camas
De suor

As ancas
Silêncios de silex O sabor
no corpo do silêncio

O silêncio que posto


Silêncios de vento em cima do silêncio
de mar usurpa do silêncio o seu
e de torpor magro labor.

De amor

Maria Teresa Horta, in Vozes e


Depois, há as jarras Olhares no Feminino
com rosas de silêncio
Serralves – fotos: eli
"A Capoeira"

Paula Rego
Táctica y Estrategia
y saber que sos
Mi táctica es
franca
mirarte
y que no nos vendamos
aprender cómo sos
simulacros
quererte cómo sos
para que entre los dos

mi táctica es no haya telón

hablarte ni abismos

y escucharte
construir con palavras mi estrategia es

un puente indestructible más profunda y más


simple

mi táctica
es quedarte en tu recuerdo mi estrategia es

no sé cómo nin sé que un dia cualquiera

con que pretexto ni sé cómo ni sé

pero quedarme en vos con que pretexto


por fin me necesites.

mi táctica es
ser franco Mario Benedetti
Tapies
Aqui na orla da praia, ...

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,


Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida, Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida. Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é; Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
A glória concede e nega; não tem verdades a fé. Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Por isso na orla morena da praia calada e só, Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido. Fernando Pessoa, Cancioneiro
Ouve a luz

Ouve a luz
Como ainda tem o sabor das algas

Deixei-lhe escrito um recado


Das nuvens

Não te esqueças de ouvir a luz

Não te esqueças que ao sol pôr


Também eu morro

Não te esqueças

Daniel Faria, Poesia


Famine Dirty, filthy rags
Bones boring through
Large empty eyes
Fingers like knitting needles.
Craving for a morsel of food
Stomachs swollen
Empty ache.
Ireland 1847.
Ethiopia 1977 Somalia 1987
Russia, Peru, Auschwich, Japan
Biafra, Rawanda.
Hunger, poverty and starvation
Need no language of translation.
It's in the eyes, the feet, the hands
The sunken face of many lands.
Famine, sickness, death
And sorrow.

Saura

Anne Kelly
Árvores do Alentejo

Árvores! Corações, almas que choram,


Horas mortas...Curvada aos pés do Monte
Almas iguais à minha, almas que imploram
A planície é um brasido... e, torturadas,
Em vão remédio para tanta mágoa!
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!
Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
E quando, manhã alta, o sol posponte
Pedindo a Deus a minha gota de água!
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!
Florbela Espanca, Charneca em Flor
Fado para um amor ausente
Meu amor disse que eu tinha
Uns olhos como gaivotas
E uma boca onde começa
O mar de todas as rotas

Assim falou meu amor


Assim falou ele um dia
E desde então fico à espera
Que seja como dizia

Sei que ele um dia virá


Assim muito de repente
Como se o mar e o vento
Nascessem dentro da gente

Mami
Letra: Manuel Alegre
Música: António Portugal
Quand il allume son révèrbere,...

Quand il allume son réverbère,

c'est comme s'il faisait naître une étoile de


plus, ou une fleur.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince


Chagall

Digamos pois que a vida é um teatro,


em que cumpre ao actor fingir com arte:
levando-a a rir, como se fora farsa,
ou digno sendo na tragédia parte.

Paladas de Alexandria
in Poesia de 26 Séculos,
Tradução e notas de Jorge de Sena
Um céu e nada mais

Um céu e nada mais - que só um temos, de sóis mal descobertos e lança

como neste sistema: só um sol. agora a âncora maior sobre o meu

Mas luzes a fingir, dependuradas coração. Que não te assuste o som

em abóbada azul - como de tecto. desse trovão que ainda agora ouviste,
E o seu número tal, que deslumbrados era de deus a sua voz, ou mito,
eram os teus olhos, se tas mostrasse, era de um anjo por demais caído.
amor, tão de ribalta azul, como de Mas, de verdade: natural fenómeno
circo, e dança então comigo no a invadir-te as veias e o cérebro,
trapézio, poema em alto risco, tão frágil como álcool, tão de
e um levíssimo toque de mistério. potente e liso como álcool
Pega nas lantejoulas a fingir implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.

Ana Luísa Amaral

Teresa Rozatti
La terre est bleue

Magritte, La Lumière des coincidence


La terre est bleue comme une orange
Jamais une erreur les mots ne mentent pas
Ils ne vous donnent plus à chanter Oeil de sourd
Au tour des baisers de s'entendre Faites mon portait.
Les fous et les amours
Il se modifiera pour remplir tous les vides.
Elle sa bouche d'alliance
Faites mon portrait sans bruit, seul le silence,
Tous les secrets tous les sourires
A moins que - s'il - sauf - excepté -
Et quels vêtements d'indulgence
Je ne vous entends pas.
À la croire toute nue.

Il s'agit, il ne s'agit plus.


Les guêpes fleurissent vert
Je voudrais ressembler -
L'aube se passe autour du cou
Fâcheuse coïncidence, entre autres grandes affaires.
Un collier de fenêtres
Sans fatigue, têtes nouées
Des ailes couvrent les feuilles
Aux mains de mon activité.
Tu as toutes les joies solaires
Tout le soleil sur la terre
Sur les chemins de ta beauté.
Paul Eluard, L'amour la poésie
Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Sobre estas duras, cavernosas fragas
Me estão negras paixões n'alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas;

Razão feroz, o coração me indagas.


De meus erros a sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,


Mil objectos de horror co'a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?


Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.

Bocage
Lasso, triste, venho
do silêncio em mim.
Que escuro o caminho!
Que longe do fim!

Indeciso ainda
como um cristal baço;
mas que fome existe
já no meu cansaço!

Olho-me por dentro:


que frio, sozinho!
Aqueço-me ao fogo
do comum destino.

João José Cochofel, Os Dias Íntimos foto: da bet


If anything is sacred, the human body is sacred

Walt Whitman

munch
CANÇÃO

Lá em baixo, em baixo, grande, grande,


o rio, o rio.
Na margem, a árvore, a árvore.

O vento move move


os ramos
ramos
ramos.

Versão de Herberto Helder


-América do Sul, Uitotos
in Rosa do Mundo
2001 Poemas para o futuro
LABAREDAS

I III

Só a luz de um sorriso Beijar a tua boca

no seu puro recorte ao fim de tanto tempo

É tudo o que preciso Descobrir como é louca

para adiar a morte a chama a arder ao vento

II IV

Sentir na tua pele Entrar de novo em ti

o princípio do mundo com plena lucidez

pra que aí se revele de te saber aqui

o nosso mar sem fundo pela primeira vez


V

Beber a tua luz


no corpo que se entrega

Só isso me conduz
à verdade mais cega

VI

São dois corpos sonâmbulos


à procura de um centro
semelhantes a tantos
no seu vão movimento

VII

Entre pétalas de água


o sabor do teu fogo

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa Georgia O'keefee


em fundo

Schumann

Adagio and allegro for Violoncello and Piano


in A flat major, op. 70
Mistislaw Rostropóvith - Martha Argerich
Deutsche Grammophon

Schumann marriage portrait


Fielleux comme souvent le sont

ceux dont on dit qu'ils ont de l'humour

Juliette Greco, Jujube

Claude Chaboud
Foram pétalas

Foram pétalas
Ou olhos de deusas
O que eu calquei?

Não
Não digam

Eu sei
Que foram sonhos

Daniel faria, Poesia

ultrafractal
Ainda é grande o silêncio

Ainda é grande o silêncio


que temos dentro. Levamos
a sua lenta abóbada de tempo
cumprindo as estações e a rotação dos anos.
Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo
a uma astral experiência. Vamos
adquirindo essa tez translúcida dos velhos
que sabe à estrutura dos planaltos.
E, um dia, iluminados, entraremos
pelo portão sagrado,
como quem deu por si em pensamento,
com todo o seu silêncio iluminando.

Susanne Vopel
Fernando Echevarría, Figuras
Porque é culpa, se alguma coisa é culpa,
não multiplicar a liberdade de um ser amado
de toda a liberdade que em nós possamos achar.
Onde amamos, temos apenas isto:
deixar-nos uns aos outros; porque prender-nos
é-nos fácil e não é preciso aprendê-lo.

Rainer Maria Rilke, Requiem para uma amiga

Matthias Pöltl
La vie est semée de ces miracles
que peuvent toujours espérer
les personnes qui aiment.

Proust

Heidrun W.
La memoria en las manos

Hoy son las manos la memoria. de días y de noches, sol y agua

El alma no se acuerda, está dolida la que costó esta forma torpe y dura
de tanto recordar. Pero en las manos que acariciar no sabe y acompaña
queda el recuerdo de lo que han tenido. tan sólo con su peso, oscuramente.
Se estuvo siempre quieta,
Recuerdo de una piedra sin buscar, encerrada,
que hubo junto a un arroyo en una voluntad densa y constante
y que cogimos distraidamente de no volar como la mariposa,
sin darnos cuenta de nuestra ventura. de no ser bella, como el lirio,
Pero su peso áspero, para salvar de envidias su pureza.
sentir nos hace que por fin cogimos ¡Cuántos esbeltos lirios, cuántas gráciles
el fruto más hermoso de los tiempos. libélulas se han muerto, allí, a su lado
A tiempo sabe por correr tanto hacia la primavera!
el peso de una piedra entre las manos. Ella supo esperar sin pedir nada
En una piedra está más que la eternidad de su ser puro.
la paciencia del mundo, madurada despacio. Por renunciar al pétalo, y al vuelo,
Incalculable suma está viva y me enseña
que un amor debe estarse quizá quieto, muy
quieto, pasando y repasando sobre el hueso:
soltar las falsas alas de la prisa,
son preguntas sin fin, son infinitas
y derrotar así su propia muerte. angustias hechas tactos ardorosos.
Y nada les contesta: una sospecha
También recuerdan ellas, mis manos, de que todo se escapa y se nos huye
haber tenido una cabeza amada entre sus palmas.
cuando entre nuestras manos lo oprimimos
Nada más misterioso en este mundo. nos sube del calor de aquella frente.
Los dedos reconocen los cabellos
La cabeza se entrega. ¿Es la entrega absoluta?
lentamente, uno a uno, como hojas El peso en nuestras manos lo insinúa,
de calendario: son recuerdos
los dedos se lo creen,
de otros tantos, también innumerables y quieren convencerse: palpan, palpan.
días felices
Pero una voz oscura tras la frente,
dóciles al amor que los revive. —¿nuestra frente o la suya?—
Pero al palpar la forma inexorable
nos dice que el misterio más lejano,
que detrás de la carne nos resiste porque está allí tan cerca, no se toca
las palmas ya se quedan ciegas.
con la carne mortal con que buscamos
No son caricias, no, lo que repiten
allí, en la punta de los dedos,
la presencia invisible.

Teniendo una cabeza así cogida


nada se sabe, nada
sino que está el futuro decidiendo
o nuestra vida o nuestra muerte
tras esas pobres manos engañadas
por la hermosura de lo que sostienen.
Entre unas manos ciegas
que no pueden saber. Cuya fe única
está en ser buenas, en hacer caricias
sin cansarse, por ver si así se ganan
cuando ya la cabeza amada vuelva
a vivir otra vez sobre sus hombros,
y parezca que nada les queda entre las palmas,
el triunfo de no estar nunca vacías.

Elena
Pedro Salinas, largo lamento
as bocas que se juntam

As bocas que se juntam,


exalação da carne
sobre a carne
e o latir, longe, dos cães,
rumor de cigarra,
arquejante chegada
do sangue, chuva e feno

e o rolo do mar
nos corpos quando se amam.

António Osório,
O Lugar do Amor Elisabeta Rogai
e Décima Aurora
Falarei na lingua de Maria Peres, labradora de sucos na pedra de gra
a Balteira, e nas conciencias de todas as que soñaron ser
musa prostibularia e tecedeira de cantigas coa quentura por amazonas
entre as coxas. da linguaxe.
Falarei na lingua das irmandiñas que arrebolaron con forza Para vós, meniñas de augamel,
berros de liberación aos pais mulleres en froita por madurecer,
da tiranía, falarán estes gromos de firmeza que me
falarei bidueiro, rebentan nos dentes
falarei croio, e son matas de arandeiras.
sarabia, laxe, seara, burato, morno As palabras han ser xermolos nas miñas fillas
sistema de signos, e netas innumerábeis,
símbolo despois,
da memoria que esmorece. os meus ósos falarán na terra
Falarei na lingua de Rosalía, para dar vida á terra
de Xaquina Trillo, para dar nome á terra
de Mariña Mariño Carou, e á prole que me xurdirá coa boca chea do
a lingua renegada da meniña Carolina Otero violada poexo enchoupado das brañas.
no camiño,
a lingua da miña avoa, canteira anónima, Rebelión da palabra
arxina da Terra de Montes,
Elvira Riveiro
Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais


do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor,ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim,
Daniel U. Jr.
nada
Podíamos saber um pouco mais
sabemos do amor.
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.
Nuno Júdice
Rondel

Do amor quem amo nunca sei ao certo


e a quem me tem amor sei que esse amor
eu amo ardentemente e nada mais.
Dizer de amor, sei bem de quem não digo;
não sei, porém, já se o disser, de quem.
Tudo se perde no que quero. Às vezes,
quando possuo, não possuir quisera.
E teu amor me quer. Como saber
se quero ou se não quero que se perca?
Dizer de amor, assim, pensando em tudo?
Como é possível nascer outro, enquanto
o mesmo me conheço e a quem nasço?
Qual um ou outro? O que se esquece? Aquele
que se recorda? O que não pensa? O que
finge lembrar-se? Mas lembrar o quê?
Eu amo ardentemente e nada mais.

Jorge de Sena, Amor


AMOR

amor que me destrói e destruiu


a fria arquitectura desta tarde
- só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão


para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre


donde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.

Amor desta tarde que arrefeceu


as mãos e os olhos que te dei; Eugénio de Andrade, Os Amantes sem
amor exacto, vivo, desenhado a fogo, Dinheiro
onde eu próprio me queimei;
Augúrio

Não antecipes a tristeza


de morrer: não queiras muito
às lágrimas: consola-te
bebendo-as. E sê grato ao dia
em que, vivo, as tragaste.

António Osório
Crónica

Eram barcos e barcos que largavam


fez-se dessa matéria a nossa vida
marujos e soldados que embarcavam E ganhou-se e perdeu-se a navegar
e gente que chorava à despedida por má fortuna e vento repentino
e o tempo foi passando devagar
Ficámos sempre ou quase ou por um triz tão devagar nas rodas do destino
correndo atrás das sombras inseguras
sempre a sonhar com índias e brasis Que ou nós nos encontramos ou então
e a descobrir as próprias desventuras ficamos uma vez mais à deriva
neste canto que é nosso próprio chão
Memória avermelhada dos corais sem que o canto sequer nos sobreviva
com sangue e sofrimento amalgamados
se rasga escuridões e temporais
traz-nos também nas algas enredados Vasco Graça Moura, Letras do Fado Vulgar
In einen Teppich aus Wasser

n einen Teppich aus wasser


sticke meine Tage, in die Gewässer der Unsterblichkeit.
meine Götter und meine Krankheiten.

In einen Teppich aus Grün Thomas Bernhard, Auf der Erde und in der Hölle
sticke ich meine roten Leiden,
meine blauen Morgen,
meine gelben Dörfer und Honigbrote.

In einen Teppich aus Erde


sticke ich meine Vergängnis.
Num tapete de água
Ich sticke meine Nacht hinein
und meinen Hunger,
meine trauer Num tapete de água
und das Kriegsschiff meiner Verzweiflungen vou bordando os meus dias,
das hinübergleitet in tausend Gewässer, os meus deuses e as minhas doenças.
in die Gewässer der Unruhe,
Num tapete de verdura
vou bordando os meus sofrimentos vermelhos,
as minhas manhãs azuis,
as minhas aldeias amarelas e os meus pães de mel amarelos também.

Num tapete de terra


vou bordando a minha efemeridade.
Nele vou bordando a minha noite
e a minha fome,
a minha tristeza
e o navio de guerra dos meus desesperos,
que vai deslizando p'ra mil outras águas,
paras águas do desassossego,
para as águas da imortalidade.

Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno


Trad.:José A. Palma Caetano
Odilon Redon
MANHÃ

Como um fruto que mostra


Aberto pelo meio
A frescura do centro.

Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro.

Sophia de Mello Breyner Andresen,


Livro Sexto
em fundo

Liszt
Sonata em B minor para piano
Sviatoslav Richter
Philips
PASTORAL

Não há, não, Umas são fendidas,


duas follhas iguais em toda a criação.
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
Ou nervura a menos, ou célula a mais,
singelas, dobradas.
não há, de certeza, duas folhas iguais.
Outras acerosas,
redondas, agudas,
Limbo todas têm,
macias, viscosas,
que é próprio das folhas;
fibrosas, carnudas.
pecíolo algumas;
Nas formas presentes,
bainha nem todas.
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.
Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

António Gedeão, Teatro do Mundo


Madrugada de Alfama

Mora num beco de Alfama


Nem mesmo na Madragoa
E chamam-lhe a madrugada,
Ninguém compete com ela,
Mas ela, de tão estouvada
Que do alto da janela
Nem sabe como se chama.
Tão cedo beija Lisboa.

Mora numa água-furtada


E a sua colcha amarela
Que é a mais alta de Alfama
Faz inveja à Madragoa:
E que o sol primeiro inflama
Madragoa não perdoa
Quando acorda a madrugada.
Que madruguem mais do que ela.
Mora numa água-furtada
E a sua colcha amarela
Que é a mais alta de Alfama.
Faz inveja à Madragoa.
Mora num beco de Alfama
E chamam-lhe a madrugada;
São mastros de luz doirada
Os ferros da sua cama.

E a sua colcha amarela


A brilhar sobre Lisboa,
É como a estátua de proa
Que anuncia a caravela,
A sua colcha amarela
A brilhar sobre Lisboa.

Poema: David Mourão-Ferreira


Música: Alain Oulman
Canta: Amália Rodrigues
Não tanto os que nos deram
Viver!
a fúria de viver,
como esses descobertos

depois de se saber

que a vida não é outra


É tão frágil a vida, senão a que fazemos
tão efémero tudo! (e a vida é uma só,
(Não é verdade, amiga, pois jamais voltaremos)
olhinhos-cor-de-musgo?)
Partidários da vida,
E ao mesmo tempo é forte, melhor: do que está vivo,
forte da veleidade digamos "não" a tudo
de resistir à morte que tenha outro sentido.
quanto maior a idade.
E que melhor pretexto

Assim, aos trinta e sete, (quem o saiba que o diga!)

fechados alguns ciclos, teremos p'ra viver

a vida ainda pede senão a própria vida?

mais sentimentos, vínculos.

Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca


Stephan Kocher
SI UNA TARDA

s’arrufen sota els portals dins la seva ceguesa,

Si una tarda com pot un aguantar els ulls de les nines

plou la tristesa i lluen sota el baf boges, els ulls de les nines lletges!

les carrosseries dels cotxes, tot creuant La letargia, la tarda, la pluja, la pena,

els semàfors, el fang i el fàstic l’esfondrament general,

de la ciutat humida; el neguen tant a un, que un s’aferra,

si una tarda a on sigui, a una cançoneta grisa i d’amor,

un surt cansat de fer feina i plou, brufada d’esperit.

i plou la tristesa i plou tant que els cecs

Miquel Bauça
HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigénio, de ar, Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,

Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, Se eu não morresse, nunca! E eternamente

Enleva-me a quimera azul de transmigrar. Buscasse e conseguisse a perfeição das


cousas!

Por baixo, que portões! Que arruamentos! Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Um parafuso cai nas lajes, às escuras: Que aninhem em mansões de vidro

Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, transparente!

E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.


Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,

E eu sigo, como as linhas de uma pauta Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!

A dupla correnteza augusta das fachadas; Eu quero as vossas mães e irmãs


estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;

Ah! Como a raça ruiva do porvir, E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,

E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes, Amareladamente, os cães parecem lobos.


Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir! E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Mas se vivemos, os emparedados, Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!... Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados. E, enorme, nesta massa irregular
E nestes nebulosos corredores De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas; A Dor humana busca os amplos horizontes,
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde


Pintura: Maria Helena Vieira da Silva
Transposição para azulejo: Manuel Cargaleiro
Fotografia: José Carlos Nascimento
A queda Em raivas ideais, ascendo até ao fim:
Olho do alto o gelo, ao gelo me
arremesso...
E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
.............................................................
Eu Próprio turbilhão, anseio por fixá-la
Tombei...
E giro até partir... Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.
E fico só esmagado sobre mim!...

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço d'ouro,


Mário de Sá-Carneiro, Dispersão
Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesouro
Morro à míngua, de excesso.

Alteio-me na cor à força de quebranto,


Estendo os braços d'alma - e nem um espasmo venço!...
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.

Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,


-Vencer às vezes é o mesmo que tombar-
E como inda sou luz, num grande retrocesso,

Chagall
em fundo

Stravinsky
Sinfonia dos salmos
Coro da Ópera de Berlim
Orquestra Filarmónica de Berlim
Herbert von Karajan
Deutsche Grammophon
Aflição

Aflição de não ser a grande ilha


Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra


E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Günter Rolf

Não saber se se ausenta ou se te espera.


Aflição de te amar, se te comove.
Aflição de ser eu e não ser outra.
E sendo água, amor, querer ser terra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Hilda Hilst,
Objeto de amor, atenta e bela.
DIA DE ANOS Não sei quem foi que me disse
que fez a mesma tolice, aqui o ano passado...
Agora, o que vem, aposto,
como lhe tomou o gosto,
que faz o mesmo. Coitado!

Não faça tal; porque os anos


que nos trazem? Desenganos
que fazem a gente velho;
faça outra coisa; que, em suma,
não fazer coisa nenhuma,
também lhe não aconselho.

Mas anos, não caia nessa!


Olhe que a gente começa
Com que então caiu na asneira
às vezes por brincadeira,
de fazer na quinta-feira
mas depois, se se habitua,
vinte e seis anos! Que tolo!
já não tem vontade sua,
Ainda se os desfizesse...
e fá-los, queira ou não queira!
Mas fazê-los não parece
de quem tem muito miolo! João de Deus, Campo de Flores
Je t'aime

Pour l'aurore légère


Pour la rosée qui tremble
Qu'un oiseau fait frémir
Au calice des fleurs
En la battant de l'aile
De n'être pas aimée
Et ressemble à ton rire
Et ressemble à ton coeur
Je t'aime...
Je t'aime...

Pour le jour qui se lève


Pour le doigt de la pluie
Et dentelle le bois
Au clavecin de l'étang
Au point de la lumière
Jouant page de lune
Et ressemble à ta joie
Et ressemble à ton chant
Je t'aime...
Je t'aime...

Pour le jour qui revient


Pour l'aube qui balance
D'une nuit sans amour
Sur le fil d'horizon
Et ressemble déjà
Lumineuse et fragile
Ressemble à ton retour
Et ressemble à ton front
Je t'aime...
Je t'aime...
Pour la porte qui s'ouvre
Pour le cri qui jaillit
Ensemble de deux coeurs
Et ressemble à ce cri
Je t'aime
Je t'aime
Je t'aime

Jacques Brel

Jim Dine
Por algum motivo as lágrimas descem

Por algum motivo as lágrimas descem


até à boca.
Mastiga-se o sabor, entra
no sangue o sal,
em vida se transforma, é
sulco que a dor abre, fertiliza,
aberta linha de semeadura onde
poderá surgir um bosque,
uma cidade, uma injustiça...

É o gosto da dor
que vitaliza, acende o palpitar
no coração que sobe à superfície.

Descem até à boca


por algum motivo as lágrimas.

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha

Alessandra Ciabuschi
Neste momento

Neste momento
um pássaro qualquer
canta, explica as flores
perto da margem dum rio.

Nunca ouvi esse pássaro cantar


nem sei onde o rio corre...

Mas todas as noites no meu quarto


tento aprender de cor
essa melodia que não ouço
- sentindo o coração pesado
como um pássaro morto.

Josá Gomes Ferreira, Poesia I


Uma marca de algum fogo. O que nela foste tu

Uma marca de algum fogo. O que nela foste tu


apenas, a dor que causas ou que no corpo se demora.
O amor obriga a esquecer. Estiola, o corpo, demora-se
um pouco mais como uma lembrança, como uma vaga.
É tão pouco, o corpo, tão claro o seu prazer,
tão só. Diante dele se morre, se emudece, se não acorda
em ti o calor de um Verão intenso. Diante dele
se morre, se não se abre naquele instante o clarão
em que a tua sede encontra outra sede sua igual,
ou nem isso, só um corpo, uma condição, uma ventania.

Francisco José Viegas, O puro e o impuro

Gabriela (Ella) Powel


Gregor transformou-se em barata gigante.
Eu não: fiz-me aranhiço,
tão leve que uma leve brisa o faz
oscilar no seu fio de baba lisa.
Até que, contra a lei da natureza,
creio que tenho peso negativo,
e me elevo no ar se me não prendo
ao canto mais escuro desta ilha.
Quando descer à teia derradeira Klaus Ender

não se verá no mundo alteração, ou só


talvez alguma mosca contente.
Em noites de luar, na alta esquina,
ficará a brilhar, mas sem ser vista,
a estrela que tracei como armadilha.

António Franco Alexandre, Aracne


CULTO

Reclusa, retomo sempre


e sempre reinvento
o meu nada absoluto

A partir de mim própria,


o que de mim oculto

Maria Teresa Horta, Destino


em fundo

Picasso

Rodrigo
Concierto de Aranjuez
Narciso Yepes, guitar
Orquestra Sinfónica de RTV Española
Odón Alonso
Deutsche Grammophon
Infinito pó o pormenor me perturba. O
pouco
e a falta. Ínfimo dos ínfimos.
Perda.

No mosteiro no fim do de Fiama Hasse Pais Brandão, Âmago


clive.
A descida e a subida que se
assemelham. Estas sensações
agudíssi
mas. Domingo dia das apoteoses.
A ausência consubstanciada no
infinito pó
do côrrego. O que está a
ouvir-se
na capela do coro incerto
é um grito. Nada se desprende
do folhedo das oliveiras
além das folhas. No claustro Nernd Nasner

a tranquilidade caótica onde


COM A TUA LETRA

Fala-se de amor para falar de muitas


Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo às coisas regulares e irregulares do mundo.
usamos o vocabulário preciso Ou também: eu envio o amor
que nos dá o amor. sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território. Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
Quer dizer: eu estou mais acordado, da escuridão do mundo.
não me enredo nas silvas, não me enredo, Porque tudo se escreve com a tua letra.
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos
mais acordado. Porque este amor não pára.
Klimt

la femme est l'avenir de l'homme, elle est


la couleur de son âme.

Aragon, Le Fou d'Elsa


Le poète a toujours raison
Qui détruit l'ancienne oraison
La femme est l'avenir de l'homme
L'image d'Eve et de la pomme
Face aux vieilles malédictions
Je déclare avec Aragon
Il faudra réapprendre à vivre
La femme est l'avenir de l'homme
Ensemble écrire un nouveau livre
Le poète a toujours raison
Redécouvrir tous les possibles
Qui voit plus haut que l'horizon Pour accoucher sans la souffrance
Chaque chose enfin partagée
Et le futur est son royaume Pour le contrôle des naissances
Tout dans le couple va changer
Face à notre génération Il a fallu des millénaires
D'une manière irréversible
Je déclare avec Aragon Si nous sortons du moyen âge
La femme est l'avenir de l'homme Vos siècles d'infini servage
Le poète a toujours raison
Pèsent encor lourd sur la terre
Qui voit plus haut que l'horizon
Entre l'ancien et le nouveau
Et le futur est son royaume
Votre lutte à tous les niveaux Le poète a toujours raison
Face aux autres générations
De la nôtre est indivisible Qui annonce la floraison
Je déclare avec Aragon
Dans les hommes qui font les lois D'autres amours en son royaume
La femme est l'avenir de l'homme
Si les uns chantent par ma voix Remet à l'endroit la chanson
D'autres décrètent par la bible Et déclare avec Aragon
La femme est l'avenir de l'homme
Jean Ferrat, Ferrat chante Aragon
Landscape With The Fall of Icarus the edge of the sea
concerned
with itself

sweating in the sun


that melted
the wings' wax

According to Brueghel unsignificantly


when Icarus fell off the coast
it was spring there was

a farmer was ploughing a splash quite unnoticed


his field this was
the whole pageantry Icarus drowning

of the year was


awake tingling From Collected Poems: 1939-1962,
near Volume II by William Carlos Williams
Bruegel
Müde Cansado

Ich bin müde... Estou cansado...


Mir den Bäumen führte ich Gespräche. Com as árvores entabulei conversas.
Mit den Schafen litt ich die Dürre. Com as ovelhas sofri o horror da seca.
Mit den Vögeln sang ich in Wäldern. Com os pássaros cantei nas florestas.
Ich liebe die Mädchen im Dorf. Amei as raparigas da aldeia.
Ich schaute hinauf zur Sonne. Ergui os olhos para o Sol.
Ich sah das Meer. Vi o mar.
Ich arbeitete mit dem Töpfer. Trabalhei com o oleiro.
Ich schluckte den Staub auf der Landstrasse. Engoli o pó da estrada.
Ich sah die Blütten der Melancholie auf dem Feld meines Vi as flores da melancolia no campo do meu
Vaters. pai.
Ich sah den Tod in den Augen meines Freundes. Vi a morte nos olhos do meu amigo.
Ich streckte die Hand aus nach den Seelen der Ertrunkenen. Estendi a mão para a alma dos afogados.
Ich bin müde... Estou cansado...

Thomas Bernhard, Auf der Erde und in der Hölle Thomas Bernhard, Na terra e no inferno

Trad.: José A. Palma Caetano


Rodin
Há dias em que

Há dias em que
toda a maré negra
dos medos da infância
dá à costa

Então é fechar os olhos


e deixar
que a onda alta
e nos arremesse
rebente
à praia
Exaustos
e passe
e se canse
de nos fustigar
Teresa Rita Lopes, Cicatriz
Vem aos meus sonhos Planta, em frente, a cerejeira dos
pássaros brancos,
deixa que eles pousem nos ramos e cantem
eternamente,
deixa que nas suas asas de luz eu leia o meu
nome,
antes de os relâmpagos acenderem os prados.

Vem aos meus sonhos,


vê os labirintos por onde me perco,
vê os meus países do mar,
vê, em cada barco que parte do meu coração,
as viagens que não fiz,
os amores que não tive,
Robert Burle Marx a lua cruel da minha solidão.

Vem aos meus sonhos,


faz em mim a tua casa. José Agostinho Baptista, Esta voz é quase o vento
Pedra filosofal
Eles não sabem que o sonho Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida é tela, é cor, é pincel,
tão concreta e definida base, fuste, capitel,
como outra coisa qualquer, arco em ogiva, vitral,
como esta pedra cinzenta pináculo de catedral,
em que me sento e descanso, contraponto, sinfonia,
como este ribeiro manso máscara grega, magia,
em serenos sobressaltos, que é retorta de alquimista,
como estes pinheiros altos mapa do mundo distante,
que em verde e oiro se agitam, rosa-dos-ventos, Infante,
como estas aves que gritam caravela quinhentista,
em bebedeiras de azul. que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
Eles não sabem que o sonho florete de espadachim,
é vinho, é espuma, é fermento, bastidor, passo de dança,
bichinho álacre e sedento, Colombina e Arlequim,
de focinho pontiagudo, passarola voadora,
que fossa através de tudo pára-raios, locomotiva,
num perpétuo movimento. barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,


que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos duma criança.

António Gedeão, Movimento Perpétuo


em fundo

Tchaikovsky
O Lago dos Cisnes
Orquestra Filarmónica de Berlim
Mstislav Rostropóvich
Deutsche Grammophon
Cansa sentir quando se pensa.

(Tudo isto me parece tudo.


Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo –
Cansa sentir quando se pensa. Ah, nada é isto, nada é assim!)
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar. Fernando Pessoa, Cancioneiro

Neste momento insone e triste


Em que não sei quem hei-de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.


E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

Armin [m]
Te quiero Te lo he dicho con las plantas,
leves criaturas transparentes
que se cubren de rubor repentino;

Te quiero.
Te lo he dicho con el agua,
vida luminosa que vela un fondo de sombra;
Te lo he dicho con el viento,
jugueteando como animalillo en la arena te lo he dicho con el miedo,
te lo he dicho con la alegría,
o iracundo como órgano impetuoso;
con el hastío, con las terribles palabras.

Te lo he dicho con el sol,


Pero así no me basta:
que dora desnudos cuerpos juveniles
más allá de la vida,
y sonríe en todas las cosas inocentes;
quiero decírtelo con la muerte;
más allá del amor,

Te lo he dicho con las nubes, quiero decírtelo con el olvido.

frentes melancólicas que sostienen el cielo,


tristezas fugitivas;
Luis Cernuda, Un rio, un amor * Los
Placeres Prohibidos
Markus Latzberg
Amo-te.

Disse-to com a água,


Disse-to com o vento,
Vida luminosa que vela um fundo de sombra;
Jogando com um pequeno animal na areia
Disse-to com o medo,
Ou iracundo como órgão tempestuoso;
Disse-to com a alegria,
Com o tédio, com as terríveis palavras.
Disse-to com o sol,
Que doura os juvenis corpos nus
Mas assim não me basta.
E sorri em todas as coisas inocentes,
Mais além da vida,
Quero dizer-te com a morte;
Disse-to com as nuvens,
Mais além do amor,
Rostos melancólicos que sustêm o céu,
Quero dizer-te com o esquecimento.
Tristezas fugitivas;

Disse-to com as plantas,


Luis Cernuda, Um Rio, Um Amor * Os Prazeres Proibidos
Leves criaturas transparentes
Trad.: João Emanuel Diogo
Que se cobrem de rubor repentino;
AMOR VIVO
Nem murchará do Sol à chama erguida...
Pois que podem os astros dos espaços
Contra uns débeis amores... se têm vida?

Amar! mas dum amor que tenha vida... Antero de Quental, Poesia Completa

Não sejam sempre tímidos arpejos,


Não sejam delírios e desejos
Duma doida cabeça escandecida...

Amor que viva e brilhe! luz fundida


Que penetre o meu ser - e não só beijos
Dados no ar - delírios e desejos -
Mas amor... dos amores que têm vida...

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia


Não virá dissipá-lo nos meus braços,
Como névoa da vaga fantasia...

klimt
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
CONVIDA-ME SÓ PARA JANTAR quando o meu copo estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
E não queiras depois fazer amor.
mas por favor não faças força em mim.
Convida-me só para jantar
Fala, estás-me a dar de jantar
num restaurante sossegado
estás-me a pôr recostada à almofada
numa mesa de canto
estás-me a fazer sorrir ao longe
e fala devagar
fala assim devagar
e fala devagar
devagar
eu quero comer uma sopa quente
devagar
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
Ana Goês
fala assim devagar
In 366 poemas que falam de amor
devagar
Antologia organizada por
não é preciso dizeres que sou bonita
Vasco Graça Moura
mas não me fales de economia e de política
Kate Liu
O Profeta

Pouco antes de morrer


disse ele ao povo:
Deus te dê ira,
que paciência tens de mais

Celso Emílio Ferreira, mesa de amigos


Trad.: Pedro da Silveira
Canção de viagem no rio Chikuma
Muitas vezes desci ao vale
Onde se detém o sonho do crescimento e do
declínio
E vi as ondas do rio hesitantes,
Água cheia de areia que enrola e regressa.

Ah! A velha mansão - que diz ela?


A ondulação na margem - o que responde?
Em silêncio pensa no tempo que passou,
Cem anos como se fosse ontem.

Os salgueiros do Rio Chikuma crescem


frágeis:
A Primavera frívola, a água afastando-se.
Ontem foi outra vez assim,
Sozinho vagueio entre as rochas.
Também hoje será assim,
E a esta margem prendo os meus cuidados.
Para quê tanta agitação nesta vida,
Sempre ansiosos pelo dia de amanhã?
Shimazaki Tóson. Trad.: José Alberto
Oliveira
Bocca

Boca

La bocca
che prima mise
alle mie labbra il rosa dell'aurora
ancora
in bei pensieri ne sconto il profumo. A boca
que primeiro levou
O bocca fanciullesca, boca cara, aos meus lábios a cor da aurora
che dicevi parole ardite ed eri ainda
cosi dolce a bacciare. em belos pensamentos desconto o aroma

Ó pueril boca, amada boca,


Umberto Saba, Ultime cose que dizias o que ousavas e tão doce
eras a beijar.

Umberto Saba. Trad.: Eugénio de Andrade


da net
em fundo

Igor Stravinsky
Le sacre du Printemps
Chicago Symphony Orchestra
Daniel Barenboim
AU PRINTEMPS

La froidure paresseuse
De l’hiver a fait son temps.
Voici la saison joyeuse
Du délicieux printemps.

La terre est d’herbe ornée,


L’herbe, de fleurettes, l’est,
Tout résonne des voix nettes
La feuillure retournée
De toutes races d’oiseaux,
Fait ombre dans la forêt.
Par les champs, des alouettes,
Des cygnes, dessus les eaux.
Mais oyez dans le bocage
Le flageolet du berger,
Qui agace le ramage
Jean-Antoine de Baïf (1532-1589)
Du rossignol bocager.
Poemeto Erótico

Teu corpo é tudo o que brilha


Teu corpo é tudo o que cheira
Rosa, flor de laranjeira
E flameja como à tarde os horizontes
Teu corpo, claro e perfeito
É puro como nas fontes a água clara que serpeja,
Teu corpo de maravilha
Que em cantigas se derrama, volúpia da água e da chama
Quero possui-lo no leito estreito da redondilha
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo, branco e macio
Teu corpo é tudo o que cheira.
E' como um véu de noivado.
A todo momento o vejo
Teu corpo é pomo doirado,
Teu corpo, a única ilha no oceano do meu desejo.
Rosal queimado de estio
Desfalecido em perfume
Teu corpo é a brasa do lume
Manuel Bandeira
Teu corpo é chama
Kate Liu
GÉNESE

Foi assim
Todo o mar que eu via
se precipitou logo no meu coração
Que é de sal

E os peixes cristalizaram
com os olhos mortos
para as suas manhãs refractadas

Escutando bem
ouve-se como ao pé das estátuas
música de uma fanada melancolia.

Sebastião Alba, A noite dividida


A noite enrosca-se-me na cintura, a mover-me um cerco,
a colocar-me à mercê da lua. Um trilho de água-doce
humedece a orla de uma nudez convergente com o desejo.
Perante a indiferença de toda a gente, uma mulher desceu
a montanha, prenhe de solidão. Fascinada pela noite, deixou
que lhe mutilassem as mãos, para parir sem algemas.
E doeu-lhe no peito o grito de nascer de todos os filhos,
o soluço sufocado de todas as mães. Depois, pairou no ar,
um estranho aroma de sardinheiras brancas.

Graça Pires, Reino da Lua


APENAS UM SONETO

O delicado desejo que te doura


e nos dura na pele quando anoitece
é contra a nossa vida que se tece Rugama
e é no verso que vive e se demora.

Amor que não tivémos nem nos teve


veio-nos chamar agora. De repente por que minto ao que nunca tu mentiste.
fez-se névoa a palavra do presente E enganamos assim o coração,
e luz teu corpo que toquei de leve. disfarçando de mitos o que existe.

Mas se arde na memória da canção


o corpo que me deste e me fugiste, Luís Filipe de Castro Mendes, Modos de Música
o verso é outro modo de traição
À vossa verdadeira penitente
quam bem guardastes seus pontos devidos;
os Apóstolos eram já partidos,
ela não parte, vêde o que ali sente;

E assi mereceu ver primeiramente


Deus em terra em hábitos fingidos;
tudo Amor vence: altíssimos sentidos,
a quem tal ortelão se faz presente!

Gregório a põe por üa, outros Doutores


fazem as três; após Gregório vão
despois os mais, com todos os pintores.

Aqueles direi eu, Senhor, que são -


aqueles (outra vez!) que são Amores:
dos tais suspiros, um só nunca em vão!

El Greco Francisco de Sá de Miranda, In Poesias de Sá de Miranda


Jorge Tutor

Santo Domingo de Silos


Choeurs des Moines Bénédictins
Pâques à Silos
Chant Grégorien
canti ambrosiani
En soi protégée dans sa coquille
ne veut plus rien
on rentre chez soi dormir
en soi
se blottir dans le rêve
dans son oeuf partir
on s'y met à l'abri
loin des regards aller au loin
loin des cris
aux confins de l'univers
on se retrouve seul où il n'y a plus de frontières
en tête-à-tête
se perdre
sans yeux sombrer dans l'imaginaire
dans le noir
se consoler
l'âme se tait n'avoir plus de peine
sourire
silence naître à la vie
elle n'a plus envie de chanter
renaître
plus envie de pleurer vivre le bonheur
elle cherche le sommeil
l'oubli
elle reste emmurée
Yves Brillon,
Ovo Flores da Primavera Ovo de Páscoa do Caucasus Imperial

Ovo dos Camafeus


EXPLICAÇÃO DA AUSÊNCIA

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou


Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Almada Negreiros
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer - fosse abertura -
E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria, Poesia


DEITA-TE AGORA Toca o meu rosto voltado para cima,
como se procurasse no céu as carruagens de
cedro e ouro,
nos caminhos onde me perdi.

Traz-me o cântaro das tuas fontes.


Dá-me a beber a sua água porque os meus
lábios ardem.
Tenho sede.

É Verão, como sabes.


As cigarras eternizam a sua música de pianos
rudes,
as rãs destroem a serenidade do lago.

Vincent Van Gogh Nunca te levantes; não me voltes as costas.

Deita-te agora, a meu lado, sobre o feno,


deixa que o incenso perfume os celeiro José Agostinho Baptista, Esta voz é quase o
vento
sonde adormecemos.
PANDEMOS Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela,
Como supuerta e buritânea amela
se palquitonará transcendia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana


sussúrrica donstália penicela
às tricotas relesta demiquela,
fissivirão bolíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!


lingâmicos dolins, refucarai!
Por mamivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrarias,


lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.

Frantisek Kupka
Jorge de Sena, Poesia
Vincent Van Gogh

N'oublions pas que les petites émotions sont


les grands capitaines de nos vies

et qu'à celles-là nous y obéissons sans le


savoir.

Extrait d’une Lettre à son frère Théo


A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético


Embora o teu corpo às vezes se contorça

Embora o teu corpo às vezes se contorça


Numa oscilação incerta e vaga,
Sei como é intacta e pura a tua força,
Sei como é absoluta a harmonia,
Que regressando nasce em cada vaga.

No infinito sorriso das espumas,


No chamar da maresia, no convite das
brumas,
Na exaltação de cada maré cheia,
No teu ritmo de dança e bebedeira,
O que eu procuro e encontro extasiada,
É a tua alma viva, nunca profanada.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia


Gaivota

Se uma gaivota viesse Se um português marinheiro,


trazer-me o céu de Lisboa dos sete mares andarilho,
no desenho que fizesse, fosse quem sabe o primeiro
nesse céu onde o olhar a contar-me o que inventasse,
é uma asa que não voa, se um olhar de novo brilho
esmorece e cai no mar. no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração Que perfeito coração


no meu peito bateria, no meu peito bateria,
meu amor na tua mão, meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração. perfeito o meu coração.
Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração


no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Letra: Alexandre O'Neill


Música: Alain Oulman
Canta: Amália Rodrigues
em fundo

Brahms, Um Requiem Alemão


Edith Mathis, soprano
Dietrich Fischer-Dieskau, barítono
Coro do Festival de Edimburgo
Orquestra Filarmónica de Londres
Daniel Barenboim
Amo-te

Amo-te
com pressa
de não acabar o amor.

António Osório,
O Lugar do Amor e Décima Aurora

Dali
VARIAÇÕES SOBRE "O JOGADOR DO PIÃO",I Faz rodar o pião redondo tudo em volta
Atira a primavera e recupera o verão
Terras e tempos tudo assume esse pião
que rodopia e rouba o chão à folha solta

Joga tudo no gesto ríspido de vida


Reergue o braço a prumo arrisca nessa roda
riscada entre parede e tronco a infância toda
Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés


o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és?
Voltas? rodas? regressas? rodopias? nada

Mas do breve pião levanta ao céu a enxada


e que esta vida extensa para sempre seja
- será? - tão bem coberta que nem Deus a veja

Ruy Belo, Obra Poética de Ruy Belo, vol.1


Gabi T.
Creio

Creio num engenho que falta mais fecundo


De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,


Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Rafael
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
Creio na Deusa com olhos de diamante,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Natália Correia, Sonetos Românticos
EL MAR O MAR

Antes que el sueño (o el terror) tejiera Antes que o sonho (ou o terror) tecesse
Mitologias y cosmogonias, Mitologias e cosmogonias,
Antes que el tiempo se acuñara en dias, Antes que o tempo se cunhasse em dias,
El mar, el siempre mar, ya estaba y era. O mar, o sempre mar, já estava e era.
Quién es el mar? Quién es aquel violento Quem é o mar? Quem é aquele violento
Y antiguo ser que roe los pilares E antigo ser que rói pilares
De la tierra y es uno y muchos mares Da terra e é um e muitos mares
Y abismo y resplandor y azar y viento? E abismo e esplendor e acaso e vento?
Quien lo mira lo ve por vez primera, Quem para ele olhar vê-o pela primeira vez,
Siempre. Com el asombro que las cosas Sempre. Com o assombro que as coisas
Elementales dejan, las hermosas Elementares deixam, as belas
Tardes, la luna, el fuego de una hoguera. Tardes, a lua, o fogo de uma fogueira.
Quién es el mar, quién soy? Lo sabre el dia Quem é o mar, quem sou? Sabê-lo-ei no dia
Ulterior que sucede a la agonia. Que se segue à agonia.

Jorge Luís Borges, El outro, el mismo Jorge Luís Borges. Trad.: José Agostinho Baptista
in O Mar na Poesia da América Latina
Tristesse

Dieu parle, il faut qu'on lui réponde.


Le seul bien qui me reste au monde
Est d'avoir quelquefois pleuré.

J'ai perdu ma force et ma vie, Musset,


Et mes amis et ma gaieté;
J'ai perdu jusqu'à la fierté
Qui faisait croire à mon génie.

Quand j'ai connu la Vérité,


J'ai cru que c'était une amie;
Quand je l'ai comprise et sentie,
J'en étais déjà dégoûté.

Et pourtant elle est éternelle,


Et ceux qui se sont passés d'elle
Ici-bas ont tout ignoré.

Günter London
CANCELA

Um dia certos ombros nela assomam,


noutros certos olhos dela partem
e olho a sua sombra com os pássaros
que vão para mais longe e nos entregam
os primeiros dias em que desce a noite
mais cedo, depois vem o inverno, o acolhimento,
a repousante canção dos cães a ladrar.
A cancela tem a marca dos meus dedos,
tantas vezes a abriram, tantas a fecharam,
a própria resina fareja na distância
cada passo meu que me aproxima
cada passo de alguém que não me alcança.
No meio da cerca está uma cancela Guarda-me na casa onde outrora um outro
também ela fechada. O ar cingiu-a já não traz ao teu corpo esse prazer
com um donaire agreste de abandono. que me forças, no vaivém, a abrir.
E a cera e a madeira nela ficam

folha de zimbro e maré vagante.


Joaquim Manuel Magalhães, A poeira levada pelo vento
Lágrima

Bate-me o luar no rosto; e o meu olhar


Em lágrima saudosa se condensa.
Vejo-a diante de mim como suspensa A comovida lágrima crepita...
Na sombra do ar. Relâmpago de dor. Mas nada vejo!
E nela está presente o meu desejo
Em seu líquido seio de esplendor E a minha vida, frágil e infinita.
Tua imagem começa a alvorecer,
Pois toma corpo vivo no meu ser E a lágrima cintila, num adeus...
Quando a beija, sorrindo, a minha dor. E, desprendida dos meus olhos, ei-la,
Já distante, no espaço; é nova estrela
Ébria do teu espírito sagrado, Subindo aos céus.
A radiosa lágrima estremece,
Enquanto minha face empalidece
E o luar e a noite cismam ao meu lado. Teixeira de Pascoaes, Elegias
Thomas Grabs
em fundo: a música do barroco

Evaristo Baschenis
Fermoso Tejo meu, quão diferente

Mas lá virá a fresca Primavera:


Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Eu não sei se serei quem de antes era.

Fermoso Tejo meu, quão diferente


Francisco Rodrigues Lobo, Poesias
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,


Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!
Virava todo o seu sentir para o mar

... a tempestade sacudia o granito


da sua imobilidade surgiam estes sinais transparentes
Virava todo o seu sentir para o mar
estes animais cuja pelagem de ouro a noite corroeu
quando no medo dos míticos promontórios
se rasgou a oceânica visão... a ânsia de partir... e os passos alucinados pelas lajes do porto
ressoavam no medo... medo que o mar o acorde

remotas eram as constelações que consultara e descubra que não existe mar nenhum...

os rostos traziam a brancura queimada das velas...


... eram palavras segredadas lendas de feras por fim atacaram-nos as febres

que os dedos e a matemática já tinham assinalado nos mapas as febres da alba com perfume a violeta

a vida da selva a flora mole dos pântanos as febres que iluminam os sentidos

os costumes tribais dos arquipélagos e alimentam o surdo canto dos loucos e dos búzios...

a prata das planícies o mistério de caudalosos rios...

Al Berto, Salsugem
Maria José Camões
O AR OS TECTOS
opressas
porque estão a erguer
casas de telha vã e pastoreiam
só animais que restam impolutos
das ribeiras cheias
de temporais e frutos
que nas águas tristes se despenham.

Como repetido é sempre o inverno,


com a chacina de animais,
com os ventos iguais que nos descoram,
as cornijas nas ruas devorando
os temporais
e nós, sem profissões libertas, também
Esti
a erguer os corpos
Aqui o inverno mata as profissões que têm acesso ao ar, opressos pelos tectos.
a dos que andam por fora

por ruas e por roupas, com as vias da respiração Fiama Hasse Pais Brandão, (Este) Rosto
Ledo o meu amigo foi caçar no monte

Logo sossegaram as águas suaves.


Vindo ele do monte, cantaram as aves.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...
Ledo o meu amigo foi caçar no monte,
Disseram-me as aves que o esperasse na fonte.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Natália Correia, Cantigas de Amigo,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...
O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, II

Que o esperasse na fonte disseram-me as aves.


A brisa movia as águas suaves.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...

A brisa movia as águas na fonte,


Logo sossegaram vindo ele do monte.
Jovial o vento levou-me o vestido,
Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...

H.D.R.
CANÇÃO DE AMOR Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,
porque nada eu direi sem o teu nome.
Porque nada existe além da tua vida,
da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te meu amor,


Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
para além da morte, para além de tudo.
faria amor, assim, com as palavras.
Eu cantaria mesmo que tu não existisses
porque haveria de doer-me a tua ausência.
Joaquim Pessoa, Canções de Ex-cravo e Malviver

Por isso canto. Alegre ou triste,canto.


Como se, cantando, tocasse a tua boca,
ainda antes da tua presença.
Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,


ó minha amiga, doce companheira.
Eu festejo o teu corpo como um rio,
onde, exausto, chegarei ao mar.

Jim Dine
Esta é a minha carta ao Mundo

Que nunca Me escreveu –


As Notícias simples que a Natureza contou –
This is my letter to the World
Com branda Majestade
A sua Mensagem está destinada

This is my letter to the World A Mãos que não consigo ver –


Pelo Seu amor – Afáveis – camponeses –
That never wrote to Me –
Julguem-me brandamente – a Mim
The simple News that Nature told –
With tender Majesty
Emily Dickinson – Trad.: Cecília Rego Pinheiro

Her Message is committed


Esta é a minha carta ao Mundo
To Hands I cannot see – Ao Mundo escrevo esta carta,
For love of Her – Sweet – countrymen – Que nunca Me escreveu – A quem nunca me escreveu –
As simples Notícias que a Natureza contou – As simples Novas que a Natura conta –
Judge tenderly – of Me
Com a sua terna Majestade Com suave Majestade.

Emily Dickinson
A sua Mensagem é entregue A Mensagem é confiada
A Mãos que não posso ver – A Mãos que não posso ver –
Pelo Seu amor – Doces – concidadãos – Só por amor da Natureza – irmãos –
Fazei de Mim – um terno juízo Julgai-me com suavidade.

Emily Dickinson – Trad.: Nuno Júdice Emily Dickinson – Trad.: Jorge de Sena
A PREGUIÇA

Este

lento

talento

de vazarmos tristeza.
Rainer Müller

José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética


COM O ESPÍRITO DA CASA

Acabei hoje o sabonete cujo uso iniciaste aquando


o teu último banho cá em casa. Ficaram coisas que
te pertencem e que não sei se deva guardar,
a saber: um candeeiro, um desenho, uma fotografia.
Outras coisas ficaram
alguns discos e já não sei que livro. Não ferem
tanto. Há ainda a memória da pele, o amarelo dos
olhos e algumas expressões do teu português falado.
Mas estas últimas coisas já se confundem com o
espírito da casa, quero dizer-te com a poeira da
casa.

João Miguel Fernandes Jorge,


A Jornada de Cristóvão de Távora. Primeira Parte
Mireille Turcot
Eu

Sombra de névoa ténue e esvaecida,


E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...


Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,


Alguém que veio ao mundo pra me ver
Eu sou a que no mundo anda perdida, E que nunca na vida me encontrou!
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida... Florbela Espanca, Livro de Mágoas
Ignoto Deo

Desisti de Te achar no que quer que seja,


De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
- Tu é que não desistirás de mim!

José Régio, Biografia


Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome


Do teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano


Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,
ARDIS

A incompreendida figura do amor


a céu descoberto sem que se exprima
rodeamo-nos de vinganças, medidas, ardis
e enchemos os livros da ardente ausência
de nós próprios

Ao entardecer corremos
ao pontão sobre o mar
e a vida só se parece
com alguma coisa que sabemos

José Tolentino de Mendonça,


in 366 poemas que falam de amor
uma antologia organizada por Norbert Piechula
Vasco Graça Moura
GUERNICA e limpo e inocente,
por uma árvore,
uma só árvore, di-lo-ei:
Guernica!

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro


Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,
pela luz
onde me deito,
di-lo-ei pelo ódio, pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte,
pelo mar
azul,
azul-cantábrico, azul-bilbau,
quando amanhece,
Picasso
di-lo-ei pelo sangue
violado
ABRIL DE ABRIL

Abril de vinho e sonho em nossas taças


era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril Abril tão bravo


Era um Abril de amigo Abril de trigo Abril de boca a abrir-se Abril palavra
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus esse Abril em que Abril se libertava.
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Era um Abril comigo Abril contigo Abril de mão na mão e sem fantasmas
ainda só ardor e sem ardil. esse Abril em que Abril floriu nas armas.
Abril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça Abril de massas


era um Abril na rua Abril a rodos
Manuel Alegre, 30 Anos de Poesia
Abril de sol que nasce para todos.
Maria Keil
Liberté

Sur mes cahiers d'écolier Jécriss ton nom

Sur mon pupitre et les arbres Sur les merveilles des nuits

Sur le sable sur la neige Sur le pain blanc de journées

J'écute ton nom Sur les saisons fiancées


J'écris ton nom

Sur toutes les pages lues


Sur toutes les pages blanches Sur tous mes chiffons d'azur

Pierre sang papier ou cendre Sur l'étang soleil moisi

J'écris ton nom Sur le lac lune vivante


J'écris ton nom

Sur les images dorées


Sur les armes des guerriers Sur le champs sur l'horizon

Sur la couronne de rois Sur les ailes des oiseaux

J'écris ton nom Et sur le moulin des ombres


J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert


Sur les nids sur les genêts Paul Eluard,

Sur l'écho de mon enfance


Viagem Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
Aparelhei o barco da ilusão O que importa é partir, não é chegar.
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar... Miguel Torga, Antologia Poética
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela


E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
ESPERANÇA

É como se alguém me pisasse


e eu me risse
- uma alegria toda cor e luz.

É como se alguém me batesse


e eu cantasse
- um canto de amizade e paz. este vício secreto e interior
esta badalada do relógio da alma

É como se alguém me cuspisse este pulsar no coração do mundo

e eu passasse indiferente esta consciência duma ferida em chaga

- um caminho claro como o dia. este sentir a dor duma mulher pobre e faminta.

É como se alguém me apunhalasse Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome

e eu o abraçasse Ó silencioso grito dos camponeses sem terra!

- um fogo de fraternidade humana. Ó vento da certeza que os carrascos temem!

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome


Vasco Cabral, A luta é a minha primavera
Namoro
Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
Mandei-lhe uma carta em papel perfumado «Por ti sofre o meu coração».
e com letra bonita eu disse ela tinha Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
um sorriso luminoso tão quente e gaiato E ela o canto do NÃO dobrou.
como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias
floridas Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
espalhando diamantes na fímbria do mar pedindo rogando de joelhos no chão
e dando calor ao sumo das mangas. pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
Sua pele macia - era sumaúma... me desse a ventura do seu namoro...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas E ela disse que não.
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e doce - como o maboque... Levei à avó Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
Seus seios, laranjas - laranjas do Lage para que fizese um feitiço forte e seguro
seus dentes... - marfim... que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.
Mandei-lhe essa carta Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,
e ela disse que não. ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão, E a malta gritou: «Aí, Benjamim!»
ficámos num banco do largo da Estátua, Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
afaguei-lhe as mãos... pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.
falei-lhe de amor... e ela disse que não.
Viriato da Cruz
Andei barbado, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim Chichorro
«-Não viu... (ai, não viu...? não viu Benjamim?»
E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair
levaram-me ao baile do sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro
Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela


e num passo maluco voámos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
PRELÚDIO

Tem voz de noite, descendo,


de mansinho, pela estrada...

Pela estrada desce a noite Que é feito desses meninos


Mãe-Negra, desce com ela... que gostava de embalar?...

Nem buganvílias vermelhas Que é feito desses meninos


nem vestidinhos de folhos, que ela ajudou a criar?...
nem brincadeiras de guisos, Quem ouve agora as histórias
nas suas mãos apertadas. que costumava contar?...
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas. Mãe-Negra não sabe nada...

Mãe-Negra tem voz de vento, Mas ai de quem sabe tudo,


voz de silêncio batendo como eu sei tudo
nas folhas do cajueiro... Mãe-Negra!...
Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar...

Muitos partiram p'ra longe


quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.

É tua a voz deste vento,


desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada...

Judee Plourde
Alda Lara, Poemas
CANTO DE NASCIMENTO

a marcar os intervalos de tempo

Aceso está o fogo vinte cabaças de leite

prontas as mãos que o vento trabalha manteiga

o dia parou a sua lenta marcha a lua pousada na pedra de afiar

de mergulhar na noite
Uma mulher oferece à noite

As mãos criam na água o silêncio aberto

uma pele nova de um grito


sem som nem gesto

panos brancos apenas o silêncio aberto assim ao grito

uma panela a ferver solto ao intervalo das lágrimas

mais a faca de cortar


As velhas desfiam uma lenta memória

Uma dor fina que acende a noite de palavras


depois aquecem as mãos de semear fogueiras
Uma mulher arde
no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores.
Esta mulher arde
no meio da noite perdida
colhendo o rio

enquanto as crianças dormem


seus pequenos sonhos de leite.

Paula Tavares, O Lago da Lua

Lívio de Morais
Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Danielle Jaquillard Como chora um homem!

José Craveirinha, Antologia de poetas


africanos
Regressámos ao anonimato

Regressámos ao anonimato
mais leves.
Mas é minha a muda inquietação
esse temor
da armadilha do cinismo.

A noite contempla-nos
despojados de sonhos
e, tu disseste
- tão próximas as estrelas –
tão longo o caminho para chegar a elas.

Maria Alexandra Dáskalos, Do Tempo Suspenso

Clearlette
Canção de embalar
Apaga-se a luz.
Maninho acorda depois
por causa da voz falando baixinho
segredando
no meio escuro...

Não fala de mamãe...


Ti Lobo talvez...
Mas nhô Chico Polícia há dias contava:
"Ti Lobo não tem..."

Essa voz nocturna segredando...


O homem branco talvez
que lá vai de vez em quando

"Dorme Maninho
pra não vir Ti Lobo..."
"Dorme Maninho
pra não vir Ti Lobo..."
Volta-se e torna a dormir...

Maninho
Amanhã cedo vai correr o naviozinho de lata
volta-se e dorme
nas poças da Praia Negra...
no colchão de saco vazio
sobre a terra batida.
Ao lado no chão dormindo também
o naviozinho de lata
Jorge Barbosa
que fez com suas mãos...
HOME AMB BLUES (A LA MANERA D'ELLINGTON, BROWN El blues
AND BEIGE) El blues no és res
El blues no és res més que un cant
El blues no és res més que un cant per cridar-lo en les meves
solitàries
nits
El blues és una estrella que brilla cada nit per no apagar-se
després
fins a l'altra nit
El blues és una estrella que brilla
El blues és una estrella
El blues és
El blues
El blues és un prec que canten els negres i uns blancs per
demanar que no sigui tan
negra la nit
El blues és un prec que canten els negres i uns blancs per
demanar
El blues és un prec que canten els homes
El blues és un prec
Eric Vançon El blues és
EL BLUES
El blues
El blues serveix
El blues serveix per cantar les solitàries nits
El blues serveix per cantar les meves solitàries nits Joaquim Horta, Home que espera
Meditação

Tudo imaterial na praia rasa


Cheia de sol, ao fim da tarde,
Proa ao vento quebrada
A vaga entre rochedos, se ilumina.

É tudo imaterial, tudo neblina


Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua,
E voo de ave deslisa
Ao longe linha pura.
Tudo imaterial na praia rasa.

Aqui ninguém me vê: amo a ternura.

Ruy Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo


O Ovo de Galinha

O ovo revela o acabamento,


a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

E que se encontra também noutras


que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra


de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entanto, o ovo, e apesar


da pura forma concluída,
não se situa no final: Sue Choppers-Wife
está no ponto de partida.

João Cabral de Melo Neto, Terceira feira


Quero um cavalo

Deixem que eu parta, agora, já,


Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Quero um cavalo de várias cores, Mas como posso partir sozinho
Quero-o depressa, que vou partir, Sem um cavalo de várias cores?
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir. Reinaldo Ferreira, Poemas

Quero uma sela feita de restos


Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva – nimbos e cerros –
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:


Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Franz Marc
Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,


assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,


tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,


tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles, Poesia

Picasso
Libertà Nos gusta caminar bajo las estrellas.
Se dicen cosas estrañas sobre los Gitanos.
Se dice que leen el futuro en las estrellas
y que tienen la poción del amor.
Lo gente no cree en lo que no se sabe explicar.
Nosostros, en cambio, no tratamos de explicarnos las cosas
en las que creemos.
La nuestra es una vida simple, primitiva.
Nos basta tener por techo el cielo,
fuego para calentarnos
y nuestras canciones cuando estamos tristes.

Nosostros los Gitanos tenemos una sola religión: la libertad.


Spatzo (Vittorio Mayer Pasquale)
En cambio de ella renunciamos a la riqueza, al poder, a la ciencia y a la
gloria.
Vivimos cada día como si fuera el último.
Cuando se muere, se deja todo: una miserable carroza com un gran
imperio.
Y creemos que en ése momento sea mucho mejor haber sido Gitanos que
reyes.
No pensamos en la muerte. No la tememos, eso es.
Nuestro secreto es gozar cada día de las pequeñas cosas
que la vida nos ofrece y que lo demás no saben apreciar:
una mañana de sol, un baño en la vertiente,
la mirada de alguien que nos ama.
Es difícil entender estas cosas, lo sé. Gitanos se nace.
Tomasz Tomaszewski
Agrada-nos caminhar sob as estrelas.
Contam-se estranhas histórias sobre ciganos.
Diz-se que lemos nas estrelas e que possuímos o
filtro do amor.
As pessoas não acreditam nas coisas que não sabem
explicar.
Nós, pelo contrário, não procuramos explicar as coisas em
que acreditamos.
A nossa vida é uma vida simples, primitiva,
basta-nos por tecto um céu,
um fogo para nos aquecer
e as nossas canções quando estamos tristes.

Nós, ciganos, temos uma só religião: a da liberdade.


Em troca desta Pasqualle Spatzo, Raiz e Utopia
renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória.
Vivemos cada dia como se fosse o último. Quando se morre, deixa-se tudo:
um miserável carroção como um grande império.
E nós cremos que nesse momento é muito melhor ser cigano do que rei.
Nós não pensamos na morte. Não a tememos - eis tudo.
O nosso segredo está
no gozar em cada dia as pequenas coisas que a vida nos oferece e que os
outros
homens não sabem apreciar:
uma manhã de sol, um banho na torrente, o contemplar alguém que se ama.
É difícil compreender estas coisas, eu sei. Nasce-se cigano.
Preia-mar

As ondas quebram na areia,


dizem segredos perdidos...
Saudades da maré-cheia,
de barcos e tempos idos...

Segredos tristes, lamentos,


que o mar não pôde calar...
E foi dizê-los aos ventos,
aos pescadores, ao luar...

As ondas dizem na areia


saudades de tempos idos...
Segredos da maré-cheia,
de barcos tristes
- perdidos.

Daniel Filipe, Missiva


COTOVIA
- Voei ao Recife, no Cais
Pousei na rua da Aurora.

- Aurora da minha vida,


Que os anos não trazem mais!
Alô, cotovia,
Aonde voaste, - Os anos não, nem os dias,
Por onde andaste, que isso cabe às cotovias.
Que tantas saudades me deixaste? Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
- Andei onde deu o vento. Se enche com uma gota de água.
Onde foi meu pensamento. Mas sei torcer o destino,
Em sítios, que nunca viste, Sei no espaço de um segundo
De um país que não existe… Limpar o pesar mais fundo.
Voltei, te trouxe alegria. Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
- Muito contas, cotovia! Só a asa da cotovia,
E que outras terras distantes - Do mais remoto perempto
Visitaste? Dize ao triste. Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
- Líbia ardente, Cítia fria, Trouxe a perdida alegria.
Europa, França, Baía…
- E esqueceste Pernambuco,
Distraída? Manuel Bandeira
Lulu Lagland
Azul

Adivinhei-te
através da verdura azul,
colhendo as flores
que iam abrir na próxima primavera.

Eu era o andarilho sem cansaço,


os bolsos cheios de tesoiros desprezados:
os seixos
que as águas modelaram durante milhões de anos,
as asas
que as borboletas entregaram aos ventos,
as sementes
que entram pelas janelas dos comboios e querem
dialogar connosco…

(Um raio de sol


acariciava a tua face Andrea
através da verdura azul!...)

Saúl Dias, Obra Poética


Dos hombres caminaron por la luna

Dos hombres caminaron por la luna,


Otros después. ¿Qué puede la palabra,
Qué puede lo que el arte sueña y labra,
Ante su real y casi irreal fortuna?
Ebrios de horror divino y de aventura,
Esos hijos de Whitman han pisado
El páramo lunar, el inviolado
Orbe que, antes de Adán, pasa y perdura.
El amor de Endimión en su montaña,
El hipogrifo, la curiosa esfera
De Wells, que en mi recuerdo es verdadera,
Se confirman. De todos es la hazaña.
No hay en la tierra un hombre que no sea
Hoy más valiente y más feliz. El día
Inmemorial se exalta de energía
Por la sola virtud de la Odisea
De esos amigos mágicos. La luna,
Que el amor secular busca en el cielo
Con triste rostro y no saciado anhelo,
Será su monumento, eterna y una.

Jorge Luis Borges, El oro de los Tigres


Chagall
Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,


mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes


Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha


camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti


é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

Vieira da Silva
Soror Mariana – Beja

Cortaram os trigos. Agora


A minha solidão vê-se melhor.

Sophia de Mello Breyner Andresen,


O nome das Coisas
Ó sino da minha aldeia
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,


Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,


Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,


Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Fernando Pessoa, Cancioneiro


Les mots que nous employons

Les mots que nous employons


on me les a passés
et je les emploie,
mais pas pour me faire comprendre,
pas pour achever de m'en vider,
Alors pourquoi?
C'est qu'en réalité je ne les emploie pas
En réalité je ne fais pas autre chose
que de me taire
et de cogner.

Antonin Artaud, Suppôts et supplications


Mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.


Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.


Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas


as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade.


Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre
MAR BRAVO Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas.
Em longos uivos
Mar que ouvi sempre cantar murmúrios
Multiplicados pelas quebradas.
Na doce queixa das elegias,
Como se fosses, nas tardes frias
Mar que arremetes, mar que não cansas,
De tons purpúreos,
Mar de blasfémias e de vinganças,
A voz das minhas melancolias.
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
Com que delícia neste infortúnio,
De corrompidas desesperanças!...
Com que selvagem, profundo gozo,
Hoje te vejo bater raivoso,
Na maré-cheia de novilúnio,
Manuel Bandeira, Antologia Poética
Mar rumoroso!

Com que amargura mordes a areia,


Cuspindo a baba da acre salsugem,
No torvelinho de ondas que rugem
Na maré-cheia,
Mar de sargaços e de amarugem!

As minhas cóleras homicidas,


Meus velhos ódios de iconoclasta,
Quedam-se absortos diante da vasta,
Pérfida vaga que tudo arrasta,
Mar que intimidas!
Femme noire

lyrique ma bouche
Savane aux horizons purs, savane qui frémis aux caresses
ferventes du Vent d'Est
Tamtam sculpté, tamtam tendu qui gronde sous les doigts du
vainqueur
Ta voix grave de contralto est le chant spirituel de l'Aimée
Femme noire, femme obscure
Huile que ne ride nul souffle, huile calme aux flancs de
l'athlète, aux flancs des princes du Mali
Gazelle aux attaches célestes, les perles sont étoiles sur la
nuit de ta peau.
Délices des jeux de l'Esprit, les reflets de l'or ronge ta peau
qui se moire
A l'ombre de ta chevelure, s'éclaire mon angoisse aux soleils
prochains de tes yeux.
Femme nue, femme noire Femme nue, femme noire
Vétue de ta couleur qui est vie, de ta forme qui est beauté Je chante ta beauté qui passe, forme que je fixe dans
J'ai grandi à ton ombre; la douceur de tes mains bandait mes yeux l'Eternel
Et voilà qu'au coeur de l'Eté et de Midi, Avant que le destin jaloux ne te réduise en cendres pour
Je te découvre, Terre promise, du haut d'un haut col calciné nourrir les racines de la vie.
Et ta beauté me foudroie en plein coeur, comme l'éclair d'un aigle
Femme nue, femme obscure
Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases du vin noir, bouche qui fais Léopold Sédar Senghor, Chants d'ombre
Tam-tam escultural, tenso tambor que murmura sob os dedos
do vencedor
Tua voz grave de contralto é o canto espiritual da Amada.
Fêmea nua, fêmea negra,
Lençol de óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo nos
flancos do atleta,
nos flancos dos príncipes do Mali.
Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobre
a noite da tua pele.
Delícia do espírito, as cintilações de ouro sobre tua pele que
ondula
à sombra de tua cabeleira. Dissipa-se minha angústia,
ante o sol dos teus olhos.
Mulher nua, fêmea negra,
Mulher nua, mulher negra Eu te canto a beleza passageira para fixá-la eternamente,
Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza! antes que o zelo do destino te reduza a cinzas para
Cresci à tua sombra; a doçura de tuas mãos acariciou os meus olhos. alimentar as raízes da vida.
E eis que, no auge do verão, em pleno Sul, eu te descubro,
Terra prometida, do cimo de alto desfiladeiro calcinado,
E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe certeiro
de uma águia. Léopold Sédar Senghor. Trad.: Guilherme de Souza Castro)
Fêmea nua, fêmea escura.
Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro,
boca que faz lírica a minha boca
savana de horizontes puros, savana que freme com
as carícias ardentes do vento Leste.
O curso deste rio

O curso deste rio


é feito de pensar
o silêncio mais frio
que há por dentro de amar:

onde nada nos chega,


nem a voz atravessa
esta ausente incerteza
que nos trai e dispersa;

onde nós não vivemos


mas brilha no olhar
o que não nos dissémos
Erica Melis
nem pudémos calar.

Luís Filipe Castro Mendes, Modos de Música


SOMBRAS
As pessoas – tu sabes – as pessoas são feitas
de vento
A meio desta vida continua a ser e deixam-se arrastar pela mais bela
difícil, tão difícil respiração das sombras,
atravessar o medo, olhar de frente pla morte que repete os mesmos gestos
a cegueira dos rostos debitando quando o crepúsculo fica a sós connosco
palavras destinadas a morrer e a noite se redime com uma estrela
no lume impaciente de outras bocas a prometer salvar-nos.
anunciando o mel ou o vinho ou
o fel. A meio desta vida os versos abrem
paisagens virtuais onde se perdem
Calmamente sentado num sofá, as intenções que alguma vez tivemos,
começas a entender, de vez em quando o recorte obscuro de perfis
os condenados a prisão perpétua desenhados a fogo há muitos anos
entre as quatro paredes do espírito numa alma forrada de espelhos
e um esquife negro, onde vão desfilando mas sempre tão vazia, sem abrigo
imagens, só imagens para corpo nenhum.
de canal em canal, sintonizadas
com toda a angústia e estupidez do mundo.
Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa
Madrigal Sem alívio meu mal, eu sem alento,
A sorte sem piedade,
Alegre a emulação, triste a vontade,
O gosto fenecido,
Eu infelice em fim, Lauro esquecido.
Quem viu mais dura sorte?
Tantos males, amor, para uma morte?
Não basta contra a vida
Esta ausência cruel, esta partida?
Não basta tanta dor? tanto receio?
Tanto cuidado, ai triste, e tanto enleio?
Não basta estar ausente,
Para perder a vida infelizmente?
Se não também cruel neste conflito
Me negas o socorro de um escrito?
Porque esta dor que a alma me penetra
Não ache o maior bem na menor letra,
Ai bem fazes amor, tira-me tudo!
Giovanni Lanfranco Não haja alívio não, não haja escudo
Que a vida me defenda!
Tudo me falte, em fim, tudo me ofenda,
Em fim fenece o dia, Tudo me tire a vida
Em fim chega da noite o triste espanto Pois eu a não perdi na despedida.
E não chega desta alma o doce encanto;
Em fim fica triunfante a tirania, Violante do Céu, Rimas Várias
Vencido o sofrimento,
Sexta-feira Tranquila Sexta-feira

abandonada Sexta-feira
Sexta-feira cada vez mais triste como ruelas antigas
Sexta-feira de indolentes pensamentos indispostos
Sexta-feira de sinuosos e nefastos espreguiçamentos
Sexta-feira de nenhuma expectativa
Sexta-feira de rendição.

Casa vazia
casa solitária
casa trancada contra a investida da juventude
casa da escuridão e ânsias de sol
casa de solidão, augúrio e indecisão
casa de cortinas, livros, guarda-louça, fotografias.

Ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena


como uma corrente profunda
através do coração dessas silenciosas, abandonadas Sextas-
feiras
através do coração dessas tristes casas vazias
ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena.
André Wohlgemuth

Forough Farrokhzad. Versão de Vasco Gato


ESTAR COMIGO

ESTAR COMIGO
é o meu nativo
modo de estar

Desertam as sombras
Entre os objectos
e o chão límpido
sua ausência é
a ficção do dia.
Ralf Greiner

Sebastião Alba, A Noite Dividida


Quem não sai da sua casa

Quem não sai da sua casa


Não atravessa povos, montes, vales,
Não vê as cenas bíblicas das eiras,
Nem mulheres de infusa, equilibradas,
Nem carros lentos, chiadores,
Nem homens suados,
Quem vive como o insecto cativo no seu redondel,
Cria mil olhos para nada...

Irene Lisboa

Rene Lauterbach
AMOR SILÊNCIO AMARGO A ROÇAR-ME A MORTE

Distância cumulada remanso de uma espera


ponte da aventura do dois à unidade
amor brilho raiando a chave do desejo
minuto adormecido ao pé da eternidade.

Amor tempo suspenso, ó lânguido receio,


no pranto do meu canto és a presença forte
estame estremecido dissimulado anseio
amor milagre gesto incandescente porte.

Amor olhos perdidos a riscar desenhos


em largo movimento o espaço circular
amor segundo breve, lanceta, tempo eterno
no rápido castigo da lua a gotejar.

Amor silêncio amargo a roçar-me a morte


Salette Tavares
grito partido do vidro sobre o peito
In 366 poemas que falam de amor,
ilha deserta no meio das capitais do norte
uma antologia organizada por
grilhetas ajustadas no rio em que me deito.
Vasco Graça Moura
A TRAIÇÃO

quando do cavalo de tróia saiu outro


cavalo de tróia e deste um outro
e destrouto um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro de si
os quatro cavalões do vosso apocalipse

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

Klaus Oppermann
II – 1 de Janeiro de 2005 – 31 de Maio de 2005

eli miguel

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