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NATAL NA

CENTRAL DO
BRASIL
Maria José Resende

PERSONAGENS

DI: Poderá ser o(a) dirigente da peça - MICHELE

MARIA: Mulher nordestina, ainda jovem.-CLAUDINHA

JOSÉ: Marido de Maria. Ambos poderão falar com sotaque.-HERBERT

DA PAZ: Mendigo morador da Central do Brasil -POLIVIO

BETO: Menor de rua costuma cheirar cola.-RAFAEL

LILI: Prostituta, amiga dos demais companheiros. -MARGARET

GEGÊ: Homossexual aparenta grande depressão.-RAFAEL NEVES

ELIS: Jornalista, cheia de ideais, mas submissa à direção da TV onde trabalha. -DANI

HELENA: Moça crente, ansiosa por mudança na Igreja do Senhor Jesus.ANA LUCIA

CELIA: Prima de Helena. Tem medo das mudanças -CAMILA

BIA: Assistente social. Sonha com o socialismo que mude a trajetória triste de seu povo.
-JANAINA

CENÁRIO

Quando encenamos a peça em nossa igreja usamos um grande painel de tecido onde estava
pintada a torre e o relógio da Central do Brasil O relógio marcava meia-noite, ou a hora final
da Igreja do Senhor.”Filhinhos, é a última hora..." Em plano mais baixo do painel, estavam
desenhadas as silhuetas dos personagens da peça.

Na primeira cena, de Maria e José, o painel estava no chão, bem dobrado, preso às argolas e
fios que o levantariam quando se mostrasse depois a cena na estação de trens

FIGURINOS

Roupas características dos personagens O mendigo Da Paz usará calças largas, presas
quase à altura do estômago com barbantes ou tiras de pano. Poderá usar um velho chapéu
como os usados antigamente por policiais ou guardas ferroviários (quepe).

Da Paz terá uma bandeira suja, velha, rasgada, que na cena final será substituída por outra
branca, na qual se poderá escrever: "O Senhor é a minha bandeira”.

Na cena final, todos colocarão roupas iguais, que poderão ser túnicas brancas ou coloridas.
Uma outra idéia é usar túnicas largas, abertas dos lados, feitos com retalhos costurados de
maneira bem criativa. Estas roupas ,serão colocadas em cena sobre as outras que os
personagens, já estarão usando.

ACESSÓRIOS

Um travesseiro preso por tiras que se amarrarão para fazer a barriga de Maria. Um caixote
desses em que ficam legumes e verduras ou outra Maria deixará seu bebê depois de nascido.
Na hora do parto, os demais personagens farão a paredinha, enquanto Helena, que ajudará
Maria, tirará o travesseiro de debaixo da blusa comprida de Maria e o colocará escondido
dentro do caixote. Uma manta branca, muito bonita, estará dentro do caixote e substituirá o
travesseiro. A manta será dobrada de maneira criativa como se tivesse um bebê imaginário.
Enfim todos poderão imaginar a criança com seus próprios olhos.

ROTEIRO MUSICAL

O grupo escolherá alguém que cuide da trilha sonora bem adequada. Os personagens
poderão cantar juntos, quando necessário. A cena inicial poderá ter ao fundo uma cantoria
nordestina em tom de lamento.

EM TEMPO

Não deixamos claro na peça ,se os personagens se convertem a Jesus Cristo. Isto porque o
texto é, sobretudo, um desafio à Igreja do Senhor. Nosso objetivo é levar os crentes à reflexão
de que todos os personagens continuam lá fora, sem solução para as suas vidas. Esta
solução depende de cada um de nós Da nossa disposição de levar lhes o Evangelho que tira
o pecador da lama e o conduz à vida eterna

NARRAÇÃO - O que dizem os jornais da TV neste Natal? Os nossos irmãos brasileiros têm
moradia, escolas, assistência à saúde... cidadania? Se é assim, já podemos cruzar os braços
e tão-somente comemorar o Natal. Caso contrário, há muito o que fazer, e imediatamente!
"Filhinhos, é a última hora", a Palavra de Deus nos adverte. Muitos morrem sem pão e sem a
salvação de suas vidas. Desconhecem o pão que desceu dos céus, quando um dia o Menino
Jesus nasceu na pobre estrebaria em Belém...
(Ao começar a peça, o cenário está vazio. Ao fundo, uma triste cantoria nordestina.)

JOSÉ - (Entra) Maria! Maria! Ô mulé de Deus, onde tu está?...

MARIA - (Gestante, entra com a mão do lado da cintura como se estivesse com dor) Mas
home de Deus, que gritaria é essa? Eu tava arrumando as trouxa, ô xente!

JOSÉ - Que é isso? Tá com dor?... Venha, sente aqui... (reflete) quer dizer, desculpa, nem tem
onde sentá...

MARIA - Se avexe não, José. já vai passá, vai passá...(risinho). É que... o menino não
demora...

JOSÉ - (Feliz) Sim, vai sê outro menino. Se Deus nosso Sinhô quisé... E ele qué! Pra ficar no
lugar de Severininho...

MARIA - (BC, triste) Séverininho... Parece que tô vendo ele... Tão alegrinho... Mas depois...
conheceu aqueles outros e começou a cheirar cola... Até inventarem aquele pavor de injetá
lama nas veias. Lama nas veias! Meu Deus...

JOSÉ - (Abraça Maria.) Esquece, Maria, lembra disso, não! Só serve pra doer o coração.

MARIA - Lama nas veias... Depois a doença... (Chora) E morreu. Severininho morreu, José!

JOSÉ - (Muda de assunto, para que ela não sofra.) Olha, vou te ajudar a fazer a outra trouxa.
Você não pode ficar pegando peso, eu já te disse isso! Por que não me esperou antes de
começar a arrumar tudo?

MARIA - José da Silva, meu marido... Ai de mim, a Maria triste, se não fosse você...

JOSÉ - Às vezes você parece esquecê o quanto eu amo você... Maria da minha alegria...

MARIA - Agora só temos o amor, meu José. Fomos... despejados e vamos morar... (riso
nervoso, trêmulo), na porta da Central do Brasil. Na Central do Brasil...

JOSÉ - (Triste, envergonhado) É por pouco tempo, minha alegria... Só até eu arranjar outro
trabalho. (Animado, valente) Olha, tem um anúncio aqui. (Tira um papel do bolso.) Uma obra,
uma grande obra que só vendo... e tão precisando de servente de pedreiro!

MARIA - (Terna) Pois então! Vai dar certo, eu sei. E agora venha, José, me ajude. Eu só tenho
você pra me ajudar... (Saem, abraçados. Maria anda com dificuldade. Parece sentir alguma
dor, mas disfarça, sorri.)

Em seguida, entram os demais personagens, menos Didi. Eles montam o cenário,


suspendendo o painel pelas cordas, mostrando o relógio e as silhuetas.

Para este movimento, usar bonita expressão corporal e música de fundo, que poderá ser um
clássico ou outra retratando o drama das cidades. ( música street dance)
DA PAZ - (Elevando ao alto a sua bandeira feia.) Salve, salve, gente querida, Chegou o Da
Paz, na celebração da vida!

LILI - Ô Da Paz... que alegria! Sentimos sua falta neste dia...

GEGÊ - Pronto, mais uma fazendo poesia, quem diria... E eu tenho que agúentar!

BETO - Você reclama de tudo, hein Gegê? Só vive triste, cara...

GEGÊ - Olha, de menor, me deixa viu? Eu não sou da tua laia...

BETO - (Debocha) Não é mesmo, não. É home que usa saia...

GEGÊ - (Ameaça bater no menino.) Olha, você sai da minha frente, senão eu te mato!

DA PAZ - (Com a bandeira entre os dois.) Mas o que é isso? Olha a paz, a paz... Não briguem
mais, não briguem mais..

LILI - Pois é... que feio! A vida é tão linda, né, Da Paz? Olha, vou dar um beijinho em cada
um... (Beija o i menino, Da Paz e Gegê, que afasta o rosto.)

BETO - Hi! Olha quem vem chegando...

DIDI - (Entra correndo, desesperada, corre de um lado para outro, e procura.) Quedê meu
espelho? Meu espelho... quem viu meu espelho, o meu espelho...

LILI - Vi não, meu bem. (Chega perto da louca e alisa seu rosto, para acalmá-la.) Olha, você
está melhorzinha? Melhorou a dor de cabeça?

DIDI - (Empurra Lili) Me deixa, eu quero meu espelho. (Chega perto de Beto e puxa seu braço
com ódio.) Foi você, aposto que foi você. Comeu o meu espelho... Ontem foi o gato. Hoje foi
você. Comeu meu espelho.

BETO - (Puxa o braço) Hi, me deixa, Didi maluca. Que idéia.. O gato comeu o espelho... Eu
hein, que mulé maluca. (Procura o saco de cola, para cheirar.)

DA PAZ - Paz, por favor, a paz! Haja paz no mundo. Alegria, fé, amor profundo!

JOSÉ - (Entra com Maria, carregam a trouxa.) eu. Oi... quer dizer .. a gente pode ficar aqui.

LILI, GEGÊ E BETO - Aqui

JOSÉ - É", Bem... Nós... Eu e Maria, esta é Maria minha mulher. Fomos despejados. To
desempregado...

MARIA - E... não deu mais pra pagar o aluguel...

GEGÊ - Não sei, não, minha senhora. Já somos muitos aqui. Quando chove, não cabe todo
mundo debaixo da marquise, e sempre chegam muitos outros. E ainda tem esse moleque.
Cheira cola o dia todo, traz outros cheiradores praqui, diz palavrão. Um inferno!

LILI - Ah, diz isso não, Gegê. Olha, eu acho que gente dá um jeito. (Para Maria.) Venha, sente
aqui, Quer dizer, me dá a trouxa. Senta, agora. Olha, se quiser trago umas panelas pra você..
Da minha amiga, que separou do marido e agora vai morar numa vaga. Lá não pode levar
panela, (Maria senta-se em cima da trouxa de roupas.)

DA PAZ-(Ri muito, rodopia, feliz com os novos componentes da família) Ela vai ter menino...
vai ter menino... Ele vai trazer a alegria pra todos nós!

DIDI - (BC, triste) A paz... Um dia eu comi um prato de paz. Tinha gosto de verde, misturado
de manjericão... Olha, eu queria comer as flores do mundo, para encher a barriga de alegria,
assim, bem cheiona... (ri muito)

GEGÊ - (Para José.) O senhor está vendo, não é? É esse horror. Todo mundo é doido aqui".

DA PAZ - (Triste) Só você não é louco, e pensa muito. Pensa tanto que perdeu a paz. (Para
José) Olha moço, ele até já tentou morrer, duas vezes. Cortou os pulsos, não morreu. Bebeu
veneno, também não. Ele tem dor grande... o desprezo do mundo lhe machuca o coração...
Um amigo da gente, parecido com ele, morreu no Natal do ano passado. Se jogou na linha do
trem e... (Fica triste, o olhar parado).

LILI - Coitado do Da Paz, coitado do Gegê... Olha eu vou comprar balas pra vocês...

ELIS - (Entra com Bia.) Olha, é aqui. São eles! Gente, tudo bem? Esta é a Bia, minha amiga.
Ela veio fazer um documento para ler no grupo dela. É assistente social, (Segreda para eles.)
Socialista

BETO - (Reconhece Elis.) A dona né aquela jornalista? A que fez a matéria com a gente pra
televisão? Foi no Natal do ano passado. Depois, os que viram na televisão vieram dar ceia pra
gente. Trouxeram até brinquedo...

GEGÊ - (Frio) Mas depois nunca mais ninguém apareceu. Foi só por causa da televisão.

BIA - (Triste) Pois é... (Pega papel e caneta.) Eu vou anotar o nome e endereço... quer dizer,
só os nomes, que o endereço é o mesmo. Mas antes, eu queria dizer que eu vou tentar ajudar
vocês. Mas que também precisam lutar por seus direitos.

DA PAZ, BETO - Lutar? Lutar como?

BIA - Na verdade vocês não têm culpa dessa situação. A culpa é da burguesia, das elites
opressoras, das classes mais favorecidas. Mas pela reivindicação dos nossos direitos...

GEGÊ - Mas que discurso enjoado!... Aposto que é coisa de política...

BIA - Nada disso, moço. Eu não sou candidata política. Apenas me preocupo muito com
vocês...

ELIS - Gente, vamos chegar mais pra lá. É a equipe da filmagem. Vamos aproveitar pra fazer
outra matéria de Natal pro Jornal Nacional. (Para os colegas imaginários.) Podem chegar.
Mas, cuidado aí com esses fios.

HELENA - (Chega com Célia.) Célia, olha só... é reportagem da televisão. Que será?

CÉLIA - Ah, Helena, nada disso... A gente não vai parar aqui, não. Sabe como é perigoso isso
aqui. (Puxa a bolsa a tiracolo para a frente.)

HELENA - Poxa, um instantinho só... Depois a gente aproveita pra evangelizar. Tem uns
folhetos aqui na minha bolsa.

CÉLIA - Você é teimosa, hein? Que coisa! Imagina se passa alguém da igreja e vê a gente
parada aqui... na Central do Brasil...

HELENA - E o que importa? Olha, Célia, a gente precisa parar de se preocupar com a opinião
dos outros... e...

(Maria geme alto.)

JOSÉ - O que foi, Maria?

MARIA - Eu.. eu acho que tá na hora do menino...

LILI - (Nervosa) Vou ligar para o Corpo de Bombeiros. Eles vêm buscar você, Maria, pode ficar
calma...

GEGÊ - (Frio) Bobagem sua! Eles não vêm, nunca...Lembra aquele dia em que Da Paz teve
ataque epilético? Aliás, uma vez, não, várias vezes...

BETO - É mesmo... Ele caiu, mordeu a língua, sangrou... Cansei de ligar também, do outro
orelhão, e não apareceram...

ELIS - É mesmo. Infelizmente, já aconteceu de eu ligar daqui pra socorrer um trabalhador que
teve um enfarte, e não vieram. Quando diz que é na Central do Brasil eles não vêm, não dão
socorro a mendigo. Daí, cansei de ficar pedindo a um e a outro na rua e também ninguém
ajudou. Então me lembrei de ligar pra um amigo e ele veio depressa, com o carro dele.

BIA - (Com revolta.) Mas que idéia! Quer dizer que não socorrem mendigo? Nem o Corpo de
Bombeiros?! (Para o público.) Vocês estão vendo?... Os pobres não têm mesmo quem ajude...
E as autoridades ainda oprimem os miseráveis..

HELENA - Viu, Célia? E onde fica a nossa igreja nessa história toda? É isso que eu digo pra
você... Precisamos mudar, todos nós...

CÉLIA - Cala a boca, Helena. Não deixa ninguém ouvir isso...

DA PAZ - Paz, paz... No Natal nasceu o Príncipe da Paz!

MARIA - (Geme, grita.) (começa uma música meio psicodélica) Gente, vai nascer. José, me
ajude, meu Deus. Pai nosso, que estais nos céus...

TODOS - (Nervosos) Santificado,seja o teu nome!

HELENA - Célia, eu vou fazer o parto!

CÉLIA - (Puxa a amiga de volta.) Que é isso? Endoidou de vez... Você é enfermeira, mas aqui
não tem material. É perigoso...

HELENA - Não tem material, mas eu preciso ajudar. Nunca fiz um parto assim mas tem
sempre a primeira vez. Eu tenho as minhas mãos...melhor que qualquer material.

CÉLIA- Que vergonha, meu Deus. Imagina se a irmã Zulmira passa aqui e vê a gente nessa
situação...

HELENA - (Examina Maria.) Olha, pessoal, eu sou enfermeira. A criança vai nascer daqui a
pouquinho. E todo mundo vai ajudar... arranjem uma tesoura, depressa!

LILI - Você Bia, corre até aquela farmácia e compra e um rolo de gaze pequeno, que é pra
amarrar o umbigo.

HELENA - E traz álcool e iodo também pra desinfetar e fazer o curativo do umbigo do neném.

ELIS - Corre, Bia! Olha, leva mais dinheiro, amiga...

Musica psicodélica FORTE

TODOS - Corre, Bia, que o bebê já vai nascer! (ficam todos em volta de Maria. Bia sai pela
igreja e retorna logo, trazendo material invisível nas mãos.)

BIA - (Ofegante) Pronto... Tá tudo aqui. Até o álcool e o iodo.

(Maria grita.)

HELENA - Está nascendo! Célia, me ajude aqui... Ajude a pegar o neném...

CÉLIA - Eu?... (Helena insiste.) Está bem... Eu vou ajudar. Afinal, o neném não tem culpa.
Meu Deus, agora é com o Senhor... (Fala para o céu.)

JOSÉ - Maria, mulé de Deus. Eu tô aqui, eu amo você...

HELENA - Força, Maria. Vamos, faz força comprida. Faz força. Vamos, faz força. Força pra
nascer. Nós estamos aqui, e também amamos você!

(Maria grita.) PARA A MÚSICA REPENTINAMENTE / CHORO DE BEBE.

CÉLIA - (Grita de alegria - BC.) Nasceu! Nasceu! Gente, é lindo. É menino... um menino
lindo...
DA PAZ - (Dança, pula, chora de alegria.) Um menininho... um menininho... Eu não disse, eu
não disse? A paz. Chegou a paz entre nós... Ele chegou!

TODOS - (De joelhos) Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome...

JOSÉ - Maria! É lindo! Parece tanto com você...

(Maria acaricia o bebê, imaginário, já está sentada no chão. A manta bonita no colo.)

MARIA - Meu menino..José,... olha... para o meu menininho... (Ri,) ,parece tanto com você... A
tua cara, José...

LILI - Meu Deus, que lindo... tem cara de anjo... Um anjo que nasceu na Central, Na Central
do Brasil, um brasileirinho.

GEGÊ - (Muito emocionado.) Uma criança", Nasceu aqui, perto da gente...

ELIS – Bia, veja... Que engraçadinho... Sadio que só ele...Meu Deus, veja que coisinha linda...

BIA -Jesus, eu nunca pensei... Nunca pensei ver uma coisa tão bonita quanto isto que
aconteceu à gente.

LILI - (Para Beto.) Venha cá, Beto, veja o bebê...

BETO - Puxa! É bonitão! Vou ensiná ele a soltá pipa, Vai se amarrar! (Para Didi.) Didi, olha só
o meu colega...

DIDI - (Chega desconfiada, olha bem, olha outra vez e descobre, quase sufocando de alegria,)
É ele, o meu espelho. O espelho que eu perdi. Agora vejo o meu rosto de novo. Deixa eu
pegar, deixa... (Pede chorando a Maria. Pausa. Todos têm medo que Maria a deixe segurar o
bebê.)

MARIA - (Fraterna) Pega sim, mas só um pouquinho. Ele é nosso presente, é de todos nós...
(Ela sente que Didi ficou curada.)

DIDI - (Embala o bebê.) O meu espelho... Meu espelhinho querido. Que tem cara e sorriso de
criança. Eu era assim quando nasci. E agora, meu Deus! Estou lembrando a minha vida toda.
Eu era uma mulher normal. Mas um dia tive um neném e o tiraram de mim, pro Juizado de
Menor. Procurei em todo lugar. Saí de casa, comecei a andar, a andar, a andar.. e depois me
levaram pro hospital. Levei choque, fugi, e vim parar aqui... (Chora muito.)

LILI - Pronto, pronto. Agora deixa eu pegar um pouquinho, Didi. Vá, enxugar esse rosto.
Gente, vê um lenço pra ela... Acho que tem ali, na minha bolsa...

(Todos pegam um pouco o bebê, e vão sendo iluminados pela alegria.) CANÇÃO DE NINAR

NARRAÇÃO - (Enquanto passam o bebê de um para o outro, com ternura.) Naquela hora,
todo mundo era Maria, cada um era José. Parecia ali, a moderna estrebaria, onde a vida
recomeçava: com jeito de ser criança. Misto de esperança e fé, bem na porta da Central. "Um
menino nasceu!" Diziam todos na alegria.
Agora vale a pena esperar, crer, recomeçar! Existe um sorriso de anjo, gente com cara de
Deus e sorriso de porta do céu! Sim, vale a pena, vale a pena viver!

JOSÉ - (Depois que o bebê está de novo nos braços de Maria.) Como vai ser o nome dele,
Maria?

MARIA - Ele veio trazer a alegria... E hoje é Natal. (Pensa.) Ah, já sei: vai se chamar Natalino,
25 de dezembro... da Silva!

NARRAÇÃO - Disse Jesus aos seus discípulos: "Qualquer que receber em meu nome um
menino como este, é a mim que recebe".

TODOS - Jesus nasce todos os dias, em todos os lugares, em cada coração. E hoje nasceu
de novo, aqui entre nós. (Quadro estático, felizes, Helena e Célia vão à BC.)

HELENA - Sabe, Célia, eu estou preocupada. Como é que a Maria vai ficar com o Natalino? O
que é que eles vão comer?

CELIA - (Olha para os lados, nervosa.) Bem... eu... quer dizer .. quem sabe... ou talvez...
(pigarro) pois é...

HELENA - Bem, eu pensei em levar a família lá para a igreja. Debaixo do galpão, e...

CÉLIA – (Tosse) Para a igreja? Quem? José, Maria e Natalininho", Mas...

HELENA - Não... a família toda.., Da Paz, Gegê, Lili... Todos os que aprendi a amar ..

CÉLIA - (Tosse mais, quase sufocando.) To... todos eles?... Você enlouqueceu! Deixa eu ver o
seu pulso. Não, realmente você é doida...

HELENA - Doida? Por quê? Nós podemos ajudá-los. (Fala alto, emocionada pelas idéias.) E,
quem sabe, podemos construir depois um grande abrigo, com a ajuda de empresários e...

CÉLIA – P...Por favor...fala baixo, eles podem ouvir. E pode passar alguém da nossa igreja, e
escutar também, não fica bem... Imagina o que a família Barros vai pensar. Vão deixar de falar
com você. E esse tal Gegê, você sabe...

HELENA - Pára, Célia, cala a boca você. Quer saber de uma coisa? Não agüento mais viver
como cristã se não fazemos nada a nossa volta.

CÉLIA - Helena, minha amiga, fala baixo. Vão pensar que você é doida, comunista. (Risinho
nervoso.) E o comunismo até já acabou, não é?...

HELENA - Pois eu vou levá-los pra igreja, sim. Não sei quando, mas vou levar. Isto é, os que
quiserem ir. Depois, se os irmãos não aceitarem, darei um jeito. Veja bem, é só até o José
achar trabalho, o Gegê e a Didi ficarem bons da depressão...

CÉLIA - Mas quando forem embora, depois, chegam outros... Já pensou nisso? É uma bola de
neve...

HELENA - Célia, quer saber de uma coisa? Pense o que quiser, mas eu não mudo de idéia...

(Música especial de fundo para os personagens irem se apresentando ao menino. Enquanto


cada um vai a BC, os demais vão fazendo quadros diversos ao fundo. Maria permanece em
ponto de destaque, com o bebê ao colo.)

DA PAZ - (Todos ao fundo, menos Maria, viram pedintes, esmoléus.) Eu sou o Da Paz,
menino. Sou Da Paz, minha gente. Eu vivo sempre contente, mas é tudo pura ilusão. Porque
trago em mim uma dor muito esquisita. Minha vida não é nada bonita, e sofro na escuridão.
Sou desprezado de todos e o mundo me dá migalhas de pão. Por isso eu sofro... Sofro muito,
e disfarço5 o meu sofrimento nesta bandeira que levo ao vento. Eu queria uma vida igual a de
todos os homens, vida de trabalhador. Mas, que horror, ninguém abre porta pra quem tem o
cheiro das ruas, das horas nuas, o cansaço da fome. Eu quero mudar, sim, eu quero mudar.
Mas, meu Deus, eu não sei... Por onde vou começar?

(Musica que retrate a situação dos brasileiros desprezados.)

GEGÊ - (Todos ficam estáticos ao fundo, uns com as mãos fechando os olhos, outros com as
mãos tapando os ouvidos e permanecem com expressões frias, como se não quisessem
saber o que ele diz.) Meu nome é Gegê, menino. Eu sou Gegê, meu povo. Também sofro
assim, uma dor imensa, e queria começar de novo: Mas eu nasci diferente. Tenho a marca
dos desprezados. Os cientistas me estudam e a sociedade me rejeita. Não sou homem nem
mulher, sou uma estranha mistura. Preciso de ajuda, quero ser nova criatura, mas ninguém
me compreende. Minha família me desprezou, o exército não me aceitou, e não consigo
trabalho. Eu também quero mudar, Da Paz, quero melhorar. Mas como? Eu estou sozinho,
não tenho ninguém, ninguém pra me ajudar!

LILI - (Os demais mostram com as mãos a rejeição a ela. Como se a detestassem.) Coitado,
coitadinho do Gegê. Pobrezinho de você. Pobre de mim, que também sou assim. (Voz de
revolta.) Sabe, menino, eu tenho em mim o desprezo do mundo, o escárnio das multidões.
Sou esquecida e abandonada, rejeitada das nações. Muitas vezes quis sair das ruas mas, não
sei por que, voltei. E fiquei. Também não tenho família, nenhum laço a me prender. Mataram
meu pai, acho que foi o grupo de extermínio. Minha mãe, coitada, adoeceu e morreu. E eu
fiquei, assim. Ninguém gosta de mim.

BETO - (Expressão de quem cheira cola. Faz gesto com as mãos.) Ora, Lili, eu até gosto de
você. Mas como é que eu vou esquecer, a minha própria confusão? (Deixa de cheirar.) Oi,
Natalininho, meu nome é Beto. Beto nem sei de quê.... pois eu não tenho certidão! Cada um
fala uma coisa: e tem até quem diz que fui jogado na lata do lixo. No lixo da vida, na lata mais
esquecida... É isso, isso é o que sou!...

BIA - (Os outros montam guerrilha como se tivessem armas invisíveis nas mãos). Meu nome é
Bia, de Beatriz. Só que eu não sou feliz, criança", Tenho no peito uma amargura imensa, uma
dor sem fim. Trago em mim o grito da Nicarágua, Cuba e Afeganistão. O desespero de Angola,
Japeri, Belford Roxo e do Nordeste inteiro! Tenho a coragem de Guevara e a perplexidade de
Fidel. Meu coração explode nas guerrilhas e não acredito no céu. Quero justiça, pão pra todo
mundo, saúde e educação. Mas nada disso acontece, e tenho vontade de morrer!

ELIS - (Os companheiros ao fundo, fazem gesto de pessoas que estão filmando e outros
sendo entrevistados.) Amiga, sossega sua tristeza! Quem sabe isso vai mudar? Menino, eu
sou Elis, a amiga de Beatriz. Trabalho num bom jornal, que passa na televisão. Mas você é
claro, nem sabe ainda o que é isso... Eu tenho sede de mudar e quero sempre acreditar. Mas
nem sempre só isso basta, pra fazer tudo melhorar Eu fico pensando em saídas, mas
confesso, nunca sei as respostas. E vou seguindo em frente, pensando que sou valente, e
tendo medo de avançar.

TODOS - Força! Força, faz força pra nascer!

DIDI - (Expressões de loucos sem saída:) Que bom que bom, eu já consegui lembrar. E
lembrei até meu nome. Olha neném, eu sou Nadir (triste), mas que adianta lembrar, se não sei
por onde começar a juntar os cacos de mim?...Eu queria ter uma casa só minha, nem que
fosse um barracão. Com uma mesa, cadeiras, a pia e um fogão. Igual a toda mulher, ter
marido, filhos e comida pra fazer. Mas como é que eu fui esquecer o lugar onde eu morava?
Era em Pavuna, Madureira, Meriti? Não sei, eu esqueci... Será que um dia vou lembrar?...

TODOS - Pai nosso que estás nos céus...

CÉLIA - (Os demais viram as costas para ela, e permanecem.) Eu...meu nome é Célia e faço
parte de uma igreja, Natalininho. Uma igreja que já foi boa, mas logo perdeu o Caminho. Eu...
bem...eu gosto muito de cantar, ler a Bíblia, orar... Mas isso é tudo o que sei. Tenho medo das
mudanças, dos grandes desafios. Olha, eu tenho uma amiga, missionária, na África, em
Moçambique. Ela me escreve sempre e fala das guerras, da fome, de tantas doenças... Eu...
eu oro, e choro. Choro muito por ela. Mas isso é tudo o que eu sei fazer. Porque afinal,
mesmo que eu quisesse, não posso faltar... a escola dominical...

HELENA - (Expressões mãos para cima, liberdade.) Também eu fui assim, tão...acomodada!
Mas agora não quero mais o crime da omissão. Ô bebê, eu quase já ia esquecer de dizer
também meu nome. Eu sou a Helena, não a vencida, mas a guerreira. Porque hoje fiz o parto
de mim mesma. O Natal de uma nova Helena, numa nova direção. Agora chega de mesmice,
tanta tolice, opressão. Agora é tempo de marcha, tempo de luta, de decisão. Porque já plantei
minha semente, que brota pro mundo inteiro!

TODOS - Agora venha Maria, venha José, falem também de vocês...

JOSÉ - (Ao fundo mostram alguém recebendo para inscrições de trabalho e dizendo não para
a fila de pessoas tristes e cansadas.) Sou José, o servente de pedreiro. Esta daqui é Maria,
minha mulher, mãe de meu filho. A gente veio de Amanari, no sertão do Ceará, pra tentar a
vida aqui, Mas nada deu certo, não. Fui despedido da obra, e o dinheiro logo acabou. Não deu
pra pagar o aluguel, e o dono nos despejou. Por isso estamos aqui, nesta Central do Brasil,
depois... Depois não sei pra onde vou...

(Todos vêm olhar de novo o bebê, encantados.)

MARIA - Ói, fique assim não, meu marido. Quem disse que não tem jeito? Olha aqui, nosso
menino, bonito que nem príncipe, e dono de todo o futuro. Agora temos esperança, não
andamos no escuro... Vale a pena prosseguir, José, na caminhada da vida. Agora a gente tem
certeza de andar com mais firmeza. Vamos, a gente tá aqui, tudo da mesma família. Gente da
maior nobreza De grande categoria. Você, José, eu, nosso filho, e todos os nossos amigos,
Pode ter melhor festa de Natal?...
BETO - (Grita, aponta o relógio da estação.) Olha, é meia-noite. É Natal!

TODOS - (Depois de cumprimentos, beijos e abraços.) Natal! É Natal na Central do Brasil!

(Música especial. Troca de roupas e da bandeira, com expressões corporais criativas.)

HELENA - Um dia, há muitos séculos atrás...Não numa estação de trens. Mas muito distante
daqui, em Belém, nasceu o Senhor Jesus. Também não havia lugar para eles em nenhuma
hospedaria. E ali, na manjedoura, entre José e Maria, estava o Menino Deus... Acorda, minha
gente! Que toquem todos os sinos. É tempo de despertar! Começou a nossa festa. Tragam
todas as flores, acendam todas as luzes, que é tempo de salvação. Abram todos os perfumes,
arrumem todas as mesas, alegrem-se os corações! É tempo, é tempo de Brasil, tempo de
mundo inteiro. Toda a família da terra sai da triste estação da dor, e vai cantar no céu, para
sempre, a eterna canção de amor!

(Música especial para festa. Alegria geral.)

BIA/BETO - Corre! Corre minha gente, que ninguém pode perder...

JOSÉ/CÉLIA/HELENA - O trem da felicidade, de quem nasceu pra vencer.

LILI/DA PAZ/MARIA - Filhos, é a última hora. Já avistamos a cidade.

GEGÊ/ELIS - Jesus é o centro de tudo, o ponto central da estrada.

HOMENS - Ele é a alegria dos homens, o menino do Natal. Passagem para a eternidade.

TODOS - O Cristo é a nossa alegria, que começou a nascer e continua lá no céus.

MULHERES - Força, força. Faz força pra nascer. Aceite o nosso convite, de começar a viver.
Com Jesus, Natal é tempo de festa, é cantiga de vida nova. Completamente vida!

(Música final.)

RESUMO

Esta peça é baseada em acontecimentos reais. Os personagens são pessoas que conheci na
gare da Estação Pedro II, também conhecida como Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Em
duas ocasiões em que estava passando pelo local tive de atender a mendigos com crises de
epilepsia e embora tivesse insistido ao telefone público, não consegui socorro da Policia ou do
Corpo de Bombeiros. Isto não significa que estas corporações não sejam merecedoras de
confiança. Há soldados bombeiros e policiais dignos do maior respeito. Mas na ocasião em
que passei por esses acontecimentos, liguei dias depois para o quartel dos bombeiros que fica
próximo à Central do Brasil e fui informada por um oficial que eles têm ordem de não socorrer
mais mendigos na rua porque contaminam a ambulância.

Isto é muito grave e nesta peça lanço meu pedido de socorro para que as autoridades tomem
providências sérias e urgentes a respeito do assunto, porque mendigos são seres humanos.
Numa das vezes, o homem que atendi estava estendido no chão e nas violentas convulsões
havia ferido gravemente a língua, que sangrava. Ele respirava com grande dificuldade, depois
do ataque, e senti tristeza ao ver ao seu lado, no chão, um pacote de balas pela metade que
talvez ele estivesse vendendo quando foi surpreendido pelo ataque. Não consegui qualquer
tipo de ajuda para levá-lo ao hospital e as únicas pessoas solidárias que ficaram ao seu lado
eram outros mendigos, menores de rua, prostitutas e homossexuais. Felizmente, depois de
algum tempo, ele voltou a si e conseguiu levantar-se com dificuldade, levando seu meio
pacote de balas cuja venda lhe garantiria, quem sabe, um pouco de café e um pão.

O parto narrado na peça aconteceu um dia quando eu passava pela Rua da Matriz em São
João de Meriti, onde moro, e uma mulher muito pobre deu à luz no meio da rua. Como sou
técnica de enfermagem, pude ajudá-la no parto. Pedi a algumas mulheres que passavam na
rua que fizessem paredinha em torno de nós duas e a criança nasceu. Infelizmente, o bebê foi
um natimorto macerado, como dizemos no hospital. Seu corpinho mostrava que havia alguns
dias estava morto no ventre materno. A mulher talvez não tivesse tido condições de fazer o
pré-natal, porque na Baixada Fluminense é muito difícil o acesso ao atendimento hospitalar. A
mulher estava sozinha quando a encontrei. Como muitas outras, abandonadas pelo marido
quando mais necessitam de ajuda.

Na cena inicial da peça, Maria, a nordestina, fala de um filho que morreu depois de ter injetado
lama nas veias" Também isto é real li a notícia no jornal O Globo, que mostrou uma
reportagem sobre a morte de crianças em Olinda, Pernambuco, vitimadas por septicemia
depois de tentarem se drogar com injeção de lama, como alguns colegas costumavam fazer.

O casal, Maria e José, á despejado de casa na véspera do Natal, conforme outra notícia que li
no Jornal de Hoje, um diário de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Logo, a arte imita a vida em
todas as cenas desta peça.

Na porta da Central do Brasil costumamos ver todos os personagens mostrados na peça,


inclusive famílias que não têm para onde ir. Quando a peça for mostrada em outras cidades,
os irmãos poderão usar outro ponto de referência, como uma outra estação de trens, uma
praça ou beco onde os desvalidos da sociedade costumam permanecer.

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