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Se: HISTORIA DA POESIA PORTUGUEZA (ESCHOLA ITALIANA-~IIL) Seculo XVI HISTORIA. CAMOES POR THEOPHILO BRAGA PARTE II ESCHOLA DE CANOES PORTO IMPRENSA PORTUGUEZA—EDI!ITORA 1874 O trabalho que accumulémos para a comprehensio do vulto de Camées, revela na sua simples disposicdo o methodo que seguimos. Primeiramente foi-nos pre- ciso estudar o meio dentro do qual Camoes se desen- volveu, investigando com vagar as circumstancias que actuaram sobre o seu genio, os pequenos accidentes que contribuiram para particulares feigdes do seu caracter, examinando o que elle deveu 4 sua epoca e qual a con-~ nexio fatal que ha entre o seculo e o grande homem. Foi o que tentdmos no livro Vida de Camées. (Hist. DE Camozs, P. 1, p. virt~456.) Depois da parte pessoal segue-se accentuar a indi- vidualidade, isto ¢, a influencia exercida na litteratura portugueza e na consciencia nacional por Camées. i como a acco exterior d’aquella elaboragdo intima; eis o fim da Eschola camoniana, tanto no lyrismo como na epopéa, que forma a segunda parte d’esta obra, com que damos por terminada a Listoria da Poesia portu- gueza do seculo xvi. HISTORIA DE CAMOES . PARTE II ESCHOLA CAMONIANA Oespirito platonico-mystico, que inspirava os poetas da Renascenga e a elegancia dos humanistas, sé péde penetrar em Portugal no seculo xvi; durou pouco tempo o seu resplendor vivo, porque desde que os je~ suitas se apoderaram do ensino publico, restabeleceram immediatamente a doutrina de Aristoteles. Péde-se at- tribuir a falta de uma profunda poesia lyrica, desde el- rei Dom Diniz até Bernardim Ribeiro, 4 exclusiva influencia da philosophia aristotelica averroista, que dominou em Portugal durante toda a edade media. A eschola averroista era conhecida entre nds na sua ultima exageracéo, como vemos pela existencia accusada por 2 HISTORIA DE CAMOES Alvar Pelagio do Livro dos Tres Impostores; el-rei Dom Duarte possuia os principaes livros d’esta eschola, e ja Dom Joao 1 lia aos seus cavalleiros o livro de Gil de Roma, corypheo dos averroistas. Diante da Renascenca da Italia, e principalmente por via das obras de arte e da imitagao dos poetas, o platonismo veiu encontrar em Portugal esse caracter apaixonado e mystico que o ab- sorveu com ardor; depois de Bernardim Ribeiro e Chris- tovam Falcio, foi Camoes o que mais se compenetrou d’esse idealismo vago da contemplacao philosophica e do devaneio sentimental. Foi por isso que a erudigdéo do seculo XvI nao pédde atrophiar em Camdes a natura- lidade do seu lyrismo. Mas todos os outros poetas que foram seus contemporaneos ou Ihe succederam, perde- ram esse segredo da expresso apaixonada, da melan- cholia profunda, do ideal no amor, do pantheismo, e fi- caram prosaicos, pautados, cantando as impressdes de uma estreita personalidade e os pequenos interesses bur- guezes. A razdo estd em uma reaccdo da educagio pu- Dblica; o nosso intolerante catholicismo, com uma des- potica orthodoxia no admittia a liberdade de senti- mento das theorias platonicas, e os jesuitas, escudados com o Concilio de Latrao, fizeram succeder em Portu- gal 4 philosophia aristotelica dos averroistas, o aristote- lismo dos alemandristas, Esta eschola governou, alge- mou em Portugal a intelligencia portugueza, attingiu o seu maximo explendor nos Commentarios do Collegio das Artes em Coimbra, consummiu em distincgées escru- pulosas entre a fé e a philosophia toda a nossa activi- PARTE II 3 dade intellectual. (1) Como representante do espirito vivo da Renascenga em Portugal, Camées soffreu além dos desastres da sua vida, a decepciio terrivel de vér ba- nido pelos jesuitas o elemento ideal, que devia fecun- dar a arte ¢ a Poesia,—o platonismo, (1) Na Bibliotheca da Universidade de Coimbra existem centenares de volumes d’estes Commentarios ineditos, 4 espera de um trabalhador corajoso que se sacrifique a dispender a vida, na Historia da Philosaphia Conimbricense. LIVRO I OS POETAS LYRICOS CAPITULO I Camées e o platonismo erotico-mystico no seculo XVI A Italia e a poesia erotico-mystica, —Infiuencia em Portugal, pelos Sonetos de Petrarcha. — A corrente sentimental da Eu- - ropa: Miguel Angelo e Vittoria Colona. — Shakespeare. —S. Jodo da Cruz e Garcilasso,—Do ideal da mulher em Portu- gal: convencionalismo de inferioridade nos Cancioneiros pro- vencaes. — Desenvoltura do Cancioneiro de Resende. — Plato- nismo da Renascenca: Fieis do Amor em Portugal : Si de Mi- randa, Bernardim Ribeiro, Christovao Falcao, Jorge de Monte- Mor, Infante D, Luiz. —Segundo grupo dos Fieis do Amor: Camées, D. Antonio de Noronha, Joao Lopes Leitio, Esta— cio de Faria, D. Manoel de Portugal, Fernao d’Alvares do Oriente, Bernardes.—Caracteres da poesia lyrica de Camdes : tradigdes provencaes na abnegagio da individualidade diante do amor; pantheismo no soffrimento, em que a natureza é chamada 4 communhio da desgraga ; sentimento da perfeigiio na férma leyando ao extasis do amor divino; desalento e ne- cessidade de alimentar o senso da realidade; o amor servindo para a inspiragéo da obra de arte. —Fim do platonismo em Portugal, pelo predominio do aristotelismo alexandrista dos jesuitas.— Consequencias sobre a poesia portugueza. —In- fluencia de Camées sobre o lyrismo hespanhol : suas relagdes com o divino Herrera. A influencia de Camées sobre a poesia lyrica do seu seculo determina-se por um modo quasi material, ob- servando a versificagdio maviosa, 0 uso das palavras com propriedade expressiva e pittoresca, a novidade das rimas, e sobretudo pela liberdade de innovagio de PARTE II.—LIV. I. CAP. I. 5 vocabulos para affastar a linguagem poetica da mono- tonia convencional; 0 mesmo succedeu com o appare- cimento de Boca 10 seculo xvi, tirando a dureza prosaica 4 metrificagao, 4 custa de um emprego forgado de figuras de rhetorica. Assim a metrificagio camoniana ea metrificacdio elmanista tém certa analogia no rythmo,! certa cadencia’ habitual que se apodera’ do ouvido,’ e qne se imita com facilidade: Mas em Bocage faltava a profundidade do sentimento, que se quadra tao bem ao modo de dizer vago e indeciso de Camocs, ¢ é por isso que os lyricos cathonianos do século’ xvi exeederam os vates elmanistas, que metrificavam sem ideia: i n’esta superioridade que esta o verdadeiro caracter da influen- cia de Camoes. Alma da Renascenca immersa no ter-* rorismo de uma sociedade catholica, sente o' deslumbra- mento da vida diante da revolugio scientifica que se’ passava na Europa; é a observacio dos phenoménos dat natureza que leva Camoes a fazer pela admiragio 0 pro- cesso sacrosanto da sua rehabilitagio,-e a considerar o* amor nio como um crime contra o ascetismo; mas”“o meio por onde a intelligencia sc eleva 4 comprchensao da unidade universal. N’este esforco'para dar a rasid asua liberdade ¢ affirmaro principio do individualismo,* ha momentos de desalento, que o poeta traduz pela me- lancholia e o sabio pelo sceptic ismo;* Camédes faz a allianga d’estes dois sentimentos, que © torn mn um dos primeiros lyricos da Renascenca. A poesia italiana imi- tada em Portugal desde SA de Miranda, sémente em- quanto ds /érmas metricas, encontrou em Camées a'ver- 6 HISTORIA DE CAMOES dadeira intelligencia do seu espirito, Vejamos as cir- cumstancias peculiares que lhe deram essa pdsse. O genio amoroso dos portuguezes era proverbial na Europa, desde o seculo xvi. Na Historia de Persiles y Sigismunda, diz Cervantes, que era «quasi costume morrerem d’amor os portuguezes». Nos escriptores na- cionaes vem accentuado este mesmo caracter; diz Gil Vicente na Tragicomedia das Cértes de Jupiter, fallando dos portuguezes: Séo extremo nos amores. (1) Pelo seu lado Dom Francisco Manoel de Mello, nas Epanaphoras da Historia portugueza, declara: «e como nosso natural é entre as mais nagdes conhecido por amo- roso...» (2) Na realidade assim o reconheceram Vi- cente Espinel, Lope de Vega, Cervantes e Madame de Sevigné. O amor, esse sentimento caracteristico d’este povo era um dos moveis principaes de seus feitos. A sua lit- teratura inspirou-se quasi completamente do amor; ne- nhum outro problema sentimental chegou a ser pro- posto nas obras de arte. Incapazes da abstracgio, tive- mos por unica philosophia um idealismo poetico. Como portuguez, Camées retrata-se namorado desde o bergo: As lagrimas da infancia ji manayam Com uma saudade namorada; O som dos gritos que no bergo dava J& como de suspiros me soava. (1) Obras, t. u, p. 415. (2) Op. cit., p. 286. PARTE I.—LIV. I. CAP. I. 7 Co’a edade e fado estava concertado : Porque quando por ‘caso me embalavam, Se de amor tristes versos me cantavam, Logo me adormecia a natureza: Que tio conforme estava co’a tristeza (1). Esta mesma precocidade se encontra em Dante, na- morado de Beatriz da edade de nove annos, quando a viu passar bianco vestita. Era o genio da Renascenga que se revelava em Camées, do mesmo modo que o se- culo x1 fazia dizer pela bocca do apaixonado floren- tino: «Ecce Deus, fortior me, qui veniens dominabitur mihi.» Camées presentia que o amor o devia levantar acima do vulgo, dar-lhe o ideal da actividade, tornal-o grande: Eu vivia do cego amor isempto, Porem tao inclinado a viver preso, Que me dava desgosto a liberdade; Um natural desejo tinka acceso Dialgum ditoso e doce pensamento Que me illustrasse a insana mocidade. (2) Sao estas affeicoes da infancia que deixam na alma do artista esses thesouros infinitos de recordagoes poeti- cas, que a critica ea edade nao podem destruir, e donde tiram tudo quanto hade verdade e de vida nas suas obras. Alfieri escreve d’estes ingenuos transportes da infancia: «Effetti che poche persone intendono ¢ pochissime pro- vano; maa che soli pochissimi € concesso V'uscir dalla (1) Cancio x1. (2) Cang&o vir. 8. HISTORIA DE CAMOES Jolla volgare in tutte le umane arti.» Tambem as synthe- ses philosophicas do Fausto, ndo poderam apagar em Goethe a primeira impressio do amor que anima o quadro da Margarida; Byron e Canova chegaram a confessar que estas primeiras recordagoes da infancia ficaram sempre puras através de todos os lances do des- tino, illuminando com a luz suave de unia feliz realidade o que ha de triste nas suas creagées. Mozart, tambem na-infancia, na feliz ignorancia da etiqueta do pao, fallava de amor 4s princezas da‘cérte imperial de Aus- tria. Com esta organisagiio e instincto desenvolvidos pelo genio nacional, Camées tornou-se desde muito crianca um gran maestro de amore. A erudicio revelou-lhe a casuistica tradicional da paixio trobadoresca, que o fez abnegar da sua individualidade diante do amor. E este um dos primeiros caracteres do seu lyrismo, que ja se encontra desde o seculo x1 nos Cancioneiros proven- caes portuguezes. O espirito da Renascenca provocou- lhe esse vago desalento, que era a necessidade de ali- mentar o senso da realidade. O sentimento da perfeigio nas férmas foi dirigido em Camées pela educacio christa para o extasis do amor divino, para a paixio mystica: Finalmente a philosophia do platonismo reccbida nas escholas, na corrente intellectual e artistica do se- culo xvi, pelos poemas lyricos da Italia, incutiu-lhe o pantheismo do soffrimento, em que a natureza, como animada é chamada para a communhio da desgraca, e em que tambem o amor serve para inspirar a obra PARTE II.—LIV. I. CAP. 1. a) darte, onde, pela realisagao do bello se consegue attin-» gir a expressiio da generalidade humana. Taes sao os- caracteres com que Camédes, dentro do seu seculo e obedecendo 4s influencias d’ellc, exp6z fragmentada- mente e quasi de um modo inconsciente a philosophia do Amor, contida nos seus Sonetos, Cancées e Elegias. Elle viaja através d’estes mundos de trevas e de amo- res, de extasis e golfées, dirigido por Petrarcha, mas _ nos momentos dos mais duros transes sémente acompa- “nhado pela verdade da sua alma. Camoes reproduz a maxima fundamental da poetica dos trovadores: « Para bem cantar e trovar, é preciso amar: De Amor eserevo, de Amor trato e vivo, De Amor me nasce amar sem ser amado. (1) Camées comegou muito cedo o estudo de Petrar- cha; a traduccio dos Triumphos dataré dos tempos em que frequentava os estudos de Coimbra; no Commen- tario a essa primeira tentativa de traduccao se encon- tra a prova de quanto conhecia a vida dos trovadores provencaes; ai cita Dante e Cino de Pistoia, Guido de Arezo, Guido Cavalcante e Guido Guivizieli de Bolo- nha. (2) Eram estes que formavam o grupo dos JMieis de Amor, na primeira Renascenga da Italia; quando o platonismo da eschola italiana enetrou em Portuc 1, tambem se agruparam em intimas confidencias de amor $4 de Miranda, Bernardim Ribeiro, Christovio Fal- (1) Soneto 102. (2) Obr. t. v, p. 120. Ed. Juromenha. 10 THSTORIA DE CAMOES cio, Jorge de Monte-Mor e o Infante Dom Luiz. O se- gundo grupo dos nossos Fieis de Amor ajunta-se em volta de Camées, que era o confidente de D, Antonio de Noronha, de Joao Lopes Leitao, de Estacio de Fa- ria, de Heitor da Silveira, de D. Manoel de Portugal, de Fernao Alvares d’Oriente e de Diogo Bernardes. Camées, commentando os Triumphos de Petrarcha, faz a historia amorosa:dos trovadores Arnaldo Daniello, Pedro Vidal, Reimbaldo de Arvenga, eo de Vachieres, Pier d’Alvernia, Gerault de Berveil, Folguedo de Mar- selha, Giaufre Rudel, Guilhelmo de Cabestem, Ame- rigo de Piguilhio, Bernardo de Vent Dorn, Ugo de Penna, e Anselmo Faudite. (1) Foi este conhecimento que o fez imitar nos seus versos a tradigéio provengal da abnegacio da individualidade diante do amor, Pe- trarcha ajuda-o a exprimir esta difficil casuistica do sen- timento: Esta o triste amante transformando Na vontade @’aquella, que tanto ama De si a propria essencia transportando. (2) £ entao que elle imita esse pensamento do Trium-~ pho @ Amor, de Petrarcha: «L’amante nel amato si transforma», formulado no Soneto x: Transforma-se 0 amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar. .. (1) 1b. Seguimos aqui a orthographia portugueza adopta- da pelo poeta, (2) Ecl. 1, PARTE II.— LIV. I. CAP. I. 11 A poesia mystica dos poetas italianos anteriores a Dante, que continuaram a tradigio provencal applicada ao amor divino, fundava-se n’este mesmo principio pro- ferido pela bécca de 8. Francisco de Assis: «Anima plus vivit ubi amat, quam ubi animat.» Como no amor mystico, o trovador sentia os primeiros effeitos da pai- xéo pelo abandono e esquecimento da vontade; a rasio era supplantada pelo deslumbramento da belleza quasi divina. No Soneto vu formula Camoes esta phase primeira: Jura amor, que brandura da vontade Causa o primeiro effeito; 0 pensamento Endoudece, se cuida que é verdade. E esta mesma loucura amorosa que traz os trova- dores errantes pelo mundo, como Pedro Vidal, ou como Jacopone de Todi, divagando alienado pelas ruas de Florenca. No Soneto rx, descreve Camoées de um modo mais claro esta abnegacio da intelligencia, causada pela impressdéo viva sob que se sente prostrado: Tanto do meu estado estou incerto, Que em vivo ardor tremendo estou de frio; Sem causa juntamente choro e rio, O mundo todo abarco e nada aperto. Se me pergunta alguem porque assi ando, Respondo que na&o sei; porém suspeito Que é sé porqué vos vi, minha Senhora. A deposic&o da sua personalidade torna-se um pra- zer, que leva 4 voluptuosidade do soffrimento. No So- neto Xvi relata este accidente amoroso: 12 HISTORIA DE CAMOES Porque é tamanha a bemaventuranga O dar-vos quanto tenho e quanto posso, Que quanto mais vos pago, mais vos devo. N’este sentimento de inferioridade, 0 poeta chega quasi a considerar-se feitura do ideal que contempla, como o descreve no Soneto XxXVIII: - Se quereis conhecer quanto possaes Olhae-me a mim, que sou feitura vossa, -Vereis que do viver me desapossa Aquelle riso com que a vida daes. O mesmo, no Soneto cLvI: Assi est’ minha vida ou minha morte No volver d’esses olhos; pois podeis Dar c’uma volta d’elles, morte ou vida. Petrarcha continuava a acgSo dos trovadores; 84 de Miranda comprehendeu esta influencia, quando es- creveu o verso ticerca da tradigao provencal «De que o Petrarcha fez tao rico ordume». A maneira de Petrar- cha, comegou Camées o seu amor com Nathercia em um templo, quando se celebrava o drama da paixao. O catholicismo na Italia, aonde nunca se apagaram de todo os vestigios da antiguidade, conservou este.mixto de sentimento humano; mas em Portugal estavyamos sob a pressio do queimadeiro, e s6 a imitagao artistica é que levou Camées a escolher esta situagiio que nao estava nos nossos costumes, e que sé veiu a ser admittida com os quietistas no meado do seculo xvu. Acerca d’estes PARTE II.—LI1V. I, CAP. I. 13 amores nos templos, escreve 0 veneziano Scudo, em um quadro dos costumes na Italia: «Os povos do Meio Dia, ... e particularmente os Italianos, consideram o templo como um logar consagrado ao cullo dos senti- mentos amaveis, e ai vio para dar gragas 4 providen- cia por havel-os ‘feito nascer sobre uma terra ornada dos mais divinos thesouros.» (1) No Soneto Lxxvul, descreve Camées a origem do seu amor: O eulto divinal se celebrava No Templo, d’onde toda a criatura Louva o Feitor divino....... Eu crendo que 0 logar me defendia De seu livre costume, néio sabendo. .. Deixei-me captivar....... Segundo Faria e Sousa, este Soneto é imitado do Soneto m1 de Petrarcha; no Soneto cccmi tornou Ca- moes a descrever a situagéio mystica que deu origem ao seu amor, como para mostrar que na primeira imitacao de Petrarcha existia uma realidade. Elle chega a com- parar Nathercia a Laura de Noves, n’estes versos do Soneto cm: Se da celebre Laura a formosura Um numeroso Cysne ufano escreve, Uma angelica penna se te deve Pois o céo em formar-te mais se apura, (1) Chevalier Sarti, p. 85. 4 HISTORIA DE CAMOES E se voz menos alta te procura Celebrar, oh Nathercia, em vio se atreve, De ver-te j& a ventura Liso teve... A definig&o do amor, esse — Nao sei qué, que aspira no sei como,—é em Camées um ideal cuja realisacéio sé chegou a dar-se na poesia italiana: Aquelle nao sei qué, Que aspira niéio sei como, Que invisivel saindo, a vista o cré, . Mas para o comprehender niio acha tomo; E que toda a "Toscana poesia Que mais Phebo restaura Em Beatriz, nem Laura nunca via. (1) Na Ode xu descobre Camées quaes os modelos que melhor serviam para o ajudarem a exprimir o seu amor: Fora. conveniente Ser eu outro Petrarcha ou Garcilasso... E nas Outavas 1, ajunta a estes mesmos modelos Sanazarro: Cantaramos aquelle, que tio claro O fez o fogo da arvore phebea, A qual elle em estylo grande e raro Louvando, o chrystalino Sorga enfreia. Tangera-vos na frauta Sanazarro, Ora nos montes, ora por a areia, Passdra celebrando o Tejo ufano O brando e déce Lasso castelhano. (1) Ode v1. PARTE II.—LIV. I. CAP. I. 15 O Sorga & 0 rio com que os poetas alludiam por antonomasia a Petrarcha; nos Commentarios 4 sua tra- ducgéo dos Triwmphos, escreve Camses: «No mesmo tempo, dia e hora, o amor de madama Laura, que sendo viva e depois de morta, lhe fazia desejar e buscar a sau- dade do Sorgua...» (1) Este costume de alludir aos poetas pelo nome dos rios, usado na poesia portugueza de quinhentos, deriva-se do buccolismo italiano; S4 de Miranda era re resentadp pelo Ne'y , Bernardes pelo Lima, Camoes pelo Tejo, Bernardim Ribeiro, e Chris- tovéo Falcio pelo Guadiana. A influencia de Sanazarro, a quem SA de Miranda chamava o bom velho, comegada em Jorge de Monte- Mér e levada ao extremo por Fernao Alvares d’Oriente, tambem sugeriu na imaginagao de Camdes a norma dos idylios piscatorios. Elle se declara introductor d’este genero em Portugal fazendo a allianga de Virgilio com Sanazarro, como se vé por estes versos da Ecloga v1: Vereis... 0 estylo vario A nés novo, mas n'outro mar cantado De um que foi das musas secretario. O pescador Sincero, que amansado Tem o pego de Prochyta c’o canto, Por as sonoras ondas compassado. * Dreste, seguindo o som, que pode tanto, E misturando o antigo Mantuano Fagamos novo estylo, novo espanto. (1) Obr., t. v, p. 64. 16 HISTORIA DE CAMOES A maior parte dos poetas portuguezes do seculo xv1, sabiam versificar em lingua italiana; elles usavam fa- zer centoes dos versos de Petrarcha, comio se vé n’esta Satyra de Heitor da Silveira, amigo de Camées, em que introduz um verso do Soneto ccxx1x do grande ly- rico de Sorga: Di quel suave sguardo e quel bel viso, Que o manso esprito alegra, o fero abranda, (Certo entre nés signal de paraiso.) (1) Nos Lusiadas, canto 1x, estancia 78, usou Camées um egual centéo de Petrarcha: E notards no fim d’este successo: Tra la spiga e la man qual muro & messo. Nos Indices Expurgatorios de 1564, 1581 e 1597, véem-se condemnados muitos livros da poesia italiana da Renascenga, como os Epigrammas de Sanazarro, 08 Poemas, Odes, Sonctos e Cangdes de Pulci, e outros muitos. (2) Camées, como todos os outros poetas da Renascenga considerava a poesia itatiana como o the- souro aonde estavam recolhidas todas as expressdes do mais sublime amor. No Soneto xxv, reproduz aquelle pensamento de Dante, j4 abragado por Bernardim Ri- beiro: Ah gram tormento, Que mal pode ser mdr, que no meu mal Ter lembrangas do bem que é jd passado. Apud Obras de André Falcio, p. 339. 2) Vid. Historia dos Quinhentistas, p. 153. PARTE I.—LIV. I. CAP. I 17 Mas esta imitagdo da poesia italiana tornou-se uma moda ridicula na galanteria civil, do mesmo modo que em Inglaterra e Franca. Camées foi o primeiro a con- demnar os nossos euphuistas, que levaram o conceito alambicado para o ar melancholico. No Auto de Filo~ demo, Camées apoda: «Uns muito almofagados, que com dois ceitis fendem a anca pelo meio, e se prezam de brandos na conversagéo e de falarem pouco e sempre coinsigo, dizendo que néio dardo meia hora de triste pelo thesouro de Veneza.» EK no mesmo Auto, ridicularisa a casuistica do sentimento dos que se abonavam nos seus melindres amorosos com a authoridade de Bembo ou de Petrarcha: «todos vés outros os que amaes pela passiva, dizeis que o amor fino como melao, nao hade querer mais da sua dama que amal-a; e vird logo 0 vosso Petrarcha e o vosso Pietro Bembo, atoado a trezentos Platées, mais safados que as luvas de um pagem d’arte, mostrando razdes verisimeis e apparentes para nao que- rerdes mais de vossa dama que vél-a; e mais até fallar com ella.» Nos commentos dos Triumphos de Petrar- cha, Camoes cita com frequencia a authoridade de Pla- tao em casos de amor. (1) Até na sociedade portu- gueza de Géda, em 1553 se costumava «falar alguns amores de Petrarcha ou de Boseto,» como escreve Ca- moes na Carta 1 da India, onde faz o coutraste com o dialecto mascavado da terra. (2) Soropita, que venerava (1) Obr., t. v, p. 68, 181, 168. (2) Podemos fazer uma ideia d’este dialecto pela traduecdo do Evangelho de Columbo. 18 . HISTORIA DE CAMOES 0 genio de Camées, tambem allude ao ridiculo dos eu- phuistas portuguezes, cujas horas «ficavam-lhe reser- vadas para a poesia em que veiu a empolgar-se de ma- neira que de conceitos de Petrarcha e de Garcilasso e de outros beberrtes se lhe fez um charco 4 porta...» (1) A melancholia dos namorados, de que Camées chas- queava na phrase uma hora de triste, era um senti- mento novo que apparecia na alma moderna, e de que a Renascenga se ia apoderar para dar uma forma eterna na creagéo da Harmonia; Camées comprehenden o lado sério d’este sentimento, quando no Soneto x1, nos pinta o amor nao podendo existir sem o soffrimento: Passo por meus trabalhos tio isemto, De sentimento grande nem pequeno, Que sé com a vontade com que peno, Me fica amor devendo mais tormento, £ admiravel e8ta unidade de sentimento dos gran- des genios! Beethoven escrevia a Giulietta, em Carta de 6 de julho de 1806: «o amor néio € uma lei de sa- crificio?—— O teu amor, minha Gtulietta, faz o encanto eo tormento da minha vida.» O amor revelando-se no seu primeiro acto pela impressdo dolorosa, é descripto de um modo inexcedivel por Camées, no Soneto xv: : Mas com quanto no péde haver desgosto Onde esperanga falta, 14 me esconde Amor um mal, que mata e no se vé. (1) Poesias e Prosas, p. 38, PARTE II.—LIV. I. CAP. I 19 Que dias ha que n’alma me tem posto Um nfo sei que? que nasce nao sei onde? Vem, n&o sei como? e dée, ndo sei porqué ? N’este ponto a tradic&o provengal foi abragada pe~ los poetas-mysticos do christianismo, como 8. Fran- cisco de Assis, Jacopone de Todi, 8, Joao da Cruz e Santa Thereza de Jesus, que fizeram da dér uma sen- sualidade, Na Elegia v Camées illumina este vago sen- timento: . Oh bem aventurado seja o dia Em que tomei4ao déce pensamento, Que de todos os outros me desvia! E bem aventurado o soffrimento : Que soube ser capaz de tanta pena, Vendo que o foi da causa o pensamento. Facga-me quem me mata o mal que ordena, Trate-me com enganos, desamores ; Que entéo me salva, quando me condemna, E se de tio suaves desfavores Penando vive uma. alma consummida, Oh que déce penar, que déces déres! E se uma condig&o endurecida Tambem me nega a morte por meu damno, Oh que déce morrer! que déce vida! E se me mostra um gesto lindo, humano, Como que de meu mal culpada se acha, Oh que déce mentir! que déce engano! Cainées era um dos espiritos que mais sentiram a Re- 2 20 UISTORIA DE CAMOES nascenga, essa reacgio legitima contra o ascetismo da Egreja, como diz Seudo, (1) pela rehabilitagao da sensi- bilidade desconhecida e atrophiada. No meio do seu idealismo mystico, Camdes protesta pela realidade das suas queixas amorosas; no Soneto LXXXVII: : Nao sio isto que falo conjecturas Que o pensamento julga na apparencia, Por fazer delicadas escripturas. Mettida tenho a mio na consciencia, E nao fallo senao verdades puras, Que me ensinou a viva experiencia. E no Soneto cLxxxti confirma: Escrevi, nao por fama, “nem por gloria, De que outros versos sio merecedores. Se ao canto dei a voz, dei alma ao pranto, E dando a penna 4 mao, esta 86 parte De tristes penas escreveu. Quao longe esta esta realidade d’esses amores phan- tasticos das princezas do Oriente, como os sonharam os trovadores! O sensualismo da Renascenca é a rehabili- tagao dos sentidos como fontes dos nossos conhecimen- tos; 6 a observaciio e a experiencia arvoradas em cri- terio seguro para chegar 4 verdade. Para o mystico da edade media os sentidos eram portas do peccado, eram a seduccio permanente, sé vencida 4 custa de vio- (1) Op., p. 176. PARTE Il.—LIV. I. CAP. 1 21 lagoes da natureza, pelo cilicio, pelo sacco, pela solidao e pela contemplagéo nas trevas. Os sabios da Renas- cenga, exhaustos pela acedia da moral dos claustros sentiram uma nova juventude, como Fausto, ao recon- struirem pelas obras de arte a vida da antiguidade. A vida tornou-se uma alegria. Ulrich de Hiitten, dizia do espectaculo da Renascenga: « Oh seculo! os estudos florescem, os espiritos acordam, e é uma alegria o vi- ver.» As magras e estioladas imagens da pintura re- ligiosa da edade media, succede a carnagéo vigorosa da eschola de Veneza, de Veronese e de Giorgione; 4 melopéa lugubre do canto gregoriano, que embalava a vida como em continuo saimento, succede a harmonia festiva de Montéverde! 4s habitacdes escuras e baixas, como antros de anachoretas, succedem os edificios altos, arejados, ornados por dentro e por féra com pinturas, com o novo gosto da architectura civil. O olhar teme- roso do mystico sobre a natureza, transforma-se na observagiio profunda de Galileu, de Hervey e de Vesale, para quem o cadaver ji nao é essa cousa hedionda do catholicismo, que servia unicamente para trazer presente a ideia da morte, mas sim fica sendo um livro aberto para se estudar a vida. O que é essa poesia bucolica da Renascenga, hoje para nds tio enfadonha, scnéo o pri- meiro enthusiasmo sentido pela contemplagéo da natu- reza, até ali sempre condemnada? O sentimentalismo do seculo xx111, despertado por Jean Jacques Rousseau, na sua exageragéo faz-nos comprehender o gosto que no seculo XVI se tinha pelas Eclogas. 22 HISTORIA DE CAMOES * O sensualismo pagiio da Renascenga, fazendo ado- rar a belleza das formas, in’pirou os artistas do seculo XV e XvIa pintarem o Christo com a perfeicdo plastica, contra todas as tradigdes da Egreja. 8. Clemente da Alexandria, avisando os fieis de que se nao deixassem enlevar pela belleza exterior, diz na Pedagogia: « A ap- parencia exterior do Senhor era feia; e quem foi me- Ihor do que o Senhor? Elle nao revelou em sua pessoa a belleza corporal...» Sem o genio da Renascenga, que se apaixonon pelas formas gregas, como ¢ que Ra- phael e os grandes artistas da Italia conseguiriam im- por as tradigées classicas 4s tradigdes evangelicas, crear essas bellas imagens de Christo, diante das quaes 8. Thereza de Jesus, Ozana de Mantua ou Santa Rosa de Lima caiam em extasis mysticos, abrasadas no amor divino? Um dos ramos dos gnosticos, os Carpocratia- nos, representavam em commum as figuras de Christo e Platao; a Renascenca, que tambem foi theurgica na sua primeira elaboracao scientifica, fez mais do que isto, foi buscar em Platao a theoria do amor, com que Christo tinha realisado o sacrificio da redempcao. Quando vémos como o maior naturalista da Alle- manha, Humboldt, demonstra 4 evidencia a grande ver- dade com que Camées observou os phenomenos da na- tureza, a quem elle chama «no sentido proprio da pa- lavra um grande pintor maritimo» é que se compre- hende quanto o espirito sensual da Renascenca pene- trou a alma de Camées. A contemplagio do bello, tor- | PARTE 11.—LIYV. I. CAP. I 23 na-se para elle quasi um prazer material, que compara a um alimento: (Soneto XVII.) Quando da bella vista e doce riso Tomando estiio meus olhos mantimento... E assim considerado, 0 amor torna-se uma ancie- dade, que é preciso satisfazer como uma necessidade organica: Olha que com pressa o tempo véa, E como, com corrida presgurosa Calladamente a fim tudo caminha ; Procura de gosar de tua pessoa; Porque depois de secca a fresca rosa, Sem prego e sem valia fica a espinha. Confesso-te que a graga que ella tinha Se o tempo quiz tirar-lh’a, O mesmo torna a dar-lh’a; E se perdea sastio que a enobrece Ao outro anno reverdece; Mas tua sasio fresca se se perde, Nao cuides que jamais se torna verde. (1) Esta ancia de amor é maior do que esse grito dos poetas romanos —— « Coronemus nos rosis, antequam mar- cessant.» « Quando Camoées descreve o amor, é pelos sentidos que chega a fixar-lhe as mais delicadas caracteristicas. O Soncto xxxv sé podia ser sentido em um seculo em que pintava Paulo Veronese; para Camoes é 0 amor: « Um mover d’olhos, brando e piedoso Sem ver de que; um riso brando e honesto Quasi forgado; um doce e humilde gesto De qualquer alegria duvidoso. (1) Cangiio xx, 24 HISTORIA DE CAMOES Um despejo quieto e vergonhoso ; Um repouso gravissimo ¢ modesto ; Uma pura bondade— manifesto Indicio d’alma, limpo e gracioso. Um encolhido ousar ; uma brandura, Um medo sem ter culpa; um dr sereno, Um longo e obediente soffrimento ; Esta foi a celeste formosura Da minha Circe, ¢ o magico veneno Que péde transformar meu pensamento. . A Circe que encanta, é aqui a reminiscencia da an- tiguidade classica que vinha ajudar a rehabilitar a natu- reza & grande alma da Renascenga. Camées pede con- stantemente 4 antiguidade a imagem sensual para ex- primir a impressio intima, para a qual ainda nao tem criada a linguagem metaphysica, Na Cangio 1, retrata - o amor sob a allegoria cupidinesca :- Das delicadassobrancelhas pretas Os arcos com que fere, Amor tomou, E fez a linda corda dos cabellos E porque de vés tudo lhe quadrou, Dos raios d’esses olhos fez as settas Com que fere quem alga os seus a vel-os. A tradig&éo de Mithridates explica-lhe 0 modo como resiste ao soffrimento: (Soneto ccLxxv.) Como quem se costuma de pequeno Com peconha eriar por mio sciente, Da qual o uso j4 o tem seguro; Assim de acostumado c’o veneno O uso de soffrer meu mal presente Me faz nio sentir jA nada o futuro. PARTE If.—LIV. I. CAP. I 25 Na ferida que Ihe faz o amor, compara-se ao heroe antigo Telepho: Ferido sem ter cura parecia O forte e duro Telepho temido Por aquelle que n’agua foi mettido, E a quem ferro nenhum cortar podia. Quando a apollineo Oraculo pedia Conselho para ser restituido, Respondeu-lhe : —- Tornasse a ser ferido Por quem o ja ferira, e sararia. Assi, senhora, quer minha ventura Que ferido de ver-vos claramente Com tornar-vos a vér Amor me cura... + (Soneto xxx.) A comprehensao do ideal da antiguidade, o senti- mento da natureza despertado tambem pela revolugio artistica do seculo xvi, levam a esse pantheismo, em parte tradicional e em parte moderno, da nova poesia lyrica. Para Camées a belleza da sua dama reproduz em si a graga da natureza que a circunda: Esté-se a Primavera retratando Em vossa vista deleitosa e honesta; Nas bellas faces, e na bocea e testa, Cecens, rosas e cravos debuxando. (1) No Soneto xxiv repete: A vés, seu resplendor deu sol e lua, A véz com viva luz, graga ¢ pureza Ar, Fogo, Terra e ‘Agua vos gerviu. (1) Soneto xxvur. 26 HISTORIA DE CAMOES Este pantheismo poetico leva Camdes a tocar os ca~ racteres mais profundos da Philosophia da Renascen- ca; para Camoes, o Amor ¢ a consciencia da natureza, ea manifestaciio da unidade universal. Na Cancaio vit expoe estas ideias platonicas de um modo surprehen- dente: . Um nio sei que suave, respirando Causava um admiravel novo espanto, Que as cousas insensivets o sentiam... Porque quando vi dar entendimento 5 cousas que o ndéo tinham, o temor Me fez cuidar que effeito em mim faria! Conheci-me nao ter conhecimento. Assi, que indo perdendo o sentimento A parte racional, me entristecia Vel-a a um appetite submettida... Oh grio concerto este! Quem ser4 que nao julgue por celeste A causa d’onde vem tamanho effeito, Que faz n’um coragio Que venha o appetite a ser razdo! Parece 0 mesmo espirito da maxima de Plotino: «Onde passar 0 amor, nada tem que fazer a intelligen- cia.» Vejamos como o Amor, em Camées, o leva 4 com- prehensao dos altos problemas da sciencia. Pelo amor, chega @ nogao da lei da gravidade, ainda nao formu- lada no seculo xvi: Pede o desejo, Dama, que vos veja, Mas este puro effeito em mim se dana. Que como a grave pedra tem por arte O centro desejar da natureza, PARTE II.—LIV. I. CAP. I 27 Assi, meu pensamento, por a parte Que vae tomar de mi, terreste e humana, Foi, senhora, pedir esta baixeza. (1) O amor leva-o 4 intelligencia do Bello, como o de- screve hoje a philosophia, o ponto aonde todas as vonta~ des se harmonisam independentemente de accordo: Formosura, do céo té nés descida, Que nenhum coragao deixas isemto, Satizfazendo a todo o pensamento, Sem que sejas de algum bem entendida. (2) E tambem o amor, que lhe revela o infinito, como o reconhece no Soneto cxxx: O desejado sempre é mais perfeito Porque tem parte alguma de infinito; Dar a uma alma immortal goso prescripto, Em verdadeiro amor fora defeito... E entdo que o genio creador Ihe descobre que a Arte 6 0 unico meio de fixar em formas limitadas 0 que ha de infinito na belleza: - - Presenga moderada e graciosa, Onde ensinando estiio despejo e siso; Que se pode por Arte, e por aviso Como por Natireza, ser formosa. (3) Por isso 0 amor é 0 mais seguro criterio para pene- trar o sentido da obra de arte, como declara Dante: (1) Soneto uxvi. (2) Soneto xxx, (3) Soneto LXXVIL. 28 HISTORIA DE CAMOES Questo decreto... sta sepolto AIP ochi di ciascun il mi ingegno N’ella fiamma @’amor no é adulto. E Camées abre a collecgao dos seus Sonetos, con- fessando: E sabei, que segundo o amor tiverdes . Tereis o entendimento de meus versos. Na Ecloga vu, Camées attribue a origem da crea- Gio ao Amor, principio de toda a unidade: Amor é um brando affecto Que Deus no mundo poz e a natureza Para augmentar as cousas que creou. _De Amor estd sujeito Tudo quanto possue a redondeza, Nada sem este effetto se gerou, Por elle conservou A causa principal o mundo ousado, D'onde o pae famulento foi deitado. As cousas elles as ata e as conforma, Com o mundo, e reforma. A materia. Quem ha que o nio veja? Esta ideia do Amor explica-lhe a relacio entre a es- piritualidade e a férma, no Soneto x: E 0 vivo e puro amor de que sou feito Como a materia simples busca a forma. Explica-lhe a evolugaéo sempiterna, que constitue a vida infinita da creagio; no Soneto Lv, formula quasi a theoria da natureza de Lucrecio: PARTE 1I.—LIV, 1, CAP. I 29 Mudam-se os tempos, mudam-se as yontades, Muda-se o sér, muda-se a confianga; Todo o mundo é composto de mudanga Tomando sempre novas qualidades. E apés este mudar-se cada dia, Outra mudanga faz de mér espanto, Que néo se muda jé como sohia, Essa ideia de Edgar Poe, em que expde sob a forma phantasiosa a origem do universo derivada de um acto da vontade, apparece em Camoes na Elegia XI: ee vee ee que fundou Oc 0, a terra, o fogo, o mar irado; Nao do confuso cdos, como cuidou A falsa Theologia, e¢ povo escuro, Que n’esta 86 verdade tanto errou. Nido dos Atomos leves de Epicuro, Nao do fundo Oceano, como Thales, Mas sé do pensamento casto e puro. E ainda seguindo o espirito da primeira Rena- scenga, que na Hlegia x1 Camées equipara o principio da justica eterna ao amor: : Esta potencia, emfim que tudo manda, Esta Causa das causas, revestida Foi d’esta nossa carne miseranda, De amor ¢ da justiga compellida, Diante d’estes factos, pdde Camées dizer na Can- cao XIV: . D’onde Eschola de Sabios nunca viu Em natural sujeito Quanto amor em meu peito deseobriu. 30 HISTORIA DE CAMOES O caracter mais profundo da Renascenga— o indi- vidualismo,—que a Reforma desenvolveu, corrigindo o que havia de auctoritario na admirag&o pela antigui- dade, apparece formulado em Camées, como quem in- fluenciou no seu seculo. O livre arbitrio é affirmado no Soneto coxxXI: . ee Caso e Fortuna podem acertar ; Mas 86 por accidente dio victoria; Sempre o favor da fama é falsa historia. Excede a o saber — determinar ; constancia, se deve toda a gloria; O animo livre, é digno de memoria. Essa grande maxima de Vico determinada na ordem historica—o homem é obra de si mesmo,—~é por Ca- mées deduzida do mundo moral, no Soneto cXxxII: Abrir-se devem passos 4 ventura, Sem si proprio, ninguem seré ditoso, Os principios sémente a sorte os move. O scepticismo critico, que comecou no seculo xvr e Wonde se deriva toda a civilisagéo moderna, apparece no final do Soneto cxcv: Casos, opinides, natura e uso, Fazem, que nos parega d’esta vida Que nado ha n'ella mais do que parece. Apezar da vastiddo do seu espirito, Camées era an- -tes de tudo um artista; educado sob a direcgSo catho- PARTE II.—LIV. I. CAP. I 31 lica, falta-The a analyse impassivel de um Kant, e a0 conhecer a direcgio experimental da sciencia moderna, yacilla entre 2 negag&éo e a crenga, e declara-se com uma certa ironia pela contemplagéo mystica: (Soneto CCOXXXVI.) Effeitos mil revolve 0 pensamento E nao sabe a que causa se reporte; Aas sabe, que o que he mais que vida e morte Néo se alcanga de humano entendimento. Doctos varies dariio razdes subidas; Mas séo as experiencias mais provadas, E por tanto € melhor ter muito visto. Cousas ha hi que passam gem ser cridas; E outras cridas ha sem ser passadas, Mas o melhor de tudo é crer em Christo, Erasmo nunca teve um relampago de ironia e de bom senso como este. Em nenhuma literatura da Re- nascenga, a poesia acompanhou mais de perto a revo- lugao philosophica, do que em Portugal. Nenhum dos afamados poetas da Eschola quinhen- tista, se dignou citar o nome de Camées, n’esses Sone- tos e Epistolas ad sodales, aonde quasi sempre relatam as minimas particularidades do seu viver intimo; en- commodava-os a sombra d’esse gigante, que pretendiam abafar sob um desdenhoso silencio, sem se lembrarem que n’esse esforgo mesquinho davam a conhecer invo- luntariamente que lhe competia um logar d parte e acima de todos. O tempo com a impassibilidade fatal da sua logica péz esta conclusiéo em toda a sua luz, Camdes 82 HISTORIA DE GAMOES nio dogmatisava canones rhetoricos, nio exercia o prestigio de uma~alta posigdéo social, nio gosou uma vida sedentaria entregue ao ocio doce da literatura, que Cicero desereve. com transporte, néo brindava os prin- cipes com as collecgdes dos seus versos; mas exerceu apezar de tudo, uma profunda influencia, tacita, lenta e manifesta. E por que elle comprehenden o espirito da Renasceng¢a, e elevou-se pela rehabilitagdo da natureza 4 posse da verdade; nos seus Sonetos repassados de plato- nismo mystico, Camoes suggeriu em volta de si a aspi- racdo 4 verdade do ideal. Os seus editores, que folhea- ram as collecgées manuscriptas do seculo xvi, acharam a prova material d’esta imitacdo; grande parte dos So- netos de Camées andam n’esses Cancioneiros de mao em nome de outros poetas: como de Francisco de An-: drade se achou o Soneto 66 de Camoes; em nome de D. Manoel de Portugal, os Sonetos 90, 216, 225, e 226; em nome do Conde de Vimioso, o soncto 112; no de Luiz Alvares Pereira o 102; no do Infante D. Luiz os 231, 233 e 237; no de Martim de Castro os sonetos 258, 262 e 263; no do Marquez de Astorga, 0 223; no do Dr, Ayres Pinel, 0 218; em nome de An- dré Falcdo de Resende, 0 197; como de Vasco Mousi- nho de, Quevedo, o 188; 0 soneto 217 tambem appa- rece em nome de 84 de Miranda; o soneto 165 achou-se com o nome de D, Francisco de Acufia; Dom Diogo de Mendoza assignava os 161, e 165; Pedro da Cunha o 261; 0 Dr. Alvaro Vaz, 0 264; Balthazar Hstago o 316; sob os nomes de Francisco Rodrigues Lobo, Hen- PARTE [J.—LIY. I. CAP. I 83 rique Nunes de Santarem o soneto 833; 0 mesmo sob o nome de Hstevam Rodrigues, bem como o numero 348; com o nome do seu collector Soropita andavam os sonetos 116, e 209, e a Hlegia xxvi. Era uma espe- cie de communhio sentimental nascida das copias de predilecgéo, as quaes por explicarem de um modo per- feito a situagaio moral do que as lia, faziam esquecer a particularidade de quem eram para as abracarem como proprias emquanto 4 expressio do sentimento. A perso- nalidade do auctor diffundia-se na generalidade humana; a sua queixa vibrava como a angustia de todas as al- mas. Que maior gloria do que ser plagiado assim! por esta synthese profunda do sentimento chega o individuo a entrar na penumbra da concepgao dos poemas ano- nymos e seculares, com que a humanidade conta a sua existencia collectiva. SOAPITULO II André Falco de Resende Os poetas jurisconsultos do seculo xvr.—André Faleio de Re- sende, filho do jurista e poeta Jorge de Resende, nasce em Evora em 1535.— Modo como se determina esta data. —Era protegido da Casa dos Duques de Aveiro.— Epova da com- posicdio do poema da Creagéo do Homem, attribuido errada- mente a Camées. —O falso allegorismo poetico.— Versos au- tobiographicos de Falco de Resende. — Seus primeiros amo- res e casamento clandestino; repellido da casa paterna. — Relagdes com André de Resende, e a amisade litteraria no seculo xvr.-—~ Falcaio de Resende casa com D. Leonor da Sil- veira ; seu parentesco e relagdes intimas com o illustre guer- reiro e poeta Heitor da Silveira, —A vida de familia na pro- vincia comparada com a de Lishoa.— Intimidade com Jero- nymo Corte Real.— Poetas, hoje ignorados, dos quaes d4 no- ticia, Faledio de Resende.—Epoca em que teve relagdes com Luiz de Caindes, depois de 1572. — Protecgiio de D. Francisco de Menezes.— Nomeado Juiz de Féra de Torres Vedras cm 1577. — A derrota de Alcacer Kibir.— Falciio de Resende segue 0 partido de Castella Versos seus a Philippe n, e a0 general da Invencivel Armada.— Sua viagem a Madrid. — Falcio de Resende morre da peste de Lisboa de 1599, — Vi- cissitudes dos manuseriptos de seus versos, até 4 edigdo de Coimbra.— Seu caracter litterario. Quasi todos os poetas lyricos portuguezes da gran- dé epoca de quinhentos foram jurista ; ¢ porque no se- culo xvi o estudo da juris rudencia romana fazia-se de preferencia elo lado *t ~ ‘io para se penetrar o sen- tido das formulas civis que se procurava adaptar 4 so- ciedade moderna. Sabendo-se quanto as Satyras de Ho- racio auxiliam a intelligencia do jurista que precisa re- compér o direito romano, como o provou Benech, com- prehende-se como André Falcéio de Resende foi em Portugal levado por instincto a tentar uma primeira PARTE II,—LIV. I. CAP. II 85 versio de Horacio, Além da grande influencia littera- ria da eschola cujaciana, André Falcado de Resende era natural de Evora, a cidade classica por excellencia, aonde a descoberta de monumentos romanos provocou de um modo exaltado o estudo da antiguidade, Este poeta esteve desconhecido até ao anno de 1854, porque as suas obras ficaram ineditas, e sé muito tarde se en- contraram trez manuscriptos, hoje collacionados ‘para uma edic&éo comecada na Imprensa da Universidade. André Falcio de Resende foi amigo de Camées no tem- po da sua desgracga, dedicou-lhe versos, e bastava ter rompido nobremente o silencio dos outros quinhentis- tas, para merecer um testemunho de respeito ante a posteridade. Era filho de Jorge de Resende, poeta do Cancioneiro geral, e de Lucrecia Faledo, e sobrinho do celebre poeta e chronista aulico Garcia de Resende. (1) Scu pae era tido no seculo xvi como um oraculo da Ju- risprudencia, exercendo o cargo de Juiz dos Orfaos em Evora. Dos seus primeiros annos fala André Falcao de Resende a seu irmao Antonio de Resende na Batyra VI, que lhe dirigiu para a India: Em Evora, cidade populosa, - Nascemos dez, em rica e nobre casa N’uma conversag&o doce e amorosa, (2) Dos dez filhos de Jorge de Resende apenas temos (1) Vid. a sua biographia em Bernardim Ribeiro e os Bu- colistas, p. 205 a 213. (2) Obras, p. 320, verso 130 a 132, 36 HISTORIA DE CAMOES noticia de sete, que sio alem dos dois ja citados, Garcia de Resende Faledo, Frei Braz de Resende, Filippa Botta, Guiomar Faledéo e Leonor Faledo. Jorge de Re- sende deu a seus filhos a educagiio que se usava no se- culo xvI, mandando um para o estudo dos dois direi- tos, outro para as armas e mercancia do Oriente, ou- tros para as ordens monasticas. Esta allusaio do poeta 4 nobreza da sua casa, confirma-se pelo facto de ter sido Jorge de Resende enterrado em Evora na Capella do Espinheiro, especie de pantheon da principal aristocra- cia portugueza; quanto 4 riqueza, confirma-se pelo que diz Fonseca, na Evora gloriosa, acerca dos seus vastos conhecimentos de direito. A epoca em que nasceu An- dré Falefio de Resende é ignorada; comtudo pelos processos inductivos podemos com certeza fixal-a em 1535. Na Satyra vi, a seu irmao Antonio de Resende, declara: Irm&o, dos cineoenta annos jé passémos... Ora sendo possivel determinar o tempo em que essa Satyra vi foi escripta, tira-se uma conclusio infallivel. Procurando n’ella alguma referencia historica, apenas se acha uma allusio ao costume introduzido pelos je- suitas de ensinarem 4s criancas a doutrina christa em cantigas: Com t&o certos e claros fundamentos O livre alvidrio sempre guarde e siga, De Deos e sua Igreja os mandamentos. PARTE I.—LIY. I. CAP. II 37 Com estes, n’alma, irrevogavel liga Sempre hade haver contra os imigos d’ella; Aos meninos se ensina isto em cantiga. (1) No anno de 1588, o Padre Ignacio Martins inau- gurou o uso de ensinar”a doutrina 4s criangas em cantigas que elle mesmo compunha; sala hallucinado para as ruas com uma bandeira aos hombros, a que elle chamava pendio da Santa Doutrina, tocando uma campainha, ao som da qual as maes mandavam apoz elle os filhos, e os mestres os seus discipulos. Este facto enluctava a cidade de Lisboa, e a grande impressio que causava no espirito publico explica-nos a razio porque Falefio de Resende se referiu a elle. O verso: «Aos meninos seensina isto em cantiga,» fica authenti- cado com esta passagem da Chronica da Companhia pelo padre Balthazar Telles: «e para que os meninos fugis- sem de musicas deshonestas, fez compér, e elle mesmo compoz algumas cangdes espirituaes e cantigas devo- tas... ¢ estas thes fazia tomar de cdr, e \hes fazia cantar de dia e de noite, etc.» (2) O Padre Ignacio t (1) Obras, p. 318, v. 76 a 81. (2) Epopéas da Raga mosarabe, p. 314. Na celebre e popularissima Cartilka do Padre Ignacio, hoje rara nas livrarias, se encontram as Cantigas alludidas, ue entdo se ensinavam 4s criangas. Trazem a rubrica : «Can- tigas devotas dos quinze Mysterios do Rosario de Nossa Senho- ra, que os Padres da Companhia de Jesus trouxeram a Portu- gal na era de 1563.» (p. 214, ed. 1758.) Esta data nao altera a que adoptamos do Padre Balthazar Telles, porque esta ulti- ma explica a adopgio do novo costume. Suppomos que as can- . 38 HISTORIA DE CAMOES Martins, depois de levar em frente de si um exer- cito de criangas, dava assaltos aos Pateos das Comedias, expulsava os actores, subia ao paleo e d’ali doutrinava ex-abrupto os espectadores, como por mais de uma vez succedeu no Pateo das Arcas. (1) Parece que d’aqui ti- rou André Falcéo de Resende a imagem catholica da falsidade da vida: Neste theatro tao capaz do mundo Quantas fargas cada hora representam Ou de triste argumento ou de jucundo ! (2) tigas a que allude André Faledo de Resende sio as seguintes do Padre Ignacio Martins: Da emenda da vida Quem na gloria quer entrar, Que aos bons é promettida, Deve logo com Vida nova, nova vida. Na celestial cidade Disse 0 Anjo 8. Joao, N&o entrara fealdade, Nem nodoa de corrupsSo. De de who 4 vaidade, Abomine ao jurar, Viva bem, trate verdade, Quem na gloria quer entrar. Quanto Deus fez cé na terra Para bons e mais creou; Maas 0 que no Céo se encerra, Para os bons wé o guardou, Quem de si tiver victoria Com obras e santa vida, Segura tera a gloria Que aos bons é promettida. Chega-te 4 confissio, Se queres ser perdoado; Foge da occasiao Pois be lago do peceado. Vé que tens grande jornada, Da-te pressa a caniinhar ; Quem no céo quer ter entrada Deve logo comesar. Examina cada dia Tua alma com diligencia, Terds paz e alegria Que da boa consciencia. Anda sempre vigiando, Pois nfo sabes da partida; ‘A morte te anda buseando; Vida nova, nova vida. (1) Historia do Theatro portuguez, t. m, p. 124 a 128, (2) Satyr. vr, v. 10-12, PARTE 11.—LIV. I. CAP. II 39 Fixada a Satyra vi em 1588, como os factos allu- didos o provam, segundo vémos pela Chronica do Pa- dre Balthazar Telles, e tendo n’este tempo o poeta mais de cincoenta annos vé-se que elle nasceu em 1535, por que ajuntando a esta data cincoenta e trez annos vem corresponder a 1588; entre o poeta e seu irmio Anto- nio de Resende, existiu um outro irmao, Garcia de Re- sende Fale&o, nascido em 1536, e ja fallecido; Anto- nio de Resende contava entdo a esse tempo cincoenta e um annos de edade, que é quanto vae de 1537 a 1588, © que concorda com o verso 127 da Satyra. André Falcdo de Resende frequentou o curso de Direito, por ventura aos dezoito annos de edade, por que em 1553 apparece o seu nome inscripto na matri- cula dos fidalgos da Casa do Cardeal Infante D. Hen- rique, aonde se declara tambem a sua filiag&o, a qual concorda com a que trazem os Nobiliarios. (1) Podemos tambem fixar o tempo da sua formatura em 1558, por- que na Pedatura Luzitana (2) se diz, que elle foi le- trado e Ouvidor da Casa de Aveiro, e como se sabe foi em 1557, que el-rei D. Jodo 11 creou este titulo, para o dar a D. Joao de Lencastre em troca do ducado de Coimbra. Tambem os primeiros versos de André Falcéo de Resende foram offerecidos ao primeiro representante desta illustre Casa. O poema da Microcosmographia e descripgado do Mundo pequeno, que é 0 Homem, em trez (1) Sousa, Provas da Hist. geneal., t. v1, p. 682. (2) Pedatura, t. v, fl. 208 v. a 209 v. Bibl. do Porto, Ms. 446. . 40 HISTORIA DE CAMOES . cantos em outava rima, foi dedicado a D. Jorge de Len- castre, bisneto de D. Joao 11; em um Soneto que serve de dedicatoria, diz: Do Magnanimo e invicto Judo Segundo, Do Santo Rei, bisneto, a nés primeiro, Da Casa de Coimbra, e da de Aveiro Primeiro e bem nascido sol jueundo: Illustrissimo Duque, em todo 0 mundo Honra, luz d'elle, e espelho verdadeiro ; A ti, a quem se deve o mundo inteiro, Favor pede, e se di o Pequeno mundo. (1) Em umas Sextinas, que servem tambem de dedica- catoria ao mesmo poema, mais conhecido pelo titulo de Creagio do Homem, vem a rubrica: «Ao Duque de Aveiro, que morreu em Africa.» Este segundo Duque de Aveiro D. Joree de Lencastre, morreu na batalha de Alcacer Kibir, em 1578; mas esta rubrica em nada péde demorar a epoca da composicso do poema, porque a copia da antiga aonde ella se acha, foi feita depois de 1599, como se deduz d’esta outra rubrica, da Epis- tola v: «Lista Epistolu tenho duvida ser do Author, mas achei-a entre os seus papeis.» (2) & de crar que a offerta do poema ao joven Duque de Aveiro fosse uma das causas priftcipaes porque André Falcao de Resende foi recompensado com o officio de Ouvidor d’aquella grande e opulenta Casa. O poema da Microcosmogra- (1) Obras, p. 67. . . (2) Obras, p. 892. PARTE I1.—LIV, I. CAP. IT 41 phia imprimiu-se pela primeira vez em 1615 sob o nome de Luiz de Camées, e tem andado na collecgao das suas obras até 4 mais recente edigio, de 1862, da qual o shr. Visconde de Juromenha diz que o nfo re- jeitou: «para seguir o exemplo de todos os outros edi- tores... para néo ficar a edigéo truncada.» (1) Um dos mais esmerados collectores das obras de Camées, 0 livreiro Domingos Fernandes, em uma dedicatoria ao Arcebispo D. Rodrigo da Cunha, confessa: «e na mao de muitos Senhores illustres achei tres Cantos da Crea- ao do Homem, em outava rima, que vio no fim d’este livro, e tendo-os impressos, V. 8. me afirmou nfo se- rem seus (de Camées); mas como se tinha impressos por ser obra muito boa e com o nome do Author a dei- xei hir, estando esta obra comegada.» As licencas para a impressio d’este poema estavam passadas desde 4 de de Setembro-de 1608, e sé foi impresso em 1615 para se ajuntar 4 edigao das obras de Camoes de 1616, da qual se imprimiram mil e quinhentos exemplares. Faria e Sousa, nao podia perdoar este peccado de attribuirem a Camées esse poema didactico, e na sua ingenuidade de commentador protesta com esta forma pittoresca: «mal criado fue todo aquel a quien se puso en la mo- lera que eran de Luiz de Camoes aquellas malditas co- plas.» Segundo Faria e Sousa, este poema é imitado da segunda parte do-livro de anatomia intitulado Sueto del Marquez de Mudejar, D, Luiz Hurtado de Mendoza, (1) Ed. Jur., Obr., t, m1, p. 517. . 42 HISTORIA DE CAMOES impresso pelo medico Bernardino de Mentana, no anno de 1551. Esta data justifica a composicio do poema antes de 1558, como provamos, por causa da novidade da impressio; o medico Pedro Gomes, exaltou esta composic&o em versos latinos, dizendo que Falcéo ex- cedia Virgilio e Homero: Carmina Virgilius nec quae facundus Homerus, Quam quae, Lysiadum totius gloria gentis, Andreas clarus diserto protulit ore. ft) A exageragio do medico Pedro Gomes justifica-se, primeiro, porque em 1558 ainda nfo havia apparecido na poesia portugueza um poema didactico, como reque- ria o genio erudito da Renascenga; além d’isso, como medlico, o vér a anatomia prestar-se a uma allegoria poe- tica, com sentido catholico e moral, lisongeava-lhe a sciencia, rehabilitando-a do horror que ainda entio se tinha de estudar o organismo no cadaver. Cremos tam- bem que o poeta latinista Pedro Gomes teria dirigido Falcdo de Resende na sua composicio, como vémos pela linguagem technica que elle emprega nas siglas expli- cativas. O poeta representa o corpo humano como um edificio; no Bhagavad-Gita, jd 0 corpo do homem era figurado como a cidade das nove portas. (2) A allego- ria é uma faculdade poetica importante, quando pro- voca a creagéo; porem quando se fica n’ella como unico (1) Obr., p. 73. (2) Estudos da Edade Media, p. 46. PARTE JY.—LIV. I. CAP. IT 43 resultado, é de uma puerilidade e prosaismo inadmissi- vel. O poema da Microcosmographia, por isso que era in~ dividual cain n’este perigo da allegoria; alli os pés sao denominados pedestaes, as pernas columnas, os cabel- los musgos e hervas, o estomago é a cosinha, os olhos duas janellas, a bocca 0 grao portal, os bragos robus- tos carreteiros, os dedos os cinco criados, os dentes os trinta e dois moleiros, e assim por diante sem aquella poesia da giria popular, que tém os nomes d’estas par- tes do corpo. A Microcosmographia & uma composigao da mocidade de Falcio de Resende; no atrevimento da inovacdo de palavras se conhece isto, como ein domes- tiqueza, suaveis e outras muitas; 6 tambem um pri- meiro ensaio de poema didactico na lingua portugueza, e como tal digno de estima e de estudo. A proteceiio que Falcdo de’ Resende encontra a na Casa dos Duques de Av iro, levou-o tambem a dedicar um hiro de poesiz a D. Pedro Diniz, filho segundo do primeiro Duque. O Soneto xvil, que acompanhava o brinde, traz a rubrica: « dando-lhe um Livro de poesia ;» n’elle se refere a uma certa lucta e agitagéio da vida, e ao favor que enco trava n’aquella illustre Casa: Espera com razio de ti favores N’um tempo tao contrario e tao malino, Todo espirito gentil e peregrino, Para poder algar-se em teus louvores... Achando pois em ti honra e amparo, Da triste hypocrisia a m4 zizania, D’entre o bom fruito e flores deita féra. 3 “A -HISTORIA DE CAMOES -' Qual o motivo d’estas queixas, suppémos dever at- tribuir-se a um casamento clandestino e 4 estreiteza de meios provocada por esta falsa posigio em que se collo- cara. Pelas suas relagdes com a Casa de Aveiro, devia Falcdo ter conhecimento do poeta Antonio Ferreira que era filho do Escrivio da Fazenda do Duque de Coimbra; mas nos versos d’estes dois poetas nfo se en- contra uma minima allusio por onde se descubra 0 te- rem cultivado a amizade e o commercio litterario. Através do laconismo heraldico dos Nobiliarios, co- nhece-se qual o caracter de André Falcio de Resende; -na Pedatura Lusitana, diz Alio de Moraes, ao fallar este poeta: «Casou duas vezes, ambas a furto, a pri- meira com uma filha de Luiz de Almeida, Escrivao d’Evora, da qual teve Luiz Falcéo de Resende, que morreu solteiro, e casou a segunda vez com...» Seu pae Jorge de Resende, como vémos pelos versos que delle restam no Cancioneiro geral, tambem foi um apai- xonado galanteador (1); 0 seu primogenito, e joven le- trado, refinou este caracter amoroso; os casamentos clandestinos eram um abysmo na sociedade portugueza do seculo xvi, como vémos pela historia do primeiro Duque de Aveiro, e pelo mavioso Crisfal. A sua pri- meira viuvez refere-se o Soneto virt, aonde diz que tinha vinte annos a finada: De quatro lustros era sua edade, O saber de mil lustros, e a figura. E de mil lustros seré a saudade. (1) Bernardim Ribeiro e os Bucolistas, p. 204 a 213. PARTE II.—LIY. I. CAP, IT 45> No Soneto 1x descreve este mesmo sentimento, de um modo mais pessoal, o que nos mostra réferir-se a si: Este sepulchro pobre e pouca terra, Que vés, oh tu que passas estrangeiro, Se és d’haver cubigoso verdadeiro, ‘Um rico e grio thesouro dentro encerra. Pelo ganhar, a muitos causou guerra; - A mim pelo perder, cruel marteiro: Mas quem ca nol’o quiz mostrar primeiro, A apural-o ao Céo 0 levou da terra. Se nos lembrarmos que a morte de 84 de Miranda succedeu no anno de 1558, temos tambem fixado o tem- po em que Falcio de Resende teve relagées litterarias “com este chefe da Eschola italiana em Portugal, que entio vivia completamente sequestrado da vida publica na provincia; 4 sua qu’ntada Tapada chegavam os fer- vorosos testemunhos de respeito da geracdéo nova, que abracava a direcoéo mais justa que dera 4 poesia por- tugueza. Foi ao rema ‘ros seus estudes juridicos, que André Falcéo de Resende, envion 0 Soneto xvi «A Francisco de Sd de Miranda, mandando-the uns versos: Illustre S84, d’alto sangue e engenho, A v6s humildes versos offerego D'estylo inculto e grande estrilidade; Mas em que pouco dou, pois é 0 que tenho. Se este ser pouco, emfim, lhe abate o prego ‘Ante vés o abone a 8a verdade. Por effeito do seu primeiro casamento, André Fal- * 46 ~ _- HISTORIA DE CAMOES céo de Resende viu-se forgado a viver féra de Evora, para arranjar meios de subsistencia; escrevendo o So- neto xvii ao celebre antiquario André de Resende, de- screve esta saudade da patria: Da nossa antiga Casa e genealogia, - Lucio Resende, resplendor perfeito, De virtudes, rarissimo sujeito, De humana e divinal sabedoria. A fortuna, com quanto noute e dia Com mil males me oprime e tem sujeito, O mér pezar que hei que me tem feito, E nito vos poder vér como eu queria. Era André de Resende, pelo seu caracter bondoso e edade, o confidente dos desgostos do poeta; na Sa- tyra I, que tem a rubrica «Satyra ou Elegia ao Doutor Mestre Lucio André de Resende» conta o poeta letrado o desgosto da sua vinvez e allude ao unico filho que Ihe ficara: Clarissimo Doutor entre os Romanos Dos que em Parnaso mais esto no cume, Lucio Resende e luz dos Luzitanos; Querendo-te escrever o que consumme Meu peito, como Ticio, foi lembrar-me Como em tudo poder tem o costume. Esta lembranga fez atraz tornar-me ; E a penna que levava sua via Parando o estylo e verso fez trocar-me. Costuma-se (inda mal) hoje este dia Morder mais que eserever; pelo qual venho Nem Satyra escrever-te nem Elegia. (1) (1) Sat. 1, v. La 12. PARTE II.—LIV. I. CAP. II aT t Condemnando a séde de ouro, e a grande emigra- gio da fidalguia portugueza que se deu para a India depois de 1550, vem a falar dos seus desgostos: A mim um mal sem cura, e sem espr’anga D’alguns bens que vi ja, e niio vejo agora, Onde quer que lhe fujo 14 me alcanga. E fora eu mais ditoso se me fora -A hora do maior contentamento De minha vida a derradeira hora. ‘ Apés um bem, vi eu dér e tormento; Apés um mal, mil males outros vi, Que em males tem Fortuna mais assento. (v. 244 a 252.) A dura Parca, que a ninguem responde E a que ninguem abranda sua dureza,; Sod a terra outro meu thezouro esconde. Outro sobre outro j4 na fortaleza Do natural amor guardado e posto, Mas da morte roubado com crueza; Sem valer meninice cheia de gosto Ao sao filhinho inda innocente, Louro cabello ondado, roseo rosto. (v. 274 a 282.) * Refere-se 4 morte de sua primeira mulher, de vinte annos de edade, e 4 de seu filho Luiz Falcio de Re- sende, do qual dao noticia os Nobiliarios. No final d’esta Satyra elegiaca, compara-se com Orpheo, «No triste apartamento de Eurydice», e retrata a sua vida: 48 HISTORJA DE CAMOES . Como um cego sem luz, sem algum tino, - D’este bem pobre e dos mais bens da terra, minha mesma a palria peregrina. De'facto André Faledo de Resende seguindo a ma- gistratura, andava de terra em terra; Ji greed de Resende seu pae, era juz dos Orfaos em, . Evora, eé provavel que o sev filho primogenito herdasse este officio, porque o achamos provido em um cargo semelhante. Como vimos, o poeta queixava-se de estar longe de Evora; em uns versos’a Jeronymo Cérte Real, mostra quanto inveja a vd: de ishoa, que lle ~o péde go- sar andando sempre pela provincia: wy oh at . ‘Pédes, Cérte Real, na real cérte Gozar tranquillamente, e 0 ocio amado _ Por bem aventurada e ova sorte: Octo’ na Cérte 4s Musas tio negado, E mais n’essa Lisboa ao mar visinho, Onde o trabalho e o trafego é dobrado. D’ai vestidas vés da vida e pinho Verdes fraldas do Tejo alegre e ufano, Por dar fim ledo'a seu longo caminho- (1) André Falcio de Resende frequentou algum tempo a corte de Lisboa, como desejava; o Soneto XXX, a0 Doutor, Antonjo de Cagtilho, g guarda-mér da 'T rre do Tombo, 9 § Soneto. XXEXI a afamada ‘livraria do Padre Bar olome ’ Ferr i ira, 0 Spnet xX I, cen declaragao (1) Obras, p. 995, v. 148 a 156, 4 PARTE 1I.— LIV. I. CAP. II 43 de uns versos escriptos em umu pedra que estd sobre a porta que vae da crasta para a Igreja de S. Domingos de Lisboa», a sua estreita amisade com Pedro de Andrade Caminha, que mutuamente se celebravam nos seus ver- sos, provam ter elle vivido por alguns annos em Lisboa. Foi talvez aqui que André Falcdo de Resende fez os u segundo casamento, de que fallam os Nobiliarios, sem citarem o nome de sua esposa; na Epistola 1 lé-se esta rubriga «A Heitor da Silveira, seu cunhado, estando na Indea.» (1) O nome d’esta dama, irma do sympathico amigo e companheiro de armas de Camées, era Lia- nore, como se descobre pelo anagramma de WVorelia. Na Satyra vil, dirigida a Heitor da Silveira, retrata a sua felicidade de casado: ‘ Que em reciproco amor minha consorte, Minha doce Norelia e eu vivamos, Que mal me péde vir que eu no supporte? Os trabalhos nos quaes nos desvelamos, Bem amando e soffrendo graves damnos, Quiio doces so, depois que descansamos? (v. 38 a 42.) Quiio bom estado é o de casado, Conforme 4s leis do matrimonio santo, Do nosso antigo pae primeiro berdado. Oh, venha eu, Norelia, a valer tanto Que a vida em companhia e amor passemos, Celebrando teu nome em verso e em canto! (1) Obras, p. 353. 50 HISTORIA DE CAMOES Dos que rirem de nés, entio riremos E do torpe falar tao sem proveito, Dobrado sobre todos falaremos. (v. 64 a 72.) . 1 - Este ultimo terceto explica-se talvez pelo facto de ter sido o segundo casamento a furto, como o diz a Pe- datura Lusitana, André Fale&o pedia a seu cunhado para que regressasse 4 patria, e depois de Ihe fazer com- mentarios moraes acorca da gloria e das riquezas, con- clue com este traco da sua personalidade: Podera eu escrever-vos mais verdades... Mas vai-m’o impedir minha fraqueza Dumas febres, que me detem na cama; : Do mais que tendes 4, tendes certeza, Basta que vos espera quem vos ama. (v. 115 a 121.) Heitor da Silveira, escreveu-lhe da India uma Epi- stola em verso, n’um dos intervallos breves em que nao entrava cm combate vestido com o seu capote prover- bial, cuja vista sé animava os soldados; depois de de- screver a corrupta sociedade de Géa, remata: " Ditoso, vés, que estaes seguro e quedo, Amparado do vento 4 sombra cara, Em campo ou em ribeira, ou em casa ledo! . ‘Vossa conversacio, aos vis avara, As Musas grangea ora em doce canto, A descobrir a formosura rara. Triste de quem em vivo e largo pranto A cruel sorte noute e dia chora, Que 0 coragHo cobriu de um negro.manto! + PARTE IL. —LIV. I. CAP. II 51 Nao ha no mez e anno uma so hora Que alegre ver-me possa em tal estado, Longe de quem de c4 minha alma adora, Vés, ledo, satisfeito, vés atado Com aquelle amor puro de vossa alma, Da vida de c& andaes longe e afastado. Que alegre estar’ sempre e pura essa alma Toda entregue a Norelia, 4 qual sé dando Cada hora da vida his, triumpho e palma! Em verso grave e doce ora cantando Seu nome amado agora em branda prosa, D'alta sesta o ardor co’ella enganando. Lograe-vos entio ali da graciosa. Fala, do suave dr, do alegre riso Que sae da cérada e fresca rosa... Quem mais que vés, André, rico e alegre anda? Quem mais que eu triste e pobre? pois a sorte Minha, do meu sé bem fugir me manda. (v.49 a 78.) Como a saudade dé a esta expressiio da Epistola de Heitor da Silveira um sensualismo dolorido, uma ver- dade, uma plena realidade! Heitor 1-. Silveir:. amava em Portugal uma dama, chamada Izabel, como se de- prehende do anagramma de Belisa: Nao se vé na amada companhia De Belisa, amor doce, por quem vivo, E por quem vejo a morte cada dia, s * A vida de Heitor da Silveira, companheiro de Ca- 52 HISTORIA DE CAMOES mes nos seus annos mais desgragados, é tambem triste; era filho d’esse implacavel poeta do Cancioneiro, o ul- timo Coudel-Mér, Francisco da Silveira, (1) e para con- seguir escapar-se 4 sua extrema severidade paternal teve de pretextar o querer seguir a carreira das armas na India. Esta mesma severidade do velho Coudel-Mor, seria a causa do casamento a furto de André Falciio de Resende. Sémente depois da morte de Francisco da Silveira, é que Heitor da Silveira projectou regressar & patria; estava entio pobre e endividado; a sua ex- trema honradez nao o deixava fugir aos credores. De- pois de largos aunos de ausencia, sabendo que Hei- tor da Silveira tentava voltar ao reino, escrevia-lhe André Falcao, accusando-o das suas delongas: Ou por ventura a guerra e variedade De tanta cousa emfim perecedeira Antepondes 4 paz, tranquilidade, A vida montanheza da Sovereira, Agora na espereza do alto monte O javali seguindo, ou na ribeira; Agora a par da erystallina fonte Que com sua frescura e lymphas claras Mil historias passadas vos reconte ; E as doutas Irm&s nove, nunca avaras Ali de sua doce companhia, - Guiando-vos a penna em cousas raras? 3 af Vid. a sua biographia nos Poetas palacianos, p. 373 a 382, PARTE Il.— LIV. 1. CAP. 1 53 Goxdmos ambos isto algum dia; Muitos gozar podendo quictamente, : Mas ah! que a inquietago nol-as desvia! ait 39 A cega de nossa alma, amigo, absente, De sede insaciavel, nunca farta C’os nossos nem c’os rios do Oriente, Nos divide, e t&o longe nos aparta, E faz que minha Carta mal escripta Do Tejo ao Ganges a busear-vos parta. (v. 29 a 42.) . E depois de fallar largamente contra esse cancro da sociedads portugueza do seculo xv1,a avidez de ri- quezas da India, por falta dos recursos industriaes, con- clue avisando a Heitor da Silveira d’este abysmo, e compraz-se retratando a sua pobreza e a intimidade da vida domestica :. Quem a cubiga hydropica no doma, T&o pobre emfim, da pobre Sovereira, Sera sendo senhor, ‘como de Roma. Olhae bem 1d, claro amigo Silveira, 3 Nao vos opile o limpo e bom juizo, Aquesta fera séde interesseira. .. Eu ed, bem que me fere o ferro duro Da feia, imiga inopia de contino, , N’ella me exercitando} mais me apuro.:. veooke Assim n’estes combates passo a vida, Cobrindo-me com bom e forte escudo, Da paciencia e bondade devida. 54 HISTORIA DE CAMOES A Sparta que alcancei de Deos, comtudo Minha consorte digo, amo e acompanho : Com ella falo, leio, escrevo, estudo. Nenhuns trabalhos ha, nem mal tamanho Que aqueste amor reciproco nos vengam, Commum nos sendo tudo e nada extranho. E deu-nos Deos filhinhos jé de bengam ; Mas para contemplar dos eéos a gloria, Por que suas lembrangas nos convengam, Deixou-nos d'elles sv iva a memoria; Levou-nol-og depois de baptisados, E 14 os tém comsigo em eterna gloria. (v. 105 a 147.) Esse mesmo filho do primeiro matrimonio, Luiz Falciio de Resende, tambem Jhe morreu em tenros an-~. nos como conta n’esta mesma Hpistola a seu cunhado Heitor da Silveira: D’um, de que eu tinha j4 mil gasalhados, Esperangas, signaes d’esprito altivo, Saudade nos tem inda magoados. ~ Sempre assim nos presenta o rosto Vivo, Doce premio d’amor, dom excellente, Que 2 morte descurou com golpe esquivo, Formoso filho meu, tenro innocente, Treslado d’aquella alma e formosura, Que morar4, na minha eternamente. No coube a vossa flor, que a rosa pura Na frescura, na graga e flor vencia, Longa vida, mas curta sepultura. PARTE II, —LIV. I. CAP. IT 55 Comvosco ja as miserias esquecia E importunas pobrezas enganava ; Mas ah! choro eu quem me chorar devia! / (v. 148 a 162.) , As queixas constantes de André Falco de Resende contra a sua pobreza, so nos lembrarmos d’onde elle falla no seu nascimento «em rica e nobre casa» da qual era o primogenito, sé se explicam pelo castigo que Ihe infligiria seu pae desherdando-o da casa pelo facto do seu primeiro casamento a furto, de que lhe nascera este filho cuja morte tambem chorava. A amisade com Hei- tor da Silveira estreitou-se por esta egualdade da des- graca, ambos perseguidos por uma terrivel authoridade paternal. A epoca d’estas relagdes litterarias, péde fi- xar-se a contar de 1567, nos ultimos annos da vida de Heitor da Silveira na India; os Sonetos ti e Lim de André Faleio a D. Joio Lobo, Barao de Alvito, da il- lustre familia de Heitor da Silveira, levam-nos a fixar esta epoca, por que sé depois de 1564 é que succedeu no baronato a seu pae D, Rodrigo Lobo, e a intimidade que esses Sonetos revelam, ndo era sé de vida 4 com- munhio litteraria, mas ao parentesco contrahido pelo seu casamento. Dom Joao Lobo era tambem poeta e homem politico; mas as suas obras est&o hoje perdidas: Senhor Bardo, ex mao pocta e pobre, Versos por outros versos offerego; Se c’os vossos pagaes, devendo eu fico... (1) (1) Soneto 11m, p. 130. 36 HISTORIA DE CAMOES Por este tempo é que andava tambem na India seu irmio Antonio de Resende, ao qual se refere Heitor da Silveira, em um Soneto dirigido a seu irmao: Tambem do grande Antonio o claro lume Tirado o véo me tem da vista cega, : Com seu engenho claro, grave e brando. (1) Sem terem ainda impresso as suas obras, os Qui- nhentistas escreviam para estreitarem entre si o trato da amisade, para darem conta dos estudos, para con- tarem os seus amores, os seus desastres; nas expe- digses do Oriente andavam muitos poetas, e apezar da immensa distancia e do ruido das armas, escreviam para o reino mandando os versos aos amigos; da In- dia escrevia Camées para Litiz de Lemos, Heitor da Silveira escrevia a Pero de Andrade Caminha, e An- tonio de Abreu, a ellidado o Engenhoso, e celebre por ser amigo de Camées, escrevia bastantes Sonetos a An- dré Falcdo de Resende; (2) os versos de Antonio de Abreu eram considerados apocryphos, mas os que se acham na, colleccfio de Falcfio de Resende bastam para restituil-os 4 authenticidade. Pelos sonetos seus sa- bemos da existencia de outros poctas hoje desconhe- cidos, como André da Fonseca, (3) que lhe offereceu 0 manuscripto dos seus versos; 0 Soneto XXXIV, traz a (1) Obr., p. 127. (2) Obr., p. 113, 116, 117, 119, 455. (3) Citado por Diogo do Couto, Dec. vu, cap. 5; vm, cap. 32. (Anno 1878) PARTE TI.—LIV. I. CAP. IL 57 rubrica: «A wm livro, que fez seu amigo André da Fon- seca.» Dio ro de Abr u, Luiz Alvares Percira, D. Fran- cisco de Faro, Jeronymo Duarte, D. Luiz de Menezes, alferes-mér, foram poetas da grande pleiada do seculo XVI, apenas conhecidos pelos versos intercalados nas obras de André Faledéo de Resende, ou nas referencias ao seu talento poetico. Em 1569 partira para o reino o seu amigo Heitor da Silveira, na mesma ndo em que regressava Luiz de Camées; trazia~o o desejo de abracar 2 encantadora Belisa, da qual dizia: Parti-me sem vos vér assi enganando A dura saudade bem guardada Que inda ora mais que ent&o estou chorando. (1) ' : Antes de entrar da barra de Lisboa, morreu Hei- tor da Silveira, cansado das guerras em que andara e das viagens e trabalhos de mar, sem poder gosar esses dias de bonanga com que a imaginagao o fortalecia nos seus desalentos. Havia ja passado a Peste na qual morrera o Doutor Antonio Ferreira, quando Camées chegou a Lisboa; a amisade de André Falco de Re- sende comecaria pelo commum desgosto da perda de Heitor da Silveira, se é que ja nao tinham relagdes desde 1553, em que Faleao fora inscripto na matricula dos fidalgos da casa do Cardeal D. Henrique. Esta ami- (1) Obr., p. 365. ' 58 y HISTORIA DE CAMOES sade por Camées torna-se tanto mais notavel, quanto Falco de Resende é 0 unico que cita o seu nome, sendo aligs amigo intimo do odioso Pedro de Andrade Ca- minha; (1) pelo Soneto 11 dedicado a Ruy Dias da Ca- mara, em que o retrata com caracter liberal, se rectifica essa lenda ominosa, que o representava insultando Ca- mées na sua pobreza, por nao lhe haver feito a traduc- cio em verso dos Psalmos penitenciaes. (2) A Satyra 11: «A Luiz de Camées, reprehende aos que desprezando os doutos, gastam o seu com truhdes» 6 0 maior titulo de gloria para André Falcio de Resende, por ter conso- lado aquelle grande espirito no momento em que elle se via desprezado na cérte de Lisboa, ao tempo que no passo eram estimados os bébos D. Felix e Dom Briando. Nesta Satyra 1 refere-se 4 Epopéa dos Luziadas en- tao ainda desconhecida por estar inedita, e 20 esforgo que empregava para a fazer chegar 4s mos de el-rei D. Sebastiao: Camées, bem te confesso e bem conhego, Que entre o joio infelice e m4 zizania De tanto m4o costume, e em tempo avesso, Engenhos nascem bons na Luzitania, E ha copia d’elles, que é menoseabada Dos mdos, e nomeada por insania. Por isso, como prezo em tua pousada, Solta este sonho, e esperta o adormecido + Tempo com tua voz bem entoada ; 1) Obras, p. 291, v. 285 a 297. 2) Obras, p. 124, 125, 126, 445, 451. PARTE II.—LIV. I. CAP. IT 59 Qual ella é, clara e pura, em som devido, Decente, honesto e grave, até que chegue Aquelle t tao affable e real ouvido. (1) Como se tem provado na vida de Camées, o afama- do poeta D. Manoel de Portugal; ¢ que conseguiu que os Luziadas fossem apresentados a Dom Sebastido; An- dré Falcdo de Resende tambem encontrou n’elle bom protector, como o deciara no Soneto Lxvul. (2) Em. _ 1571, veiu a Portugal o Cardeal Alexandrino, sobrinho e Legado do papa Pio v com um Breve a ‘convidar 0 joven rei Dom Sebastiao para entrar com outros prin- cipes em uma liga contra os Turcos; Falcio de Resende celebrou este legado no Soneto Lrv, escripto em italiano © portuguez, e escreveu uma Outava a um dos seus companheiros Alexandre Riario, Auditor da Camara apostolica e Patriarcha de Alexandria. (3) Falcdo de Resende estava entéio em Lisboa, na convivencia da mais illustre sociedade. Na Epistola v, dirigida a D. Francisco de Menezes, confessa a valiosa protecgiio que d’elle recebia, como este se interessava na sua doenga, e como o queria tornar alegre trazendo-o para uma re- sidencia saudavel ; esta Epistola v, deve julgar-se escri- pta em 1574, porque ai fala dos ruidos que andavam na corte acerca do casamento de D. Sebastifio: Nao sei novas da cérte, que inquietem; Nem se é casado el-ret ; ou se apparetha (1) 16., p. 78; Jur., Obras, t. 1, p. 610, not. 80. (2) Th., p. Make 145. (3) Ib.) p. 443. HISTOR DECAMQES Armada contra os Mouros ou Africanos; Se esta em Almeirim, se vae, se torna ; Se vem Embaixador de extranho reino; Quem governa, quem manda, ou que se fala Da privanga do Bispo de Miranda, Do seu prégar na corte soltamente. Nada me vem contar, nada me dizem; Estes bens traz comsigo o meu desterro... (1) N’esta Epistola v ensaiou pela primeira vez Faldo de Resende o verso solto que havia adoptadoose amigo J yonymo Cérte Real; ali confessa, dirigindo-se a D. Francisco de Menezes: Mercés a ti, Senhor, que o que aqui como, E 0 com que me sustento a ti o devo, Acho-me to contente com a pobreza, Como outros estardo com rendas grandes. Saio sobre jantar para uma relva Que tenho aqui pegado com as casas, Crespa com bem-me-queres e boninas, Estiro-me por ella; nfo m’o tolhem Juizos de ninguem, nem crueis linguas. ‘ (v. 157 a 165.) Depois refere como D. Francisco de Menezes tra~ tava de Ihe arranjar um emprego adequado ao seu ta- lento e qualidades: Aqui sci quanto tens em minha causa Tratado e concertado, tudo approvo; Em nada sairei d’onde assentaste, Pois assim te parece ; que nio trate Se é pouco, ou se me basta, pois te tenho Por meu senhor: algumas duvidas (1) Obras, p. 889 v., 124 a 142. . PARTE IL—LIY. I. CAP. IL 61 Me poz diante 0 triste pensamento, Que parecia haver n’este negocio. A todos respondi, que o que fizera O Senhor Dom Francisco, fosse feito; ete. ° (v. 182 a 191.) Felizmente a data d’esta Epistola esté indicada no seu contexto, o que é importante para entrarmos em uma nova phase da vida de André Faledo de Resende : Hoje tres por andar de Fevereiro, Da era de setenta juntos quatro N’este ermo a que eu chamo o meu Parnaso. ~ (v. 195 a 197.) O emprego que D, Francisco de Menezes arranjou para accudir ao pobre poeta doente, foi o cargo de Juiz de Kéy- em Torres Vedras; no catalogo d’estes funccionarios, publicado na Desert gdo historica e eco- nomica da Villa e Termo de Torres Vedras, por Manoel Agos inho Madeira Torr s, e acha qyg André Faledo de Resende serviu de Juiz de Fora em Torres Vedras, sendo a data da pésse de 17 de Outubro de 1577. (1) Servia em § de Outubro de 1578 e em 31 de Ago to de 1579, 0 que fudo consta do Cartorio da Camara, no Mago, dos papeis antigos notaveis, Era tambem Juiz dos Orphdos, em Torres, Vedras, posto por el-rei; um neto do poeta Gil Vicente, Martim Barreto, era por este tempo Escrivao dos Orfios em Torres Vedr s. (2) Em uma Satyra, que André Falcdo de Resende dirigiu a Je~ (1) Ob. cit., p. 215. (2) Bernardim Ribeiro e os Bucolistas, p. 239. 62 HISTORIA DE CAMOES ronymo Cérte Real, invejando-lhe o seu viver na cérte de Lisboa, allude ao cargo que exercia: 4 Seja eu pois de tildé bem recebido, * Se 4 sombra fér dos louros ¢ das hedras, Que a tua nobre fronte tem cingido. : Que eu, por néo mendicar e langar pedras A’ gente, rendido & fortuna e fado, Lides julgo e componho em Torres Vedras. Mal respondido aqui, mal despachado, Desvalido de amigos e senhores, Remo ja vetho em remo tiio pesado, E ainda em tal logar, tal cargo e vara, Se alguma hora o teu doce canto ouvira, Em tanta inquietag&o descango achara, Mas j& em vez de cantar, chora e suspira A Musa minha, e eu quasi em prisio posto, Nos salgueiros penduro a minha lyra. (1) ‘ Em 1578 succedera a derrota de Alcacer-Kibir, em _ que a independencia da nacionalidade portugueza fi- cara jrremediavelmente compromettida; André Fal- cao de Resende perdeu n’esta batalha o seu prot tor D. Jorge de Leneastre, segundo Duque de Aveiro, a quem tinha dedicado 0 poema da Microcosmographia, e Jorge da Silva conselheiro de D. Sebastiao, aquelle a quem Camoes escrevéra o apodo de Perdigdo perdeu a penna, no tempo em que ambos frequentavam a cérte litteraria da Infanta D. Maria; alli tambem ficaram pri- (1) Obras, p. 306, v. 181 a 201. PARTE II.—LIV. I. CAP. II 63 sioneiros os seus dois amigos Diogo Bernardes e Fer- nio Alvares do Oriente. Depois da morte da nacionali- dade, Camées expirou, em 1580; André Falcdo de Re- sende transigiu com o invasor, e lisongeou-o nos seus versos. Na unica Ecloga que escreveu, e em que pa- rece figurarem Bernardes e Fernaio Alvares d’Oriente, elogia a memoria de Camées: Nas cousas que o abragam e lhe obedecem Heroicas emprezas que elle guia, Obras, em que seus raios resplandecem. O lusitano Liso, nos devia Ser claro e bom exemplo; o poeta Liso Que tanta honra e louvor nos merecia. Com que som, com que estylo, com que aviso, Com que musica e versos tio perfeitos Deixando do amor vao 0 jogo e o riso, Cantow os Portuguezes e altos feitos Dos seus compatriotas esforgados, Por terra e mar caminhos nunca feitos: Novos climas e mares navegados, Ilhas, rios e costas, promontorios, Novos reinos por elles conquistados : Por novos Viriatos e Sertorios A quem de immortal nome fez cantando, Mais claros 20 mundo e mais notorios! Eo que @elles cantou ver desejando, Seus incansaveis passos @’alta fama Seguiu, viu, e pisou, tudo passando. (1) (1) Obras, p. 429, v. 263 a 283. 64 HISTORIA DE CAMOES Mas apezar de apontar o exemplo de Cam6es aos seus contemporaneos, foi o primciro a celebrar Philip- pe Ul, por occasiéo da morte de sua mulher D. Maria d’Austria, fallecida a 26 de Outubro de 1580. (1) Os exercitos de Philippe 11 assenhoreavam-se de Portugal, e era preciso entrar nas gragas do novo arbitro; Cami- nha, Bernardes e Francisco Rodrigues Lobo tambem incorreram n’este infame labéo. O Soneto tvit a Ro- drigo Vasques, conselheiro e embaixador de Philippe 1 em Portugal, pinta-nos estes fracos sentimentos de pa- triotismo: : Um descuidado e infelice Rodrigo, Hespanha nos perdeu; mas outro amigo, Servindo seu bom rei, nol-a sustenta. (2) Muitos outros cavalleiros da casa de Philippe 1 fo- ram celebrados nos versos de André Faleao de Resende; o Soneto x, é feito A morte de D. Antonia da Silva, fi- ha de Phebos Muniz, cavalleiro do conselho de Phi- lippe 11 em 1587; a Ode v é dirigida a Martim de Cas- tro do Rio, fidalgo cavalleiro de Philippe 11 em 1592. Quando o Archiduque Alberto veiu governar Portugal em 1583, escreveu Falcdo de Resende o Soneto Lx em quatro linguas, chamando-lhe: Clarissima real, firme columna Del nostro enfermo regno Luzitano,.. (1) Soneto vr, p. 82. (2) ZB, p. 134 135. PARTE IL.—LIV. 1. CAP. IT 65 Nos seus versos tambem se encontra a referencia 4 Invencivel armada, com que em 1590, Philippe 11 quiz conquistar a Inglaterra. O Soneto ix: «A ilha e rainha de Inglaterra,» allude a essa desvairada expedigéo: A christan barca unida em Santimonia, Ao catholico rei da Luzitania Navega contra ti infiel Britania,... Era general da Armada, Alonso de Bassan; os So- netos LVI € LXII, exaltam-no como sustentaculo da In- vencivel armada: La barea pues obscura de Acheronte Con su sequaz esquadra ciega, immunda, Ya esta rendida a tu invincible mano. Isabel de Inglaterra mandon contra a Armada in- vencivel o almirante Drake, que a dispersou; tem por isso hoje um caracter comico o Soneto LXI1, em que Falcdo de Resende, lhe chama: Famoso e infame Drake, te diran, Con razon malo y ingrato ya en effecto Contra la santa Iglesia y su precepto, . Que eres Cossario mas que Capitan. E ameaga-o do terror com que hade fugir diante de Alonso de Bassan! Parece que André Falcio de Resende esteve em Madrid por fins de 1589; em quanto a invencivel ar mada navegava para Inglaterra, escrevia o poeta a sua Ode vu: «A D. Maria de Fi ueiroa mulher de D. 66 HISTORIA DE CAMOES Alonso de Bagam, general da armada,» na qual a con- fortava acerca do bom exito da expediedo e do feliz re- gresso do seu marido: Veras que al claro Alonso ‘ El ayre se serena, y va allanando Neptuno crespo intonso, Tranquillo se tornando Con la christiana armada y se alegrando. Este que el proprio nombre A tu Capitana y real barea Pondr4 digno renombre + A nuestro alto Novarea Contra imigos del unico monarcha. O erudito poeta ainda se estava comprazendo no fim do seculo xvI com a chimera da monarchia univer- sal. D. Maria de Figueiréa presentiria por ventura o desastre que tinha de succeder nas costas de Inglaterra, por que o poeta lhe escreve: Cesse pues tu triste duelo, Cessen, anciosa Sefiora, y los cuidados oN Do amoroso recelo, Que presto ya trocados Seran gustos y bienes deseados. Nos versos de Falcéo de Resende esté uma prova directa.da viagem a Madrid; nas suas obras meudas, ha umas outavas cm redondilhas: «Ao conde de Villa No- va, partindo-se o auctor de Madrid.» (1) At escreve (1) Obras, p. 474, PARTE IT —LIV. I. CAP. IT 67 no estylo e quasi com o mesmo caracter de pedinte, de Tolentino: Bem quizera eu partir-me, Inda mal, e inda males, - Que nao posso ir sem reales, Nem com cem reales ir-me. Sou mendicante professo, E ora por carta d’el-rei, O sou mais; nao repliquei, Mas nunca de pedir césso. Sem outro dinheiro algum, F com filho, mogo e mula, E bem que n&o v4 com gula, Mas nem tambem em jejum. O motivo d’esta viagem foi para requerer a Phi- lippe m alguma tenga, como se pdde deprehender d’esta ‘ultima trova: Que se em meu despacho achei A mercé muito apertada, Nio devo ir esta jornada Mais pobre do que cheguei. id Emquanto esteve em Madrid, celebrou uma appa- ratosa tourada no seu Romance v, escripto em caste- Ihano, e em um Soneto castelhano e italiano: «A D. Pedro de Medicis, por occasido de haver saido a cavallo a uns touros que se correram em Madrid, matando al- guns deum sé golpe.» (1) Em um manuscripto das obras de Falco de Resende, que se perdeu em Lisboa, reco- lheu o velho professor de rhetorica Joaquim Ignacio de (1) Obras, p. 158. 4 68 HISTORIA DE CAMOES Freitas, o Soneto txxxt1, dedicado 4 cidade de Madrid, o,qual falta nas outras duas colleccdes conhecidas; n’elle pinta o fim do sentimento cavalheiresco do Amor, sub- stituido pelo interesse ; a tradic&o provencal, que ani- mara ainda com o seu fogo o lyrismo do seculo xvi des- appareceu diante do industrialismo: Que se haze en Madrid ?— Gastar dinero, En convites, en juegos,.en amores.~— Quien tiene de las damas mas favores? - Aquel que mas ducados da primero. No valdran ya suspiros y Canciones, ~ Lagrimas, nt requiebros, ni passeos, Velando y lamentando en noche escura. Quedar-se han en blanco los deseos, Que solo a los reales y doblones Se riende aora Amor, y aun la ventura. Apezar das pequenas mercés, que Falcdo de Re- sende alcancou de Philippe nm, e dos cuidados da sua vara de juiz dos Orphdos, entregou-se aos ocios litte- rarios, e sabemos que em 1594 ainda cultivava a poe- sia, pelos versos a Jeronymo Corte Real, acerca da pu- blicacaio do Segundo cérco de Diu. Fim 1595 escrevia um soneto a «uma Dama, que lia por o livro de Francisco Sd de Miranda,» se & que este livro se deve considerar ‘como impresso: Quem nfo louvard muito, em toda a hora O SA Miranda, nunca assis louvado, D'engenho, estudo, estilo alto, apurado, E sobretudo t&o ditoso agora, PARTE II.—LIV. I. CAP. II 69 Que é do puro alabastro assim, senhora, De vossas delicadas maos tocado, D’essa voz doce ora pronunciado, No seio d’alva neve posto outr’ora ? Pyramides, sepulchros sumptuosos, Edificios que emfim o tempo gasta, Tanto sem fim nao fazem sua memoria; > Quanto a luz d’esses olhos tio formosos, Que graca e vida dar a tudo basta, E a mim dio vida e morte, pena e gloria. (1) Era uma alta homenagem ao antigo mestre e ve- nerando amigo que introduzira em Portugal a eschola italiana: vale bem um Soncto de Lope de Vega. Fal- cdo de Hesende é em geral incorrecto na metrificacao, mais moralista do que poeta; amigo intimo de Cami- nha, com quem se escrevia em sonetos e odes, parece-se em mais de uma feigéo com elle, pela pobreza de ideal, pelo prosaismo da versificacio, e pelo caracter porque ambos acceitaram mercés de Philippe 1. A epoca da morte de André Falcao de Resende esta authenticamente fixada no Ms. de Coimbra, aonde em uma Elegia 4 peste de Lisboa de 1599, escreveu o an-tigo collector esta ru- brica : « Feita pelo A. sobre o mal da peste, que havia na ci- dade de Lisboa, onde elle estava no anno de 1599 ; da qual peste elle morreu. E foi a derradeira obra que compoz.» (2) Na Elegia se descreve deum modo ineonsciente o estado de miseria publica, em dézenove annos de invasio hespa- nhola: Como esté triste e sé, qual pobre aldeia, Lisboa, populosa e grao cidade, De rica e alegre gente que era cheia. (1) Obras, p. 87. (2) Obras, p. 413. - 70. HISTORIA DE CAMOES © Ah! quem a viu c’oa sua prosperidade, Tanta copia de bens, e a vé agora De males em tao crua tempestade! De mil cidades outr’ora ja senhora, De bons reis ¢ senhores possuida, E de vassallos reis possuidora: - Quem a pdde vér ora perseguida De tio pestifera e vil pobreza, E dos seus ricos por imiga havida. (vw. La 12.) De pobres ‘nultidio de porta em porta ‘Por ruas e por arcos jaz morrendo A fome, ao frio, ou jaz de todo morta. Famélicos e niis, esto gemendo, Rompendo o eé0 meninos innocentes, Os que mais podem, nao Ihe soccorrendo. Sem paes, sem mies, amigos nem parentes, Sem mio ajudadora cé na terra, Dé4-Ih’a Deus 14 no céo, 14 og tém contentes. Mas que edade nao chora tao cruel guerra? Que pobre acha soccorro, que lhe valha? Quem val ao vivo? ou quem o morto enterra? Sem sepultura jazem, sem mortalha, As terras, céos e ares anojando, Tao mal prevé a provida... canalha. Que 0 bom Rei, e o bom Prelado dando Com mui liberal mio acorro a tudo, Tudo os bons Senadores ministrando; Os prevericadores mdos comtudo Mal a mal acerescentam, sem temerem A morte, que consumme 0 povo rudo. PARTE IL.—LIV., I. CAP. IT 2 Roubos, insultos e homicidios ferem Os corpos e almas de muitos, que a m4 vida T&o morta, antes que a vida eternal, querem. Tio triste estd Lisboa, tao opprimida D’interiores imigos e exteriores, E de poucos amigos soccorrida, (v. 43 a 69. ) D’esta crande este de 1599 fallam com terror as Chronicas do reino; comegou a 15 de Outubro de 1598, foi o seu maior auge em 1599, durando ao todo cinco annos. Morriam por dia duzentas a trezentas pessoas, ea mortandade era orgada em oitenta mil. (1) No Hos- pital, que era na Ribeira de Alcantara, entraram desde 0 comego da peste vinte mil duzentos e vinte sete doen- tes da peste, da qual ai morreram seis mil trezentos 6 sessenta e seis, saindo curados treze mil outocentos e * sessenta e um enfermos. Em Septembro de 1599 recru- desceu a peste, (2) e foi este o periodo do terror; pela descripciio de Falcaio de Resende, que resistiu por pouco tempo a esta calamidade, se vé cue a fidalouia portu- vueza emigrara para Hes sank , e que sdmente 0 povo jazia abandonado aos soccorros da authoridade estran- geira. Esta fatalidade coadjuvou a morte da indepen- dencia nacional, porque o governo de Castella achou na peste de 1599 um rijo pacificador dos animos exaltados. Depois de investigarmos a vida de André Falco de Resende, vejamos coma as suas Obras, que ficaram ine- ditas, vieram casualmente 4 publicidade. André Faleéo 1) Hist. de S. Domingos, t. m1, p. 406. 2) Ann. Hist., t. 1m, p. 172, Hist. geneal., t. x1, p. 891. 72 HISTORIA DE CAMOES de Resende presentedra alguns amigos com copias das suas poesias; de trez exemplares achamos noticia nos seus proprios versos. A primeira copia foi offerecida ao filho segundo do primeiro Duque de Aveiro, como ve- mos pela rubrica do Soneto xvir: «A D, Pedro Deniz, mandando-lhe um livro de poesia.» Da segunda copia da- nos noticia o Soneto xxv: « A. um amigo, mandando-lhe wmas obras suas.» A terceira copia esteve sempre em ~poder do auctor, achada entre os seus papeis, como ve- mos pela, nota antiga da Epistola v: « Esta Epistola te- nho duvida ser do Author; mas achei-a entre os seus papeis.» (1) Depois d’esta Epistola, o que recolheu esses manuscriptos escreveu a rubrica 4 Elegia sobre a peste de 1599: «da qual peste elle morreu. If fot a derradetra obra que compoz. > ~ Estas tres copias foram achadas no nosso seculo; a primeira, que julgamos ter pertencido ao filho segundo do Duque de Aveiro, existe em poder do snr. Seabra, consultada para a edigéiade Coimbra. Esta copia ¢ quasi sempre mais correcta do que as outras em quanto 4 me~ trificagao, mas deficiente emquanto a poesias; falta-lhe a Satyra 11 a Diogo Bernardes; na Satyra Iv a Jero-, nymo Cérte Real faltam pelo menos seis tercetos; falta- a Satyra va Heitor da Silveira; na Satyra vi ha lacu- nas de oito tercetos; falta egualmente a Satyra:vim a Heitor da Silveira, bem como a resposta d’este illustré™ poeta. Finalmente os Villancetes 1 D. Joanna Loba, (1) Obras, p. 392. PARTE I.—LIV. I. CAP. II 3 escriptosem 1586, faltam n’esta copia; o que tudo accusa a deficiencia de um primeiro traslado, —* A segunda copia, a que allude o Soneto xxv esté hoje completamente perdida; foi vista antes de 1831: em Lisboa, por Joaquim Ignacio de Freitas, o qual a proposito do Soneto Lxxxu, deixou esta noticia: « Esté Soneto a Madrid vem no Ms. de Lisboa, attribuido a An- . dré Faleéo.» O snr. dr. Ferrer procurou esta copia em Lisboa, e escreve na edicdo de Coimbra: « Nao pode- ram nossas diligencias e investigacdes deparar infor- magfio ou noticia alguma sobre tal Ms. de Lisboa, que aliés o snr. Freitas viu e examinou, como se depre- hende d’esta nota, e de outra que fez ao Soneto n° x...» (1) . . A terceira copia, que pertenceu ao proprio auctor, existia na Bibliotheca da Universidade de Coimbra; sobre ella comecou Joaquim Ignacio de Freitas a pre- . parar uma edi¢ao critica de André Falcdo de Resende; era Joaquim Ignacio de Freitas antigo professor de rhetorica no Collegio das Artes em Coimbra, aonde tambem ensinou logica e latim; foi revisor da Im- prensa da Universidade, fallecendo em 1831. Nao che- gou aimprimir a sua ligdo critica encarregando-se d’este cuidado o lente jubilado da faculdade de direito Vi- cente Ferrer Neto Paiva, que suspendeu a sua empreza a pag. 480, quando ia entrar na collecgao de Romances (1) Na Bibliotheca de Evora, conserva-se manuscripto um Romance de André Fale&o de Resende & entrada de Philippe I em Lisboa. (Cod, cv—1-8, fl, 166.) ves HISTORIA DE CAMOES castelhanos. A edig&o era collacionada pelas trez copias conhecidas, com o rigor usado pelos philologos do se- culo xvit. E pena que ficasse truncado este monumento. Apezar das poesias de André Falcéo de Resende serem pouco superiores 4s de Caminha, sem duvida é este um quinhentista que bastante luz derrama sobre a vida in- tima dos escriptores portuguezes d’esse opulento seculo. . CAPITULO IIL Dom Manoel de Portugal Sua familia e tradigio amorosa.—Auxilia a introduccfio da Eschola italiana em Portugal. — Relagdes com Sd de Miran- da, com Pero de Andrade Caminha e com André Falefo de Resende. — Por causa da sua nobreza e talentos pocticos pertence 4 casa do Principe Dom Jo&o.— Seus amores mal- logrados com Dona Francisca de Aragaéo. — Quando Camées voltou da India, introduziu-o no paco para offerecer a Dom Sebastido os Lusiadas.— Camées celebra Dom Manoel de Portugal como seu Mecenas.—Casa em segundas nupcias com uma irma de Jeronymo Cérte-Real.—Sua monomania mystica, a contar de 1573.— Como todos 0s amigos de Ca- mées, na morte do Cardeal-rei, segue o partido nacional do Prior do Crato.— Desastres da familia de Vimioso no domi- nio de Philippe 1.—Tradigao que attribue 4 Casa de Vi- mioso a dadiva da mortalha a Camées.—Noticia das diver- sas obras manuscriptas de D. Manoel de Portugal. Até ao seculo xvi a aristocracia portugu a con- servou a radigiio provengal, que considerava a poesia como um dos mais elevados dotes que podem distin- guir a nobreza. Dom Manoel de Portiga_ terceiro fi- Tho do afamado poeta do Cuncioneiro geral, o Conde de V'miosp, continuou a tradicaéo da familia, ndo sé como um dos mais ferventes namorados da cérte de Dom Joao 111, sendo como um dos que se empenharam pela reforma da poesia quinhentista, introduzindo a nova poetica italiana. Dom Manoel de Portugal rece- beu na educacéo domestica esse sentimento de melan- colia e de austeridade, que illumina o vulto de sua mie, Dona Joanna de Vilhena, a scismadora Aonia da 16 HISTORIA DE CAMOES elegia pastoral da Menina e Moga. (1) Nasceu em Evo- ra, poucd mais ou menos, nfo longe do anno de 1520, e é pela relacio da edade e da educacio litteraria que se explica a sua amisade por Camées. Quando se en- _ tregou aos primeiros ensaios da poesia, ja S4 de Miran- da vivia retirado da corte desde 1533; mas na sua so- lidao pittoresca e philosophica recebia as homenagens dos novos espiritos que procurayam seguir a vereda que elle abrira. Dom Manoel de Portugal apparece-nos muito cedo com intimidade com 84 de Miranda, que acceita a sua adhesio 4 nova eschola italiana. Nas obras de 84 de Miranda vem um Soneto com a rubri- ca: «Dom Manoel de Portugal, a Francisco de Sé, mandando-lhe uma Ecloga.» (2) O sentido d’esse So- neto revela-nos a submissio respeitosa do discipulo, a tibieza de um primeiro ensaio, e a pouca vitalidade da - nova eschola: a ante vés vio confiadas, n (Rarissimo Francisco e excellente) -f A rudeza de estillo diferente, h E as incultas estangas desornadas. obit ba O que brotou de si a natureza D’arte nem de artificio ajudada, oh 9 _ (Colhido sem razio, senhor, offereco. FEST : . e obt A vontade de vés seja estimada " Que em tao Laiao tempo, em que pureza ~09~tl Em obras ndo ha, deve ter prego. -rtolore 82 (A) Vid. Bernardim Ribeiro ¢ os Bucolistas. nb sy {2) Ed. de 1804, p. 14, PARTE II. —LIV. I. CAP. IE 7 84 de Miranda, para o animar, respondeu-lhe «pe- los mesmos consoantes, como fez o Petrarcha». Sente- se lisongeado pelo impulso que leva a geragdéo nova para elle, e prorompe: - Tantas mereés, tio desacostumadas, Como as servirei eu devidamente? enhor Dom Manoel, sea 86 clarez: D’um peito aberto, puro e fé lavada Muito merece, muito vos merego. Era esta docura de caracter, de wma honradez in- concussa, que levava para S& de Miranda, Dom Ma- noel de Portugal, Antonio Ferreira, Caminha, Jorge de Monte-Mo6r, 0 principe Dom Jodo, Antonio Pereira e tantos outros. No prologo da Ecloga de Sa de Mi- randa, intitulada Encantamento, é que se conhece o valor dos primeiros ensaios de Dom Manoel de Portu- gal, que veiu auctorisar a nova eschola italiana, repel- lida da cérte pelo prestigio dos velhos poetas palacia- nos que ainda figuravam no Cancionetro de Resende com a redondilha da eschola hespanhola : Filho d’aquelle nobre e valeroso Conde, mais junto 4 casa alta real, Abastara dizer do Vimioso, Senhor Dom Manoel de Portugal: Lume do pago, das Musas mimoso Que certo vos dario fama immortal... Em que vos servirei cd deste monte Huma mercé na terra pouco usada? Tanto em outra aqui logo defronte : 18 HISTORIA DE CAMOES Aquella Keloga vossa me foi dada, Encostado jazendo & minha fonte De versos estrangeiros variada, ~ Parescia que andava a colher flores, Co’as Musas, co’as gracas, c’os amores. Entéo tornando em mim, disse commigo : Certamente cu trazia errada a conta, Que inda ha quem nos renove o tempo antigo De que tanto se escreve, e tanto conta; Agora me reprendo e me castigo, Fazia & nossa Luzitania affronta, Cuidei que sé buscava prata ¢ ouro, Buseaste-me no meu escondedouro. Andando apés a paga, houve aos sisos Gram medo (que 0 confesso) e a huns pontosos, De rostos carregados, e de uns risos Sardonios, ou mais claro, maliciogos... Querem-vos por senhor, n&o por juiz, Rigores a departe, que sdo dignos De perdéo os comegos ja que fiz, Aberta aos bons cantares peregrinos, Fiz o que pude, como por si diz Aquelle, hum sé dos lyricos latinos, Provemos esta nossa linguagem E ao dar da vella ao vento: Boa-viagem. (1) N’estes versos consignou 84 de Miranda, o que a eschola italiana deve a Dom Manoel de Portugal; a epoca em que se podem fixar estas relagdes de amizade, é em 1548, quando Dom Jodo 11 deu casa ao Principe Dom Joao, e concedeu tambem as entradas a Dom Ma- noel de Portugal. (2) O principe era. extremamente 1) Obras de 84 de Miranda, p. 319. 2) Francisco de Andrade, Chronica de Dom Jodo III, . P. ry, cap. 38. PARTE I. —LIV. I. CAP. TI 19 apaixonado pela poesia, e mandon pedir a Sa de Mi- randa o manuscripto dos seus versos, como vémos pelo ‘Soneto que os acompanha: «Ao Principe Dom Jodo nosso senhor, quando lhe mandou pedir estas suas Obras. > S4 de Miranda mandou-Ihe os mannscriptos por tres vezes, como o declara nas rubricas: «A segunda vez que lhe mandou mais papeis.» Hi: «A terceira vez, mandan- do-lhe mais obras.» Foi n’este periodo, em que o velho philosopho esteve em moda na cérte, que Dom Manoel de Portugal se dirigiu a elle reconhecendo a sua autho- ridade como iniciador. (1) N’este periodo tambem Pero de Andrade Caminha mandava os seus versos a Sa de Miranda, e vivia na intimidade poetica com Dom Ma- noel de Portugal; Camoes estava fora da cérte, no des~ terro de Africa, e é por isso que se explica o silencio de Dom Manoel de Portugal, que, bem conhecendo o desagrado em que elle estava junto do principe, nunca cita o seu nome. No cmtanto as relacdes de Camées com Dom Manoel de Portugal, antes do regresso do grande epico do Oriente, facilmente se descobrem pelo mutuo euthusiasmo com que ambos celebravam a formosa (2) Quando > ongal Coutinho escreveu a pequena biographia de Sa ce Miranda, que appareceu na edigao de 1614, recolheu os dados mais preciosos da tradigao de D. Ma- noel de Portugal: «a0 Senhor Dom Manoel de Portugal, digno por seu admiravel espirito d’este e de outros maiores tjtulos, com os mais que nomeamos, seguimos n’esta relagdo. » E real- mente para lamentar que Dom Gongalo Coutinho, que tambem consultou para esta bio; aphia a tradigio de Bernardes, nao tivesse tido a euriosidade de recolher noticias authenticas para a vida de Camdes, quando estavam ainda vivos quasi todos os companheiros dos seus trabalhos. 80 HISTORIA DE CAMOES instruida Dona Francisca de Aragio. Era esta menina, dama da ra’ ha Dona Catherina, filh d Gongalo Nu- nes Barreto, aleaide-mér de Loulé, e de Dona Marga- rida de Mendonga; a sua formosura ¢ descrigio era pro- verbial entre os poetas, que lhe entregavam os manu- scriptos de seus versos. Conhecendo o genio superior de Camées, e como distinguindo-o contra a cabala que os outros poetas formavam para o destituir, ella sé pedia versos a Camées e Ihe dava motes para glosar; Dom Manoel de Portugal galanteava-a com todos os extre~ mos, fez d’clla a musa inspiradora dos seus versos, di- rigiu-lhe todas as suas composigées profanas, ainda ine- ditas no Cancioneiro de Luiz Franco Corréa, mas 0 modo como ella recebia- estas confissdes de’ amor co- nhece-se pelo dito do poeta, citado na Arte de Galante- via: €Que no queria mas si no licencia para poder con unos organos en el terrero del palacio, enternecer la Sefiora Dona Francisca:» Em consequencia do continuo desdem de Dona Francisca de Aragiéo, Dom Manoel de Portugal no publicou os seus versos amorosos, e in- sensivelmente foi caindo na aixéo m $s ica e na mono- mania ascetica com que morreu. No Cancioneiro ma- nuscripto de Luiz Franco, (fl. 230, v.) vem: «Cantos, Tercetos, Sonetos, Eclogas e Odas de Don Manoel de Portugal a Dona Francisca de Aragao.» i por este ma- nuscripto que se descobre a historia dos seus amores; escreveu quasi exclusivamente em castelhano, para li- songear a monomania que predominaya no pago e.na aristocracia culta. Extractamos alguns exverptos para PARTE II.—LIV. I. CAP. IIT 81 nos explicarem o desgosto moral que o levou para o mysticismo: Con lo mismo intento que los rios por concavos camifios espumando, Jlevan de su tributo larga copia al espantoso mar que le recibe por senda natural y por costumbre, ansy @ v6s, Sefiora, se ordene un continuo loar de toda cosa Sensible... ...eeeee eee ee see Canto 1.° Neste luengo morir en que detienes por mas terrible pena conoscida mi alma desposada de los bienes ue suelen aliviar mi triste vida, emoria y boluntad tw me la tienes apesar de esperanga fementida. el tormento insoffrible mas te amo, de ti sola me acuerdo y por ti llamo. (fl, 231.) ¥ este o sentimento de desgosto que anima o lyris- mo de Dom Manoel de Portugal; como um verdadeiro trovador, ndo cessa de reconhecer a sua inferioridade submissa diante d’aquella que ama, e como alma da Re- nascenca, acha na dér um prazer, porque é a sua dama que Ih’a provoca. Apezar de tudo, o seu lyrismo néo péde encobrir uma descuidada monotonia: Y aun en los logares do es forgoso que te dexes mirar, te busco en vano, que ora buelves el gesto desdefioso, ora lo escondes con tu blanca mano. Si espacio lo detienes ancioso que pudiera alentar pecho mas sano con descuidada maiia, es de tal arte que viendo-te jamas puedo mirar-te. (fl. 232.) 82 * HISTORIA DE CAMOES Diosas, la Fama dixo, esclarecidas que agora el mundo bolveis al ser primero, sin nombre sereis sempre conocidas a do llegar de mi el son ligero. Si por vos principia junto unidas a Francisca y Ana el estrangero verso el su loor de Portugal que hara el que vos serviere natural? (fl, 233 v.) Dom Manoel de Portugal ensaiava o verso estran- geiro, ou endecasyllabo italiano, em celebrar a sua dama. Dona An ade Aragio r ‘rnid Don: Fran- *‘s 4 e apparece-nos celebrada por Jorge de Monte- Mor, que em 1552 se achava em Portugal: Dona Ana de Aragon se nombra y llama A do por el amor causé la fama. (1) Dona Francisca de Aragon quisiera Mostraros, pero siempre estd escondida ; Su vista soberana es de manera Que nadie que la vee dexa con vida, Por eso no parece. O quien pudiera Mostraros esta luz que al mundo olvida, Por que el pintor que tanto hizo en ella Los passos le atajé para merecella. (2) Referir-sé-ha por ventura Jorge de Monte-Mor a ter Dom Manoel de Portugal perdido todas as esperan- gas do seu amor, pelo casamento de Dona Francisca de Aracio com Dom Joao de Borja, Vedor da Fazenda em Hespanha, Embaixador da Allemanha lho se- gundo de 8. Francisco de Borja? (3) A epoca d’esta desillusio do poeta talvez se possa fixar, se é que a fun- 1) Diana, p. 145. 2) Ibid., p. 144. 3) Historia genealogica, t. x1, p. 461. PARTE II.—LIV. I. CAP. IIt 83 dagio do Mosteiro de Jesus no logar de Val de Figueira, no anno de 1556, se deve attribuir ao sentimento mys- tico com que quiz encher este vacuo da alma. Pelo me- nos coincide com a epoca em que esteve em Portugal o enamorado de Marfida. Mas vejamos o retrato completo que Dom Manoel de Portugal escreveu dos seus amores: Aquella perfecion que se imagina, aquella que no puede imaginar-se, de quien jamas alguna no fué dina, en ti solo, Francisca, pudo hallar-se. A quien la tierra, a quien el cielo se enclina, en ti quizo hermosura venerar-se, y sobre ti puso por corona Amor desos tus ojos lo pregona. (fl. 233 v.) y tu de Aragon firme coluna do la antigua virtud es sustentada *+ de pocas que ay en el mundo.. .(fl. 235 v.) De tu raras virtudes infinitas Negando hasta el cielo y la fama, las letras de tu nombre dexo eseriptas de color immortal de pura llama. (fl. 286.) Con Aurora color resplandeciente de claro y eseuro azul iluminadas, tus ojos fabrieé aquella miente divina, de ydea retratada. (fl. 236 v.) Sus cabellos, que amor en larga vena de oro por su mano ha eseogido, los encrespa, afiade y aserena, frente de nieve pura ha revolvido. (fl. 237.) HISTORIA DE CAMOES Mas Dom Manoel de Portugal sente que nao é cor- respondido, e queixa-se dolorosamente d’esta fatalidade: Qual hado, qual destino 6 estrella eruda tu libre pecho contra mi inclina? qual lingua venenosa, aspera y ruda al oydo sincero se avizina? Con razon de verdad pobre y desnuda te provoea a rigor siendo divina? (fl. 239.) Claras aguas del Tejo celebradas soberbias do nascistes con razon, las que beis por mis ojos derramadas tambien de alla descienden d’ Aragon, De alla dulces venis, mas alleyadas de mi llanto os ataga el triste son de mi queixoso.canto dolorido, vuestro gosto en amargo es escondido. (fl. 244). Além de Camées e de Jorge de Monte-Mér, o au- ctoritario Pero de Andrade estava tambem na confi- dencia dos amores por Dona Francisca de Aragio. Na Ode x, das obras de Caminha, que traz a rubrica Aos bons espritos, (1) falta esta primeira estrophe, que se acha no Manuscripto de Luiz Franco, com fa pre- ciosa rubrica: « Oda de Pero d’ Andrade Caminhaa Dom Manoel de Portugal em louvor da snr.* Dona Francisca Daragao» (fi. 252 v.): | Versos a bons espritos dirigidos pelo que sente; entende e se conhece, e inda que incultos de mi alsidos A ti primero a musa os offerece; (1) Obras, p. 210. PARTE II.—LIV. I. CAP. iil 85 tambem a ti primeiro sam devidos pela tengdo que n’elles apparece ouve-os, e com mais culto verso ensina a cantar formusura tam divina. - No Manuscripto das Obras de Caminha, do Mosteiro da Graga de Lisboa, sobre que se fez a edigio da Aca- demia, falta esta estrophe e a rubrica; 0 titulo e intuito da Oda x, era convidar todos os poetas portuguezes a -celebrarem Dona Francisca de Aragio, para assim al- cangarem a immortalidade: Cantae d’um nome e d’uma formosura Que dar-vos poder&o fama segura: Eu digo uma Francisca Qual nunea o mundo teve, Qu’inda o que escreverjd’ella se atreve A perigos grandissimos s’arrisca. .. Uma Francisca, digo, Do sangue e nome raro Dos clarissimos reis d’Aragdo claro... ~ Caminha procurava consolar Dom Manoel de Por- tugal dos desdens da sua amada: ‘ Vereis aqui sujeitas Mil e mil liberdades, - E a uma 86 vontade mil vontades, Offerecidas sempre e nunca acceitas... Vereis que aqui offerece O amor mil coragiées, e aqui os despreza, D’aqui vence, e aqui ser vencido preza. Esta poesia de Caminha foi escripta antes de 1572, por isso que apparece no Jfs. de Luiz Franco, que aca- bou de ser recolhido por este tempo; 0 sentido da Ode . 86 HISTORIA DE CAMOES de Caminha era incitar Dom Manoel de Portugal a es- crever, mostrando-lhe que apezar dos desdens com que era tratado néo acabara o motivo dos séus versos. Dom Manoel de Portugal sain de Lisboa para ir por Embai- xador a Castella por mandado de el-rei Dom Sebas- tido; (1) é n’esta ausencia da cérte, que elle escreveria esta Epistola, recolhida por Luiz Franco, da qual re- produzimos algumas strophes: Alma del alma mia, ya es logadda la ora que de mi fue tanto temida, quanto de ti seiiora deseada. Llegada es ya la fin de mi partida, el cuerpo partird, pero combiene de llevar a que el alma se despida. Se el cuerpo con la ayuda se sostiene de solo te mirar, como poderia sin el alma por quien la vida tiene. El triste cuerpo solo se desvia de tu presencia, no sé de qual arte el alma no, que ya no es cosa mia... (fl. 251.) Raras so as poesias de Dom Manoel de Portugal escriptas em portuguez; no Canctoneiro de Luiz Franco vem dous Sonetos platonicos; o que comega: «A perfei- g@o, a graga e suave geito,» que anda nas Rimas de Camées, sob o numero xo, e que fora encontrado no ultimo manuscripto por Faria e Sousa em nome de D. Manoel de Portugal, tambem tem este mesmo au- ctor no Cancioneiro de Luiz Franco. (fl. 240.) A for- (1) Chron, de el-rei Dom Sebastiao, liv. v. PARTE II.—LIV. I. CAP, III 87 mosura de Dona Francisca de Aragao é este outro So- neto inedito dos poucos que D. Manoel de Portugal es- creveu na sua lingua patria: Ainda que o metal luzente e duro tocado do divino vosso objeito como raio vos torne o brando peito de que Amor a ninguem quiz dar seguro ; Ainda que o pincel claro e escuro tal semblante vos tenha contrafeito, que fieaes obrigada a ver por feito tudo o que elle obrar n’um peito puro; E inda que em culto verso desornado imitando em si v4 a formusura de que nasce e a que he sacrificado; Nem lustroso verso, nem pintura derd alcangar ser quotejado 6 que n’alma imprimiu vossa figura. (Ibid. fl. 240). Dona Francisca de Aragio apparece envolvida nas intrigas amorosas da cérte de el-rei Dom Sebastiao; no ‘manuscripto intitulado: Memorias da jornada que fez 0 serenissimo senhor rey Dom Sebastido, figura esta dama espiando uma das phantasticas paixdes d’este in- genuo monarcha: « Andava n’este tempo no pago da Rainha, D. Joanna de Castro sua dama, filha do Conde da Feir: , com quem El-Rey por sua graca folgava de falar mais, ou fosse isto, ou a grande sua formosura, que parecia digna de obrigar o animo de hum Rey, de que alguns tomaram occasiao para julgarem sem outro maior fundamento, e comecaram a dizer que el-rei lhe tinha affeicao; e como a de El-Rey naquelle tempo era 88 HISTORIA DE CAMOES to desejada, houve quem para alcangar a verdade d’este segredo, fingiu recados d’El-rei, e ainda bilhete para ella com tanto risco que o saber El-Rey lhe podera cor- tar a cabeca. Quiz a Raynha inteirar-se d’isto, e ao fim veiu a saber que niio tinha fundamento solido, e o mes- mo alcangou Dom Martinho Pereira, que nisto fez di- ligencias; e estando el-rey merendando com a Raynha, olhou por vezes e com attenc&o notavel para D. Joana, e vendo isto a Raynha acenow para D. Francisca de Aragiio, a quem ella depois de hido El-Rey, disse que entendia que nao havia alli afeicéo, senio que como El-Rey sabia o que falavam, olhava para a causa por vér se era tal que merecesse a fama que corria,» (1) Seria talvez pela importancia que Dona Francisca de Aragio ligava a Camées, que Dom Manoel de Por- tugal o quiz proteger tambem, falando d’elle a el-rei Dom Sebastiao, e proporcionando-lhe ensejo para dedi- car-lhe a epopéa dos Luziadas. Camoes, na Ode vi, attribue a Dom Manoel dé Portugal a mesma influencia benigna sobre’ a poesia portugueza, que lhe assignara Si de Miranda, e ao mesmo tempo trata-o como seu Mecenas: A quem far&o os Hymnos, Odes, Cantos, Em Thebas Amphion, Em Lesbos Arion, * Se nfo a vds, por quem restituida Se vé da Poesia ja perdida A honra e gloria igual, Senhor Dom Manoel de Portugal? 5 ip Ms. do snr, Visconde de Juromenha. Ed. Camées, t. 1, P. 008. PARTE II. —LIV. I. CAP. UI 89 Imitando os espritos ji passados, Gentis, altos, reaes, Honra benigna daes A meu tao baixo, quite zeloso engenho. Por Mecenas a vds celebro e tenho. E sacro 0 nome vosso Farei, se alguma cousa em verso posso. (1) Camées pagou com a immortalidade a prot&cgio que recebeu de Dom Manoel de Portugal; nado é pelos seus versos, nem pela alta posigéo politica, nem pelo heroismo com que resistiu 4 seducc&éo venal de Phi- * lippe 11 pronunciando-se pelo partido nacional, que o seu nome chegou até ao nosso tempo com a gloria que o cérca; essa simples Ode de um homem entio sem im- portancia pessoal, mas que alguma cousa podia em verso, € que tornou o seu nome sympathico para todos os tempos. Na Ode de Camées nfo transparece a mi-' nima allusio a amores de Dom Manoel de Portugal; é natural que ja estivessem totalmente frias as relagdes - com Dona Francisca de Aragio, ou se achasse ja ca- sado em primeiras nupcias com.Dona Maria de Me- nezes, irmé de Dom Jofo Tello de Menezes, um dos cinco governadores do reino. Quando Camées imprimiu os Luziadas em 1572, j& D. Manoel de Portugal estava dominado pela paixao mystica, e occupava-se em escrever poesias espirituaes eo Tratado breve da Oracéo, que Frei Bartholomeu ’ Ferreira reviu e approvou em 18 de janeiro de 1574: (1) Ed. Jur., t. 1, 274, 90 HISTORIA. DE CAMOES «Li este caderno de exercicios do amor de Deus e ora~ gio, e pareceu-me summamente bem, e conforme 4 dou- trina dos santos, especialmente 4 doutrina de séo Tho- maz e sio Boaventura, etc.» Nao sé por estes auxilia- res, como pela leitura de Marsilio Ficino, que D. Ma- noel de Portugal cita, se conhece que o seu lyrismo, re- passado do idealismo platonico, desde que perdeu o sen- timento da realidade caiu fatalmente na monotonia mys- tica. A este amor divino, sobre que dissertava em prosa e verso Dom Manoel de Portugal, allude André Fal- cio de Resende, tambem amigo de Camoes, no seu So- neto LXVII: Espirito gentil do alto e divino Em real sangue e claro acompanhado, N’um fogo formosissimo apurado . - Luz, honra, espanto ao mundo e d’amor dino: Unico Emanuel, que em amor puro, Em soffrimento e fé chegaste a0 cume, E em teu fogo amoroso estas seguro... (1) Dom Manoel de Portugal convolou a segundas nup- cias com Dona Margarida de Mendonca Cérte-Real, senhora do morgado de Val de Palma, na Ilha Terceira, filha de Manoel Corte-Real, senhor da Capitania de Angra, e de D. Brites de Mendonga, dama da rainha Dona Catherina ; (2) Dom Manoel de Portugal era por- tanto, cunhado de Jeronymo Corte-Real, o auctor das duas epopéas historicas Naufragio de Sepulveda e Se- (1) Obras, de Falc&o de Resende, p. 144. (2) Sousa, Historia geneal., t. x, p. 193. PARTE IL.— LIV. I. CAP. III 91 gundo Cerco de Diu. Por este segundo casamento veiu a ter-pareutesco com Miguel de Moura, e por ventura deveu a estas relagdes 0 nao ser executado pelo governo da usurpagio hespanhola, ficando apenas 0 resto de seus dias suspeito a Phili .e 1, que o nao péde comprar. Dom Manoel de Portugal seguiu o partido do Prior do Crato, contra as pretengées de Castella; isto nos ex- plica a sua intimidade com Camoes, e justifica a tradi- gio de ter o poeta recebido a mortalha da Casa de Vi- mioso. O primocvenito da Casa, Dom Francisco de Por- tueal, é que com a espada na mio evitou que as cér- tes em Setubal proclamassem rei de Portugal a Philip- pe 113 seu tio o Bispo da Guarda levantou o grito pelo Prior do Crato. Depois que se effectuou em 1580 a usurpagio castelhana, a Casa de Vimioso soffreu as maiores atrocidades; a condessa mie do Condestavel de Portugal, com suas sete filhas ainda criangas, foi con- duzida entre sgldados brutaes para Castella e encer- rada nas Torres de Torquado; Dom Joao de Portugal, Bispo de Bragan ‘a, foi destituido e clausurado igno- miniosamente em um mosteiro de Hespanha. Dom Manoel de Portugal submetteu-se ao governo de Phi- ‘ lippe m1. E talvez aos desgostos d’este periodo tempes- tuoso que allude o Soneto txvit de André Faleéo de Resende: Quem com azas @’amor se pode na altura Do quarto céo, e d’algar-se no cessa, Té que o seu sol lhe nasga e lhe amanhega, Das sombras ¢ baixezas pouco cura. 5— Tomo m. 92 HISTORIA DE CAMOES , Senhor Dom Manoel, se sois 4 terra Co’a luz vossa, sol, luz e clara guia, Que a nuvem a mim 86 me vos encerra? Busquei-vos na manha, no meio dia, No vos achei; quem vos busca nao erra; »Péde errar quem de achar-vos se desyia. No periodo da sua desgraga, que vae de 1580 até 1606, é que se devem collocar as suas composicdes mys- ticas, escriptas quasi na totalidade em castelhano. A linguagem do amor diviuo torna-se nos seus versos ve- hemente, mas monotona; a exuberancia de estrophes sobre um mesmo sentimento fatiga; falta-lhe a brevidade de um’Sam Joao da Cruz ou de Santa Thereza de Je- sus, sem comtudo lhes ser inferior. “Eis um Soneto por- tuguez intercalado entre essa infinda alluvido de versos hespanhoes : . Apetece-minha alma a fonte viva No estio de amor, em sésta ardente ; Sequiosa se langa 4 gram corrente * Da fermosura que de vés deriva. Cuidando de amansar a séde estiva Quanto mais d’amor bebe, 6 mais vehemente; Nunca se acabara este accidente, Que arde amor na minha alma em cousa viva. 0 Nao resiste ao ardor, nem se consumme, Porque ella é immortal, elle benino ; Nelle deleita a dér, di gosto a pena. == Se imagina passar raio divino Deseja a alma abrasar-se no seu lume, Tal 6 do que em si esconde o bem que acena. (1) (1) Obras, de D. Manoel de Portugal, fl. 199. PARTE IJ. —LIV. I. CAP, III 93 Dom Manoel de Portugal serviu-se tambem do ti- tulo da velha poetica provencal o Soldo, que citéram Bernardim Ribeiro, 84 de Miranda e Jorge Ferreira de Vasconcellos, mas com a férma e espirito da poe- tica italiana. (1) . A velha férma do romance popular applicado ao divi 9, 6 tambem tratada por Dom Manoel de Portu- gal, antes de Lope de Vega a ter tornado a pér em vi- gor; este emprego de férma esquecida, quando ja a Es- chola velha estava decaida, explica-se por um impeto de piedade humilde; eis 0 romance sacro: Reclina la muerta frente Jesus sobre su costado, Para ver con tal postura __ Si quier muerto abrir-se el lado, Que en vida desseara tanto Por quedar aportillado, Para que por tal ruina De su cuerpo traspassado, Entre libre 4 lo divino El spiritu afficionado. ¥ en esto el odio fiero Ya muerto le a rematado: Con la langa trespassando A Dios hombre el diestro lado: De sangre la gran corriente Dos Ilamas no a apagado, En Jesus, la de afficion, Ni la del odio dafiado. Jesus muere por dar vida, » El, por se la aver quitado De amor y intencion de muerte Nuestra vida a resultado. (2) (1) Iid., A. 281, wv. @) Bid. A. 290; v. - S EE 94 HISTORIA DE CAMOES Apesar das Obras de Dom Manoel de Portugal te- rem sido publicadas sé em 1605, comtudo ja estavam approvadas para a impressio desde 9 de Maio de 1595; sem duvida os esforgos que entao se faziam para reco- lher os versos lyricos de Camées determinaram tambem Dom Manoel a recolher os seus, com o fim de extre- mal-os dos versos profanos que regeitara. A melhor parte das suas obras, a que corresponde ao tempo em que comecou a frequentar a cérte de Dom Joao m até 4 morte de Camées, ficou inedita. Na Livraria de Dom Antonio Alvares da Cunha, Guarda-mdr da Torre do Tombo, estavam ineditas as suas Obras lyricas em cas- telhano; (1) da livraria d’este academico tambem saiu em 1668 uma collecedio de ineditos de Camées. Na Li- vraria do Arcebispo de Lisboa Dom Rodrigo da Cu- nha, como consta do catalogo impresso em 1627, cita~ do por Barbosa Machado, conservava-se uma outra col- leegéo de Ineditos de Dom Manoel de Portugal com o titulo de Varias obras poeticas. No Cancioneiro manu- scripto do Padre Pedro Ribeiro, recolhido no anno de -1577, que pertenceu ao Cardeal Sousa e se perdeu da Livraria do D qi d_ afoes no terremoto e incendio de 1755, pertenciam a D. Manoel de Portugal tres So- netos, uma Elegia, uma Cangio e uma Ode. O que se continha n’esse precioso Cancioneiro, segundo algumas indicagoes de Barbosa, era o seguinte: dez Sonetos do (1) Bibl. Luzitana, tm, p. 346. ' PARTE II.— LIV. I. CAP. ITI 95 Padre Pedro Ribeiro; (1) duas Hlegias de 84 de Miran- da; (2) cento e dezeseis Sonetos, vinte seis Eclogas, cinco Cartas, quatro Cangdes e uma Ode de Diogo Ber- nardes; (3) duas Cancées de el-rei Dom Pedro (Con- destavel de Portugal); uma Obra em eccos, de Bernardim Ribeiro; e uma Elegia de Fernéo Alvares d’Oriente. No Cancioneiro manuscripto, de Luiz Franco Corréa, comegado a recolher em 1557, (de fl. 230 a 252,) vem « Cantos, Tercetos, Sonetos, E:clogas e Odes de Dom Ma- noel de Portugal a Dona Francisca de Aragdo»; a fi, 135 v. encontra-se uma outra composigéo sua. Tam- bem na Bibliotheca de Evora existe um Codice manu- scripto com Poesias de Dom Manoel de Portugal. (4) £ de suppor que nos seus versos profanos, que ficaram ineditos, existam mais subsidios para recompér néo sé a sua personalidade, mas tambem resolver muitos pro- blemas da vida dos outros quinhentistas. (5) E pena que 0 seu silencio a respeito de Camées seja absoluto. Ten- ° ‘ (1) Ibid, p. 611. : (2) Ibid., t. um, p. 254. " (3) Ibid., t. 1, p. 638. . rs e k oxIv ? (4) Catalogo dos Ms. Cod. 73 fl. 123. I aa (5) O snr. Visconde de Juromenha possue um Ms, do se- eulo xvm, que descreve na edigio das Obras de Camées, t. 1, p. xv1: «a primeira parte comprehende poesias de differentes auctores contemporaneos, Bernardes, Caminha, Dom Manoel de Portugal, Jorge Fernandes, vulgo o Frade da Rainha (D. Catherina) ; e a segunda parte, que é em letra differente per- tence exclusivamente a Francisco de S4 de Miranda, de quem traz algumas poesias ineditas. » 96 HISTORIA DE CAMOES do atvavessado uma epoca de successivos: desastrés, como a grande peste de 1569, a perda da autonomia nacional em 1580, e a peste de 1599, morreu em Lis~ boa, ‘muito velho, segundo affirma Barbosa, em 26 de Fevereiro de 1606.’ (1) : D> 2 1 € 10 a3 : hye, vot : : a . ‘ "() No'Hospital das Lettras, p. 380, expende D. Francié- co Manoel de Mello o seu juizo Acerca de Dom Manoel de Por- tugal: “dap st oJ " -€ Lirsio: Jé que falaes n’esse apellido, vede se me achaes ai as Obras de Dom Manoel de Portugal. Avurnor: Aqui estado para um canto, e tao dormentes, que niio ter pouco que fazer com ellas a trombeta do dia de juizo. Lirsio: Em canto estio! Com muita justiga porque sao obras encantadas. ete Quevenvo: Direi por ellas o que com n&o menos gracga que rasio, disse 0 Marquez de Alemquer Dom Diogo da Silva, quando lhe mostraram essas Obras. - ‘ae Aurtror: Que disse? ~~ - * Queveno: Ello grande"cosd es;'no sé yo'si mala, si buena. "+ Bocazmo: Bem definiu o Castelhano, mas pela regra do gutro, muito md cousa deve ge ger ella.* siya ae ‘ “Aviston: O aphorismo é bom, mas nao vem applicado, por- que este’ Author sobre confuso poeta, foi scientifico, e cuidou com pirofundidade: quanto mais/‘que temos por experiéncia, quejdo apellido Portugal no ha pessoa indiscreta em o mundo. » CAPITULOIV Ferndo Alvares d’Oriente e a Poesia portugueza ‘ em .Géa , Epoca aproximada do seu nascimento em Géa.—A Poesia por- " - tugueza na India. — Cantos malayos. —Commanda uma fusta em, 1572, — Autobiographia tirada da Lusitania transforma- da.—Vae a Macéo.—Epoca da sua vinda a Portugal. — Accusaciio do xoubo do Parnaso de Luiz de Camées. —Vae em 1578 por Capit&o de uma companhia 4 empreza de Afri- ca.— Seu resgate.— Recebe favores de Philippe 11: mereé de duas viagens de Coromandel antes de 18 de Fevereiro de 1584. — Patente passada a 15 de Marco de 1587, que existiu no Archivo da Casa da India, que est& hoje perdido, para - : poder, testar em seu filho no caso de nfo vagar em sua vida. 0 —Epoca da sua morte depois de 1 de junbo de 1594, em que = fez o seu testamento. — Luiz Alvares entra na pdésse das via- gens em 1598,—Este direito tornou-se effectivo por Carta de Philippe m, de 25 de Margo de 1598. —Documento obscuro acerca de Luiz Alvares, de 16 de Abril de 1598.— Viagem de Fernio Alvares 4 Italia.—Sua imitag&io da Arcadia de . Sanazarro.— Vive ainda em 1594, por que allude 4 sepul- tura de Camées mandadg, erigir por D. Gongalo Coutinho. —O culto de Camdes.—E provavel que por sua via os edi- tores mandassem procurar na India poesias,de Camies.— Domingos Fernandes.— Relagdes litterarias com Francisco Rodrigues Lobo.--Suas imitagdes de Camdes.—Caracter ga Lusitania transformada.— Antonio de Abreu, e Luiz > Franco. : . : : Um grande numero dos capitaes das armadas que partiram sara a India desde 1500 até 1517, consta de poetas afamados, cujas composigdes figuram no Cancio- neiro de Resende; (1) desde que a conquista portugueza se firmou no Oriente, eo desenvolvimento do .espirito (1) Bernardim Ribeiro e os Bucolistas, p. 19. 98 HISTORIA DE CAMOES ~publico levou as melhores intelligencias para a imitagao da poesia italiana da Renascenca, a poesia tornou-se uma necessidade moral para os que batalhavam longe da patria, foi um meio de communicacao dos senti- mentos mais intimos, uma consolagio nos desastres da guerra e dos naufragios. Entre os poetas guerre’ s, pértencentes 4 eschola quinhentista, que combatiam no Oriente, figuram Luiz de Camées e os seus intimos ami- , 80s Heitor da’Silv ira, Joao Lopes Leitéo, Antonio . 2de Abreu, Luiz Franco Corrés, e Ferndo Alvares do Oriente.’ Aquelles que haviayn seguido a vida do passo ou da magistratura, mar.davyam os seus versos para a India, como Caminha , André Faloio de Resende ou o Dr. Antonio Ferre’ra, Na sua Carta VII, 0 integerrimo . = “5 Ferreira aconsel! aa Joio Lopes Leitéo para conservar a paixio pela poesia conjuntamente com a bravura das : t . wos foe armas: ‘ : ‘ - t - Do antigo Portugal, da gri Lisboa Por novos mares, novos céos e climas, ,y Ao novo Portugal, 4 clara Géa, Te vae saudar, Jodo Lopes, s'inda estimas S'inda as nove Irm&s honras, minha musa; Dém logar duros trons is brandas rimas. . 1 , 1 Esta amisade entre Ferreira e Joio Lopes Leitio, ti- nha sido cimentada por Caminha: ‘ 1 1 Devemos este amor a0 nosso Andrade, De nosso amor seguro fundamento. Goa, sobretudo depois da chegada de Camées & me- PARTE I1.—LIV. I. CAP. IV 99 tropole da colonia, tornara-se um centro florentissimo da poesia portugueza; dava-se ali uma condigio para fa mais plena liberdade moral, no syncretismo das diver- sas crengas religiosas. Em Géa, encontravam-se as sei- tas do islamismo, dos turcos, dos rumes, dos persas, dos adoradores de Brahma, o que estabelecia uma toleran- cia, que por um lado fucilitava aos portuguezes 0 seu dominio, (1) por outro parecia que as mais lucidas in- telligencias se refugiavam ali isentas da espionagem in- quisitorial do reino, de que ja tinkham sido victimas os homens mais insignes, como Damiao de Goes ou Mar- rama ue. Pode-se affirmar que o estabelecimento da In- quisig&io em Géa em 1560 veiu abafar esta actividade litteraria. Dos colonos domiciliados em Géa, a que se ‘chamava vulgarmente os casados, nasceu Fernio Alva- res d’ Oriente, apellido que tomou na Europa como al- lusdo 4 sua naturalidade. Segundo o P.° Joaquim de Foyos nasceu elle ndo longe de 1540; (2) 0 snr. vis- conde de Juromenha, colloca-o «no anno de 1542, se- gundo se conjectura». (8) Isto basta para nos dar a co- nhecer a epoca da sua educaciio e o meio litterario em que se desenvolveu e que o fez poeta. A poesia tinka entéo uma importancia real em Géa; os vice-reis pediain versos, e eram festejados ou guer~ reados em verso. Uma satyra perturbava Géa, mais tal- - vez do que a noticia do apparecimento de um corsario ou (1) Ferdinand Denis, Le Portugal, p. 181. (2) Lusit. transformada, ed. 1781. : (8) Obras de Camées, t. 1, p. 313. C 200 HISTORIA DE CAMOES de uma invasio; Francisco Barr 0, o severo Governa- dor, é festejado na sua eleigto com o Auto do Filodemo; Dom Francisco Coutinho pede a Camoes para The glo- sar certo Mote; Heitor da Silveira’ pede-Ihe a sua pro- teceao em umas coplas; Dom Constantino de Bragan a é perturbado no seu governo com os romances satyri- cos que os seus tnimigos iam cantar-lhe 4 noite debaixo das janellas. A emogio causada pela satyra dos Dispa- rates da India, ou pela Satyra do Torneio, explica-se diante d’este interesse, e prova-nos a verdade da ani- Iadversio que havia contra Camées. O velho Garcia @Orta, para apresentar o seu livro sobre as Drogas e simplices do Oriente, soccorre-se 4 poesig para captar 0 vice-rei. Diovo do Couto, que viveu em Géa, e militou com esses guerreiros poetas, obedece a esta mesma in- fl encia quando nas Decadas cita versos dos Luziadas, com que retrata os costumes orientaes, como os se- guintes: 1 Ditosa condig&o, ditosa gente Que ndo é de ciumes offendida... (1) Este chronista, cita com frequencia os romances po- pulares que se cantavam na occasifio das batalhas, e como se celebravam em: “Géa as victorias, copiando-nos o principio do romance que comega: Pelos campos de Salsete, hoje totalmente ignorado. Na Decada Iv, apre- “senta elle uma cantiga que os malayos cantaram a morted Dm_ aulo de Lima: (1) Vid. Decada VII, cap. 11. PARTE JI.—LIV. I. CAP. IV , wo «Capitéo Dom Paulo Baparan de Pungor, Anga dia malu Sita pa tan dor. \ «ql e,quer dizer: —,Capitao I). Paulo, pelejou em Pun-. gor, e antes quiz morrer, que recyar um palmo.» (1) Assim como os malayos celebravam os nossos heroes, os p riyguezes tai be hes. davam seus’ descantes,” como o descreve Couto: cum dia depois de, céa, toma- ram um tambor, cestros e pandeiros, com suas espadas nas cintas e rodelas langadas sobre “s co tag, e a8 es- pingardas cevadas,,e assi chegaram acerca das tendas do Emperador, e comegarama foliareg arm ito alto, e assi foliando com grande estrondo pelas portas que os porteiros Ihe largaram. O Emperador ouvindo a matinada sahiu fora coma igh:’e syag q mas 9m i de trinta tochas accesas e pararam.a:ouvir a folia, que. os nossos iam continuando e o que. cantavam era isto: : . ” Viva o Rei de Preste Jodo, Que pera os-Turcos he um Lede. » (2) 4-8 Nas conversas amorosas dispendiam-se conceitos de Petrarcha, de Bembo ou de. Boscan;~hayia individuo, como aquelles que retrata Jorge Ferreiya, que possuia com esmero o seu Cancioneiro de mio, como.o que ainda hoje existe,de Luiz Franco Corréa. Finalmente, qua do os livreiro de Lisboa quizera, .,¢eynir as obras (1) Decada IV, cap. 11.° , t (2) Decada VI, cap. 4. wz = - HISTORIA DE CAMOES perdidas de Camées, recorreram aos curiosos de Géa, que emudecidos pelo terror da Inquisigaio do ultramar, ainda guardavam bastantes d’esses thesouros. Domin- gos Fernandes, na edicéo das Rimas de Camées, de 1616, diz: «prometto para a segunda impressao, por que da India me tem escripto que me mandardo muitas curiosidades, e n’este reino heide haver outras mais, e @esta maneira se ajuntou a Primeira Parte, fazendo vir da India...» Domingos Fernandes é qne publicou o manuscripto da Lusitania transformada, de Fernao Alvares do Oriente; d’aqui se infere, quo talvez este poeta, que tanto admirou Camées, lhe indicasse 0 modo de obter de Géa novos ineditos, e sobretudo, que é im- possivel admittir a tradig&o de que a Lusitania trans- formada fosse roubada a Camoes, ou seja parte do seu Parnaso, por isso que o solicito editor Domingos Fer- -nandes seria o primeiro a conhecer o plagio e a pu- gnar pela integridade da obra do poeta. A epoca em que Fernio Alvares do Oriente comeca a ter importancia civil em Géa, isto 6, em 1572, justi- fica a hypothese de ter tido relagdes com Luiz de Ca- mées antes de voltar 4 patria. Diogo do Couto, na De- cada IX, cap. 13, descrevendo a Armada com que o vice-rei Dom Antio de Noronha, a quem Camoes lia os seus versos, foi a Damio para libertar a fortaleza do cerco de Hecobar, imperador dos Mogores, cita Ferndo Alwares d’ Oriente, como commandante de uma das se- tenta e seis fustas da expedicéo. Barbosa Macha o, sem allegar o fundamento da sua affirmagao, assevera que PARTE II.—LIV. I. CAP. IV 108 Fernao Alvares commandou uma outra fusta sob 0 go- verno de Antonio Moniz Barreto. E certo que elle es- tava na In 1a ao tempo em que alli chegava impresso o poema dos Lusiadas, a cuja elaboracaio devia de ter assistido, A homenagem que lhe mereceu este livro, esté nos versos em que o poe a’ par da Eneida: Outr’ora até o epilogo do prologo Os Lusiadas lia ou os Eneiadas... (p. 466.) Da mesma maneira que Barbosa, escreve o snr. vis- conde de Juromenha: « Fernio Alvares do Oriente no anno de 1576, ainda militava na India, donde veiu ja no fim da vida do Poeta...» Os principaes e quasi unicos subsidios para a biographia de Fernao Alvares, sao o que elle de si mesmo conta na Lusitania transfor- mada; esta pastoral arcadica é fundada sobre factos acontecidos, como o proprio editor o declara justificando o titulo do livro: « Ese parecer a bons juizos que guar- dou mal o decéro ao estilo pastoril, misturando com elle outro que parece mais alevantado, lembro-lhe que o faz recontundo acontecimentos-do mundo per pastores disfargados... motivo que tomou o Auctor d’estas transformacgées para dar a esta obra o titulo de Lusi- tania transformada.» Isto nos mostra o. valor autobio- graphico do livro, e importa aproveital-o, Sob o nome de Olivio, Fern§jo Alvares conta assim a sua vida: « Nas partes remotas do Oriente, n’huma cidade po- . 4 (1) Obras de Camies, t. 1, p. 94. 104 HISTORIA DEC OES pulosa metropolitana de todo aquelle oriental Imperio, nasci: o meu nome era Olivio, o qual, pela dita da mu-, danga do estado, com o trajo mudei n’este que agora tenho (Felicio). E posto que a fp u a no principio da vida com seus afagos me lisongeava, nio deixou de lhe dar o remate... No estudo das letras, e em especial da poesia a que fui mais inclinado, empreguei a minha primeira edade com tanto gosto, que renunciei por elle outros exercicios que n’aquellas partes, sendo de maior proveito, sio tambem de mais estima. No servico do bellicoso Marte gastei parte alzuma da mocidade, nao deixandd nunca de todo no reblico das armas a con- versagio dag musas, misturando:com o estrondo das trombetas e atambores o brando som da frauta sono- rosa, quando o tempo offerecia em algum silencio con- jungio acomodada de poder soar. . . quero somente con- tar-vos 0 que toca ao gostoso.exercicio das musas de- positarias do Thesouro do Parnaso, e o liquor d sua Sonte, que naquellas partes, tambem derramam com abun- dancia. Nao tinha eu passado ainda o principio do ve- rao da brev vida, quando me offereceu o céo benigno oceasiao de poder enriquecer dos thesoures de Thalia, a melhor que ella mesmo pudera grangear-me.» .Fernaéo lvares descreve o logar da sua educacio, na parochia de Santa Lmzia: « Féra da ‘cidade patria minha, pouco espago vivia entao occupado no pastoral’ officio, repastando um grande rebanho de ovelhas, o grande pastor Ribeiro, mais por philosopho que por pastor conhecido em todo o,Oriente. Passaya n’aquelle PARTE IT. —LIV. 1. CAP. TV 105 quieto remanso a vida o bom Ribeiro com grande quie- tagéo em o servigo da Virgem, que, por ndo perder a luz da fé, que sao os olhos da alma, escolheu da luz da vista corporal e da mesma vida ser privada.» (p. 187.) Este aranzel bucolico do mais artificioso euphuismo comprehende-se pov este fragmento da descripgio de Géa no seculo xvI:.¢2 collina oriental... olha.para dous vales, dos quaes um, seguindo o rio para a parte septentrional, esta cheio de casas e tem a parochia de Santa Luzia.» (1) r Aqui Fernio Alvares conversava sobre poesia com _ Ribeiro e Arbello, pseudonymo de dois poetas dos mais afamados de Géa: «Em semelhantes exercicios o cu- pava com gosto immenso a primavera da minha eda- de, quando aquella furia (a, ventura), trocou o estado yu que vivi tao contente, que foi o mais felicg que lo- grei da vida... n’outro em que,tomei a salva a tor-. mentos de todo o genero, a que a misera vida esta su- jeita.»... cdividiu, e suspeito que para sempre, tio apra- zivel companhia, langando cada hum a pavte tio remo- ta, que juntamente nos apartou do coragio a esperanga de nos tornarmos a vér. Para os confins da Felix Ara- hia.f z a sua jornada o meu Arbello... Eu atado ds ri- gorosas leis do mundo que seguia, pgra 0 e"10 1 upartet do grdo Cata’o, despedindo-yos ambos para sem- pre do nosso Ribeiro. J& deixavamos atras a celebrada Trapobana, e as terras opulentas da Aurea Chers neso, 3 (1) Apud Ferdinand Denis, Portugal, p. 250. 106 HISTORIA DE CAMOES que passamos experimentando a furia das tempestades, com quea Ophir antiga ou nova Samatra, parece que pre- tende defender o seu ouro... D’esta sorte cheguei 4 rica praia, cercada das inquietas aguas d’aquelle bravo Ar- cipelago... Aqui depois de tantos me esperava outro, de que ainda nao tinha experiencia: e tio longe da pa~ tria que perdi achei a occasido de perder a liberdade que sobre tudo estimava, entregando nas maéos do Amor a vida que de tantos infortunios escapara. Na cidade, que n’uma pequena ilha d’este grande Arcipelago os Luzitanos edificaram, aportei; aonde achei por desconto dos tormentos que passara, hum abrigo, no principio bem afortunado em companhia de Petrario, com quem obrigagdo antiga e conversacgao de novo me ajuntava o animo de maneira que sendo aquella a principal occa- siio de meu desterro, foi este o refugio principal que n’elle tive.» (p. 232.) Tudo isto quer dizer, que se em- barcou para Macdo, demorando-se algum tempo na pro- vincia de Cantio, do continente da China, fixando a sua residencia em Macao, aonde foram os seus amores: «Huma filha sd tinha Petrario, de belleza tam rara, que n’aquellas partes parece que a formon a natureza por testemunho do seu poder... foi este o primeiro ve- neno que provei, composto de vida ociosa e conversa- cio domestica... Eu, por quanto nao fui possante a fa- zer huma valerosa resistencia 4 forca d’este- meu cui- dado, convertido ja em desejo ardente, posto que ho- nesto, determinei manifestal-o a quem sabendo a causa d’elle, o pudesse remediar. Mas Thecrina (Catherina?) PARTE II.—LIV. I. CAP. IV 107 que assi se chamava a filha unica de Petrario, ou por me accender mais o desejo ou porque Ihe nado soffresse © pensamento mostrar-se a ninguem affeigoada... hu- mas vezes fingia nao entender minhas palavras, outras sorrindo-se m’as extranha “a, como quem na maior as- pereza me consentia certas esperangas que servissem de arrimo ao pensamento amoroso, que t&o de verdade lhe mostrava.» (p. 234.) moan ap ome Fernao Alvares conta depois como um desastrado equivoco deu fim a estes amores, € como 0 seu deses- pero o trouxe 4 Europa, visit ndo a Italia e fixando-se em Portugal. Tudo isto, que descreve nas Prosas da Lusitania transformada, repete com as mesmas allego- rias, nos seus versos: . : £ aw if Depois que o duro fado Me apartou suspirando ia D'aquelle campo alegre e deleitoso Do meu paterno prado, - Que se vé no leito brando we Deixar a bella Aurora 0 amado esposo: abit E que o dia formoso Ainda vé no bergo, “ at sy Notando varias manhas, d Varias gentes e leis ao mundo extranhas, x Me fez correndo andar todo o universo ‘ . Buscando algum descango Mas quanto 0 busco mais, menos 0 aleango. . Na mais remota parte u I Que pizam pés humanos, t Onde 86 dos ferinos rastro achava ; Nas mios do fero Marte Os rigores insanos E furor rigoroso em mim provava. Ou nas praias que lava Do Indo a gran corrente, bo ry 108 HISTORIA DE CAMOES * » .| Com trabalhoso estudo (Que emfim, vence o trabalho e rompe tudo) Busquei descango algum. Mas descontente «> De tel-o assi buscado i _ Que se n&o pode achar j4 tenho achado.” N’aquella Tha ditosa “et is Que a fina prata manda, Por onde apenas Phebo o raio estende, La na praia arenosa ~ , by Que de uma e outra banda “Mais que a todas do sol a forga offende’ Ou onde em vio pretende I ue » A-gente qué de Apollo ’ 1 , Véem nascendo a face, ‘ r O bergo vér no qual o Ganges nace; 9 ott. As pizadas deixei, ora dé Edlo' ve eb eo.” 4 Q furor importuno, ‘ ‘ + * Outr’ ‘ora experimentando o de Neptuno. 1 n Meu cego pensamento Aqui me afigurava Que-alli repouso algum achar podia; E 0 vao contentamento Que alli depois buscava « Qual vento d’entre as miios se me acalhia. (1) Estes + yersos mostram-nos uma realidadg bem sen- tida; o que desereve nas suas prosas nao péde ser to- mado como uma ficcéo. Embora nao nos sej- possivel hoje interpretar todos os pomes arcadigos a que Fer- nao Alvares allude na sua pastoral, a part” em que faz a autobiographia é é clara: No seus versos, quando oar- tificio das rimas em ekdruxulos 0 nio obriga ‘ds mais forgadas construcgdes grammaticaes, tem um timbre camoniano, um vago e m lancholico espiritualismo de quem muito soffreu e muito se desilludiu; porém a sua (1) Luzit. transformada, p. 91. PARTE IJ.— LIV. I. CAP. IV 109 prosa é derramada e contrafeita pelos mais desnatura-~ dos hyperbatons, o pensamento é obscurecido de pro- posito por meio de redundancias enigmaticas, os epi- thetos acompanham com um monotono e embaracoso servilismo os substantivos, e isto tudo aggravado com o falso genero pastoral na insulsa férma da allegoria. Tal éa Luzitania transformada, Mas uma simples cousa pode fazer ligar interesse 4 sua leitura; sio os vestigios autobiographicos. SigAmol-os, principalmente na his- toria de seus amores: L - @N’este tempo com uma breve ausencia me foi for- - gado interromper o gosto em que vivia da presenga ‘de Theerina: porque Petrario de uma necessidade urgente vonstrangido se foi ao grao Cataio, que da nossa’ cidade esta pouca distancia: e eu levado da curiosidade de vér cém’ os olhos o que della ao nosso Oriente a fama com tantas boccas apregoa, quiz seguil-o na jornada, i ima- ginando que lhe grangeava n’isso a vontade para “o mesmo effeito, para o qual elle com mostras de verda- deiro amor'pretendia grangear-me a minha.» (p. 235. ) Para’ distrahir-se da saudade, o poeta ocqupa-se emi notar os'costumeés da China: «eda saudade que no meu causava essa mesma ausencia, me aliviay: a a conversacdo dos companheiros, occupando com elles o tempo em notar a variedade das cousas peregrinas e costumes ex- tranhos do uso commum das outras gentes, que naquella terra viamos cada dia. No largo'rio, que a grande ci- dade ao longo de seus muros cinge quasi toda, ém uma barca grande‘faziamos habitacdo; uso alli tambem dos 110 HISTORIA DE CAMOES naturaes, de que tantos vivem no mesmo rio alojados em seus barcos, quantos sio os que do mar grangeam o emedio da vida, sem-terem na terra nenhum outro domicilio:—«criam em muitos barcos (em que tam- bem habitam os que vivem d’aqyella grangearia) mui- tas adens, que tomando pela manha licenca de seus do- nos para se estenderem pelos largos campos, vao dis- ‘orrendo per yarias partes, quando as sementeiras ainda estao em erva e de tal maneira se apacentam das her- vas que a terra cria prejudiciaes ao semeado, que nao tocam n’elle, antes o aproveitam alimpando-o da her- vilhaca que vio pacendo... as,quaes se recolhem no fim d dia ao som quo de cad: barco lhe f 2,9 seu ar- raes, sem se confundir nenhuma de tao grande nu- mero. Outras barcas usam meias alagadas, em que se criam pejxes, -omo em viveiro, nos repartimentos que n’ellas fazem para esse effeito... Na gecupacso de to- das estas cousas € outras que nao é possivel referir, em- pregava do tempo aquella parte que de outros exerci- cios me recrecia: e fui assi enganando minhas sauda- des e afagando a dor da ausencia com,1s esperangas da tornada, té que o tempo d’ella chegou t&o aprazivel...» (p. 241 a 2 3.) by wer + No regresso a Macdo, o poeta foi encontrar a sua namorada mais decidida a amal-o, mas um equi- voco originou um impossivel entre ambag: «D’aqui po diante comecei de experimentar, com mostras claras a vontade de Thecrina em_meu favor mais declarada, ou por que entendia ‘a pureza da minha... N’esta segu- PARTE II. —LIV. I. CAP. IV 111 ranca e conformidade de vontades vivialgum tempo. . . Para as IIhas Platarias, assi pela sua prata com rezio antigamente nomeadas, do nosso porto se fez prestes uma nau, em que me foi necessario por mandado de Petrario, a quem ja como a pae obedecia, entregar o gosto com as vellas ao vento, e 0 corpo com a vida aos perigos do mar incerto, Deixando 4 mao esquerda a costa larga d’aquella grande provincia, de que as outras treze do Reino tomaram o nome, e 4 direita aquella Ilha, que da formosura com que § ornou 0 céo e ana- tureza, mereceu o titulo de Fermosa, fomos varrendo as aguas por cima dos ossos de varées illustres, que nas entranhas do mar salgado alli ficaram para sempre sepultados, até chegarmos 4 terra, que era o termo do desejo que tao longe nos levava.» (p. 243.) «O segundo dia depois que no primeiro da minha chegada veiu a visitar-me (um tal gentil homem seu conhecido) dando- me conta de uns amores novos que tratava com The- crina, e pedindo-me alvigaras do bom successo elles, me mostrou em segredo uma carta sua, que logo 4 pri- meira vista conheci, na qual com palavras amorosas lhe offerecia sua affeigao, pelos mesmos termos com que dantes m’a tinha offerecido. Eu dissimulando minha magoa o melhor que me foi possivel, e represando as lagrimas que do peito com tao justa occasiéo me arre- bentavam, Ihe dei mostras do gosto, e festejei o bem que o amor e a fortuna tanto 4 minha custa lhe gran- gearam... Estava entéo no porto para partir ao mes- mo dia huma ndo aparelhada, de estrangeiros acaso 112 HISTORIA DE CAMOES guiados por minha boa estrella ali vieram aportar, para aguella parte que do seu ouro tomou o nome, *. celebrado no mundo de Aura Chersoneso, N’esta em- barcacio, dando primeiro conta em segredo ao. mestre d’ella, me meti escondido no mesmo dia...» (p. 341.) «da Etyopia, aonde por fim de mil trabalhos nos foi lancar o furor das tempestades furiosas... achei che- gado ao porto mais frequentado de todas aquellas re- gides uma ndo, que ja estava prestes para esta nossa Juzitania: e affirmo-vos que sem desembarcay em terra, me embarquei n’ella, tendo por boa sorte oceasiao tio oportuna...* discorrendo primeiro as dezertas praias do Promontorio em‘ que foi convertido o namorado Adamastor, nos achamos nas ribeiras da Etiopia, , (p. 345.) «jé me estava esperando a companhia para continuarmos de novo a nossa navegacio, a que com prospero vento démos principio tao felice, que achando de todo assocegadas as tormentas do Promontorio, que j& d’ellas teve o appellido, tivemos por elle pacifica passagem, em desconto das adversidades com que nos recebeu a outra vez que alli chegamgs. Entrava o § | na casa do namorado bruto de Pasiphae,... quando chegémos ao porto de longe ja téo desejado, d’aquella ilha graciosa, que a mae de Coystan ino no seu q° descobriu por beneficio d’aquelles que em tao comprida , lagem entregassem a vida aos perigos e descontos do mar salgado.» (p. 355.) Fernao Alyares refrescou na dlha de Santa Helena; elle ,d& a entender ter sido esta ilha a realid de da fi go de Camdes a Ilha dos PARTE II.—LIV. I. CAP. IV 1138 Amores, (p. 365.) «Finalmente. . . nds entregando outra vez as velas ao vento e as vidas aos mares inimigos, chegamos a ver as aréas do celebrado Tejo, douradas antigamente na opiniao dos estrangeiros, e regadas agora com as lagrimas dos naturaes. Eu como tinha posto a gloria da vida na minha pevegrinacio, tres dias me detive sd em vér as grandezas da cidade insigne, que na nossa Europa edificou Ulysses. Passando depois pela ribeira do claro Lena, e por esta do vosso Nabao tio famoso, fui vér.as do Erimantho, e a gentileza dos pastores do alto Menalo... Aqui... colhi o depo- sito rico com que a enobreceu o velho Sincero: e com elle me vim a esta vossa ribeira a que me inclinou mais © gosto.» (p. 379.) Fernao Alvares descreve como fez a viagem da Italia, aoride recebeu a primeira impressio da Arcadia, de Sanazarro, que imitou na Luzitania. Sob o nome de Felicto, Fernao Alv.r s d’Oriente descreve como obedeceu 4 influencia de Sanazarro, co- nhecido pelo nome poetico de Accio Sincero: in > 2 ft Assi-Sincere, cujo nome a gloria , Celebra entre os Pastores, e aleangou Do baixo esquecimento alta victoria. ‘ A tradigao dos amores e tristezas de Sanazarro era- lhe conhecida, e por certa analogia de situagdes da sua vida é que procurava imital-o. Sanazarro cantara ,apai- *xonado por Carmosina Bonifacia, e no seu desespero abandgnon a Italia; andou em F-anga, Vonde, re- _gressando com saudades, veiu achar morta a sua,ama- 114 HISTORIA DE CAMOES da. Vivendo na sua villa de Mergolino, especie de re- tiro arcadico aonde se inspirava, foi-lhe ella destruida pelo principe d’Orange; este desgosto levou-o ao maior desespero e 4 morte. (1) Eis como Fernao Alvares al- lude a estes factos: Se a triste vida foi de ti sentida De Sincero e de Phili a morte escura, Que em fim dée mais que a morte a triste vida; Se chorando cantaste a sorte dura Do tempo, que a discordia e a m4 zizania Metteu entre os pastores na espessura : Eu 4 patria tornando, a sua insania Em ti chore com dor que da alma nace, Arcadia transformando em Lusitania. (2) Fernao Alvares, tambem deixou Géa, sua patria, por motivos de amor de Thecrina e escreveu a Lusi- tania transformada depois de ter soffrido o cativeiro de Alcacer Kibir, e de ver a patria escrava sob o jugo de Castella. O epitheto de transformada, segundo o tes- temunho de Domingos Fernandes, intelligente editor seu contemporaneo, é por alludir a factos reaes e his- toricos: «lembro-lhe que o faz recontando acontecimen- tos do mundo per pastores disfargados.» Se o desfe- cho dos seus amores com Thecrina nao é imaginario, entio havia uma certa analogia moral para Fernéo ‘Alvares querer continuar a tradigio de Sanazarro. A “carta de Thecrina, que foi mostrada a Fernéo Alvares, o (1) Tiraboschi, Storia della Letteratura italiana, P. vn, p. 1200. (2) Lusitania transformada, p. 7. PARTE Il.--LIV.I.CAP.IV . 115. tinha sido escripta a pedido de uma falsa amiga, com o intuito de lhe derrubarem o seu amor; assim aconte- ceu. Fernao Alvares fugiu no seu desespero para a Ku- ropa, e a queixa que lhe mandou matou-a pela sua fla- grante injustiga: «daquella carta que te foi mostrada por Urselio, de Thecrina, sé era a letra sua e nao a carta: porque Urselio, segundo a fama depois espalhou por todas as partes do Oriente, obrigado ao amor da honesta Thecrina, cuja constancia nao pode abalar com mostras delle, quiz ajudar-se para remedio d’esta ma- goa sua de hum artificio malicioso, em que se valeu da industria de Lorenia (Lianore?) que a ti tambem por affeicto, como sabes, estava inclinada: foi por este modo, Fingin-se Lorenia rendida ao amor de Urselio: e que obrigada d’elle dava parte a Thecrina de quem como sabes tambem era secretaria, do seu cuidado, pe- dindo-lhe a copia de huma carta para Urselio ei re- sposta de outra sua que lhe mostrou, a qual Ihe man- dasse por mostra e confirmacio da vontade affeigoada, que de si lhe descobria. Esta foi a carta, Olivio meu, mas ja Felicio, que tu viste tirada da mao de Thecrina com este engano, com que pretenderam divertir-te do seu amor, e tu inadvertido d’elle fizeste partida tao re- pentina... E como de teu apartamento no tivesse mais noticia a innocente Thecrina, que aquella que Ihe deu um papel que lhe mandaste, senten¢a de uma falsa in- formagiio em que ella se vin tio injustamente condem- nada, tomou tanta pésse de seu peito esta magoa, que de todo a privon dos sentidos e em poucos dias tambem — Tomo 1. 116 HISTORIA DE CAMOES . da vida: ete.» (p. 392.) O typo de Thecrina tem o mesmo colorido melancholico que a Carmosina, de Sa- nazarro. Fernao Alvares d’Oriente regressou da Italia a Por- tugal, aonde encontrou ainda vivo Luiz de Camoes; pelo menos parece referir-se a elle, quando sob o nome de Urbano esboga alguns episodios da sua vida: Ali onde levado do forgoso Impeto o Tejo co’ liquor mistura Do mar salgado o seu liquor gostoso, Mil glorias me outorgou minha ventura; Mas depois pondo ao scu costume o sello, Deu volta logo a roda mal segura. E porque o gado que eu por p: Possuissem extranhos, me quizeram Cortar tambem da vida a fraca linha. Com esse nosso grao Pastor fizeram Que em prisdo dura me puzesse, alheio Derros que, sendo meus, em mim puzeram. Uma rocha mui alta esté no meio Das agoas, onde o Tejo caminhando Penetra de Neptuno o largo seio ; Aldi, onde com som sonoro e brando Das claras aguas leva ao mar 0 pezo, Que d’elle n’outra parte esté tomando; Me teve em prisio dura um odio acceso Por me livrar d’outras prisdes extranhas Em que do amor me tinha o lago prezo. Mas quando o corpo meu n’essas montanhas Mais preso estava, em aspero tormento, Triumphador de sem razdes tamanhas, A alma mandava livre 0 pensamento A gosar da presenga que na vida Foi sempre Be meus olhos mantimento. PARTE 11.—LIV. I. CAP. IV 117 Da priséo livre, mas do Tejo ausente Me poz3.--. ees eee reece eee ece eevee No peito abrindo-me outra nova fonte Da vista me alongou da patria minha. (Pag. 182. sq.) Esta situagaéo aqui descripta concorda com o que se sabe da vida de Camées. Ferndo Alvares imitou mui- tas poesias de Camées, quando ainda estavam ineditas, © que nos prova que as conheceu pelos differentes ma- nuscriptos que corriam na India, ou talvez pela propria cominunicagio com o poeta. O Soneto que coinega: Horas breves do meu contentamento, roubado por Ber- nardes (n.° 75 das Flores do Lima, em 1597) e glosado por Balthasar Estago (p. 94, Poesias, em 1604) e por André Faleiio de Resende, (p. 435) foi encontrado em nome de Camoées pelo guarda-mér da Torre do Tombo em 1668; porém Fernéo Alvares, que escreveu a sua Lusitania antes de 1594, glosou-o como de Camées. O mesmo fez com as Outavas I, estancia 25, que sé foram publicadas pela primeira vez em 1595 por Soropita; glosou tambem a estancia que comeca: Toda a alegria grande e sumtuosa; e allude 4 Ecloga 1, em que Cames celebrou a morte do seu amigo D. Antonio de Noronha e do principe Dom Joao. A esta Ecloga, que Camées mandara para o reino, se referem: os seguintes versos _de Fernio Alvares: . , D'esta mudanga de que j4 cantaram Frondelio 14 no Tejo e Umbrano outr’ora, Quando do seu Tionio celebraram Exequias que inda entéa 0 ecco agora. Cantemos nés tambem, pois se declaram 118 HISTORIA DE CAMGES Em nosso dano os tempos mais cada hora, 'Tomando aquella estancia por sogeito De que sempre te vi tao satisfeito. Aquella estancia, digo, que comega: Toda a alegria grande e sumptuosa. J& péde ser que assi cantando esqueca Tantas magoas em esta alma saudosa. (Pag. 32.) F a sexta estancia da Ecloga 1 de Camées: Toda a alegria grande e sumptuosa A porta vem abrindo ao triste estado: Se um’hora vejo alegre e deleitosa Temendo estou do mal apparelhado. Nao vés que méra a serpe venenosa Entre as flores do fresco e verde prado? Ah! n&o te engane algum contentamento; Que mais instavel he que o pensamento. Glosando e estudando as poesias de Camées, Fer- nao Alvares d’Oriente chegou a imitar perfeitamente esse lyrismo idealista, tantas vezes sepultado sob a sua prosa arrebicada. A Ecloga 1 de Camées sé foi publi- cada em 1595; portanto Fernéo Alvares conheceu-a inedita; ella apparece recolhida no Cancioneiro manu- scripto de Luiz Franco, (fl. 18, v.) com o titulo de Ecloga Funerea, e pelo logar que occupa n’esse ma- nuscripto, indica-~nos que Luiz Franco a copiou em em 1557, e que Fernao Alvares a estudou quando ainda residia em Géa, Em 1577 estava Fernio Alvares na intimidade dos Poetas portuguezes, e as suas poesias eram ja procura- das para as collecgdes, como vémos pelo facto do P.* Pedro Ribeiro recolher a Elegia que comegava: Saia ‘ PARTE Il.—LIV. I. CAP. IV 119 Westa alma triste e magoada, no seu Cunctoneiro ma- nuscripto hoje perdido. Na Lusitania transformada, fala Fernao Alvares de um Pastor Ribeiro «mais por filosopho que por pastor conhecido em todo o Oriente. Passava n’aquelle quieto remanso a vida o bom Ribeiro com grande quietagéo em o servigo da Virgem» (Santa Luzia). (p. 187.) Este pastor Ribeiro era o parocho da freguezia de Santa Luzia, em Géa; e pelas allusdes de Fernao Alvares, se conhece que era na realidade.o Pa- dre Pedro Ribeiro: «Em um pequeno albergue, mas mui ameno e deleitoso, ae seu nome consagrado, despen- dia os dias o bom Ribeiro em honestos exercicios, co- Ihendo n’elles o fructo de seus trabalhos e vigilias. . . » (p. 187.) Na descripgiéo de Géa no seculo xvI, se en- contra a explicagao d’estes periodos ¢et du costé du se- ptentrion elle (Géa) touche presque jusqu’au fleuve. II est vray qu’& son pied, il y a une rue assez petite sur le bord du fleuve, laquelle arrive jusqu’en la partie occi- dentale de la ville et dans laquelle est la paroisse de Saint Pierre...» (1) Esta parochia pertencia aos do- minicanos, e é natural que as vigilias do pastor Ribeiro, se entendam pelo trabalho do ensino collegial. Nada se sabia do Padre Pedro Ribeiro, mas pelas allusdes tao claras de Fernao Alvares, nao sé se encontra o fio para reconstruir a sua vida senéo tambem se explicam as suas relagdes pessoaes. Em 1578 Fernao Alvares d’Oriente foi por capitao (1) Ferdinand Denis, Portugal, p. 250. 120 HISTORIA DE CAMOES de uma companhia de soldados, na expedigéo a Africa, e ficou captivo na batalha de Alcace - Cib’ . (1) Aqui é que estreitou os lagos de amisade com Diogo Bernar- des, ao qual allude tantas vezes na sua Lusitania. De- pois de'contar os amores da ingrata Silvia, que illudiu todas as esperangas do poeta, (p. 38) faz uma referen- cia ds eclogas piscatorias de Bernardes: «Era Limiano pelo nome conhecido tambem entre os pastores, e muito mais pela destreza da musica, em que fazia vantagem a quantos exercitavam no claro Tejo a arte piscatoria.» (p. 421.) O nome do poeta era tirado do rio Lima, d’onde Bernardes era natural. No captiveiro conheceria tambem o poeta Miguel Leitaéo de Andrade, admirador convicto de Camoes, e a quem visitou depois em sua casa junto ao Zezere. Ferndo Alvares era protegido por D. Miguel de Menezes, marquez de Villa-Real, (2) tal- vez a quem deveu o seu resgate. Por um documento que se guarda na Torre do Tombo, conhece-se que elle se deixou corromper pelas gracas de Philippe 1, que como cesarista, fixava por’ esse meio a conquista de Portu- gal. Em 18 de Fevereiro de 1584 foi nomeado para a vagante de duas viagens de Coromandel; em 5 de Margo de 1587 foi-Ihe passada a patente; e por Alvara de 15 de Margo de 1587 é-lhe concedido o poder dei- xar em testamento esta mercé aos seus herdeiros. Fernao Alvares do Oriente frequentava 1 amisade (1) ‘Jur., Obras de Cumées, t. 1, p. 313. 1 2) André Faledo de Resende, exalta o Marquez de Villa Real, mandando-lhe um Cancioneiro. Obras, p. 470. PARTE II.—LIV. I. CAP. IV 121 litteraria de Dom Goncalo Coutinho, que vivia retirado na sua quinta dos Vaqueiros, aonde se reunia Bernar- des e outros poetas. Em 1594 mandou Dom Gonecalo Coutinho erigir uma sepultura a Camées, para que se néo perdesse totalmente a memoria do logar em que jazia. Fernio Alvares alludiu a este facto na sua Lusi- tania transformada, de forma que nos deixou notado o tempo em que trabalhava na sua pastoral: « Mas entre todas a estatua dos Poetas da nossa edade, que cantou a larga navegacado dos Lusitanos, a qual se divisava das outras com este letreiro—PRINCEPE DOS POETAS— ti- - tulo que d’aqui parece trasladar dé sua sepultura hum peito illustre e generoso...» (p. 115.) Ferndo Alvares d’Oriente devia ser consultado pelo editor Soropita, que havia pouco deixara a Universidade de Coimbra, para corrigir os ineditos de Camées; Fernaio Alvares de- screve Universidade, e ao mesmo tempo a tradigdo dos poetas quinhentistas que alli se crearam: Aquelle cujo nome o céo reserva, E tanto pelo mundo se derrama; De quem se diz que assi honrou Minerva, 4 Que de Helicona as Musas fez passar-se A pizar do Mondego a fertil herva: Este pois desejando eternisar-se O seu nome, e por elle a patria nossa, Sobre as azas da fama alevantar-se, Porque com causa Lusitania possa Dizer, 6 sabias Musas, que algum dia Tambem soube estimar a gloria vossa: Aqui n’esta alta e inculta serrania ‘Vos deu esta bellissima morada, Qual a vosso alto prego c sér devia. ~. 122 HISTORIA DE CAMOES Pois este templo, por que mais te espantes, Consagraram 4 Santa poesia As almas musas, de seu prego amantes. Mostrando assi, que a sua alta valia Sobre todas as artes que ensinavam, Mér gloria e mais estima se devia. Entio posso dizer, que o frequentavam Quantos de honra movidos para a frente Hera, baccaro e louro eubigavam. (p. 106.) Mas no tempo em que Fernao Alvares escrevia, o espirito nacional estava extincto e sd os baixos senti- mentos é que agitavam a vida civil: . Agora, jé os peitos vis se encheram De inveja, de soberba e de cobiga Em si, dar-te nenhum logar puderam. Nao sé a poesia jé nao era estimada pelos fidalgos portuguezes, mas tambem a lingua patria era tida como despresivel, falando-se de preferencia o castelhano. Fer- no Alvares resumiu com certo artificio todas as quei- xas desdenhosas contra a lingua portugueza: «A lin- guagem portugueza é primeiramente t&éo escabrosa, que apenas acharas entre mil um estrangeiro, por mais larga continuagao que tenha d’ella, que a possa pronunciar sem commetter infinidade de faltas, que ndo soffrem que sejas de tio austera condigdo, que todas as outras nacoes condenines por desculpar a tua... Quanto mais que em lhe chamar linguagem portugueza fiz uma falsa supposig&éo, sendo assi que a nao ha: que aquella de que usamos agora no Portugal moderno é mendigada das outras nagées, de tal maneira que até ao arabigo PARTE II.—LIV. I. CAP. IV 123 pedimos emprestado enxoval para podermos enfeital-a com cabedal alheio... Mas por que vejas mais claro esta pobreza, nao sé na minguante dos vocabulos. . . sendo na impropriedade das palavras, que é 0 que mais importa; toma qualquer sentenga em qualquer outra linguagem e achards que traduzida na nossa polas mes- mas palavras séa tao mal...» (p. 219.) Este juizo, que Fernéo Alvares combate, mostra- DOs oS meios que ent&éo se empregavam para fazer com que nao fosse falada nem escripta'a lingua portugueza, © orgiio mais poderoso da nossa nacionalidade. Nas con- quistas do Oriente, desde que a Inquisigao alli foi in- troduzida, acabou essa seiva poctica de que Fernao Alvares é um representante; uma vez abandonada a forma. escripta, que dava fixidez 4 pureza da lingua, fa~ cil foi o dar-se a corrupedo a que hoje se chama o dia- lecto de Ceylao. Para que se faca uma ideia d’este dialecto, ao qual parece referir-se Camées, quando allu- de «4 linguagem mascavada de hervilhaca, que trava na garganta do entendimento», transcrevemos aqui um excerpto tirado da Biblia de Colombo: «1. Agora o serpente tinha mais sutil daquio ani- mals de o campo qui o Senhor Deos ja forma. E elle ja falla per o molher, Sim, ja Deos falla qui vossotros nemiste cume de cada hum albre de o horta? «2. Eo mulher ja falla per o serpente, Nos pode cume de o fruito de o albres de o horta: «3, Mas de o fruito de o albre qui tem ne meo de 124 HISTORIA DE CAMOES o horta Deos ja falla, vossotros nemiste cume de aquel, nem toca aquel somente qui vossotros nada murre. «4, Eo serpente ja falla per o mulher, Per ver- dade vossotros nada murre. «5. Videque Deos te sabe qui ne o dia ne qui vos- sotros te cume de aquel, vossos olhos lo ser aberto, e vossotros lo ser como deoses, sabendo bom e mal. «6. E quando o mulher ja olha qui o albre tinha bom per comera, e qui aquel tinha fremoso per o vistas e hum albre qui tem disejado per fazer cizo, elle ja toma de o fruito de aquel, ¢ ja cume e ja da tambem per seu marido e elle ja cume. «7. Eo olhos de amos dous de elleotros ja fica aberto, e elleotros ja sabe qui elleotros tinha no; e elle- otros ja cuze per huma o folhas de o figueira, e ja pin- dura aquels diante elles mesmo.» (1) Na primeira traduccio portugueza da Biblia, pelo P Joao Ferreira de Almeida, feita no seculo xvII, se pode vér a distancia que separa esta phase dialectal da lingua escripta: «1. Ora a serpente era mais astuta que todos os animaes do campo que Jehova Deos tinha feito: e esta disse & mulher: He tambem assi que Deos disse: nao comereis de toda arvore d’esta horta? «2. Ea mulher disse 4 serpente: Do fructo de toda arvore d’esta horta comeremos. «3, Mas do fruito da arvore, que esté no meio da (1) No livro: The three Voyages of Vasco da Gama, trans- lated by Stanley. Appendix, p. xxx. PARTE II.—LIV. I. CAP. IV 125° horta, disse Deos: nado comereis d’elle, nem tocareis nelle, para que nio morrais.» etc. Modernamente este dialecto portuguez de Ceylao tem sido estudado pelos philologos allemies. (1) Fernio Alvares do Oriente obedeceu tambem ao gosto pelo mysticismo, que dominou em Portugal des- de o fim do seculo xvi até aos quietistas do seculo xvi1; Dom Manoel de Portugal, Balthazar Estago, Frei Agostinho da Cruz, Bernardes, Jorge da Silva, Frei Paulo da Cruz, Frei Marcos de Lisboa sao os paladins do amor divino, que se refugiaram n’esse extasis do céo para se esquecerem dos desastres da patria. O modo como Fernaio Alvares se compenetrou d’esse espirito religioso, caracterisa-se pelo casuismo d’este soneto: (2) Como, se do eéo és Senhor superno, Te vejo, immenso Deos, pobre menino? Como te offende o frio, Rei benino, Se tens dos elementos o governo? Ou como o yentre te encerrou materno, Se n&o comprehende o céo teu sér divino? Como choras, se cantam de contino _ Anjos, com que dispensas gosto eterno? Como, se es Verbo, tu, do Padre immenso, Me no fallas, senhor ? — Como, se infante Maravilhas ao mundo ja disseste? Se és Deos, como te falta o sacro incenso? Se homem, como t’o dio? Ninguem se espante, Que homem terreno sou, sou Deos celeste. (p. 163.) (1) F. Adolpho Coelho, no livro A Lingua portugueza, diz: «0 dialecto de Coyliio, que é n&o como se imaginou uma cor- rupgfio da nossa lingua, mas no essencial bom portuguez ar- chaico.» Pref. p. rv. : - (2) Vid. cap. v, infra, biographia de Francisco Galvdo. 126 HISTORIA DE CAMOES Com o mesmo systema de antitheses, e no dialo- gismo tambem usado por Camées, é este Soneto ano- nymo, que encontramos em um manuscripto do. seculo XVII, e que parece continuar o que reproduzimos de Fernaéo Alvares: Se sois riqueza, como estaes despido? Se Omnipotente, como desprezado? Se Rei, como de espinhos coroado? Se forte, como estaes amortecido? Se luz, como a luz tendes perdido? Se sol divino, como ecclipsado ? Se Verbo, como é que estaes calado ? Se vida, como estaes amortecido ? Se Deos, estaes como homem n’essa cruz ! Se homem, como daes a um ladréio Com tam grande poder pésse dos céos? Ah que sois Deos e homem, bom Jesus ! Morrendo por Addo em quanto Adio, E redimindo Adio em quanto Deos. Da vida de Ferndo Alvares do Oriente pouco mais se pode saber alem do que consta pelos documentos le- gaes. No Archivo Nacional existe o segninte documen- to, pelo qual se pode fixar a data da sua morte antes de 25 de Marco de 1598, talvez dos primeiros rebates da grande peste de 1599: «Dom Philippe 1, etc. — Fago saber aos que esta carta vi- rem, que havendo respeito a ter feito mercé a Ferndo d’Alvares d’ Oriente de duas viagens de Coromandel, na vagante dos provi- dos antes de dezoito de Fevereiro de outenta e quatro, de que se The passou patente em quinze de marco de outenta e sete,e que falecendo sem a servir podesse testar d’ellas, de que se Ihe pas- - PARTE U.— LIV. I. CAP. IV 127 sou tambem alvardé de lembranga feito nos ditos quinze de margo do dito anno de outenta e sete, E havendo eu ora outrosi res- peito aos servigos que Luiz Alvares, meu mogo da camara, fi- Iho do dito Ferndo d’Alvares do Oriente, tem feito nas partes da India atégora, e ao dito seu pae nomear n’elle em seu tes- tamento as ditas duas viagens de Coromandel para Malaca, na vagante dos providos antes de vinte e um de Junho o anno de quinhentos e noventa e quatro em que o dito seu pae as no- meou n’elle em seu testamento. E esta mercé haverd o effeito indo elle este anno presente de mil quinhentos noventa e outo 4 India, com as quaes viagens nao havera ordenado algum 4 custa da minha fazenda, sémente os prées e os percalgos que lhe direetamente pertencerem. Pelo que mando ao meu Viso-Rei. ou Governador das partes da India que oraé, e ao diante for, e ao Vedor da minha fazenda em ellas, que tanto pela dita ma- neira conhecer entrar ao dito Luiz Alvares nas ditas duas via- gens lhe deem a posse d’ellas e lh’as deixem ir fazer e servir e aver os ditos prdes e percalcos que lhe pertencerem, como dito é, sem lhe a isso ser posta duvida, nem embargo algum, e elle jurar4 em minha Chancellaria aos santos evangelhos que bem e verdadeiramente as servir4 guardando em tudo meu ser- vigo e 4s partes seu direito, de que se far assento nas costas desta carta que serd registada nos Livros da Casa da India, da feitura d’ella os quatro mezes primeiros seguintes. E a carta que o dito Fernéo Alvares d’Oriente tinha das ditas duas via- gens e o dito alvard de lembranga para poder testar d’ellas foi tudo roto ao assignar d’esta carta e do conteudo a ella se po- ro verbas nos registos da dita Carta do dito Fern3o Alvares, que esté nos livros das Mercés da Casa da India, e Chancella- xia e Fazenda ¢ o registo do dito Alvard de lembranga esté nos ditos Livros da Fazenda e Casa da India, e no das Mercés que 08 officiaes a que pertencer passaram suas certiddes nas costas desta Carta.—Belchior Pinto a fez em Lisboa a 25 de margo, anno do nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo, 25 de margo de noventa e outo. Jodo Alvares Soares a fez eserever. » (1) Parece que Luiz Alvares nao seguiu para a India para recolher os proventos das duas viagens de Coro- mandel, sendo substituido por seu irmao Sebastido Al- ‘ (1) Archivo Nacional, Doagées de Philippe 1, Livro xxrx, fl. 871, v. 128 HISTORIA DE CAMOES vares, como se deprehende d’este documento algum tanto obscuro: «Dom Fhilippe, ete. —- Fago saber gue havendo respeito ao que na petig&o escripta na outra meia folha atraz diz o Duque de Braganga meu muito amado e presado sobrinho, Hei por bem e me praz que Luiz Alvares, que 0 Desembargador Lopo de Barros aponta na sua informag&o escripta na outra meia fo- tha atraz, que escreva em todas as cousas que na dita peticiio faz meng&o assi como o ouvera de fazer Sebastiéo Alvares se nio fora impedido. FE mando ao dito desembargador Lopo de Barros e 4s mais justigas a quem o conhecimento d’isto per- tencer, que cumpram esta provisio, como se nella contém a qual me praz que valha, posto que haja de durar mais de um anno sem embargo da Ordenagio em contrario. El-rei nosso se- nhor o mandou pelos Doutores Belchior do Amaral e Damiio de Aguiar. Gaspar de Abreu a fez a 16 de Abril de 1598. Joiio da Costa a fez escrever.» (1) A Lusitania transformada ficou inedita depois da. morte de Ferndo Alvares do Oriente, até ao anno de 1607; sé em 1650 é que encontramos citado por Dom Francisco Manoel de Mello este auctor como um d’aquelles que devem formar o corpo da Bibliotheca por- tugueza que projectava fundar: «Fernando Alvares do Oriente, por quem (as Musas) navegaram e lhe levaram mais riquezas que la se produzem.» (2) E no Hospital das Letras allude ao méo effeito dos versos exdruxulos: «He chegado Fernam Alvares do Oriente com rhusa es- trepitosa na sua Lusitania transformada, —«Ja li esse indiatico, e me pareceu como pedra durissima, como séo as da sua terra nfo com menos (1) Ibid., Livro xxx, fl. 872. (2) Cartas, Cent. 1v, cart. 1, p. 491. PARTE II.—LIV. I. CAP. IV 129 quilates na dureza, do que ellas costumam trazer na for- mosura.»> (1) Em 1781 se reproduziu este livro, em uma edigéio eritica por Frei Joaquim de Foyos; é uma hybrida concepcao da ultima decadencia do bucolismo, sem um interesse da acgio como na Diana de Jorge de Monte- Mor com quem quiz hombrear. Um dos poetas mais celebrados na eschola quinhen- tista, cujas obras eram por tal forma desconhecidas, que as que se apontavam como suas passavam por apo- cryphas, é Antonioce Abr u, a quem Barbosa Machado d& a antonomasia de Engenhoso, e por paes, Duarte de Abreu e Castello Branco, senhor da quinta da, Char- neca e Brites Teixeira: (2) o que o faz para nds digno de interesse ainda hoje, é 0 titulo de «Companhetro é amigo de CamBes», que o exalta, da mesma maneira que a Luiz Franco, que se arreiava com o mesmo distincti- vo de «Companheiro e muito amigo de Luiz de CamBes em o Estado da India», Faltavam as poesias de Antonio de Abreu, mas abundavam os documentos officiaes. (3) No Indice de Toda a Fazenda, (4) vem o nome de Antonio (1) Op. cit. pag. 390. (2) Bibl. Lusit. t. x, p. 21. (8) No Archivo Nacional, encontra-se no Corpo Chronolo- ‘ico, documento de 2 de Outubro de 1515 (Part. 1, Mago 18, oc, 109); id., de 2 de Janeiro de 1522 (P.1, M. 27, Doc. 84); id., de 5 de Outubro de 1524 (P. m, M. 118, Doc. 182); éd., de 16 de Junho de 1526 (P. 1, M. 138, Doc. 166) ; id., de 13 de Se- ptembro de 1531 (P. u, M. 171, Doe. 89); 2d., de 28 de Margo de 1539 (P. 1, M. 64, Doc. 80). (4) Faleao, Op. cit., p. 153. 130 HISTORIA DE CAMOES de Abreu como tendo partido par. a Indic 6 de Maio de 1526; Couto nomea-o na India em 1558, (1) e na assignatura do Orgamento do Estado da India, figura alli como Contador de El-rei, em 7 de Septembro de 1574. O seu talento litterario conhece-se principalmente pelas relagdes com André Faledo de Resende, que o elo- gia pela larga revutagéo ue sa, pela sua superiori- dade, e com um certo respeito que se tem a um homem ja de edade. No Soneto xxxv1, dirigido para a India A Antonio “de Abreu, confessa: Se este vosso Faledo, senhor, vodra Co’as azas de seu baixo entendimento, Que a0 cume alto d’um tal merecimento Qual € 0 vosso, como quer chegara. Sei que assim minhas pennas illustrara Com vosso claro nome, que entre cento E mais edades, do m4o esquecimento. O meu livre e seguro me ficara. Respondendo a um Soneto de Antonio de Abreu, Falc’o de Resende falla dos seus cantos heroicos, de que sera talvez uma amostra a sua Descripgdo geogra- phica de Malaca, o Soneto A sepultura de Affonso de Albuquerque, ou os Sonetos ao Cereo de Chaul: Por vés heroicas obras estio féra Que o consummidor tempo e injusta sorte Lhes possam offuscar sua claridade. (1) Decada VI, cap. 8. PARTE II. LIV. I. CAP. IV 131 Os Lusitanos vengam cada hora Ao Turco, a0 Mouro, ao Indo, e vés a morte, Perpetuando a victoria em toda a edade. (1) Depois de 0 collocar acima de Orpheo, Falcdo de Resende, no Soneto xxiI mostra-nos até aonde se es- tendia a fama de Antonio de Abreu: V6s, pois, oh claro Antonio, ao sol seguindo, Sé terra-e mar e rios illustrando Co’ resplendor da vossa alta doutrina. ' No Tibre, Rhim, Pé, Tejo, Ganges, Indo, A luz de vosso nome derramando, Que como novo sol té o céo se empina. Em uma Sextina do mesmo Falcio a Antonio de Abreu, (2) comparando-o a uma copiosa fonte, allude as suas viagens da India a Lisboa, e 4 Italia: Por natureza amiga e arte; as ondas Mais claras d’esta fonte ora do Ganges A rica terra banham; ora com nobre Curso tornam a honrar o patrio Tejo; Ora além do Apenino e Pyrene alto Vio illustrando a Ziberina fonte. Tu, rarissimo Abreu, que es esta fonte... weet e eee ee eee teaseeees do Tejo Assim te levem a salvo as branvas ondas, A ver teu domicilio a par do Ganges, A todos communica o engenho alto. Nas obras de André Falcio de Resende, encontram- (1) Falco de Resende, Obras, p. 116. {2) Obras, p. 455. 182 HISTORIA DE CAMOES N se trez Sonetos de Antonio de Ah-eu, que si0 0 XXXVII, XXXVIII ¢ XLI, todos muito vagos e sem a minima per- sonalidade. Como temos de julgar as Obras do Enge- nhoso, publicadas por A. L. Caminha, importa tran- screver aqui como typo do seu estylo qualquer d’esses trez Sonetos: . Livre da vil cubiga, se buscara Pondo e’o esprito em Deos o santo intento, O seu alto thesouro, a vosso accento Féra eu por certo ent&éo materia rara: E merecera ter memoria clara, André, por vés; e do mortal isento, Cysne gentil, té o estrsllado assento A despeito voar da morte avara. Mas qual me ora acho indigno, é-me defezo Subir; nem pode o canto, em que desata Vosso favor a lingua, algar-me a peso. Pode porém, se muito assim me trata Dar o esprito jé niio da culpa oppresso Do mundo honra, do céo gloria que cata. (Soneto 37.) Barbosa Machado, diz na Bibliotheca Lusitana, que Frei Bartholomeu de Santo Agostinho, irm&o de An- toniod Abreu, fizera uma colleccdo dos seus Versos sagrados e profanos, que deixara inedita; este Frei Bar- tholomeu de Santo Agostinho chamava-se no seculo Dio o de Abreu, era tambem poeta, como vemos pelo soneto que dirigiu a Falcéo de Resende. (1) No tempo de Barbosa Machado, estava perdido esse precioso li- (1) Bid. p. 120. . PARTE I.—LIV.1.CAP.IV - 183 vro; (1) mas em 1805 publicou-se em Lisboa um folheto de 52 pag. com o titulo Obras ineditas de Antonio de Abreu, amigo e companherro de CamBes no ‘estado da India, fielmente extrahidas do sew antigo manuscri- pto que possuimos em papel asiatico, Este opusculo an- dava appenso a umas Antiguidades de Coimbra, de An- tonio Coelho Gasco, publicadas por Antonio Lourengo Caminha, professor de rhetorica; 0 nome do editor tor- nou suspeita a authenticidade das poesias, sobretudo por tambem ser Caminha poeta. Vamos tentar a sua discussio, agora que temos poesias authenticas de An- tonio de Abreu, por onde afferiremos a verdade do seu espirito. Innocencio, no Dice. bibl., (t. 1, 80) fala por este modo d’esta reproducgéo: «O editor d’estas obras foi o notorio Antonio Lourengo Caminha, cuja consciencia litteraria néo era muito apertada, e por isso nao sei até que ponto se devem reputar authenticas e genuinas as poesias que encerra este pequeno volume, e que elle attribuiu a Antonio de Abreu. O salvo conducto de que se acompanha, allegando o seu antigo manuscripto em papel asiatico, é mais um motivo que induz a suspeitar alguma traficancia n’este negocio. Revendo as taes poe- sias diviso n’ellas tal similhanca de estylo e modo com outras que o mesmo Caminha publicou como suas em dous volumes no anno de 1786, que estou inclinado a dar-lhe egualmente a paternidade de algumas sendo de (1) Bibl. Lus. t.1, p. 195. 134 HISTORIA DE CAMOES todas as que elle pretendeu fazer passar 4 sombra do nome d’aquelle antigo e desconhecido poeta. E mister porém, que d’esta duvida se exclua a Ode a D. Hiero- nymo Osorio dada a pag. 25 dos taes pretensos inedi- tos: porque essa néo é de Abreu, nem de Antonio Lou- rengo Caminha; é sim evidentemente de Pedro de An- drade Camiuha, e andava como tal impressa desde 1791 nas Obras d’este dadas 4 luz pela Acad. R. das Se. No respectivo volume pode vél-a quem o quizer verificar, e é na ordem numeral a Vi, a pag. 205. O que sé admira é Antonio Lourenco Caminha nao tivesse conhecimento e leitura d’esta publicag&o, affoutando-se a apresentar em nome de um auctor € como cousa nova, o que ji an- dava impresso nas obras de outro quatorze annos antes.» Innocencio condemna como apocryphas as poesias de Antonio de Abreu, sem outros argumentos mais do que um tom dogmatico e a indisposigdo que lhe produziu o saber que o editor Caminha vendia muito caros os seus livros. (1) Sem conhecer versos authenticos de Antonio (1) «Caminha deu 4 luz muitos volumes, de chamados ine- ditos, com que adquiriu por vezes lucros consideraveis, pois fazia as suas edigdes por meio de subscripgiio, e 0 prego das as- signaturas era pelo commum de 16200 reis por cada tomo de 8.° pequeno. Estes volumes ficariam mais que bem pagos por me- tade d’essa quantia e alguns nem tanto valeriam. O peor é que d’envolta com as obras dos auctores dos ineditos iam tambem algumas d’elle proprio, que n4o escrupulisava em commmet- ter estas fraudes litterarias, com tanto que d’ellas colhesse o 0 proveito que se propunha. » (Dice, bibl., t. 1, p. 182.) N’estes Ineditos achamos sempre: « Foi taxado este Livro em papel a quatro centos e outenta reis...» Innocencio, 4 falta de argu- mentos, inventou o prego de 18200 rs. para justificar uma fraude litteraria com a mira no lucro. PARTE II.—LIV. I. CAP. IV 135 de Abreu que the servissem de typo para comparacio, regeita tudosé pela desconfianga de que o editor Caminha tambem metrificava. Quanto 4 reproducciio da Ode A D, Hieronymo Osorio, Bispo do Algarve, no primeiro dia de Janeiro, Innocencio affirma que é de Pedro de Andrade Caminha sem o fundamentar; esta Ode foi en- contrada em um Manusceripto de poesias que se gnar- dava no Convento da Graca, de Lisboa, tendo na pri- meira folha o nome de Fernao Pinheiro de Brito; e sé por induccgdes dos academicos Fr. Joaquim Forjaz e José Corréa da Serra é que julgaram todo o manu- scripto de Caminha, completando por elle o manuscri- pto authentico guardado na Livraria do Duque de Cadaval. Por tanto é mais de crér que a Ode seja de Antonio de Abreu, por isso que o corpo das obras de Caminha nao foi organisado pelo seu auctor; e no caso de duvida nio ha motivo para increpar o editor Lou- renco Caminha, porque em nome-de outros escriptores andam muitissimos Sonetos de Camées, (1) e nem por isso os seus editores sao increpados de falsarios. Anto- nio Lourenco Caminha era destituido de criterio e sé errava por excessiva boa-fé; o Soneto de Ferreira: Bom Vasco de Lobeira, etc., publicou-o em nome do Infante Dom Pedro, porque assim o achou em um manuscripto; e publicou como anonyma a glosa ao Epitaphio de Gil Vicente; tudo isto revela uma falta de estudo da poesia portugueza do seculo xvI, e por mais forte rasio a sua (1) Vid. supra, p. 32. 186 HISTORIA DE CAMOES incapacidade para saber falsificar essa poesia. Quanto & declaracdo do antigo manuscripto em papel astatico, nao é isto um meio de embair o publico; em 1792, es- creve Caminha depois de ter publicado alguns ineditos: «A justa acceitacéo que os sabios da nagao fizeram das obras de Perestrello e Galvao, acompanhada dos gran- des desejos de vermos em nossos dias renascer huma boa parte dos preciosos monumentos dos nossos bons an- tigos, de que temos feito um grande monopolio, nos move a declararmos d nagdo o futuro apparecimento que pas- saremos a fazer de algumas Obras ineditas do nosso Princepe dos Poetas de Espanha Luiz de Camoes, e de Antonio de Abreu, maravilhosamente descobertas em ‘uma das cidades da Contra-costa da Asia; e as de un sabio anonymo, coevo do senhor rei Dom Sebastiao, ¢ e Embaixador n’aquelles tempos, cujo nome trabalha- mos por descobrir, pois nada mais declara o fronti- spicio sendo o seguinte: ste Livro he de. D, Maria Hen- riques, que compoz seu pay em Marrocos, cuja posse devemos 4 grande liberalidade e patriotismo do illus- trissimo ¢ excellentissimo senhor Marquez de Alegrete «+ .0 qual senhor liberalmente nos confiou a sua biblio- theca e Cartorio (preciosos thesouros d’esta edade) em os quaes admirei infinitas preciosidudes, todas juntas pela sabia e judiciosa escolha de seus antepassados.» (1) Nao se péde fazer uma declaracio em phrases tao ca- thegoricas, sem ser doudo ou ter a mais cynica impu- (1) Obras ineditas, t. 1, p. vit. PARTE I —LIV. I. CAP. IV 137 dencia; o falsario faz passar por meios indirectos, e n&io com esta franqueza, e em um tempo em que a critica litteraria era exercida por Antonio Ribeiro dos Santos, José Corréa da Serra, Frei Joaquim Forjaz, Frei Joaquim de Foyos, Monsenhor Hasse, Ferreira Gordo e outros como estes que nao perdoariam um lo- gro publico. De facto a promessa de Antonio Lourengo Caminha sé foi comprida em parte em 1805, quando quiz engrossar o volume de Gasco com uma amostra das poesias que tencionava publicar, interrompendo uns quartetos, porque o papel néo dava para mais. No fim das Obras ineditas de Antonio de Abreu vem uma especie de nota a esses quartetos incompletos: «O resto esté em o Manuscripto de Lutz de CamBes e de Antonio de Abreu.» Por aqui se vé que Antonio Lou- rengo Caminha publicou simplesmente um excerpto das poesias de Abreu; na Academia das Sciencias (G. 5, E. 21, Past. 5) existe 0 Catalogo de todos os Manu- seriptos da Livraria de A, Lourengo Caminha, que jus- - tifica o seu pretendido monopolio de monumentos; en- tre as varias riquezas d’esse Catalogo, encontramos ci- tado «Obras poeticas de Luiz de Camtes e de Antonio de Abreu seu amigo e companheiro no Oriente. desco~ bertas em uma das Cidades da Contracosta da Asia, es- criptas em papel asiatico, 4,°» Foi d’este livro, que Ca- minha extraiu alguns ineditos de Antonio de Abreu; hoje ignora-se completamente o seu destino. No Cata- logo de Caminha, se enumera tambem como manuscri- pto o Livro de D. Maria Henriques, que compoz seu 138 HISTORIA DE CAMOES pae em Marrocos, fol., de que sé torndmos a ter noticia por Nunes de Carvalho que o viu na Bibliotheca do Marquez de Penalva. (1) Nos versos apresentados por Caminha ha o mesmo estylo camoniano que vemos nos apresentados por Falcao de Resende; a mesma tenden- cia para o mysticismo; as relagdes com os personagens do seu tempo nao encobrem nenhum anachronismo. O Soneto allegorico ao Padre Antonio de Quadros, de- Funto, (2) é dirigido dquelle Provincial da Companhia de Jesus, na India, que apparece citado nas Decadas de Diogo do Couto, (3) como vivendo ainda em 1560. Embuido das formas arcadicas, Caminha nao podia co- nhecer tao bem a poetica quinhentista a ponto de falsi- ficar as sextinas allegoricas, em que a primeira estro- phe nao era rimada, mas as seguintes terminavam for- cosamente eom as mesmas palavras usadas na primeira, A Descripgdo de Malaca, tem a realidade da impressio directa, e mal ia ao falsificador.escolhendo wn assumpto tio local. Falcio de Resende falla da viagem de Anto- niode Abreu a Roma- nas Obras ineditas encontram-se dois Sonetos italianos, (p. 17 € 18) como os costumavam fazer Pedro de Andrade Caminha, André Falcéo de Resende ou Luiz Franco Corréa. O primeiro Soneto, indica-nos ter sido feito para abrir a collecc’io; compa- i , oe (1) Bernardim Ribeiro e os Bucolistas, p. 26. (2) Obras ineditas, p. 8. (3) Decada VII, eap. 17. “Y¥ x PARTE I.— LIV. I. CAP. IV 189 rado com os que recoll eu Faledo de Resende conclue- se pela sua genuinidade: - Oh vés, que ouvis o som dos nossos versos, E minha antiga rithma conhecestes, Applaudi a quem fez differentes estes Conceitos, dos antigos meus perversos: E dos sentidos meus j4 a Deos conversos Que para o seu louvor sempre estado prestes, S’escandalo alguma hora merecestes Mudai-o agora em pensamentos tersos. Rendei gracas commigo da mudan¢a D’este estado sublime e venturoso Aquelle que é de nds doce esperanga. Do qual se ouvido chego a ser, ditoso Meus dias passarei na confianca De vir a ter um eternal repouso. Ant» “> t+ Alreu era vivo ainda em 1578, como se vé pela rubrica dos Quartetos ao desastre de Alcacer- Kibir; authentica esta poesia o facto de se encontrar o nome de Antonio de Abreu na celebre lista achada por Faria e Sonsa no Archivo de Castel-Rodrigo, de todos acuelles que se venderam a Philippe II. (ty. Nessa Me- morta d’aquelles a que se deram cédulas, quando se ven- deram a Filippe II para a successio d’este reino, figura tambem André de Quadros, poeta contemporaneo de Camées, sem duvida parente do Padre Antonio de Qua- dros, Provincial dos Jesuitas na-India, a quem Antonio de Abreu celebrou em um Soneto. André de Quadros. (1) Europa portugueza, t. m1, p. 119. 7— Tomo mu. \ ™~ rT 140 * HISTORIA DE CAMOES era filho de Simao’ de Quadros, jyrovedor das Lizirias, e de uma senhora de Ceuta; ficon captivo na batalha de Alcacer Kibir, e succedeu depois no cargo de seu pae, tendo casado com uma filha de Manoel Corréa Ba-~ harem. N’esta mesma memoria figura 0 nome do poeta Jorge da Silva, com a nota: Morreu antes da posse; 0 poeta D, Fernando de Menezes ; e Pero da Costa, sem duvida o mesmo que apparece na rubrica do «Soneto que fez Pero da Costa no tempo das alteragdes, sendo ainda vivo El-Rei D. Henrique.» (1) Este poeta que julgamos ser Pedro da Costa Perestrello, tinha n’essa infame nota: «Esté cumprida,» Pelos prologos de Antonio Lourengo Caminha, co- nhece-se que o curioso professor regio de rhetorica era um espirito de uma sincera mediocridade, sem alcance, educado em uma supersticiosa admiracio pelos classicos nacionaes; como é que este pobre pedagogo poderia ter a audacia de um Chatterton ou de um Merimé, sem fa- larmos ja nos recursos de um genio artistico para com- penetrar-se do espirito do passado? A suspeita de apo- cryphas com que Innocencio quiz invalidar as poesias de Antonio de Abreu, séo apenas a desconfianga irre- flectida do laponio; espirito da bitola de Caminha, sd . procura livrar-se dos escolhos da critica por meio de uma negagio systematica. A mesma pleiada dos poetas lyricos que floresceram em Géa no seculo xvi, pertence Luiz Franco Corréa, (1) Bibliotheca, de Evora. Cod. cxrv—I1-9, n.0 10, p. 1. - PARTE I.—LIV. I. CAP. 1V 141 companheiro de armas dé Camées, e um dos seus maio- res admiradores. Pouco se sabe da sua vida e do seu caracter, mas a dedicagio por Camées torna-o sym- pathico e envolve-o na mesma auréola de immortali- dade. Luiz Franco Corréa era poeta, mas nao consta que houvesse recolhido os seus-versos; em 1557, quando a poesia portugueza estava em Géa no seu mais alto es- plendor, e em volta de Camées floresciam Heitor da Sil- veira e Joao Lopes Leitao, (1) elle emprehendeu um Cancioneiro, formado com as melhores composicoes dos poetas do seu tempo. Esse manuscripto inapreciavel guarda-se hoje na Bibliotheca publica de Lisboa, para onde foi comprado por 48$000 réis pelo bibliothecario Balsemao. Ai estio recolhidas as principaes poesias de Camées, e em numero superior ao de todos 08 seus con- temporaneos, o que denota a conta em que era tido pe~ los espiritos desapaixonados. Muitas d’essas copias tra- zem rubricas de grande valor historico, como a Ele- gia U1, que se inscreve «De Ceita, a hum seu amigo» (fl. 2 ».) 0 que vem provar-nos que o poeta estivera em Ceuta, como se havia inferido por argumentos indirectos; © titulo primitivo da epopéa de Camées, na forma de Elusiadas (fl. 204); 0 facto que provocou a compo- sigio da comedia do Filodemo, aonde declara «repre- sentada na India a Francisco Barreto» (fl. 269 a 286, v.); e o nome da amante do poeta na Heloga «dé morte de D. Catherina de Athayde». (fl. 287.) D’este (1) Vid. as suas biographias ot. 1, p. 264 e 285. > x 142 \, HISTORIA DE CAMOES Cancioneiro extrahiu o snr. visconde de Juromenha trinta e cinco Sonetos de Camées totalmente ineditos, nao se aproveitando dos seguintes néo conhecidos: Queimado sejas tu e teus enganos (fl. 49 v.) Angelica la hella despreciando (fi. 71.) La letra que sul nombre em que me fundo (fl. 118 v.) Dexadme centinelas duices mias (fl. 114.) Luiza, son tan rubios tus cabellos (fl. 115,) Amor bravo e rag&o dentro em meu peito (A, 128 v.) Se, senhora Corina, algum comego (fl. 266.) D’este Cancioneiro para aqui extrahimos a seguinte Estancia a Sam Joéo, feita por Camées, e inteiramente inedita: ‘ Quem ousaré soltar seu baixo canto apés tam alto véo, aguia divina, se tu além do sol subiste tanto que vér outro mais claro foste dina? Encheste no seu raio puro e santo olhos de nova uz d’alta doutrina, teu casto e brando peito ent&o encheste quando no do Senhor adormeceste. (1) Luiz Franco completou o seu Cancioneiro em Lis- boa em 1589, pelas relacdes pessoaes que teve com D. Manoel de Portugal, D. Simao da Silveira, Jeronymo Corte Real, Francisco de Andrade, Dom Gongalo Cou- tinho, e outros poetas. Quando em 1594 este fidalgo mandou pér um epitaphio na sepultura de Camées, Luiz Franco escreveu-Ihe um Soneto em italiano, dizendo- (1) Canc. ms, de Luiz Franco, -fl. 69. PARTE II.— LIV. I, CAP. IV - 143 Ihe que fora Mecenas na morte. Quando se deu_a tras- ladagao das reliquias trazidas por Dom Joo de Borja para a egreja de S, Roque em 1588, Luiz Franco tam- bem as celebrou com os seus contemporaneos, em um Soneto hespanhol em que ha este pensamento catholico, acerca do dia terrivel em que vird: A ser Juez aquel que fué juzgado. (1) Entre os manuscriptos dos versos de Camées, en- controu Faria e Sousa, um que trazia a fl. 50, um So- neto amoroso de Luiz Franco; e a fl. 54, outro Soneto de Luiz Franco a um desafio que teve em Castella Dom Martim de Castelbranco. (2) As muitas variantes que ha entre a edicio das Lyricas de Camées feita por So- ropita e as copias de Luiz Franco, revelam-nos que 0 seu Cancionetro nao foi consultado, talvez por se achar em Madrid a este tempo. - A este grupo dos poetas portuguezes do Oriente pertence egualmente Bartholomeu Ferraz de Andrade, nascido em Lisboa em 1555. Militou durante quinze annos na India, distinguindo-se tanto nas armas como na poesia; na grande peste de 1599, conhecida pela an- tonomasia o tempo do mal, morreu, tendo deixado prom- pto para se imprimir um poema heroico sobre 0 Cérco de Géa e Chaul, no tempo de Dom Luiz de Athayde, intitulado Thesouro Luzitano. Ficou manuscripto e esta 1) Apud Bernardes, Varias rimas ao bom Jesus, p. 171. 2) Hist. de Camées, t.1, p. 337. 144 ‘ uistorra DE caOzs hojé perdido, como o seu outro poema heroico sobre o Cérco de Mazagio. (1) Foi talvez dos ultimos portu- guezes que tomaram a divisa de Camoes: «Braco'as armas feito, mente 4s musas dada.» - (ABI. Luzit., t. 1; p)460." CAPITULO VW Pedro da Costa Perestrello—Francisco Galvao — Ayres Telles de Menezes—André da Fonseca Pedro da Costa Perestrello e a authenticidade das suas poesias lyricas.—Provas adduzidas a favor da edigio de Caminha e affirmagdes de Innocencio.—O poema da Batalha Ausonia, julgado perdido em 1791, visto em Hespanha por Don Bar- tholomeo José Gallardo. —Relagdes de Perestrello com 0 Pa- dre Ignacio de Azevedo.—Perestrello reconhece a invasio castelhana e acceita a cédula de Philippe u.—=Causas por- que ficaram ignorados os versos de Francisco Galviio.—So- netos d’este poeta que andam em nome de Camées e Fernio Alvares do Oriente.— Falta de fundamento com que 0 cata- logista Innocencio julga apocryphas as suas poesias.—=Ele- mentos para a critica dos versos de Ayres Telles de Mene- zes. (1) Relagdes com Frei Luiz de Montoya em 1569, e com André da Fonseca amigo de Falco de Resende.—As falsi- ficagdes poeticas no seculo xv1 explicam a parte antiquada d’esses ineditos.—Caracter litterario do professor Caminha. O nome de Pedro da Costa Perestrello era conhe- cido pelas diminutas linhas que Ihe consagra Barbosa Machado, quando conta a anedocta curiosa de ter elle rasgado o seu poema epico do Descobrimento de Vasco da Gama, depois que viu a viva epopéa dos Lusiadas; citando a Satyra de Perestrello a Madrid, podia-se in- ferir que tambem cultivara a poesia lyrica, mas nenhuns documentos restavam d’este genero e d’esta feigao do seu talento. Porém o professor de rhetorica Antonio Lourengo Caminha, encetando em 1791 uma publica- gio das Obras ineditas dos nossos insignes poetas, comegou sera? Milita na India em 1556, e fica captive em Africa em 146 HISTORIA DE CAMOES pelas lyricas de Perestrello, sem indicar a sua prove- niencia. Constam essas poesias de ama traducgio em tercetos de nove ligdes do Livro"de Job, obra que estava nos nossos habitos litterarios, pelo que vémos por Dom Duarte e o Dr. Frei Jodo Claro e muitos poetas do Canewnewo de Resende, que traduziam em verso os hymnos da egreja ou as horas canonicas; uma Ode a nossa Senhora, imitada de Petrarcha, e por isso com certa analogia com a que Anda em nome de Sa de Mi- randa; cinco Odes em estylo horaciano, que pertencem 4 mesma influencia classica que levou André Falcdo de Resende a encetar a traduccao de Horacio, revista por André da Fonseca. A Epistola a Christovam de Moura: «Ao Marquez de Castello Rodrigo estando em Madrid e o Seeretario em Cintra com sua alteza o Archidugue Car- deal», (p. 31) se nos revela um fraco sentimento da natureza, provoca-nos o interesse de vér como a poesia do ultimo quartel do seculo xvi desceu ao ponto de ba- jular o invasor de Portugal. Perestrello escrevia a Phi- lippe m1: , [ \Dos Montes Pirineos as cisalpinas Fragas rompendo, as Aguias c’a victoria De novo exaltarao tuas santas Quinas Dino por elias de immortal memoria ; De Julio Cesar transcendendo a Era, Novos Homeros cantarao tua gloria... i - ‘Quem sabe da desgraca da familia de Vimioso, que nao quiz reconhecer a soberania de Philippe 1 em Po - tugal e o ostracismo em que sempre viveu o poeta Dom Manoel de: Portugal, comprehende a Nota da Ecloga PARTE Il.—LIV. I. CAP, V 147 pastoril entre Alcino e Salicio: «Este Alcino foi hum personage d’este Reyno, que agravado das semrazées, se retirou da cérte; a quem o Secretario em nome de Sa- licio persuadiu a que se tornasse.» (p. 62.) Os poucos Sonetos de Perestrello, tem esse vago espiritualismo ch- moniano, com que chegaram a introduzir-se por equi- voco dos editores nas Rimas do grande epico; mas 0 ca- tholicismo ferrenho imposto por Filippe 11, substftuiu- lhe a uncao da crenga pelos aphorismo banaes de uma amoral devota. Ignorando-se a proveniencia d’estas poesias publi- cadas em nome de Perestrello, deveremos acceital-as como authenticas? Vejamos que titulos as abonam. Nao discutiremos se 0 professor Antonio Lourenco Caminha possuia um criterio justo que o dirigisse na publicagio das poesias ineditas do seculo xvi, porque a inferioridade da sua intelligencia, a ausentia de ideias, atrophiadas pela rotina escholar, sao de tal forma evi- dentes, que suppél-o capaz de uma fraude litteraria é reconhecer-lhe, ainda que de um modo indirecto uma certa pericia. O que aqui discutimos 6 apenas a authen- ticidade das poesias de Pedro da Costa Perestrello e de Francisco Galvao em quanto 4s suas fontes externas: 1° As ublica des de Antonio Lourenco Caminha eram feitas por assignatura: ora na lista dos subscri- ptores dos Ineditos, figuram os maiores criticos do fin do seculo passado, como Antonio Ribeiro dos Santos, Padre Joaquim de Foyos, Frei Joaquim Forjaz, José 148 , HISTORIA DE CAMOES + Basilio da Gama, José de Seabra da Silva, Nicolau To- lentino, Theotonio Gomes de Carvalho; o Duque de La- foes Dom Joao Carlos de Braganga e Sousa, Frei Joa- quim de Santa Clara, Manoel de Figueiredo, e os se- guintes deputados da Commissdo de exame e censura dos Livros: Frei José Maine, Paschoal José de Mello, e Muller.—Seria possivel que estas primeiras capaci- dades litterarias e scientificas, muitos d’elles poetas, se deixassem ludibriar, sem deixarem o m{nimo signal de protesto? Demais, Caminha, pede um privilegio para a sua publicagio «temendo que algumas pessoas utilisan- do-se do grande trabalho, pretendam fazer imprimir das mencionadas obras»; e para mais garantia dedica os seus Ineditos ao principe Dom Joao, n’uma epoca em que a realeza estava no seu maior prestigio. Seria pos- sivel affrontar todos estes escolhos, sem que alguem o desmascarasse? Nao. O silencio da critica mostra que _ninguem duvidou da‘sua boa £6. 2.° Caminha, postoque por incuria omittisse as fon- tes d’onde lhe advinham os manuscriptos do seculo xvI, para authenticar a sua importancia, nos seus prologos declara que lhe foram franqueadas as mais ricas biblio- thecas dos titulares portuguezes, como a do Marquez de Tancos, Marquez de Alegrete, Marquez de Penalva, de Monsenhor José Pedro Hasse de Belem, e da Casa de Braganga. Acerca da proveniencia do Manuscripto de Antonio oelho Gasco sobre a Conquista, antiguidade e nobreza de Coimbra, \é-se no Catalogo dos seus Manuscri- PARTE II.—LIV. I. CAP. V 149 ptos: (1) « Hatrahidas de um antigo manuscripto que estd na Livraria da Serenissima Casa de Braganga. » Falan- do do Manuscripto de D. Maria Henriques, diz: «cuja posse devemos 4 grande liberalidade e patriotismo do snr. Marquez de Alegrete. .. 0 qual senhor Liberalmente nos confiow a sua Bibliotheca e Cartorio, preciosos thesou- ros Westa edade...» (2) Do Vilancete enviado de Mar- rocos pela perda de Dom Sebastido, escreve: « fielmente copiado de um Ms. que se conserva na Bibliotheca do sr. Marquez de Penalva.» (3) Fi da reproducgao das poe- sias de Estevam Rodrigues de Castro, diz: «foi na sum- ptuosa bibliotheca do illustrissimo Senhor Jose Pedro Hasse Belem, dignissimo prelado da Santa Basilica pa- triarchal, bem conhecido pelo profundo zelo do aug- mento da nossa litteratura, @onde eatrahimos a copia que agora damos ao prelo... » (4) Tenciopando impri- mir as Cartas portuguezas do Bispo. Jeronymo Osorio, diz: «cuja pdésse devemos 4 bem notoria liberalidade do Illustrissimo e ex.™°? Marquez de Angeja, Dom José, etc. e outo Livros da Ziada do divino Homero egualmente em linguagem, que tivemos a fortuna de achar na ci- dade de Silves no reino do Algarve, quando alli residi- mos.» (5) No Catalogo dos seus Manuscriptos se 1é: «Os primeiros 8 livros da ‘Tiiada de Hon ero, vertidos em verso solto portuguez: copia fiel de um antigo manu- (1) Na Academia das Sciencias, Gab. 5, Est. 11, N.o 19. (2) Ineditos, tm, p.. vim. (8) Ibid. p. 229° (4) Ibid., p. x. (5) Conquista e antiguidade, p. m, not. 1. 150 | HISTORIA DE CAMOES . seripto que existe na Bibliotheca do ex.” sr. Marquez de Tancos. 4.°» ° Um falsario nao indica de um modo tio terminante as fontes d’onde recolheu os seus ineditos. No Catalogo de todos os Manuseriptos de Antonio Lourencgo Cami- nha, vem citadas: «Poesias de P.’ da Costa Perestrello. 8.° «Poesias de Francisco Galvdo, Estribeiro do Duque Dom Theodosio, copiadas do seu original de 1584. 4.°» A par estes, vem : «Camées ao burlesco, in—4.° ano- nymo,» que era o inedito das Festas bacchanaes, publi- cado pela primeira vez no Porto em 1845; « Rythmas de Diogo Bernardes original. 8.°; Poesias varias de Frei Agostinho da Cruz. Ms. antigo onde se acham muitas poesias do mesmo poeta que se néo imprimiram.» Tudo isto nos prova, que a riqueza de manuscriptos que alardeava como monopolio, néo era uma phantas- magoria. 38.° Nas poesias de Pedro da Costa Perestrello, (p. 51) vem a «Satyra mui antiga que o Secretario fez a Ma- drid e sua corte, estando elle nella», & qual se refere Bar- bosa Machado, dizendo que comeca: Madrid escuro in- fierno, etc. — Vem mais, a Carta.a El-ret Dom Sebas- tido, (p. 62) j& reproduzida na Miscellanea de Miguel Leitado de Andrade, «o que sabemos por exame nosso» diz Caminha; e o Soneto A uma dama, (p. 88) que desde 1668 anda em nome de Camoes (Son. cxLvul). A ver- sio publicada por Caminha é digna em todo o sentido de confrontar-se com a ligao de Camées: PARTE II.—LIV, I. CAP. V 151 Si gran gloria me viene de mirarte _ Es pena desigual dexar de verte, Si presumo con obras merecerte Gran obra del engano es desearte. Si quiero por quien eres alabarte Es cierto de quien soi el ofenderte, Si mal me quiero a mi por bien quererte Que premio quieres mas que solo amarte. - Si un amor tan raro se perfiere Al humano tesoro y dulce gloria . Que quieres mas del alma que te quiere? Siempre firme estaras en mi memoria, Y¥ el alma vivird que por ti muere, Que al fin de la batalla es la victoria. (1) - His a versio, como a achon Dom Antonio Alvares da Cunha em nome de Camées: Se me vem tanta gloria sé de olhar-te He pena desigual deixar de ver-te ; Se presumo com obras merecer-te, Grao paga de um engano he desejar-te. Se aspiro por quem és a celebrar-te Sei certo por quem sou que hei-de offender-te ; Se mal me quero a mi por bem querer-te. Que premio querer posso mais que amar-te? Porque um t&o raro amor no me soccorre? Oh humano thesouro! oh doce gloria! Ditoso quem 4 morte por ti corre! Sempre escripta estards n’esta memoria; E esta alma viverd, pois por ti morre, Porque ao fim da batalha é a victoria. (2) (1) Poesias de Perestrello, p. 88. - (2) Obras de Camées, t. 1, p. 1. Ed. Jur. 152 HISTORIA DE CAMOES Basta o simples confronto d’estas duas licdes para se conhecer que Antonio Lourenco Caminha copiou o que achou nos antigos manuscriptos. Da falta de cri- tica para a irreverencia de falsario ha um abysmo, e Caminha era um pobre homem para fazer d’estes acro- batismos. Por isso julgamos gratuitas estas affirmagoes do Diccionario bibliographico : «Porem com licenca do nosso fabricador de inedi- tos, tenho para mim que a maior parte de taes obras nao foram jamais d’aquelle a quem se attribuem. Con- vencido estou ao contrario de que ha entre ellas nao poucas originaes do nosso Caminha, o qual n’estes ¢ n’outros casos nfo escrupulisava em seguir um trilho opposto ao dos plagiarios vulgares, que costumam apro- priar-se do alheio para o darem como proprio. Elle co- bria com os nomes de auctores mais celebres as fraquis- simas inspiragdes da musa, para adquirir-lhes assim o conceito, que de certo nao obteriam se as appresentasse como obras de propria lavra.---Eim todo o caso, os que pretendessem avaliar o merito de Perestrello pelas com- posigdes dadas em seu nome, admittida que-fosse a au- thenticidade d’ellas, seriam obrigados a confessar que a este contemporaneo dos nossos melhores quinhentis- tas falta de todo a correcgao e elegancia que lhes siio peculiares; e que as taes poesias s&o destituidas de ge- nio, elevacio e colorido, néo transcendendo os limites da mais vulgar mediocridade.» (1) Para nds, o silencio _ (1) Innocencio, Dice. Bibl. t. v1, p. 400. — Em uma publi- cagiio comegada no Porto em 1845, com o titulo de Miscelanea PARTE IL—LIV. I. CAP. V 153 conservado pelos criticos que acima citamos, que assi- gnaram a edigio dos ineditos de Perestrello, é um tes- temunho da boa-fé com que procedia Caminha; a exis- tencia da Carta 2 Dom Sebastiio na Miscellanea de Leitéo de Andrade, a Satyra a Madrid, citada por Barbosa, e¢ a variante notavel do Soneto ox1vitt, attri- buido a Camées, bastam para convencer o simples bom senso, que esses ineditos néo so obra de Caminha, e que nao se destitue um texto com estes argumentos: Néo sei até que ponto... tenho para mim... desde mui- tos annos ¢ minha opintao, etc., sem adduzir um facto qualquer para comprovacio. . No Ensayo de una Bibliotheca espatiola de libros ra- ros y curiosos, cita D, Bartholomé José Gallardo um poema de Pedro da Costa Perestrello, intitulado Los Cantos de la Batulla Ausonia, ms. in-folio, de letra coe- tanea, de quatro cantos em outava rima. Gallardo com- pulsou este precioso inedito, por isso que transcrevendo a dedicatoria a D. Pedro de Toledo, quinto Marquez de Villa Franca, diz: cescrita (creo) de pufio del Autor.» Eis a dedicatoria: (pag. 24) 4 historica e litteraria, aonde appareceu pela primeira vez a ce- lebre parodia do Canto x dos Lusiadas, promette-se que entre os « varios opusculos interessantes, ainda ineditos ou reimpres- sos de edigdes raras, » se havia de publicar as: «Poesias de Pe- dro da Costa Perestreilo. (Poeta do seculo XVI, mais digno de ser conhecido do que geralmente o é.» Os editores d’esta Mis- cellanea eram eruditissimos, como Diogo Kopke e outros, e niio puzeram em duyida a authenticidade das poesias de Perestrello. 154 HISTORIA DE CAMOES Los yerros de mi vana juventud Y¥ fruto de mis afios mal perdido, Mis versos derramados sin virtud, El sugeto damnando esclarecido, Verguenzas de mi pobre senectud Entregues con razon 4 eterno olvido, Vuelven por ti, Don Pedro, 4 ver el mundo, Que no tienes en el par ni segundo, Vuelven, pues me lo mandas, y en tu amparo Cobran la luz del olvidado canto, Ejemplo de valor mostrando raro A las turbidas ondas de Lepanto; Y en ellas, apesar del tiempo avaro, Dando 4 los Turcos un eterno llanto, Galeras pues, victrices y armas bellas A ti se den, sefior, general d’ellas. . Barbosa Machado diz que o poema constava de seis cantos; Gallardo transcreve a primeira outava: La santa Liga de cristianos canto De Austria las Armas y varon potente, Naval batalla que 4 la mar Lepanto Turba la sangre de Turquesca gente, Aquella que 4 Vicencio vuelve en llanto La gran reputacion amargamente, Que nunca desde el siglo de Octaviano La vido tal Neptuno en la mar cano. O ultimo canto termina: i Agora que la paz reina en 1a tierra, De princepes regida singulares, Donde la summa de virtud se encierra ¥ tiene la razon justos lugares; Agora quedard la justa guerra Por tierra todo lo que dan los mares, Unida d’estos Principes la mano Jos cetros partiran del Otomano. PARTE II. —LIV. I. CAP. V 155 Nos Manuscriptos da Bibliotheca de Evora, Codice cxIv—1-29, n.° 10, vem um Soneto que fez Pero da Costa, no tempo das alteracdes de Don Antonio, sendo ainda vivo El Rey Dom Henrique. Este Soneto é sem duvida de Perestrello, porque tambem na Bibliotheca de Gallardo é designado com o nome de Pedro de Acosta. Barbosa Machado, na Bibliotheca Luzitana, como ja dissemos, cita uma Satyra d Corte de Madrid, que co- mega: Madrid escuro infierno... Esta Satyra foi descoberta entre outros papeis pelo professor Antonio Lourenco Caminha com a rubrica: Satyra muy antiga que o Secretario fez a Madrid e sua Corte, estando elle n’ella. (1) O titulo de Secretario que © poeta se dé em mais de um logar, como na Epistola ao Marquez de Castello Rodrigo, e o Secretario em Cin- tra com sua Alteza o-Archiduque Cardeal, (2) combina com o titulo de Barbosa, que lhe chama Escrivaéo de Philippe .No Epigrama v, Perestrello exalta A El Rei D. Philippe, com a bajulagio dos poetas comtempora- neos que se curvaram ao invasor e se deixaram cor- romper pelas suas cédulas, Um poeta lyrico cujas obras andam em grande parte confundidas nas Rimas de Camées, é Francisco Gal- vao, estribeiro do Duque Dom Theodosio 11; nasceu em Villa Vicosa em 1563, e ai falleceu depois de 28 de (1) Obras ineditas dos nossos insignes Poetas, t.1, p. 51. (2) Ibéd., p. 31, 156 HISTORIA DE CAMOES Marco de 1636. A epoca em que floresceu bastava para mostrar como cultivara a poesia sob a influencia da es- chola camoniana. O esquecimento do seu nome como poeta, pois que Barbosa Machado o cita apenas a pro- posito de sou filho Antonio Galvao, (1) auctor da Arte da Gtineta, explica-se por estar ligado & casa de Bra- ganca, sempre suspeita 4 usurpagéio de Castella. Tam- bem entre as estancias omittidas nos Lustadas, sobre- saem as estrophes de louvor a Dom Jayme, Duque de Braganca; Camées conservou amisade com Dom Theo- dosio, e 0 cérte d’essas outavas sé pdde attribuir-se a machinagées da censura. Fistas intrigas, que envolve- ram'depois de 1580 a casa de‘Braganga, nao podiam deixar de influir n’aquelles que a serviam. O ‘professor Caminha nao diz como lhe veiu 4 méo ° Manuseripto das obras de Francisco Galvéo; mas por uma advertencia aos Sonetos, se infere quo foi de uma Miscellanea: «Supposto que os Sonetos vem sem ordem e misturiados om outras pepas de Poesia, eu os puz em colleccdo dividida e methodica.» (p. 95.) A falta de direcgéo scientifica em Caminha, levou a pér-seem du- vida a importancia dos ineditos que publicou; por isso sacrificamos aqui a apreciagéo litteraria 4 critica do texto. Quanto 4 authenticidade das Poesias de Francisco Galvao, Estribeiro do Duque D. Theodosio 11, alem dos argumenitos externos (1.° e 2.°) acima apresentados, mi- (1) Bibl. Luzit., t. 1, p. 285.—Tambem nao cita o poeta -Dom Duarte, Marquez de Franchilla, irmio de D. Theodo- sio n, o protector do poeta da Laura de Anfriso. PARTE II.—LIV. I. CAP. V 157 litam a favor da sinceridade do editor os seguintes fa- tos: O Soneto A Paizdo, achado por Caminha em nome de Francisco Galvao, foi publicado em 1616 em’ nome de Camées, com variantes importantes. Hil-o: Porque a tamanhas penas se offerece Pelo peccado alheio e erro insano O terno Deos, porque sugeito humano (1) N&o pode com o castigo que merece? Quem padecerd as penas que padece, _ Quem soffrerd deshonra, e tanto dano, Ninguem, seniio sémente o soberano (2) Que reina, serve, manda e obedece. (3) Foi a forga do homem tam pequena, Que nao pode sofirer tanta aspereza, Pois n&o sustem a lei que Deos ordena. (4) Por puro amor a nossa vil fraqueza Pera o erro foi 86 e nio p’ra pena. (' -. Soffreu aquella immensa fortaleza ® . (Inedit: 1, 96.) O Soneto de Francisco Galvao A Criiz, (p. 102) j& em 1589 andava nas copias manuscriptas de Luiz Frarico Corréa' (fl. 118, 0.) em nome de Camées; Cami- nha,‘ publicando o Alanuscripto de Francisco! Galvao, 1) O Trino Deos? Porque o sugeito humano. Camdédes. 2) Quem serd, se nio or o soberano. Id. - (3) Que reina e servos manda, e obedece. Id. 4) Pois nao susteve a lei que Deos ordena. Id. 5) Mas soffre-a aquella immensa fortaleza. Id. (6) Por amor piiro; que a mortal fraqueza Id. (1) Foi para o erro, e no j4 para a pena. Id. 158 HISTORIA DE CAMOES de 1584, precedeu a edicdéo de Camées de 1861, aonde apparece com 0 numero CCCLI, errado no segundo quar- teto. Caminha nao soube lér 0 manuscripto, como va- mos vér: 6 gloriosa Cruz! 6 victorioso TJropheo, de mil despojos rodeado! O sintil escondido e ordenado (1) Para remedio tio maravilhoso. O fonte viva de licor precioso (2) ‘ Por ti nosso mal todo foi curado, Em ti o Senhor que forte era chamado Quiz merecer o nome de piedoso, Em ti se acabou o tempo da vinganga, Em ti misericordia assim florece, (3) Como despois de a ver a primavera, (4) Todo imigo ante ti desapparece, (5) Tu podeste fazer tanta mudanga, a Em quem nunqua deixou de ser quem era. As variantes 1 e 4, mostram-nos a incapacidade de Caminha para Jér os manuscriptos do seculo XVI; a va- riante 2, emenda a rima errada do Manuscripto de Luiz F -anco. Em nome de Francisco Galvao, trazia o Manuseri- pto de 1584 um Soneto A Nossa Senhora, que appare- ceu pela primeira vez em nome de Camées em 1616, ¢ em 1588 em nome de André Falcio de Resende no 2) O fonte viva de licor sagrado. Id. 3) Em ti misericordia assim florega. Id. (4) Como despois do inverno a primavera. Id. (5) Todo imigo ante ti desapparega. Id. 8 O signal escolhido e ordenado. Ms. de Luiz Franco. PARTE II.—LIV. I. CAP. V 159 opusculo da trasladagio das Reliquias. (fl. 299.) Cami- nha nao sabendo lér 0 Manuscripto de Francisco Gal- yao, copiou a palavra pheniv por femea, o que obrigou a Censura a mandar mutilar o verso; para descargo da sua consciencia litteraria, Caminha poz-lhe a seguinte nota: «O original diz femea pareceu aos sabios Aristar- cos que se omittisse, e se supprisse com 0 vocabulo Vir- gem, equivalente.» (p. 103.) Transcrevemol-o para vér as differencas de licdo: Pera se enamorar do que formou (1) Te fez Deos, santa Virgem, Virgem pura, (2) Vede que tal seria esta feitura Pois quem a fez pera si 86 a guardou? (3) No seu santo concepto te gerou (4) Primeiro que a primeira criatura, Pera que unica fosse a compostura Que de tam longo tempo se estudou. Nao sei se direi n’isto quanto baste (5) Pera exprimir as santas calidades, (6) Que quiz crear em ti quem tu criaste. - Es madre, filha, esposa, e alcancaste (7) Sua ser, trez tio altas divindades, (8) Foi porque a trez em sua sé agradaste. (9) (1) Para se namorar do que criou. Camies, ed. 1616. (2) Te fez Deos, sacra phenix, virgem pura. Ibid. Te fez Deos santa phenia, virgem pura. Ms.de L. Franco. ra Que para si o mesmo Feitor guardou. Ed. 1616. ‘4) No seu santo conceito te formou. Ibid. No seu santo conceito te gerou. Ms, de Luiz Franco. (5) Naosei se digo em tudo quanto baste. Ed. Faria e Sousa. Nao sei se direi muito quanto baste. Ms. de L. Franco. (6) Para exprimir as raras qualidades, Ed. Faria. 1) dis filha, mae e esposa, e se alcangaste. Ed. Faria. Huma sé, trez tio altas dignidades. Ed. 1616. (9} Foi porque a Trez de JTum sé tanto agradaste. Ed. 1616. 160 HISTORIA DE CAMOES Na Lusitania transformada, (p. 463) de Fernao Al- yares do Oriente, vem um Soneto dialogistico que aps, parece tambem entre as poesias de Francisco Galvio, . (p. 99) com variantes notayeis. Isto prova, que Antonio Lourengo Caminha o recolhen de outra fonte; traz a rubrica Ao menino Jesu: . Como, se do céo es Senhor superno, Te vejo hoje, meu Deos, pobre minino! (1) Como te offende o frio, rey divino (2) Se tens dos elementos o governo! - Como agora do ventre teu materno (3) Naces, se és do principio uno e trino? (4) Como choras, se cantam de contino Os anjos a quem dds prazer eterno? (5) O resto do Soneto é egual entre os dois auctores, 4 excepgio do ultimo verso do primeiro terceto, que tem a rima jizeste em vez de disseste. Em geral o texto de Francisco Galviio approxima-se sempre da ligéo manuscripta de Luiz Franco, 0 que nos prova pertencer a um genuino manuscripto do seculo xvi. A variante segunda prova-nos a incapacidade de Caminha para falsificador. Em vista dos factos que indicamos, nio se podem tomar a serio estas affirmagées do catalogista Innocen- (1) Te vejo, émmenso Deos, pobre menino? Fern. Aly. (2) Como te offende o frio, Rei benino, Id. (3) Ou como o ventre te encerrou materno. Id. (4) Se ndo comprehende o céo teu ser divino? Id, (5) Anjos, com que dispensas goso eterno? Id. PARTE II.—LIV. I. CAP. V 161 cio: cComtudo o celeberrimo Antonio Lourenco Cami- nha 1a foi descobrir (néo diz onde nem como) umas poe- sias ineditas deste Francisco Galvio... porem exami- nando-as com toda a reflexao, tenho para mim que sdo antes obras da propria lavra delle Caminha, que de proposito ¢ para disfarce entresach u por ellas alguns termos e modos de dizer antiquados, do que producgéeg genuinas de qualquer escriptor nascido no seculo XVI. Os criticos ajuizario a este respeito o que bem lhes paz. recer; quanto a mim, o conhecimento de outras frau- des da mesma especie, que ass4s comprovam ser a con- sciencia litteraria.de Caminha mui pouco escrupulosa em similhantes pontos, auctorisa-me a crér que elle quiz n’este, como em outros casos, fazer passar as suas obras como producgées alheias, para promover melhor saida aos livros com que engodava a curiosidade publica em seu pro- veito pessoal.» (1) Pelo interesse que Innocencio liga ao preco dos volumes da sua livraria, chegando a occu- par com este rol casciro, fora de todo o proposito, as paginas do Diccionario bibliographico, se vé a causa, que o levou a ultrajar com o labéo de falsario 0 pobre pro- fessor Caminha. Porém, esse Soneto, que ja desde 1616 andava em nome de Camoes (A Paindo); esse outro que desde 1589 até 1862 esteve nos Ineditos de Luiz Franco (A Cruz); esse outro Soneto, que desde 1588 anda em nome de André Falc&o de Resende, e desde 1616 em nome de Camoes (A nossa Senhora); e final- (1) Dice. dibl., t, 1, p. 385. 162 HISTORIA DE CAMOES mente esse outro que desde 1607 anda em nome de Fer- nao Alvares do Oriente, (Ao Menino Jesus) de todas es- tas pegas irrefragavelmente do seculo xvi, diz Innocen- cio, que os seus termos antiquados foram entresachados por Caminha de proposito e para disfarce, e que nao pertencem a nenhum genuino eseriptor d’essa epocha. Quem assim julga nao tem direito a emittir opiniéo litteraria, e muito menos a sair dos limites modestos da catalogia, Com o nome de Ayres Telles de Menezes publicou Antonio Lourenco Caminha uma colleccio de poe- sias, (1) ufanando-sede n&o serem conhecidas por Bar- bosa Machado, que cita sémente o pouquissimo que resta Weste poeta no Cancioneiro de Resende. (2) Infelizmen- te, Caminha nao deixou a precisa indicacaio da prove- niencia d’estes Ineditos; pela simples leitura, conhece-se que ha ali um poeta da segunda metade do seculo xv1, e composigées que affectam artificialmente um ‘estylo antiquado, que procura fazer-se passar como do seculo xv. Proposta a questio n’estes termos nao se conclue que o professor Caminha fosse o falsificador ; cabe-lhe apenas o papel de collector curioso. A falsificagao da poesia portugueza foi uma phase moral que se deu na literatura do seculo xv1; Ferreira + (1) Obras ineditas, t. u, p. 1a 144. (2) Importa ter em lembranga que com 0 mesmo nome de alguns poetas do Cancioneiro, apparecem outros no fim do se- culo xvi, como Diogo da Silveira, D. Diogo de Menezes, Dom Siméo da Silveira, e Ayres Telles de Menezes, que Barbosa ha- bitualmente confunde. PARTE II.—LIV. I. CAP. V 163 coutrafazia en linguagem antiga dois sonetos que fez passar em nome-de Dom Affonso Iv a Vasco de Lo- beira; Camées fabricou tambem outros dois sonetos em lingua galega, nfo se sabe com que intencdo, mas tem geralmente passado como vestigios de composigées do poeta galego Vasco Pires de Camécs; Frei Bernardo de Brito traz em nome do Infante Dom Pedro umas _ Coplas a Lisboa, e uma especie de continuagiio do Cris- fal; 8& de Miranda fazia glosas sobre cantigas velhas, cujo estylo simples 6 popular contrafazia; os versos de lamentagdo 4 Perda de Arzilla, imitam o fragmento da Cava, etc. A esta corrente artificiosa pertencem os ver- sos A lamentavel morte do Duque de Visew acaecida por tredor do Regno; (1) Elegia 4 morte do Princepe Dom Affonso; (2) e a Arenga ou Relagdo fiel das festas que se fizeram na Cida e le Evora, no praso do casamento do Princepe Dom Affonso, filho do sr. rei Dom Jodo I, fielmente apanhada do seu antigo original. (3) As Quin- tilhas a Jorge de Oliveira, sio as mesmas que se acham no Cancioneivo de Resende (4) em nome de Ayres Tel- les, mas péstas talvez ali para corroborar a attribuigio do manuscripto. Em geral essas poesias antiquadas nio tém merecimento, e por isso basta conhecer a intencio archaica que as inspira. (1) Obras Ineditas, t. 11, p. 20. (2) Ibid., p. 84. (8) Ivid., p. 114. Garrett citava-a no Romanceiro, t. 1, Pp. 125 fed. 1851), como authentica. : (a) Ed. de Stuttgart, t. 1, p. 275, com duas leves varian- e8, & ifferente eérte de estrophes. 8—Tono u. 164 THSTORIA DE CAMOES Na casa de Unhiio houve outros fidalgos com*o nome de Ayres Telles de Menezes; é natural que al- gum d’elles seja o auctor d’essas poesias que accusam o ultimo quartel do seculo xvr. Segundo Salazar e Cas- tro, na Historia da Casa de. Silva, figura na India em 1556 um Ayres Telles de Menezes, que n’esse anno fot por capitao de uma das ndos de remo da Armada com que Francisco Barreto passon a visitar as fortalezas do Norte. (1) Era este A vres Telles de Men -es filho ce André Telles da Silva, alcaide mér da Covitha, mor- domo-mér do Infante Dom Luiz, commendador da or- dem de Christo e embaixador em Castella; sua mae era D, Brites Coutin , filha de Ruy Dias de Sousa o Cid. (2) Ayres Telles de Menezes casou na India com uma filha de Diogo Preto, e depois em segundas nu- peias com Dona Brites de Aragaio irma da celebre D. Francisca de Aragio cantada por Camées e muitos outros quinhentistas. Depois de ter sido Capitao de Din, Ayres Telles de Menezes acompanhou Dom Sebastiao a Africa, onde ficou captivo em 1578, morrendo pouco depois do resgate. (3) K-este o poeta dos Ineditos re- colhidos por Caminha; as relagoes litterarias com An- dré da Fonseca e com Frei Luiz de Montoia deter- minam a data d’estas poesias em 1569, N’estes inedi- tos vem um Soneto A André da Fonseca, poeta e amigo intimo de André Falc&oa de Resende; a sua personali- (1) Andrade, Chr. de D. Joito III, Part. 4, eap. 122, fi. 147. (2} Casa de Sylva, t. u, liv. 9, eap. 25, p. 394. (8) Sousa, Hist. geneal., t. x1, p. 456. PARTE II, —LIV. I. CAP. V 165 dade restitue a essas composigdes uma data certa. Pelo credito de censor, que gosava junto a Falcao de Resende, importa mais que se restitua 20 seu nome a importan- cia historica que merece. Como de Ayres Telles, vem o Soneto: Fonseca meu, que as ondas d’este mundo Afoito cértas com seguro vento, Sem que temas o Austro turbulento, Que despontar se vé no eéo rotundo, Alga os olhos a Deos, d’este profundo E abatido vale lodolento, E verds que inda mais que o pensamento O gosto foge e o prazer jocundo. ete. (p. 90) André da Fonseca, responde pelas mesmas con- soantes: Nao fui nem sou tio cego Addo, que 0 mundo Corresse afoito com contrario vento, Pois sei o quanto he vario e turbulento O giro que faz seu globo rotundo. Deixando vou o cahos negro e profundo Onde o mortal s’apega lodolento, Algando #6 a Deus 0 pensamento, Com ledo rosto e corac%o jocundo. Visto tenho do mundo a varicdade E por isso a terra que hoje pizas Me no faz esquecer da eternidade. Conhego, 6 mundo, quanto immortalizas Teus falsos bens; mas cu com humildade As costas volvo aos idolos que enthronizas. N’este mesmo volume attribuido a Ayres Telles de Menezes, ha uma Seatina allegorica de André da Fon- seca, (p. 41) genero muito usado no seculo xvJ, e hoje * 166 IISTORIA DE CAMOES para nés altamente insupportavel. O nome de André da Fonseca seria ignorado ou tido por apocrypho, se o seu amigo André Falcaio de Resende o nao citasse nos seus versos, Pelo Soneto xxxiv de Falcio de Resende, e pela rubrica: «A um Livro, que fez um scu amigo, André da Fonseca», se infere que elle chegou a formar a collecgdo dos seus versos. D’esse livro dizia Falcio de Resende: «Desejo d’imital-o, vel-o e ouvil-o». (1) tb provavel que este Soneto servisse de encomio preli- ininar do livro, como se usava no seculo xvi. O Soneto Lxxv, D’André da Fonseca em louvor do Auctor, foi escripto tambem para servir de prologo aos versos de Falcéo de Resende. (2) André da Fonseca, como todos os lyricos da eschola camoniana, propendeu tambem para a paixaéo mystica; respondendo-lke ao Soneto de louvor, diz Falco de Resende: Amor divino e seus effeitos canta, Com que do baixo e vil que nos assalta, A nevoa cega e va se nos desfaga. (Son. uxxvr.) André da Fonseca pela sua parte convida a Falcdo de Resende para a composigao de uma epopéa, por ven- tura antes de 1572: Oh ditoso Faleio, que a mér altura Do sagrado Parnaso vis tomando, Ao céo tuas largas azas levantando Com 2 nova invenga&o da tua escriptura: ' (1) Obras de Faledo de Resende, p. 111. (2) 1b. p. 152. PARTE Il.—LIY. I. CAP. V 167 _ . Celebras n’ella aquella formosura A qual estd a todos nainorando, * A ti suaves versos inspirando Preinio do teu amor e fé tao pura. E pois em ti ad, esprito peregrino, Esta pésta e segura a nossa gioria Haga viver teu cunto os Portuguezes ; Ordindo de teus versos uma historia, Que meregas ter nome de divino, Como fizeram vs teus ji c’os arnezes. (1) 1 Falcao de Resende tentou a primeira traduccio das Odes de Horacio, e submetteu-a a André da Fonseca para julgar do trabalho: O bom original e o mao treslado De horacianas Odes julgue embora Quem em ser e saber é consummado. Em cujo louvor digno ¢ alto, alguma hora O lusitano estilo levantado Que cante pdéde ser melhor que agora. (2) André da Fonseca, responde-Ihe em um mimoso so- neto, que reproduzimos inteiramente, por isso que res~ tam poucos documentos do seu genio: A mais certa e mais pura e alta doutrina Que pode dar-nos a latina Musa, O vicio reprendendo e a quem o usa, Com lingua nao humana, mas divina ; (1) Obras de Falco de Resende, p. 154. (2) Ibid., p. 187 e 188, awe 168 HISTORIA DE CAMOES * 0 engenhoso Horacio nol-a ensina Nvestas lyricas rimas, com que accusa Vil cubiga, avareza e a confusa Ambicao, a que o mundo mais se inclina. A muitos era escura e escondida; Mas o douto Faledo, co’a ligeireza Que tal nome promette, a declarou: Véou sobre ella, deu-lhe nova vida, Enriqueceu a patria e a portugueza Lingua, e a si proprio eternisou. Pela importancia que André da Fonseca tinha para André Falcao de Resende, e pela referencia a um Livro de versos, contrastando com o pouco que nos apparece com o seu nome, pdde-se julgar incalculavel a perda dos nossos monumentos litterarios, em parte causada pelo obscurantismo religioso, em parte pela falta de commu- nhao moral entre os escriptores eruditos e o genio na- cional. A data certa do volume attribuido a Ayres Telles de Menezes é 1569, como se deduz da rubrica do So- neto «A Fret Liiz de Montoja, defunto». Pela Biblio- theca Nova de Nicolau Antonio, sabemos que Frei Luiz de Montoia, frade augustiniano de Medina, vetu a Por- tugal como reformador da sua provincia; elle foi dire- ctor do Collegio de Coimbra, confessor de“el-rei Dom Sebastiao, regeitando o bispado de Viseu que lhe foi offerecido. Tendo nascido em 1497, morreu a 7 de Se- ptembro de 1569. (1) His 0 Soneto de Ayres Telles: (1) « Medinae sodalibus | pracfuit ; dein Portugalliam venit reformator Lusitaniae provinciac, cujus collegium Conimbri- PARTE II.—LIY. I. CAP. V 169 A simplicissima alma, que aqui deixa A cinza e€ ossos santos que a cercaram, Dos filhos ouga o som, que se crearam Aos pzitos seus, algar chorosa queixa. D’clle em torno cada hum com dor se queixa, Clamando a Deos, que orfaos e nus ficaram ; Pedindo 0 leite, o qual quanto mamaram ‘Tantos dons ja cada um de graca enfeixa. La mesmo d’onde estds cheio de gloria, Benino, attende nossas tristes magoas, Que d’aqui t’enviamos'sem vangloria : Da graga nos aleanga as puras agoas, A fim que d’este mundo com victoria Sair possimos, e eternas fragoas. (Op. cit., p. 109.) O poeta do Cancioneiro de Resende figura »’essa colleccio com uma copla escripta em 1510, (1) e sup- poe-se, que teria fallecido nfo longe dé 1520; nao era possivel que este homonymo tivesse relagoes com Frei Luiz de Montoia, celebrando 0 seu passamento om 1569. Portanto, assim como n’esse apodo de 1510, appa- rece um Simo da Silveira, que nio é 0 Dom Simao da Silveira amigo de Camées e de Jeronymo Cérte Real, é muito logico que esse Ayres Telles de Menezes cense nove erectum, monasterium quoque Olissiponensis urbis din, atque itidem provinciam administrayvit. Electus is quoque in ministerium praebendi aures Sebastiano Portugalliae xegi poenitenti, renuneiayit aliquando hune oneri, nec Visiensis epi- scopatus infulis decorari passus est. . « Natus anno uccocxexvu, obiit vi Septembris wpixrx, duo- hus septuagenario major. » Zbl. Nova, t. 11, p. 54. Jaz no Mos- teiro da Graga. Vid. Frei Antonio da Purificagio, Chron. dos Evemitas, Part. 1, liv. 5, tit. um, § 33, (1) Poetas palacianos p. 887, 170 WISTORIA DE CAMOES seja um poeta da segunda metade do seculo xv, visto que na aristocracia os nomes se repetiam com certa re- gularidade, De tudo isto se conclue sem esforgo, que © professor Caminka vendo no manuscripto o nome de Ayres Telles de Menezes, identificou-o irreflectidamente com o poeta do Cancioneiro geral, sem saber, que 0 Soneto a Frei Luiz Montoia lhe precisava a data de 1569, e que os versos a André da Fonseca, davam pro- va de um contemporaneo de Falcio de Resende morto em 1599. Um falsificador nao procede com esta since- ridade. Depois isto, parecem risiveis as iimpugnacoes de Iunocencio: «A linguagem, o estylo, a metrificagao d’essas poe- sias que elle se attreve a dar ein nome de um poeta contemporaneo de Dom Joao 11, nao sé differem abso- lutamente em seu mechanismo e contextura do typo pelo qual podemos aferil-as, isto é, das que se conser- vam no Cancioneiro e pertencem sem duvida Aquelle auctor, mas esto denunciando a todos os ollios que a sua composicao data de uma epoca incomparavelmente mais moderna que a inculeada, embora por ellas se se- imeassem mui de proposito aqui ou acold, alguns ar- chaismos e termos obsoletos, com os quaes se preten- deu imprimir-ihes o cunho de ancianidade que Thes fal- tava, disfarcando assim a fraude, e tornando-a desaper- cebida do commum dos leitores. Desde muitos annos é minha opinido que tanto estas poesias como outras que o mesmo editor deu 4 luz em nomes alheios, eram pro- priamente suas e de ninguem mais. A confrontagio do PARTE II. —LIV. I. CAP. V im estylo com as que elle publicou em seu proprio nome em dous volumes nos annos de 1784-1786, offerece uma identidade, que é para mim argumento irrecusa- ~ vel e convincente.» (1) Innocencio eguala n’este modo de criticar a insufficiencia do proprio Caminha, mas perturbada com uma preoccupacdo odienta. Quem co- uhece como as collegdes manuscriptas do seculo XVI eram formadas, é que péde saber quanto é difficil deter- minar ao certo os seus auctores; 0 Cancioneiro de Luiz Franco, (2) intitula-se na lombada Elegias de Camdes ; (1) Dice. bibl., t. 1, p. 318. . (2) N’este Cancioneiro se encontram varias poesias da es- chola italiana com a sigla marginal J. AZ, que se repete a fl. 90 em uma Epistola de dom D. de M. Em uma nota se 1é: «Dom Diogo de Menezes; nam andam impressas as suas obras, sendo algumas no Cancioneiro de Resende, edigdo 1516.» De facto no Caucioneiro geral figura um Dom Diogo de Menezes, mais conhecido pelo titulo O Claveiro; mas com certeza este poeta da vyelha eschola hespanhola nio podia escrever no es- tylo arrebicado do cultismo do fim do seculo xvr, como se vera pelo seguinte Soneto inedito de Dom Diogo de Menezes, que julgamos ser o'governador de Cascaes, que resistiu 4 invasao de Philippe m e foi mandado degolar. Esta homonymia explica a confusio dos dois Ayres Telles de Menezes, Eis o Soneto: No es vida la que vivo, pues da muerte, No es muerte pues da vida al ansia mia No en fuego el que me quema pues m’enfria, No es frio, pues en fuego se combierte. No es agua la que amor del pecho vierte, No son suapiros los que el alma embia; No es guerra, pues me mata cada dia, No es paz, pues desociego me devierte. No es amor el que abrasa mis entraiias, De mas fino metal pretende nombre, Pues son inusitadas sus maraiias. . No es mal el que me aquexa, ni coy hombre, Pues puedo sofrir cosas tun estraiias Que no hay quien de pensalo no se asombre. (Canc. de Luiz Franco, fl. 118.) 172 IISTORLIA DE CAMOES o Manuscripto de Pero de Andrade Caminha tinha na frente o nome do possuidor em vez do auctor. Nada mais natural do que o professor Caminha fiar-se nas indicagées exteriores do Manuseripto, indicagdes dedu- zidas das quintilhas a Jorge de Oliveira, que na _reali- dade sio de Ayres Telles o antigo, e conservadas para encarecimento do manuscripto. CAPITULO VI Estevam Rodrigues de Castro A Renascenga e o estudo das Sciencias naturaes.— A Medi- cina dos Arabes, reflecte-se na Italia pelos portuguezes Pe- dro Julido e Frei Jodo de Deos. — Na Renascenga, a eschola humanista domina em Portugal, em Amato Luzitano.—Pa- rallelo entre os Medicos e os poetas humanistas.— Nasci- mento de Estevam Rodrigues de Castro em 1559, —Emigra de Portugal, e professa a medicina na Universidade de Pisa. — Como seu filho Franciseo Estevam de Castro recolheu a collecgio dos seus versos.—Caracter de Cancioneiro, com obras de Camées, Side Miranda, Jorge Fernandes, Dom Fer- nando Correa de Lacerda, Soropita e Bernardo Rodrigyes.— Os sonetos camonianos de Estevam Rodrigues de Castro, e seu platonismo poetico.—Bajulagdes a Philippe nm, invasor de Portugal. O estudo das sciencias naturaes é uma das feicoes que mais caracterisa a Rengscenga; o espirito observa- dor ja n&o receiando interrogar a natureza amaldigoada pelos mysticos, deixa-se attrahir por esta Circe, procu- ra com afan descobrir todas as férmas em que se lhe revela este eterno Proteo. A realidade do mundo ex- terior recebida pelas intelligencias primitivas através das apparencias nao discutidas nem ratificadas, deu origem 4 creagio dos mythos religiosos; essa mesma realidade recebida por impress6es conscientes, fez com que o que era apparencia se tornasse uma relacao, e isto bastou para se constituir a Sciencia. f esta a grande superioridade do seculo xvi, aonde a ancia do saber se encontra nos artistas, nos poetas, nos philologos, nos navegadores e viajantes, em todos os que sentem a na- tureza. Eo seculo do encyclopedismo, como o definiu 174 HISTORIA DE CAMOES Cournot. Os artistas, como Micuel Ancelo, estudam a a oma; os medicos trocam com frequencia 0 escalpello pelo, cdlumo da literatura, como vémos em Giovani Antracino, medivo de Adriano vi e de Clemente vir, em Baccio Baldini, professor na Universidade de Pisa, ou Luigi Lovisini, medico de Veneza, que deixam obras da sciencia que professam a pur de elegantes poesias. (1) Em Portucal dé-se 0 mesmo phenomeno do seculo; Francisco Lopes, medico da rainha D, Catherina, Pedro Gomes, amigo de Faleio de Resende, e Eistevam Rodri- gues de Castro, cultivam a poesia ja sob a influencia da eschola hispano-italica, j4 sob o dominio exclusive do latim dos hun:anistas, j4 sob o idealismo platonico dos Quinhentistas. Estevam Rodrigues de Castro obedeceu a esta ultima corrente. Da-se aqui uma coincidencia notavel entre a direcc’o seguida pela poesia e pela scien- cia medica: assim como a Renascenga veiu suspender por algum tempo em Portugal o dogmatismo philosophi-. co dos averrohistas dando entrada ao livre idealismo pla- tonico, do mesmo modo a Medicina baniu desi a tradicio arabe recebendo a direcciio especulativa das Universida- des de Italia; Estevam Rodrigues de Castro pertence a este novo movimento scientifico, Em quanto predominou aeschola arabe, a Italia estimava os medicos portugue- zes; 0 celebre livro Thesaurus Pauperum, em que es- tava resumida a sciencia medica do seculo x1, foi es- cripto pelo mesmo auctor das Summulas logicas, em “+ (1) Tiraboschi, Storia della Letteratura italiana, vit, 673. PARTE W.—LIV. L CAP. VI 175 que estava resumida a philosophia averrhoista. Marti- nho de Tulda, fala na sua Chronica, dizendo de Pedro Julido, ou Hispano: «Fuct maguns medicus, et seripsit librum de Medicina qui Thesauius pauperum vocatur.» Contemporanco de Pedro Hispano, encontramos o nome de Frei Joao de Lisboa, capellao e medico de Honorio 111 e de Gregorio Ix, a quem serviu durante vinte annos, * figurando depois como Bispo de Lisboa pelos annos de 1239. O seu nome foi desconhecido ao chronista Anto- ‘nio Brandao, quando apurou a successio dos Bispos, pois nio o enumera entre Dom Sneiro e Dom Ayres, que floresceram entre 1220 e 1259. Depois que a into- lerancia catholica atrophiou esta sciencia em Portugal, a medicina foi um privilegio da classe modejar, um em- pyrismo, uma superstigio popular. Foi preciso que o enthusiasmo da Renascenca viesse rebabilitar esta scien- cia decahida; o primeiro que nos apparece luctando nas renhidas polemicas contra a eschola italiana é Jodo Ro- drigues de Castello Branco, mais conhecido pelo pseu- donymo de Amato Luzituno; elle ataca o afumado com- mentador de Dioscorides, Pier Andrea Mattioli: «Non mancarono pero al Mattioli avversari ¢ rivali. E uno de’ pit fieri tra essi fu Giovanni Rodriguez de Castelblanco, che avendo publicati sotto il nome de Amato Lusttano i suoi Commenti sopra Dioscoride nel 1554, e essendosi in essi giovato non poco di que’ del Mattioli, ardi non- dimeno di criticarlo e di mordelto frequentemente. Ma il Mattioli tal gli fece riposta con una Apologia, che pur si ha alle stampe, che ridusse il suo avversario al 176 HISTORIA DE CAMOES silenzio.» (1) A Jiberdade de pensar foi sufpprimida pelo Santo Officio, e Amato Luzitano teve de fugir de Por- tugal; apezar d’estas condicdes precarias, a litteratura medica nfo péde ser totalmente abafada, e della nos traga Dom Francisco Manoel de, Mello o seguinte qua- dro: «Na Medicina tampouco faltaram nossos naturaes publicando doutos livros; como Estevam Rodrigues de Castro, Fernando Cardoso, Andre Antonio, Diogo Bor- ges, Duarte Madeira, Rodrigo da Fonseca, Enrique do Quental, Luiz de Lemos, Antonio Luiz, Pedro Lopes, Gongalo Rodrigues Cabreira, Diogo Lopes, Aleixo de Abreu Fernéo Rodrigues Cardoso, Fernao Solis aa ‘onseca, Felipe Montalto, Lopo Serré0, Domingos Pe- reira Bracamonte, Garcia d’Orta, com doutissimas obras.» (2) Pelo mesmo motivo que Amato Luzitano fugiu de Portugal, o poeta e medico Estevam Rodri- gues de Castro, o qual «tinha melhor Musa que fé», (3) se refugiou na Italia. Segundo Barbosa Machado, nasceu em Lisboa Ro- drigues de Castro, em 1559; foi lente de prima na Uni- versidade de Pisa e Physico-mér do Grao Duque de Florenga. Além das muitas obras de medicina que im- primiu, chegou a formar uma collecgiio de poesias, pu- Dlicadas por seu filo Francisco Hstevam de Castro. (4) (1) ‘Tiraboschi, op. céf., pag. 590. (2) D. Francisco Manoel, Cartas, cent. 1.4, n.0 1, p. 492. (3) Id., Hospital das Lettras, p. 376. (4) Servimo-nos da edicao feita por Antonio Lourengo Ca- PARTE H.—LIV. 1. CAP. VI Lit Muitos d’esses versos andam hoje em nome de Camiées ; outros vém assignados por poetas do seculo xvI, 0 que da a esta colleceféo um caracter quasi de Cancioneiro, como se comprova pela dedicatoria de Francisco Este- vam de Castro ao Capitao Pedro Capponi, Cavalleiro do habito de Santo Estevam: «Conforme aos nove me- zes que o filho no ventre da mie se estd aperfeicoando, queria Horatio que os versos se estivessem nove annos apurando. Muito mais tempo estiveram estes que agora saem4 luz, nao batendo-se na bigorna do entendimento, mas escurecendo-se nas trevas do esquecimento. Che- gou-lhe (como se sée dizer) sua hora em Italia, para que tornem a Portugal donde sairam, aonde por ven- tura o nome de seus Autores pode renovar a memoria do que n’esta parte valeram; digo de seus Autores, porque posto que a maior parte sio composicdes de meu Pae, que quasi violentado Jhe tirei das maos, v&o jun- tos alguns poemas de diversos, diversamente assigna- dos, huns com nomes expressos, porque niio me era ne- cessario pedir licenga a pessoas defuntas, de outros nio me fot possivel procural-a. Basta-me com esta diligen- cia dar a cada um o seu. Se este principio de parto fér saboroso, aparelharei outras iguarias com que me fique a mio sabor de o haver dado a curiosos.» As poesias assignadas, porque os seus auctores ja cram mortos em minha, que diz: « Eu nunca jamais poude encontrar senéo um unico exemplar da obra de que tratamos e foi na sumptuosa Bibliotheca do Ill. sr. José Pedro Hasse Bellem... » Prol. p. 1x. -—Na Bibl. do Porto existe uma copia, J/s. n.9 589. 178 HISTORIA DE CAMOES 1632, pertencem a Fernao Rodrigues Lobo (Soropita), Jorge Fernandes—-o Fradinho da Rainha, e Francisco de 84 de Miranda; outras poesias vém com iniciaes, ou porque os seus auctores eram ainda vivos, ou por- que o editor néio soube conhecer, que a assiguatura D, F.C. £. quer dizer Dom Fernando Corréa de La- cerda, e D. B. R. de Bernardo Rodrigues. Em nome de Estevam Rodrigues de Castro encon- tram-se n’essa collecgito quatro Sonetos de Camées, com variantes notaveis. Reproduzimol-os nas partes que sus- citam mais interesse. O Soneto cccvii publicado pela primeira vez em 1598, revela que Estevam Rodrigues de Castro se serviu de manuscriptos ignorados hoje: Ondados fios de ouro onde enlacado Fim doces nés esté meu pensamento (1) Que quanto vos mais sélta o leve vento (2) Mais prezo fico ent&o n’am vée euidado ; (3) Amor d’uns bellos olhos sempre armado Me combate com as forcas do tormento, Provando de minha alma o soffrimento Que é luz justa da Paz trago obrigado (4). Em um manuscripto do seculo xvu, d’onde o snr. visconde de Juromenha cxtraiu onze Sonetos pu- blicados pela primeira vez na edicgio de Camées de 1861, vem dois Sonetos que se acham reproduzidos nas (1) Continuamente terho 0 pensamento. Ed, Jur. (2) Que quanto mais vos sdlta o fresco vento, Jb. (8) Mais prezo fico entao de meu euidado. Ib. (4) Que 4 justa lei da paz trago vbrigado. Jb. PARTE H.—LIYV. I. CAP. VI 79 obras poeticas de Estevam Rodrigues de Castro; sio 0 CCCEXXVII @ CCXLVIII, que andam sob 0 n.° Xe XI na reproduegéo de A. Lourengo’ Caminhd. A identidade das ligdes d’estes dois Sonetos, prova-nos que houve um original do seculo xvi, commum 4 copia de Rodrigues de Castro e ao manuscripto Juromenha. Entre os Sone- tos ineditos recolhidos por Faria e Sousa, que se acham na edigéo posthuma de 1685, vem um reproduzido com algumas variantes por Estevam Rodrigues de Castro, attribuindo-o erradamente a Fernéo Rodrigues Lobo: Amor que em sombras vés do pensamento (1) Paga o zelo leat de meu cuidado (2) Em toda a condi¢&0, em todo o estado (3) Tributario me fez de seu tormento. Eu sirvo e canso, e o merecimento (4) De quanto tenho a Amor sacrificado, Nas m&os da ingratidado despedagado Por preza vae do eterno esquecimento. Mas por muito, que emfim cresga o perigo (5) A que perpetuamente me condemna Amor que amor nao he, mas inimigo; Hum sé descango tenho em minha pena (6) Que a gloria de querer ha tanto sigo, (7) Nao pode ser c’os males mais pequena, (1) Amor que em soxhos véos do pensamento. Ed. Jur. ccrx. (2) Paga 0 zelo maior de seu cuidado. Ib. {3) Em toda condigéo, em todo estado. (4) Eu sirvo, ex canso; e 0 grdo merecimento. (5) Mas quando muito emfim cresga o perigo. (8) Lenho um grande descango em minha pena. (% Que a gloria do querer, que tanto sigo, 180 INISTORIA DE CAMOES Com o nome de Camées, recolheu Manoel de Faria e Sousa a Ecloga que comeca: Agora, jé que o Tejo nos rodeia, (Ed. Jur., Hél. xiv) que nas obras de Este- vam Rodrigues de Castro vem com as iniciaes D. B, &. Esta Hcloga é indubitavelmente de Camoes, porque ai se refere ao Soneto x11, publicado pela primeira vez em 1595, e recolhido tambem por Luiz Franco, desde 1588: Canta aquelle Soneto que comega: Quantas vezes do fuso se esquecia, Que digas um dos teus, ndo sei se o pega. Barbosa Machado e todos os que seguiram a sua auctoridade, interpretaram as iniciaes D. B. R., signi- ficando De Bernardim Ribeiro; mas bastam simples nogées de historia litteraria, para se vér que Bernardim Ribeiro foi anterior 4 influencia da eschola italiana, e que desconheceu a metrificacéo endecasyllabica. Como ja ficou provado na Vida de CamBes, (1) 0 poeta das iniciaes D. B. R., deve considerar-se 0 cclebre Ber- nardo Rodrigues, de quem Faria e Sousa recolhen tra- dicdes biographicas de Camoes; como Bernardo Rodri- gues morreu em 1681, foi por isso que Francisco Es~ tevam de Castro nao deixou esse nome expresso, talvez, como se deve entender do seu prologo, por néio poder obter a necessaria licen¢a para a publicacdo. Em todo © caso esta Ecloga pertence a Camoes, e de copia de Bernardo Rodrigues é que appareceu entre os papeis (1) Part. 1, cap. 7, p. 363 a 366. PARTE I.—LIV. I. CAP, VI 181 de Estevam Rodrigues de Castro; confrontada com a ligao de Faria e Sousa, apresenta variantes importan- tissimas, como de uma segunda elaboragio, sendo a co- pia de Bernardo Rodrigues mais completa. £ provavel que Faria e Sousa, tendo communicado com Bernardo Rodrigues, recebesse d’este amigo de Camdes alguns ineditos. No final da Ecloga, parece que figura o poeta Ber- _nardo Rodrigues, que se ensaiava na eschola de Ca- mes nos ultimos annos da vida do grande epico: Favorecei, senhor, a quem se ensaia Para o verso, a vés alto se deve. N&o queiraes que a louvar-vos inda saia Meu engenho, que a tanto nao se atreve, E. se por nfo poder vos nio levanto Levantae, pois podeis, meu baixo canto. (1) Das obras de Estevam Rodrigues de Castro, a Eclo- ga J, que comeca: Nas ribeiras do Tejo, a uma areia, (p. 197) foi reproduzida pelo snr. visconde de Juro- menha como de Camées; (2) infelizmente nao produ- ziu este benemerito editor nenhum argumento a favor desta hypothese, que ficou gratuita. Um terceto d’essa Ecioga, dé a entender que ella foi escripta na Jtalia: Buscarei com meu gado extranha terra, Habitarei onde outro sol mais arde, . Ou onde a neve tem coberta a serra. 1) Ed. de Caminha, p. 221, 2) Obras, t. mr, p. 108, Eel. xv. 182 IESTORIA DE CAMOES Nenhuma not: do filho de Estevam Rodrigues de Castro existe, para que se possa inferir que a Ecloga pertence a outro escriptor, a n&o ser ao afamado pro- fessor da Universidade de Pisa. Todos estes équivocos, que se dao com os versos de Camées, como ja notémos, (p. 82) sao o resultado da grande influencia do seu lyrismo sobre os poetas portugnezes da segunda meta- ce do seculo XVI; era-se camoniano ent&éo, como ainda no principio do nosso seculo se era elmanista. No tempo de Dom Francisco Manoel de Mello, ja os versos de Bernardo Rodrigues eram quasi desconhe- cidos em Portugal; mas a tradicfo ainda corria que elle tinha sido co Apollo d’este reino: gue tanta opinido se tinha de suas letras e juizo». O que hoje se conhece da sna poesia, é apenas o que esta recolhido nas obras de Estevam Rodrigues de Castro; d’af transcrevemos duas pegas lyricas, que facilmente passariam como de Camées, pelo vago idealismo de que estao repassadas: (1) Nao era mortal consa o seu passeio, Spirava mais que humana magestade, Prazer, gragas, amor, felicidade, D’altas riqguezas um thesouro cheio. Qual sée a Aurora do rosado seio Com justo passo abrindo a claridade, Modestia altiva, honesta gravidade, Que o céo nos representa d’onde veiu. O celeste vigor, que dentro anima, Trasluz no concertado movimento, . Que até na menor parte corresponde. (1) Ed, Caminha, 165, PARTE IL—LIV. I. CAP. VI 183 Por taes pizadas sobe, e muito aciina N’outras gracas se perde o pensamento, E 86 me leva amor nao sei por onde. Eis as Balatas, (1) j&4 com um caracter cultista: I Violante, a réde foram teus cabellos, O arco a sobrancelha, a vista a setta, E quem feriu com ella os olhos bellos. Eu sou ferido, e prezo; e tio quieta Tenho a alma em tanto mal, que bem espero Que nem sarar, que nem fugir cometa, De ti (posto que d’isso desespero) Um 36 suspiro, um brando effeito quero. It Violante sejas tu, imiga minha, Mas nao de piedade, ou mais piedosa, Ou ser menos formosa te convinha, Nao vira entéo crueza rigorosa, ‘Turbar-me a suave paz por cruel uso Indigno d’uma vista tao formosa, Que quando a vejo, e a ti e ao eéo acuso, E a mim, que vendo tal dos olhos uso. I Violante, bem sei eu que me ameaca Nos tens olbos, Amor, mas 0 desejo Nao softre n&o os vér, ndo sei que faga Em quanto com contrarios taes pelejo. Huns olhos que consagro 4 eterna fama, Minha alma leva amor, e eu nao a vejo Queixo-me d’ulma, que tao pouco me ama, Que nos teus olbos estando os meus nao chama. (2) (1) Diz D. Francisco Manoel: « ainda que ha entre nds certo genero de versos a que chamam Badlatas, tomado dos Ita- lianos, que se fizeram propriamente para os bailles das come- dias...» IHusp, das Letras, p. 391. (2) Ed. Caminha, p. 192. 184 ‘ HISTORIA DE CAMOES Depois de ter aleancado uma grande reputacio pela sua sciencia e escriptos medicos, é que Estevam Ro- drigues de Castro consentiu que seu filho publicasse a collecgiio dos seus versos; em um elogio Del Signore Capitano Leone Francucci, Cavaliere de 8. Stephano, al Autore, faz-se 0 elogio do poeta pela allianga da sciencia com a poesia: Stephano, in milli Carte Gia dell’Huomo trattasti, ed or’ d’amore Tratti con novell’arte Scriptor Latino e Lusitan’Cantore. Nelle tue dotte prose . Ne tuoi carmi gentil’sent’io gran cose, Che ingegnoso e facondo Scrivi del piccol’Dio, del piccol Mondo. A forma poetica mais usada por Estevam Rodrigues de Castro foi a do Soneto; péde-se dizer com afouteza que s&o' todos perfeitissimos e dignos de serem assigna- dos por Camées, imitados com um completo conheci- mento do seu estylo. As relagdes com Fernio Rodri- gues Lobo Soropita, (p. 168) cujos manuseriptos se con- fundem tambem com os de Camées pela imitagio cal- culada, levam a crér que Estevam Rodrigues de Cas- tro contribuiria tambem para a ediciio das Lyricas de 1595. A mesma melancholia no amor, o mesmo mys- ticismo religioso dos Sonetos de Camées, sio os cara- cteres predominantes dos Sonetos de Estevam Rodri- gues de Castro. Quem nio tomara como de Camées este Soneto com que o professor da Universidade de Pisa abre a sua collecedo: PARTE I¥.—LIV. J. CAP. VI 185 Passei livre, ocioso uma larga edade, Sem gloria ou sem saber, e sem proveito; D’esta vida, antes morte, satisfeito Em baixes exercicios da vontade. Viu-me amor, e movido 4 piedada Tocando com sua mio meu frio peito, © imato ardeu, que n’elle estava feito Pelos aimos da imiga liberdade. Maravilha era vér brotar cuidados, Quasi flores nascidas de improviso, Que amor criou e pisam disfavores. Assi os adoro depois de pisados, E como yivo junto ao Paraiso Sustento-me do cheiro d’estas flores O ultimo verso é um conceito camoniano, da tradi- cio da edade media recolhida no Miroir du Monde e nos Insiadas. O Soneto tv termina de um modo inexcedivel : Eu vou para falar, e fico mudo: Porem meus olhos, minha cér perdida, Meu pasmo, meu silencio por mi falam E n&o dizendo nada, digo tudo. N’estes Sonctos ha um, em que transparece a per- sonalidade do poeta: é 4 morte de uma menina de treze annos, por ventura sua filha: As gragas € a08 amores que-criaram Marianna na, flor da tenra idade, Com ella da mortal necessidade Vencida juntamente se entregaram. Aquellas esperangas que enganaram A quem cuidava achar n’ellas verdade, Deixando em seu logar magoa e saudade Na mesma, sepultura se langaram. 186 HISTORIA DE CAMOES Quanto, n’um bello riso, a primavera, ¥ Que agora é triste inverno, enthesourou Quanto do céo se mostra cd na terra: Quanto o dourado sol por sua esphera Passando treze vezes ajuntou, Tudo n’um frio marmore se encerra. Uma cousa nao soube Hstevam Rodrigues de Cas- tro imitar do lyrismo de Camées: o sentimento da na- cionalidade. Uma grande parte dos poetas portuguezes nao sé recebeu mercés do invasor hespanhol, sendo tam- bem o bajulou nos seus versos. Estevam Rodrigues de Castro havia fugido de Portugal por motivos da into- lerancia religiosa; e seria talvez o fundo resentimento da expatriagéo que o levou a escrever este Soneto ao Demonio do Meto Dia: Justamente o gréio Rey que senhoréa Ambas as Indias, ambas as Espanhas, Deixando sobre vés cousas tamanhas Do alto pezo descanga ¢ se recrea. Vos sois aquelle brago com que enfreia, Como presente, assi terras extranhas; Seus olhos com que vé leaes entranhas, Mao donde vem mereés com larga véa. Por vés aquelles ficam, a quem s’estende Tal brago, olhos taes vé,-paga tal mio, Bem governados, vistos, satisfeitos. N'elles da morte o tempo vos defende, - Levantastel-os, que outra cousa sio Que estatuas immortaes de vossos feitos. Este Soneto seria escripto 4 vinda de Philippe m PARTE I.—LIY. 1. CAP. VI 187 a Portugal em 1581, quando Estevam Rodrigues vivia ainda na patria? (1) Pela bibliographia resta noticia de um poema feito por este mesmo auctor em que é heroe el-rei Dom Sebastido. IZ quasi impossivel descobril-o, mas pela bajulagio a Philippe 1, pdde-se inferir que o poema tinha por fim ridicularisar a lenda do monarcha que se estava formando no povo sobre o typo messianico de Arthur. Segundo Barbosa morreu Estevam Rodri- gues de Castro em 1637, sem receber o desmentido da sua Lajulagéo no triumpho sacrosanto de Pinto Ribeiro. (2) (1) Montaigne, na sua Viagem 4 Italia, por este tempo, fala dos portuguezes que viviam em Roma: «Le 18, (1581) l’Am- bassadur de Portugal fit l’obedience au Pape du Royaume de Portugal, pour le Roy Philippes. Ce mesme Ambassadur qui étoit ici pour le Roy trespassé et pour les Etats contrarians, au Roy Philippes. Je rancontrai au retour de Saint Pierre un home qui m’avisa plesammant de deus choses: que les Portu- gais faisoint leur obédiance la semmene de la Passion, et puis que ce mesme jour la station étoit 4 Saint Jean Porta Latina, en laquelle Eglise certains Portuguais, quelques années ya, étoit entrés en une étrange confreric. Ils s’epousoint masle 4 masle, 4 la messe, aveq mesmes serimonies que nous faisons nos mariages, faisoint leur pasques ensamble, lisoint ce mes- me évangile des nopees, et puis couchoint et habitoint ensam- ble... If fut bralé huit ou neuf Portuguais de cete belle se- Cte.» Montaigne, Journal du Voyage en Italie, p. 156. Ed, 1774. (2) No Hospital das Lettras, p. 316, resume Dom Fran- cisco Manoel de Mello o seguinte juizo litterario acerca de Es- tevam Rodrigues de Castro: « tinha methor Musa que f6; 0 seu Arion é poesia de conta, supposto que escreveu em castelhano, que o ndo sabia tanto, como a sua propria lingua, em que lu- xira, mais se n’ella fizera suas composigdes; porem no celebre poema, que publicou da immortalidade da alma, fez prova de grande philosopho, sobre poeta illustre. »° 9—Tomo un. * CAPITULO vir Manoel da Veiga Tagarro e a «Laura d’Anfriso» Transig#o da poesia quinhentista para o cultismo, sob o domi- nio hespanhol.— Manoel da Veiga nasce em Evora na se- nda metade do seculo xvr.— Estuda Theologia e Direito ‘ivil na Universidade fundada pelo Cardeal Dom Henrique. —Seu irmio Estevam da Veiga segue a carreira das armas. — Relagées do poeta com o Duque de Braganga Dom Theo- dosio n,—Collige os seus versos para os dedicar a Dom Duarte, irméo do Duque, e poeta juiz de um Certamen em que teve por Adjunto Lope de Vega Carpio. — Caracter lit- terario de Dom Duarte. — Manoel da Veiga imita Camdes, @ allude a0 poema dos Lusiadas.— A Laura de Anfriso é a historia dos seus amores.—A dama que elle amou desde crianga, era natural d’Evora, da mais alta aristocracia, dis- tinctissima na pintura, e seguiu a vida da clausura.—To- dos estes caracteres' se encontram em Dona Margarida de Noronha, filha do Conde de Linhares.— Manoel da Veiga abraca tambem a vida religiosa. —Recolhe os seus versos em 1604.—Imita Lope de Vega. Depois da morte de Camées, e elo uso aa Thance or - , a poesia perdeu o seu caracter; sem um ideal superior que a inspirasse, desceu a ser um in- strumento de adulacéo para o invasor; os poetas appa- recem-nos premiados com tencas dos Philippes. Inca~ pazes de perceberem o idealismo puro do _poetas.italig~ nos, cdem n’esse cultismo emphatico a que os arrastava a propria indole da lingua castelhana. A medida que se jam recolhendo os versos ineditos de Camées, levantava- se um monumento que nfo deixava extinguir-se total- mente a poesia portugueza; a imitagdio do lyrismo camo- niano era a manifestacdo de um sentimento patriotico. PARTE II.— LIV, 1. CAP. VIL 189. Manoel da Veiga Tagarro, vivendo sob o dominio hes- panhol nunca abandonou a sua lingua, imita e admira Camoes, e resente-se jd da corrente de cultismo, que caracterisou o seculo xvul. A sua vida é completamente desconhecida; o unico subsidio para a biographia é o li- vro da Laura de Anfriso, aproveitado pela primeira vez por Pedro José da Fonseca. D’este livro tiraremos uma nova luz. , Manoel da Veiga nasceu em Evora, aonde tomou 0 grdo de licenciado na Universidade fundada pelo Car- deal Dom Henrique: Ali Evora clara se recreia: Porque da vista vossa esté gosando: Mas ai que lhe ameaga a noite feia. Ai que esté Manganares envejando, Ditosos campos meus, yossa ventura! Ai que jd tanto bem nos vae roubando. (p. 55.) Eboreos campos bem aventurados... (p. 56.) Descrevendo as batalhas dadas pelo+ Condestavel Dom Nuno Alvares Pereira, allude outra vez 4 sua terra: Maldizem do Alem-Tejo os horisontes... , Nos meus versos amados, que isto vistes Pelas concavidades muitas vezes r Nuno, Nuno, chorando repetistes. (p. 78.) Como em todas as familias nobres do seculo xvi, de- pois da carreira das letras a viagem da India e a vida © das armas eram o refugio da educacdo que os paes da- vam aos filhos segundos, Um irmao de Manoel da Veiga 190 HISTORIA DE CAMOES militou na India, como vemos por esta Ode, imitada de Horacio, 4 sua’ partida: Ligeira Néo formosa Que acomettcis o Indico Oriente, Tao alegre e contente Que prometteis briosa, Vendo os mares largos De ter assento ethereo como a de Argos. Um irméo me levaes Irméo que era metade da alma minha. Porque ides tao asinha? Ou porque me deixaes, N’esta ausencia tio dura, Passando em saudade a vida escura? (p. 96.) Mas ja que a sorte ordena Que escusar-se nfo possa esta partida, Farei a despedida Sobre esta praia amena, E os Anjos rogando Que nas palmas das maos vos vao levando. O nome deste irmao, segundo se pdde inferir do Indice de toda a Fazenda, por Luiz Figueiredo Faleao, era o capitiéo da Nao Sam Thomé, chamado Estevam da Veiga, que partiu para a India na Armada comman- dada or Joico de Tovar aminha em 1" ° . (1) Infeliz~ “mente foi a Nao Sam Thomé a unica que se perdeu. Pe- Jas relagoes de Manoel da Veiga com a Casa de Bra- anga, exaltando o Ducue Dom J fo e sua esposa Dona ‘atherina, neta de el-rei Dom Manoel, e seu filho Dom (1) Indice, p. 176. PARTE II. —LIV. I. CAP. VII 191 Theodosio, a data de 1588 da partida de Estevam da Veiga, torna plausivel a hypothese de ser este o irmao do poeta. : Mancel da Veiga estudou o Direito Canonico e de- pois o Civil; elle refere-se 4 cadeira de Vespera, que se intitulava de Sam Thomaz, e 4 cadeira de Néa ou de Duns Scoto: . Do Angelico Doutor a flamma altiva Foi da alma suspensao: que a Phebo esquiva; Porque honras da Castalia Por humildes julguei, até que a Italia Formou o raio brando , Coriscos sem trovoes dissimulando. ~~ , Nao me move ambigao de eterna fama Nem coréa fatal de ingrata rama, Outra obra mais alta Onde ou Lyra ou Scote a penna exalta. Podera ser escripta... As Rimas em grilhdes foram nascidas E entre Leis e Digestos mal polidos ; (p. 256-7.) Nos ocios do estudo da Universidade de Evora é que o poeta comecou a celebrar os seus amores; tinha elle doze annos de edade quando pela primeira vez se sentiu ferido: Vés sereis testemunhas, se quizerdes De meu primeiro amor, rios de prata, Que correis para o mar despedacados. Escassamente entrados Tinha doze annos na florida edade; Ja cantando movia O monte a saudade: - J& og ramos tocar do chio podia: (p. 6+) 192 HISTORIA DE CAMOES A maneira dos poetas da Eschola italiana tomou o nome arcadico de Anfriso, e embuido da imitagéo pe- trarchista chamou aquella que amava, Laura. O modo como trata este episodio encantador da sua vida esta abaixo da poesia da realidade; em parte faz lembrar a melancholia de Crisfal e de Maria, ha a mesma separa- Gio forcada, a violencia do carcere privado durante cin- co mezes, mas a consolacdo mystica vem extinguir a mutua anciedade, separa-os para sempre o burel da clausura, e dao-se por felizes em terem-se t&éo cedo des- enganado das cousas do mundo para se concentrarem em Deos. Anfriso exprime o sentimento vivo da sua alma com as imagens mortas da mythologia grega, pos- tas em moda pela Renascenca; elle busca nos classicos e moralistas as sacramentaes anedoctas a que faz sabias allusdes. O verso espontaneo da redondilha, que o poria a par de Bernardim Ribeiro ou Christovam Falco, é completamente abandonado por Manoel da Veiga pelo endecasyllabo com os seus hemistychicos artificiosos. Na Epistola dedicatoria ao principe Dom Duarte o poeta recapitula a historia d’esses amores, que formam a parte principal da sua vida: N’estas Rimas, senhor, tambem se aleanca Quam facil é na vida um breve riso: Quam de pressa se murcha uma esperanga. Aqui se representa o grande Anfriso, Aqui a nobre Laura, a Deos atados Dando ameno theatro ao paraiso... PARTE I.—LIV. I. CAP. VII 193 Sao umas cantilenas verdadeiras Que deu um triste cysne 4 nossa edade Com suspiros mortaes de mil maneiras. Em covas de dragées e escuridade Dous partos produzi, e 0 mesmo céo ‘Testemunha sera d’esta verdade... Em luzes de papel pobre e pequeno Com apertado pao, com agua breve, As Musas meditei, que hoje condemno. Desque que o claro sol em Libra esteve Toquei grilhdes no escuro labyrintho: Até vér as escamas de ouro e neve... Na alheia letra a minha se esculpira, Principe meu, com a tinta adulterada, Que apenas quinto olhar traslada e tira. Depois que em papel branco a vi lavrada, Por nao ser de Aristarcos offendida, A esse templo real foi consagrada. O verdadeiro interesse da leitura da Laura de An- Jriso esti em seguir a historia d’estes amores; diante das suas peripecias 0 convencionalismo -poetico chega 4 sublimidade do natural: - Uma alta Lusitana Filha de um excellente Que illustrou Portugal com nome ingente. (p. 87.) A dama que Anfriso amava pertencia 4 mais alta aristocracia; fixamos esta circumstancia, porque ella nos auxiliard. bastante para decidir a realidade historica da formosa Laura. A sua belleza era surprehendente e ani- mada com uma rara intelligencia e dotes artisticos: 194 HISTORIA DE CAMOES Oh rosto singular! Oh elaros olhos! oh cabellos de ouro! Oh belleza sem par! Oh das gragas thesouro! A quem eu mesmo adoro e por quem mouro! Oh bocea onde se encerra Uma mina de perolas mais dignas, Que 20 mesmo céo fax guerra! Oh sobrancelhas finas Que pédem render almas diamantinas!... Oh belleza divina! Novo eclipse da humana natureza, Modestia peregrina, Alma em virtude-acceza, Digna 86 por ser tal da mér grandeza. Com vergonhoso pejo Abaixa a honesta Laura as luzes bellas; Accende-se 0 desejo No céo entre as estrellas De lhe virem fazer umas capellas. (p. 89.) Venus lhe diz: Os montes Que estio Alem do celebrado Tejo As cristallinas fontes Por vés suspirar vejo- Oh que doce esperar, doce desejo! Inclinae filha amada, O pesco¢o de neve ao jugo brando Nesta idade dourada Na qual ireis provando Mil venturas, que o cép vos iri dando. Em hymeneu sagrado O fructo gosareis de taes amores: E o mesmo sol dourado Mostrar seus favores Com chuveiros de rosas e de flores. PARTE II. —-LIV. I. CAP. VII 195: J& vem Anfriso amante No meio d’um sublime ajuntamento Altivo e triumphante, Dando feria ao tormento Em que trazia atado o soffrimento. J& a pompa gloriosa . E os céches de ouro fino marchetados Ante a porta famosa Estéo, Laura, parados Ja para vos levar aparelhados... Mas, ai Fortnna ingrata! Ai que os gestos de Anfriso siio de vento! Quando tal bem se trata Eis que n’um sé momento . Se trocou sua gloria em mér tomento. (p. 89.) O poeta descreve o estado de desespero em que 0 precipitou a inesperada repulsa de Laura: Em mi perdido andei como em deserto: Minha alma estava feito um labyrintho, Sepultadas em dér minhas potencias, . Levar-me de um tormento em outro sinto, Tudo era magoa, tudo desconcerto, Tudo rigores, tudo violencias ! . Ah crueis insolencias, Oh asperas prisdes, oh duros lagos! (p. 6.) Manoel da Veiga fugiu da casa paterna sob a pres- sio da ruina do seu primeiro e unico amor; divagou por Lisboa e depois pelas margens do Guadiana, até que encontrou o castigo de prisio, talvez infligido por seu proprio pae: 196 HISTORIA DE CAMOES J& deixa Anfriso os vales descontentes; J& deixa os areaes que o Tejo lava: Ja deixa os montes, deixa a espessura: J& para o Guadiana caminhava. Eis 0 novo, soldado da ventura, De pastor peregrino se fizera, Trocando da montanha a vestidura. A que trazia de romeiros era, Serguilha humilde: n’ella disfargado Dar volta ao mundo todo Anfriso espera. Bord&o de gimbro, liso e torneado: Contas de tiracollo penduradas Chapéo branco de conchas semeado. Nas terras transtaganas afamadas Co’s dons da loura Ceres, caminhando As mais d’cllas j4 tinha atraz deixado. (p. 45.) Manoel da Veiga, depois d’esta desesperada digres- so, falla da prisao que softreu de cinco mezes, du- rante a qual escreveu uma, grande parte de seus versos. Na Dedicatoria ao principe Dom Duarte falla da Cova de dragées e escuridade, aonde soffrendo fome e séde meditou as Musas: Desde que o claro sol em Libra esteve Toquei grilhdes no escuro labyrintho Até vér as escamas de ouro e neve. Segundo Pedro José da Fonseca, na pequena bio- graphia d’este poeta, a prisi0, segundo a alluséo aos signos de Libra e de Piscis, decorreu desde Septembro PARTE I1.—LIYV. I. CAP. VII 197 até Fevereiro. (1) Abandonado o estudo da Theologia, o poeta distraia-se no carcere contando a historia dos seus amores: Oh em inveja tanta Abjuradas rapinas De Theologia santa! Tornae, de peregrinas Por lei do postliminio ao grande Aquinas. Mas emquanto nao védes Vosso pae verdadeiro, Entre as toscas paredes Dreste vil captiveiro Démos a Phebo insenso lisongeiro. Tambem honraram a veia Entre grilhdes e algemas, ‘Thiaras de Aquilea... (p. 117.) Os cabellos brancos comecaram a pratear os cabel- los louros do poeta; elle o descreve na estrophe: J& invejas e damnos Tem o our'o semeado De prata em verdes annos: Vendo-me téo mudado Que n’um cysne de neve estou trocado. (p. 118.) Em differentes logares da Laura de Anjriso, o poeta allude 4 sua prisfo, como uma dura realidade da sua vida: (1) Dice. da Acqdemia, no cat. dos Auctores, p. excur. 198 HISTORIA DE CAMOES Eu 26, triste, affligido, descontente, Atado em dura e aspera corrente, Dos grilhies fago lyra, E 0 carcere tambem chora e suspira, Vendo que um breve instante Me niio deixa o tormento penctrante. (p. 125.) Eram ja decorridos cinco mezes de prisio, e 0 poeta tendo por unica luz o luar que o visitava, cantava atra- vés das grades: Por esta ferida escassa Que fez a natureza, O vosso raio passa, Censurando a dureza De quem chega a negar-me a luz acceza. Jé quinta enriquecestes Esta masmorra ingrata Com o pallio que estendestes, Dando doceis de prata Aos sitiaes fraternos de escarlata... Até que venha o dia, Ao qual meus olhos viro, Oh toga de alegria, 86 em cuidar-te me admiro. De seraphicos d’Ephod por quem suspiro. (p. 128.) Ob bellas a meus olhos Paredes, que verteis Caridades a molhos; Quando me abracarcis? Quando a porta de estrellas abrireis. Entre esta casa feia Até o dr de vida Que spiraes, me recreia, Oh saude entendida! = Para quem me avisinhe me convida... PARTE II.—LIV. I. CAP. VII 199 Juro pelas estrellas De ser hostia offerecida Em wés, oh aras bellas Sem que o mundo m’o impida: Que ndo quero sem Christo honra nem vida. (p. 129.) Por esta ultima estrophe se conhece que tencionava abandonar o seculo e seguir a vida religiosa; pelas ou- tras composi¢des suas descobre-se que Laura depois de uma perigosissima doenga entrou para a clausura, o que decidiu o poeta a imital-a tambem. Antes de o interro- garmos sobre esta nova phase da sua vida, comprove- mos 0 esbogo que deixamos dos cinco mezes dé prixio, com esta estrophe da ultima Ode da Laura de Anfriso: As rimas em grilhées foram nascidas, E entre Leis e Digestos mal polidas, Nido canto subtilezas, Canto o que vi e ouvi: mortaes tristezas De um ausente e captivo De cuja voz sou sombra ou ecco vivo. (p. 257.) \ Laura, ou pelo desgosto de ter abandonado o poeta, ou por qualquer circumstancia, adoeceu mortalmente: Mortifera doenga, De uma alma nobre os lagos dividia: Tolhe-se a lingua fria, E assi declara, mais a magoa intensa... Ai quam trocada tinha A testa de marfim e as faces bellas! Ecclipsam-se as estrellas Vendo a ligeira morte téo visinka. ~_ 200 HISTORIA DE CAMOES Oh! como me trareis atormentado, Quando por maior mégoa fér lembrado De Laura esclarecida, Que vejo em cinza quasi convertida. Quantas vezes Jangando A vossas veigas os formosos olhos, Se foram os abrolhos Em rosas encarnadas transformando... Em mi, em mi emprega, Oh cruel Libitina, o golpe esquivo; Para que he ficar vivo Quando Laura seus olhos j4 te entrega? Suspende, surda e cega, Suspende tua espada diamantina: Deizxa que esta belleza peregrina Goze seus verdes annos, Sem provar ante tempo teus enganos. (p. 165.) Depois d’esta perigosa doenga, 6 que Laura se en- tregou ao amor divino: Dizei-me, vés, que esposo, Por dar a doce vida 4 sua amada Serd tao poderoso Que com mio esforgada Os golpes vd deter de minha espada? Portanto, oh bella Laura, Empregae essa vida venturosa Onde ella se restaura, N’aquella cruz formosa: Do piloto Jesus néo gloriosa. (p. 215.) Esta decisio de Laura veiu consolar a vaidade do poeta que se vira despresado; o amor de Jesus, por quem se vira preferido, em vez de o humilhar seduzia-o tambem: , PARTE I1.—LIV. I. CAP. VII 201 Era Laura uma flér de alta esperanga, Dos paes primeiro amor, doce lembranga: Qual a fechada rosa Que em botdo mostra a purpura formosa. Nos campos se esté rindo E pouco a pouco ao sol se vae abrindo... O teu fogo Jesus te est’ chamando: Olha como da Cruz formoso e brando Com suave ferida O peito aberto tem, por dar-te a vida? Olha que estende os bragos Por te dar, oh Laura, mil abragos. (p. 225.) ' Por fim o poeta descreve a vida penitente da que féra sua namorada: De grosso sacco e aspero cilicio Jé Laura se vestia Quando ao summo Deos de si fazia Suave sacrificio Que idade de fléres Tendo com Christo Amor doces amores. (p. 235.) Depois que a poetica Laura abandonou o mundo e se refugiou na clausura, o arrobo mystico levava-a, como a Beato Angelico, a exprimir a sua paixao pela pintura. O poeta na Ode vit do Liv. 6, descreve-nos esta parti- cularidade, que vird acabar de nos revelar quem era essa dama: Ornamentos de telas singulares Laura fazendo esta para os altares: Ja move em campo de ouro A mio que era de gracas hum thesouro: Tao propria nas pinturas Que as arvores tem voz, alma as figuras. 202 HISTORIA DE CAMOES Ali pinta subtil o engenho vario Aquelle eterno tempo imaginario: A Trindade ali pinta, Que sendo nas pessoas t&o distincta Abraga com eminencia Diversas relagdes na mesma essencia. Pintou de azul o mar, e as arenosas Praias pintow com pedras Preciosas Com gra pintou o polo:.. Alli pintava o campo damasceno, Antigo bergo do Addo terreno, Alli trazia vedado Escamoso Dragdo n’elle enrolado: Alli pinta sobre aguas Aquelle que he allivio a nossas magoas. O poeta vae descrevendo todos os quadros biblicos que a reclusa Laura pintava ; a minuciosidade da rela- cao prova-nos que se allude aqui a um talento conhecido. De facto na historia da Arte portugueza do fim do se- culo Xv encontramos o nome de uma dama formosis- sima, da mais alta aristocracia, que cultivou a pintura, e abandonou o seculo para seguir a vida claustral; to- dos estes caracteristicos acham-se tambem accentuadas na Laura de Anfriso. Era esta Dama natural de Evora, filho do nobilissimo Dom Francisco de Noronha, segun- do Conde de Linhares, ece D. Violante de Andrade, ama de honor da Imperatriz D. Izabel; chamava-se Dona Mar arida d "orm, notavel pelo seu conhe- cimento do latim, do francez, italiano e inglez, e sobre tudo pelo talento da pintura, de que falla Duarte Nunes de Ledo: «Esta donzella pinta tao bem a olco, illumina com tanta perfeigéo, que espanta aos maiores mestres da PARTE I:—LIV. 1. CAP, VIT 203 arte.» (1) Dona Margarida de Noronha deu a traga para © convento da Annunciagao, fundado por seu avé, e alli rofessou com o nome de Soror Margarida de Sam Pau- lo. Na ultima Ode da Laura de Anfriso, o poeta cita o nome d’esta dama, mas de um modo figurado que se nao perceberia. pela simples leitura da estrophe: Formosa Margarita em vaso de ouro, Das gragas em geral vivo thesouro, - A um claro ajuntamento Podera ser estrella e ornamento: Quem a entende, a deseja Em que o prego lhe tire a alheia inveja. (p. 258.) Se D. Margarida de Noronha pertencia 4 mais alta aristocracia, o licenciado Manoel da Veiga era de uma familia nao menos illustre de Evora. O poeta, desilludido do mundo seguiu o exemplo de Dona Margarida de Noronha, e entregou-se 4 vida re- ligiosa: Troca seda em burel, em pranto 0 riso: Na altiva primavera o grande Anfriso; Descalso e deseuberto Se mette nas entranhas de um deserto, Onde uma cova pobre O penitente corpo apenas cobre. Ali tem retratada aquella vida Que por nés spirou na cruz subida; Ali uma caveira, Saudavel mesinha e verdadeira Contra as torres de vento Que fabrica o humano entendimento. (1) Deseripgdo de Portugal, p. 152, 204 HISTORIA DE CAMOES _ Ali ajoelhado em terra fria Suspiros derramando assi gemia... (p. 249.) N’esta mesma Ode, o poeta da a entender que foi illudido por falsas promessas do pae de D. Margarida de Noronha: Aquelles que em reciproca amisade Me deviam, Senhor, tratar verdade, Quam falsos os achei! Mas eu n’estas carrancas me ganhei: ' ‘Vé hontem, no vé hoje Labio brando e por isso Jacob foge. be Carrancudo Labao, rosto mudado Me fez que o tenha qual Jocob deixado. Oh ditosos espinhos ! Com que assi me juncastes os caminhos, Para que em taes dores, Outros campos buscasse e outras flores. (p. 249.) Depois que Manoel] da Veiga se entregou 4 vida as- cetica abandonou a poesia; vivendo em Evora, mereceu a estima de Dom Theodosio, Duque de Braganca. A sua Ecloga u é dedicada ao «Senhor Dom Theodosio, Duque de Braganga, indo a Lisboa na vinda de El-Rei.» (p. 18.) A data d’esta composicéo péde fixar-se em 1596; Philippe 11 desconfiado da sympathia popular que havia - pelo Duque de Braganca Dom Theodosio, exigiu que elle viesse da sua residencia de Villa Vigosa 4 corte. O Duque chegou a Lisboa em 20 de julho de 1596, aonde © enthusiasmo que despertou na populagéo nao deixou © PARTE I.—LIV. L CAP. VIL 205 descobrir a ma& vontade secreta que contra elle certa- mente havia. (1) Por isso escreve Tagarro: Pastor, que vis buscando outro Pastor, Que 14 do Manzanares veiu ao Tejo: E.com mostras leaes de puro amor Lhe estds manifestando teu desejo... (p. 22.) Diogo Bernardes recolheu nas suas Rimas um So- neto ao Duque de Braganca em que exprime a alegria que houve em Lisboa na sua recepciio: Quando no mor furor Marte movia Ora receo em nés, ora esperanga, A vinda do Gra-Duque de Braganga Encheu toda Lisboa de alegria. Esta alegria era uma manifestagio nacional, ou me- Ihor, do pequeno partido nacional, que via no Duque as suas esperangas. Bernardes apenas comprehendeu d’essa alegria o facto da prompta obediencia do Duque ao invasor: A tal zelo da fé, a tal presteza No servigo da Regia magestade Sem nunca dar seu peito a vaos temores; A tam alta prudencia, em tal edade, Em fim a tal brandura em tal alteza. Quem Ihe pdde negar justos louvores? (2) (1) Sousa, Historia geneal., rv, 396. (2) Rimas Varies, p. 171. Ed.'1770. dD . 206 HISTORIA DE CAMOES Muito antes da vinda do Duque a Lisboa, Philippe 1 fizera mercé do titulo de Marcuez de Fr -° + Dom Duarte filho secyndo dos Dugies + -.canga D. Joao e D. Catharina, mandando-lhe passar Carta de quatro mil cruzados de renda. A data d’esta corruptora mercé, é de Valhadolid, em 6 de Julho de 1592. A Eclo- ga iv da Laura de Anfriso traz a rubrica «Ao Senhor Dom. Duarte, Marquez de Frechilha,» que basta para fixar o periodo da actividade poetica de Manoel da Vei- ga. Philippe m temia-se dos talentos de Dom Duarte, “irmio de D. Theodosio, ¢ tratou de attrahil-o para Ma- drid, negociando-lhe um casamento na inclyta casa de Oropeza com D. Brites de Toledo Monroy y Ayala; 0 tratado celebrou-se em 2 de Outubro de 1595, e Dom Duarte casou em 25 de Fevereiro de 1596. Assim a in- fluencia que D. Duarte comegava a exercer sobre os es- piritos mais cultos foi desviada pela sua residencia em ° Madrid. Dedicando os seus versos ao principe Dom Duarte, © licenciado Manoel da Veiga exclama: J& com vossos favores me asseguro Contra quem me ladrar na partesinha Da qual gloria nenhuma a mi procuro. Esta sémente foi a gloria minha, Louvar a real casa de Braganga Dando 0 que devedor ha tanto tinha. (p. xu.} Esta dedicatoria a Dom Duarte revela-nos dois fa- ctos da vida do poeta e da litteratura portugueza do seculo XVI; em 1604, Dom Duarte veiu a Lisboa, pela PARTE Il.—LIV. I. CAP. VII 207 occasido do baptismo de seu sobrinho Dom Joao, Duque de Barcellos, 0 que se prestou mais tarde aos planos da revolucéo de 1640, Foi esta vinda que proporcionou ensejo a Manoel da Veiga para colligir os seus versos, e dedical-os a0 seu antigo protector. A Ecloga mi da Laura de Anfriso, traz a rubrica: « Sobre a entrada do Duque em Lisboa, levando comsigo 0 Duque de Barecel- los, » (p. 18) 0 que nos confirma a mesma data de 1604. A este tempo j& Manoel da Veiga era velho: E se do ultimo tempo a luz antiga Me acompanha estes membros jd cansados Para quem vossa gloria ao mundo diga... (p. x1.) Isto nos prova que cultivara a poesia dentro do se- culo xvi, guiado pela pura tradicio quinhentista; esta velhice de Manoel da Veiga leva-nos tambem a inferir o seu parentesco com esse sympathico desconhecido Luiz da Veiga, que Diogo do Couto traz no numero @’aquel- les bons amigos que accudiram a Camoes em Mogam- bique e o trouxeram para Lisboa. i muito natural que o respeito do pocta da Laura de Anfriso por Camées lhe adviesse mais pela tradicao familiar do.que pela cri- tica litteraria. O outro facto a que allud’ os, é o moti- vo da dedicatoria: 0 .rinciy +e, Marquez de Frechilla, era tambem eta. Da sua educagito escreve Dom Antonio Caetano de Sousa: «elle for aotado de sin- gular talento com applicagdo as bellas lettras; estimou os eruditos que achavam n’elle acolhimento e amparo; as- sim teve trato com os sabios do seu tempo, amou a Poe- 208 HISTORIA DE CAMGES sia que entendeu scientificamente, e foi excellente poeta no tempo em que em Hespanha floreceram celebres en- genhos; pelo que no Certamen poetico que fez a Ordem Terceira em Madrid nas festas da Canonisagio da Rai- nha Santa Isabel, sua real descendente, foi o senhor Dom Duarte juiz do Certamen, sendo seu adjunto o in- signe Lope de Vega e Carpio como refere uma relacao desta solemnidade impressa em Barcelona no anno de 1625.» (1) E continua: «Foi insigne Poeta, e d’elle faz mengio Jodo Franco Barreto na Carta que escreveu a Cosme Ferreira de Brum, que anda no principio da sua Bibliotheca luzitana, de que o Duque de Cadaval tem uma copia...» (2) Barbosa Machado, sempre alerta para queimar incenso aos principes logo que sabiam assignar © seu nome, néo traz o nome de Dom Duarte, Marquez de Frechilla, a quem devemos, j& que as suas obras fi- caram ignoradas, a publicagdo ou antes colleccionacio das poesias de Manoel da Veiga Tagarro. Na dedicato- ria da Laura de Anfriso allude ainda ao desastre de Al- cacer Kibir: ‘Véde o campo de Aleacer matisado C’o sangue do alto pae, quando o rei santo Foi do seu doce primo acompanhado... Convida-o 4 cruzada contra Africa, talvez pela sua credulidade nas irrisorias promessas de Philippe 1. (1) Hist. geneal., t. x, p. 10. {3 Tia, 8 PARTE I.—LIV. I. CAP, VII 209 Ei prevendo qualquer desastre das armas contra as hordas africanas, escreve este terceto de sensualismo mystico, que néo pouco contribuiu para essa total der- rota que nos entregou a Castella: Oh nobre cativeiro! oh nobre ausencia! Oh prisio doce, algemas venturosos! Oh morte, de meus olhos competencia! Oh morrer por Jesus, hora de rosas, Oh riseo, onde se exalta a mesma vida! Oh milicias de amor victoriosas. Os versos de Manoel da Veiga so repassados da .imitagio de Camoées; descrevendo a batalha dos Atolei- ros, allude com alta admiracao ao auctor dos Lusiadas: O grande engenho, Homero lusitano, Que a cidade de Alcides tio famosa, Suspensa ouviu falar sobre Trajano: Aquelle que na stirpe generosa, Poz esmaltes tao ricos e perfeitos, Com partes de sciencia gloriosa: Aquelle a quem seriam muito estreitos Os cargos e excellencias, que a cadeira Vae dando em Luzitania aos sabios peitos. Entio. contava a Frota aventureira Quando o griéo Manoel, rei soberano Poz sobre o mar castellos de madeira. Canta como gemera o Oceano E encolhera seus hombros crystalinos Sentindo.o grave pezo luzitano. 210 TISTORIA DE CAMOES Entdo eanta os penhores peregrinos Que deu o grande rei 4 nossa edade.. (p. 51.) A imitagSo e conhecimento dos Lusiadas e 20 mes- mo tempo a sua dedicagiio pela casa de Braganga, fa- riam com que emprehendesse a epopéa da restaura- cio da nacionalidade portugueza, se Manoel da Veiga fosse ainda vivo em 1640. A epoca do seu nascimento, visto ter amado em.crianca Dona Margarida de Noro- nha, entéo menina, deve fixar-se pouco antes de 1550; porque, segundo Barbosa Machado, a erndita filha do Conde de Linhares nasceu em 1550, morrendo em 1636 com outenta e seis annos. Vivendo durante o jugo hespanhol em Portugal, Manoel da Veiga nio abandonou, como a maior parte dos escriptores, a lingua materna pela castelhana; elle estudava e imitava Lope de Vega, e temos a prova dian- te d’este admiravel Soneto d’esse que mereceu o titulo de Phenix das Hespanhas: : Daya sustento a um paxarillo un dia Lucinda, y por los hierros del portillo Fuesele de la jaula el paxarillo Al libre viento en que vivir solia. Con un suspiro a la ocasion tardia Tendio la mano, y no pudiendo asillo, Dixo (y de las mexillas amarillo Bolivio el clavel que entre en nieve ardia): Adonde vas por despreciar el nido, Al peligro de ligas y de balas, Y el dueiio huyes que tu pico adora? PARTE II.—LIV. I. CAP. VII 211 Oyola el paxarillo enternecido, Y a la antigua prision bolvis las alas, Que tanto puede una muger que llora. (1) Manoel da Veiga desenvolyeu este maravilhoso so- neto (Ode ty, liv. 11) como quem comprehendeu a ideia d’essa poesia inexcedivel : Ja se mostrava alegre ¢ agradecido Quando Laura chegava, E em eontraponto erguido Mil requebros formava; E co’ tenro biquinho a mio beijava. Um dia esteve Laura descuidada; E a porta destapando Da prisio animada, O passarinho brando Sahindo féra se escapou voando. De perolas chuveiro derramaram Os olhos soberanos, E 0 passaro culparam 5 Que tio cheio de enganos Tivera seus grilhdes por deshumanos : ; — Ai (diz) pequeno rouxinol ingrato, Bem digno de castigo, Pois quando assi te trato Me foges inimigo, Sem cuidar em teu damno e em teu perigo! Nao te lembras, cruel, que em prado ameno Dos lagos te livrei? Mas eu, que te condemno, Vingada me verei, Quando provares rigorosa lei. cose? Soneto ctxxuu, na Hermosura de Angelica. Barcelona, 1605. 49—Tomo 11. 212 HISTORIA DE CAMOES Nio era isto priséo acerba e dura Leito de ebano e louro, De prata a cobertura, Canas vestidas de ouro Esteios de marfim, rico thesouro. Com minha bocea, ingrato, te partia Os manjares dobrados, E quando te ouvia Viviam meus cuidados S6 de teu doce canto acompanhados. Vae-te, vae-te, cruel, ao verde prado, Que o cagador te espera Por te vér enlagado; Ai! olhos, quem pudera Vér perto este inimigo em prisio fera! — Estes queixumes Laura ao vento dava; * FE, o passaro escutando A prisio se tornava Doce, amoroso e brando: Ai quanto pode uma mulher chorando! (p. 138.) A imitacao de Lope de Vega explica-nos as exage- radas metaphoras usadas por Manoel da Veiga ; na poe- sia de quinhentos havia mais castidade, porque estava- mos sob o dominio dos poetas italianos. Em Manoel da Veiga sente-se outra vez a influencia hespanhola, e é por elle que comeca entre nds 0 cultismo. XN CAPITULO VIII Balthazar de Brito e Andrade (Frei Bernardo de Brito) ea «Sylvia de Lisardo» O homem e 0 livro; como a critica se funda n’esta mutua rela- gao.—A quem se deve attribuir o livro anonymo da Sylvia de Lisardo.— Argumento tirado da data do nascimento de Frei Bernardo de Brito.-—-O poeta alardéa a sua formosura, € como era requerido das damas.— A sua erudig&o preciosa influe no caracter do amor de Sylvia.—Entra aos dezeseis annos para o mosteiro de Alcobgga, e frequenta em seguida a Universidade de Coimbra.—k desprezado por Sylvia, e professa na ordem cisterciense.— Critica de Dom Francisco Manoel de Mello aos seus versos no Hospital das letras. — Imitagdes de Camdes nos Sonetos e nas Eclogas da Sylvia de Lisardo.— Durante os estudos de Coimbra recolhe a tradi- g&o dos amores de Christovam Falcdo, e compde uma segunda parte da Ecloga Crisfal. —Influencia do apparecimento das obras de Gregorio Silvestre sobre a chamada Eschola velha portugueza.— Frei Bernardo de Brito vae 4 Italia. — Influen- cia das obras historicas de Anio de Viterbo sobre a feig&o his- torica de Frei Bernardo de Brito.—A falsificagao da poesia portugueza no © culo xv. Quem conhecer Frei Bernardod rit unicamente pelas duas historias da Monarchia Lusitana e Chronica de Cistér, suppoe que elle forjou documentos e authori- dades com o intuito perfido de um Higuera ou Lousada; quando se descobre que elle é o auctor d’essa colleccéo lyrica intitulada Sylvia de Lisardo, convence-se de que scb a capa do pezado chronista bernardo havia uma forte organisagao poetica, uma credulidade ingenua, que o levava a julgar-se amado de todas as danas, typo da bel- leza plastica, casuista de collisses amorosas e rival de 214 _HISTORIA DE CAMOES Petrarcha em poesia. A Sylvia de Lisardo é a parte hu- mana e viva de Frei Bernardo de Brito, a luz do seu caracter de uma sincera vaidade; é ella que o torna sym- pathico apesar de todos os defeitos que descobre. Tendo corrido anonyma até meado do seculo xvu, a Sylvia de Lisardo nunca foi estudada, e muito menos se viu n’ella esse espirito da eschola camoniana da ultima phase dos quinhentistas; apesar dos poucos vestigios historicos d’esse livro, as suas relagdes intimas com’o escriptor co- nhecido sémente pela credulidade beatifiea, despertam um interesse, que nunca poderia ser attingido pela critica abstracta dos canones da arte. O ponto de vista etlimico leva-nos a resultados mais curiosos e sepuros. Segundo todos os biographos, nasceu Frei Bernardo de Brito na villa de Almeida da provincia da Beira, a 20 de Agosto de 1569; (1) no Soneto xr da Sylvia de Lisardo, vem uma rubrica que néo sé authentica esta data, mas serve de poderoso argumento para descobrir o zuctor anonymo d’esse livro. Diz a rubrica: «Em que ' Lisardo mostra ser no mez de Agosto, tempo do seu nas- cimento, ¢ 0 em que se affeigoow a Sylvia: No tempo em que o sol na mér altura Deixa j4 de Ledo o signo horrendo, E n’outro brando clima discorrendo Tem no signo de Virgem outra brandura; (1) Frei Fortunato de S. Boaventura, seguindo palavras de Brito, fixa o nascimento em 13 de Septembro de 1568. Hist. de Alcobaga, p. 187. PARTE H.—LIV. I. CAP. VIII 215 Nasci en tio mimoso da ventura Quanto nado péde ser outrem nascendo, FE: depois pelo tempo indo crescendo, Nunea senti a sorte adversa e dura. (p. 16. ) Quem vé o retrato de Frei Bernardo de Brito, que anda junto 4 Chronica de Cistér, debaixo da disformidade da tonsura ainda descobre um nariz aquilino e varonil, _@ sob o habito uma estatura esbelta e forte, que a vida do claustro tornou de uma gravidade abbacial. Quando adolescente e attrahido pelos amores do seculo, elle era © primeiro a reconhecer a sua propria formosura: Houve um Pastor do Tejo, a quem ventura Fez em perfeigdes d'alma tao ditoso, Que duvido se achasse formosura Em rosto, que o fosse mais formoso; Mas como estes brincos sio pintura Sugeita ds leis do tempo rigoroso, Ficaram n’elle 86 tendo a palma As summas perfeigées fundadas n’alma. (p. 64.) Diz Barbosa: «Teve agradavel presenca, corpo bent organisad6, complei¢ao robusta, conversacao affavel.» (1) Tapaz bonito, as emogées do amor reduziam-se 4 divisa de Cesar. Na Ecloga 11, em que pinta os poeticos ex- tremos que fazia para abrandar a amante conhecida com o nome poetico de Sylvia, descuida-se da sua melancholia pastoril, e é a propria amante que se Ihe « confessa ren- dida: (1) Bibl. Luz., t. 1, p. 523. 216 HISTORIA DE CAMOES Cessa Lisardo ja de estar queixoso (Lhe disse a bella Sylvia) que essas dores Amansaram um tigre furioso. E se nao féra ver que os amadores De agora dao fé sem fundamento, Mil esperangas déra a teus amores. Que nas prendas do teu ‘merecimento Tivera as minhas eu tio bem fundadas Quanto me ensina cd o entendimento. Mas no é novo em ti seres-me acceito Que quando eu nasci, j4 minha sorte Tinha este contrato entre si feito. (p. 59.) Depois que Brito deixou o seculo para aproveitar os seus talentos na rica Ordem dos bernardos, ainda debaixo do habito sabiam descubrir n’elle o galante poeta a quem provocavam debalde as damas; isto nos diz Brito na rubrica do Romance: «Mudando Lisardo a vida e trajo por desfavor de Sylvia, e querendo uma dama ter amores com elle...» (p. 119.) Estes enlevos de Adonis bastam para nos revelar o ideal dos seus amores e a in- spiragio calculada da Sylvia de Lisardo; ha ali tristezas, desenganos, frias inconstancias, mas néo ser isto affe- ctacaio do homem bonito que se quer mostrar poeta pelo soffrimento? Diz-nos o poeta que comegou a amar Sylvia em egual dia de Agosto, em que fora o seu nascimento; os signos de Leo e Virgo, que dominavam a 20 d’esse mez, sio assim interpretados propheticamente: * PARTE IL—LIV. I. CAP. VIII 217 E n’outra conjuncgio mui semelhante Teixei de Ledo fero a liberdade, A vista d’outro clima e nova estrella. Vi de Sylvia o angelico semblante, Rendeu-me a fortaleza da vontade, Que entre os signos n&o ha Virgem mais bella. a Assim como a preoccupaedo da propria formosura o enlevava mais do que o sentimento do amor, este mes- mo sentimento servia-lhe para dar largas a uma certa vaidade ingenua, no Soneto: «Hm que compara Sylvia com madame Laura, amiga do Petrarcha: Oh! venturosa Laura, pois na vida Foste do teu Petrarcha tio amada, E agora mais ditosa sepultada, Pois no sepulchro estas engrandecida : E pois que a lei da morte tens vencida, Por ser na branda lyra celebrada, Sylvia sera na minha t&o cantada Que seja em vida e morte conhecida. E aquillo que na rima delcitosa Excede teu amante a meu engenho, Egual a perfeicdéo em que me atrevo; Pois tanto chega Sylvia em ser formosa Que encobre qualquer falta que em mim tenho, E me faz seu Petrarcha no que escrevo. (p. 8.) Camées na simplicidade do genio dizia com uma nobre aspiracdo: «F'éra eu outro Petrarcha ou Garci- lasso...» Mas esta vaidade poetica de Brito explica-se por um desculpavel pedantismo de crianga, que elle 218 ' HISTORIA DE CAMOES , authentica no seguinte facto que escreveu de si: «Nao passando de doze annos, (1581) me affrontava vér todas as nagdes da Europa engrandecidas com a multidaéo de historiadores que celebraram suas cousas, sem no meio de todas ellas achar uma pequena relacdo das de Portu- gal... E como n’aquella tenra edade me nao sahissem das mios livros de historias, e me levasse a inclinacdo natural a buscar cousas antigas, ia-se-me accrescentando com os annos uma vontade entranhavel de vér algum portuguez a quem o conhecimento d’esta falta désse animo para emprehender a composigio de uma historia geral de sua patria: nao deixando de assentar commigo, que se o tempo e occasiaéo me favorecessem, suppriria 4 custa do meu trabalho a divida d’este desejo.» (1) Quando Brito se embalava com estas esperancas, morreu sua mde Maria de Brito e Andrade e como seu pae se achava servindo como capitéo nas guerras de Flandres, mandou ir o filho para junto de si; Pedro Cardoso de Andrade nao o podendo trazer comsigo na campanha, mandou-o para Roma, para ali receber a pri- meira educacao. Mas a nostalgia apertavaa pobre crianga, eo joven Balthazar, obedecendo 4 fatalidade que o cha- mava para bernardo, fugiu para Portugal sem o pae saber; e, contra todos os planos formados Acerca da sua educagao e futuro social, professou na Ordem de Cister, antes que chegasse a Flandres a noticia da evasio. Em (1) Monarchia Luz. Prol. PARTE II.—LIV. I. CAP. VIII 219 1585, quando contava dezeseis ou dezescte annos, (1) fez votos em Alcobaca, indo mais tarde frequentar a Universidade de Coimbra. Frei Fortunato de Sio Boa- ventura, que admirava este chronista, ndo queria que elle fosse o auctor da Sylvia de Lisardo, para nio com- prometter a gravidade monachal; mas apezar de tudo escreve: «Compoz com boa elegancia algumas obras em verso que eu vi impressas, em oitavas.» Professando Brito em 1585, segue-se que os seus amores cantados * na Sylvia de Lisardo se continuaram no claustro. Foi por isso que Frei Fortunato de Sao Boaventura coutra- dictou Faria e Sousa, que lhe attribue esse livro (2): «Perdoe-me o historiador critico Manoel de Faria e Sou- sa, ja sufficientemente desmentido em cousas que melhor cabiam na sua alcada, do que esta que tratamos. Quanto eu pude alcangar nas indagagocs que fiz sobre a genui- nidade d’esta obra, digo e diret sempre que Frei Bernardo de Brito ndo he o seu auctor; pois que elle cortando na fldr dos annos pelas mais lisongeiras esperangas do mundo para se enterrar nos claustros de Alcobaga. . . mandasse publicar versos amatorios por mais honestos que fossem ou parecessem a Manoel de Faria e Sousa.— Nem admittirei o subterfugio de ser obra dos seus primeiros annos, pois o Lisardo que se imagina ser Frei Bernardo de Brito nasceu em Septembro de 1568 como deixamos provado pelo seu proprio testemunho: logo Frei Ber- (1) A morte de seu pas foi a 17 de Agosto de 1585. (2) Comm. da I Cent. dos Sonet., 14 e 32. 220 HISTORIA DE CAMOES nardo de Brito nao ¢ 0 auctor da Sylvia.» (1) Como na rubrica do Soneto xt existe o fio que descobre o ano- nymo namorado, Frei Bernardo de Brito recorreu ao expediente de se fazer mais velho um anno; elle pen- teava-se para ser bispo, e servia-lhe o declarar que nas- cera em 1568 e néo em 1569 para desarmar os outros ambiciosos que lhe barravam o caminho com a Sylvia de Lisardo ou com o pretexto da sua pouca edade, A publicacao da Sylvia tinha sido feita em Lisboa em 1597 por Alexandre Sequeira (2); nas suas pertengdes 4 mi- tra, Brito contaria apenas trinta annos. Philippe 11 reco- nhecia-lhe os seus talentos, e para consolal-o mandou que Frei Bernardo de Brito continuasse a Afonarchia * Lusitana, por Carta de 8 de Abril de 1597. Mas sigamos a mocidade poetica do erotico Lisardo. Em 1589 seguiu as licdes de philosophia no mosteiro de Tarouca, fazendo em 1591 uma viagem a Madrid para dedicar a Philippe 1 uma Monarchia gentilica, Frequen- tando a Universidade de Coimbra, ali na boa soltura escholar continuou ainda celebrando a sua Sylvia de olhos verdes, apezar das dogmaticas explanagées de seu mestre Frei Francisco Carreiro: Ser vossa minha lyra no o nego, . Pois emquanto cantou, vés a guiates Ora, cantando o Tejo, ora o Mondego. (p. 2.) (1) Hist. chronol. e crit. da Abbadia de Alcobaga, p. 137. N’esta impugnacio nao se refuta a aflirmacao positiva de Dom Francisco Manoel. (2) Destroe completamente a antiga hypothese de ser Pau- lo Craesbeck o auctor da Sylvia. PARTE II.—-LIV. I. CAP. VIII 221 Foi n’esta ausencia para Coimbra, em 1593, que Sylvia comprehendeu o pensamento que o levava, e des- peitada mandou-lhe um cordio de cabello com uma medalha de ouro, que apresentava de um lado o re- trato d’ella e do outro a imagem de uma caveira: «Es- tando Lisardo ausente, lhe mandou Sylvia um cordéo de cabello, e n’elle uma memoria de our, com uma caveira e um rosto de Dama esmaltados, ao que fez 0 seguinte ro- mance: Por donde el claro Mondego Con dulce corriente baxa _ Esté el ausente Lisardo Mirando unas prendas caras... En un cordon de cabellos Una memoria enlazada, Porque memoria, de ausente En lazos muere colgada. Y¥ en ella de color negro Una muerte figurada, ~ Que por ser muerte en memoria Publica muerta esperanza. Bien te puziste, Sefiora, Junto a la muerte pintada... (p. 104.) & depois d’esta peripecia, que o poeta comegou a lamentar o desastre dos seus amores, j4 encarecendo a sua insuperavel firmeza, jé exprobando a leviandade de Sylvia, por nao ter sabido resistir a uma ausencia. Mas a verdade é que 4 namorada nada mais tinha a esperar d’esse mancebo garboso, que entrara para o convento de Alcobaga e depois fora estudar humanidades e Theologia para 0 Collegio dos bernardos de Coiinbra. A lembranga 222 HISTORIA DE‘CAMOES do cabello e da caveira que Ihe mandou, accusa o des- peito de Sylvia; mas o Soneto sobre o thema dos Psal- mos penitenciaes, que ella Ihe pediu, foi um intelligente disfructe. Na sua sinceridade o pocta escreveu o Soneto: «Que Sylvia mandou fazer para cantar sobre a materia do Psalmo: Super flumina.» (p. 41.) Serviu-se do thema para exprimir a sua saudade, inas ficou irremediavel- mente perdido para a mulher que se riu d’elle. N’este Soneto descobre algumas reminiscencias de Camées, no verso dos Lusiadas das maes que aos peitos apertaram os filhos : , Mil saudosos ais os velhos davam, As mies os filhos ofham lastimosas, Que nos maternos bragos sustentavam. E, como de algumi dano temerosas, Seus rostos c’os dos filhos ajuntavam, Mil palavras dizendo saudosas. Até no amor Brito se tornouerudito, sendo consul- tado na sua difficil casuistica. O Soneto xiv « Que uma Dama pouco affeigoada a cousas de amor mandou a Li- sardo» perguntava : Lisardo, pois de amor sois secretario E vos fez n’esta empreza seu privado, Dizei-me: que 6 Amor e seu cuidado, Porque entre nés é tido por cossario? (p. 19.) O Soneto xvi encerra a «Pergunta de umas Damas a Lisardo sobre a causa dos seus amores,» (p. 21) a que PARTE II.—LIV. I. CAP. VUI 223 elle responde com certas distincdes de um fundo mora~ lista. Na Ecloga ut declara Brito mais francamente este seu conhecimento pratico do amor: E como dos Pastores conhecido Fosse por grande mestre em mal de amores, Quando d’elles se via algum perdido Com elle consultava suas déres. (p. 65.) Em consequencia do despreso de Sylvia, o poeta se- guiu o impulso egoista da commodidade claustral ; fez-se um erudito, um chronista, com os vislumbres dos annos de poeta. No romance que traz a rubrica: «Afudando Lisardo a vida e trajo por desfavor de Sylvia» se conhece que o poeta abracou a vida monastica: Estava el pastor Lisardo Diziendo contra el amor Y los trajes de soldado: Toma tus galas tyranno - Los eontentos que ‘ne diste En mis triumphos passados, No los sufre ed trage humilde Y el sayal que agora traygo. Las plumas verdes y blaneas E el sombrero bolcado, Es trocado en esperanca Y¥ en capilla de tabardo... Vivo contente em sayales No quiero bienes passados. (p. 116.) A prova de que Lisardo, que vivia contente em sayales é Frei Bernardo de Brito, encontra-se em Dom 204 HISTORIA DE CAMOES Francisco Manoel de Mello, que se queixa de vér que os livreiros encadernavam a Sylvia junto com as Obras de Camées. No Hospital das Lettras, escripto em 1657, traz 0 seguinte curioso dialogo: «Zipsio: Se the dée alguma cousa de novo ao Senhor Luiz de Camées? porque sob pena de nossas vidas havemos de pro- curar sua saade. Author: Sim, senhor; tem uma formosa dér da ilharga. Lipsio: Qual? Author: Que com pouca consciencia se atreveram alguns livreiros malvados a encadernar suas Obras junto com a Sylvia de Lisardo. Bocalino: Com a Sylvia de Lisardo? Nao, isso requere cas- tigo e emenda. Lipsio: Que Sylvia ou sylva ou selva (1) he essa que nao estd no meu mappa, nem nas taboas de Claudio Ptolomeu! Bocatino: Sio certas obrasinhas de um Poeta nosso, cousa no mundo muito escusada. . Author: Comtudo se affirma que era homem douto e religioso. Bocalino: Jurara-o eu, porque nunca vi Frade bom Poets.» (2) E criticando o uso dos nomes arcadicos tomados pelos poetas, continua: «Lipsio: Moderai-vos n’essa censura, porque @ invengio é uma nobre parte do talento das pessoas, e se em alguma cou- fa se admittem justamente figuras, disfarces, tropos e symbo- los, he na materia dos livros. Assim vémos, que Lope de Vega se chama Belardo em muitas obras suas; Frei Gabriel Telles Tirso de Molina, e Frei Bernardo de Brito, Lisardo, quando Poeta;» ete. (8) . —« Quem mais lhe faz companhia n'este tomo a Camdes & Francisco de Sd, e essa outra meretrix da Sylvia de Li- sardo? » (4) (1) Allus&o ridicula a Sylvio Silves de la Selva. (2) Hospital das Lettras, p. 308. (8) Ibid., p. 897. (4) Ibid., p. 314. ~ PARTE II.—LIV. I. CAP. VIII 225 Manoel de Faria e Sousa, no Commentario ds Rimas de Camoes, (Cent. 1, Son. 14 a 32) attribue tambem a Sylvia de Lisardo a Frei Bernardo de Brito, explicando a, rasio porque este livro correu sempre anonymo: ¢en Portugal saben los Religiosos huyr de nombrar-se en es- critos agenos de sus institutos, por mas que sean tan honestos como aquel. . .» Tanto pelas phrases satyricas de D. Francisco Ma- noel de Mello, como pela approximacao que faz Manoel ’ de Faria e Sousa, o auctor da Sylvia de Lisardo imitou o lyrismo camoniano; além do tom geral das suas com- posigdes, um grande numero de versos resalta d’esses Sonetos e Eclogas como centées tirados da Rimas de Ca- moes. O Soneto cLxi1 publicado sobre os ineditos de Dom Antonio Alvares da Cunha, em 1668, e com- posto em castelhano, apparece vertido em portuguez e com liberrimas variantes no Soneto xxvi da Sylvia de Lisardo. Approximando estas duas pecas lyricas é que se comprehende o processo dos imitadores de Camées. O Soneto de Camées tem o artificio provencalesco do lezapren, que o seu imitador conseryou: Por gloria tuve un tiempo el ser perdido; Perdiame de puro bien ganado; Gané cuando perdi ser libertado; Libre agora me veo, mas vencido. Venci cuando de Nise fui rendido; Kendime por no ser della dejado; Dejome en la memoria el bien pasado; Paso agora a lorar lo que he servido, 226 HISTORIA DE CAMOES Servia al premio de la luz que amaba; Amandola esperdbale por cierto, Incierto me salio cuanto esperaba. La esperanga se queda en desconcierto ; El concierto en el mal que no pensaba; El pensamiento con un fin incierto. Na Sylvia de Lisardo, no Soneto xxvir «Em gue se queiza do mdo galarddéo com que amor satisfazia seu cuidado» traduz Frei Bernardo de -Brito 0 Soneto de Camées pela seguinte forma : Gloria me foi um tempo ser perdido, Perda notavel fora ser ganhado, Ganhei, quando perdi, ser libertado ; Livre me vejo agora mais vencido. Venct quando de Sylvia fui rendido, Rendi-me por nio ser d’ella deixado, Deixou-me na memoria o bem passado ; Passada gloria foi tel-a servido. Servi-a, porque o bem que n’ella amara, Amor me prommetteu galardao certo, E incerto me saiu quanto esperava. A esperanga fica em desconcerto, O concerto no mal que nao cuidava, E 0 cuédado n’um fim triste e incerto, O Soneto xiv de Camées, publicado pela primeira vez em 1595, e recolhido tambem no Manuscripto de Luiz Franco, apparece desenvolvido na Ecloga 11 de Frei Bernardo de Brito. Os dois versos: PARTE I.—LIV. I. CAP. VOL 227 Todo o animal da calma repousava, S6 Liso o ardor d’ella nado sentia; ete. acham-se quasi textualmente em Brito: Peto ardor do sol, que ja tocava O ponto principal do meio dia, Todo o animal da calma repousava. S6 Lisardo, que tinha nos sentidos Outro ardor maior e mais fervente, Nao sentia os do sol embravecidos. (p. 54.) N’esta mesma Hcloga m intermeam-se os versos dos Lusiadas: Tem, Sylvia, d’estes males piedade Ou me desterra lé na Lybia ardente, Onde morra por ti de saudade. (p. 58.) Assim ‘como Camées, impressionado pela tradigio do Crisfal, imitou essa Ecloga nos seus versos e a citou nas suas Cartas, tambem Frei Bernardo de Brito se lembrou de equiparar o desastre do seu amor a0 de Chris- tovam Falcéo, e com todo o artificio de um bom rheto- rico inyentou uma Segunda parte em continuacao do Crisfal. Sob a rubrica: «Sonho de Lisardo, que é quasi como a Segunda parte de Crisfal» comega confundindo 0 artificioso endecasyllabo italiano com a ingenua redon- dilha peninsular: 228 HISTORIA DE CAMOES Férga-me a lei do amor, oh Sylvia ingrata, A dizer que me mata um pensamento, Que como o leve vento esti fundado, Traz-me o gosto sudado e pervertido: etc. (p. 72.) Brito refere-se 4.tradigio de Christovam Faledo re- cebida na sua infancia, e por algumas particularidades dessa Segunda parte se corroboram os factos principaes da vida d’esse desgracado poeta: Inclinae pois o rosto, 6 Sylvia fera, Vereis de quem espera um cago raro, Que vi patente e claro n’esta edade, E tende-o por verdade, que nao minto Mas como aqui 0 pinto passou certo... (p. 73.) Brito imita o sentimento de Crisfal com uma certa naturalidade, fingindo que este Ihe apparece na fonte em que as suas lagrimas o transformaram, e aonde soffria 4 espera, de que apparecesse um outro pastor que por maior soffrimento 0 substituisse n’esse fadario. Na bocca de Crisfal colloca Brito estrophes, que ajudam a expli- car a vida do amante de Maria: Mudou-me assento de uns valles Que vdo nas serras de Lor, Onde encerrou minha dor A causa de tantos males, Quantos soffri por amor. 'Trocou-me 0 bem que esperava Em cruel encerramento, Metteu-se em certo Convento: PARTE I.—LIV. L. CAP, VIIT 229 E a mim que ao vento gritava Deixou-me gritar ao vento. E depois que me chegou A perder vida e sentido, Escolheu outro marido Que n’ella o premio gosou De meu amor merecido. (p. 79.) ¥ se nas serras de Lor Vam signaes de tuas déres, Quero que entre os amadores Se saiba que minha dér Teve fim em Val de Flores. Em fim que siga esta via De te vencer em tristura, Como Sylvia em formosura Excede a tua Maria E toda mais criatura. (1) No estudo da Hschola hispano-italica reconstruimos pela primeira vez a vida de Christovam Falcaio (2); mais tarde viemos a encontrar a Ecloga do Crisfal na rarissima edicdo de folha volante do seculo. xvi, ¢ ahi achamos uma strophe supprimida em todas as edigoes, porque revelava indiscretamente os lagos intimos que prendiam o oeta a D, Maria Bran = : Muitos pastores buscaram, Mas um pastor por ser-te amigo, E outro por ser-te inimigo Um e outro se escusaram ; E dam-lhe logo commigo Gado que farao mil queijos; (1) Pag. 86. Na ed. do Crisfal, de 1871, ajuntdmos esta Segunda parte de Brito, de p. 33 a 40. (2) Bernardim Ribeiro e os Bucolistas, p. 140 a 178. 230 HISTORIA. DE CAMOES , Mas o com que se despediram E jd mostrar que temiam Que o sabor dos teus beijos Na minha bocca achariam. (1) A época da morte de Christovam Falcio convinha ser determinada aqui, para exp icar o vigor da tradicéo dos seus amores recebida por Frei Bernardo de Brito. No estudo sobre a sua vida tinhamos fixado esta data em 24 de Maio de 1550, em Evora, contra o que diz Aldo de Mor:es, que o dava morto na India; a causa deste erro encontra-se no manuscripto da Bibliotheca de Evora, intitulado: Livro dos defuntos; assentos que se acharam na Misericordia de Hvora-cidarle, julho de 1547 e acabou-os em 1556. Lé-se ahi-nos primeiros assentos: «Em 24 de mayo de 1550 f. Christovam Faledo.» O snr. Joao de Sousa Amado, em carta de 10 de Ju- Iho de 1872 dirigida ao sur. José Maria Antonio Noguei- Ta, que o encarregara da investigacdo d’este ponto nos cartorios de Evora, escreve: «fiz vasculhar os cartapacios da Misericordia, e com alguma difficuldade consegui achar o livro d’onde no seculo passado alguem tirou o tal extracto ou collecgao de Apontamentos que existem na Bibliotheca. Examinado por um paleographo o re- spectivo assento, conheceu-se evidentemente que tiuha havido engano da parte do auctor dos alludidos apon- tamentos, porque quem foi enterrado pela Misericordia ) Para a comparacko das differentes edigdes de Crisfal, vid. Bibliographia critica, p. 88, no breve estudo de F. Adol- pho Coelho, PARTE II,—LIV. I. CAP. VIIT 231 em 24 de Maio de 1550 nao foi Christovam Falcéo, mas sim uma irma de algnem d’essa nome... Mas remon- tando 4 fonte primitiva, O Livro dos defuntos da Miseri- cordia, vé-se que o velho manuscripto da Bibliotheca esté errado. Mando a nota extrahida do Livro dos defun- tos, pelo empregado paleographo: «FL. 106 v. com relagéo ao anno de 1550: ~— A 24 do mez de Maio enterrou a Misericordia hua irma de Christovam Faledo.» Esta irma de Christovam Fuleéo era D. Brites de Sousa, mulher de Antonio Vaz Mergulhao; portanto a lenda de ter o poeta morrido na India, toma novos visos de verdade. O filho bastardo do .0eta Christovam Fal- cao de Sousa, foi governador da Ith: da Madeir' por patente de 20 de Abril de 1600 e serviu até 14 de Agosto de 1603; (1 por esta via nos parece ter chegado ao co- nhecimen o de Frei Bernardo de Brito a dolorosa tradi- cao de Crisfal. : A imitagio e continuagiio da Ecloga Crisfal foi uma consequencia da estima que os versos de redondilha tor- nuram a adquirir entre os poetas da eschola italiana no fim do seculo xv1. Duas causas podemos attribuir a esta passageira renovagio da Eschola velha; de uma parte, as relagdes immediatas com a poesia castelhana em con- sequencia do dominio de Philippe 1 em Portugal, o uso frequente da forma de romance culto, as bajulagées (1) ‘asado Giraldes Donatarios, Governadores, etc. da Madeira; mappa impresso em Paris. 232 HISTORIA DE CAMOES metricas aos magnates influentes na cdrte de Madrid; por outro lado, o apparecimento das obras do portuguez Gregorio Silvestre, que esgotou grande parte da sua actividade para restabelecer 0 predominio dos versos de redondilha. Como o apparecimento das suas obras se deu em 1592, importa deixar accentuada aqui a influen- cia que exerceu, recopilando as interessantes noticias da sua vida publicadas nas Memorias y Documentos ineditos para la Historia de Espatia, Inimigo da Eschola italiana fundada por Garcilasso e Boscan, Gregorio Silvestre foi mais tarde um dos seus principaes propugnadores. Nasceu em Lisboa em 1520, segundo se conjectura, nos ultimos dias do anno, por occasido de seus paes chegarem de Zafra, aonde residiam, a Lisboa; seu pae Joio Rodrigues féra chamado para medico do rei, demorando-se n’este servigo em Portu- gal até 1527; n’este anno effectuou-se o casamento da infante D. Isabel com Carlos v, e Juan Rodrigues acompanhou-a como seu medico, levando Gregorio Sil- vestre ja sete annos de edade. Carlos v deu foro de fi- dalguia para Rodrigues e seus descendentes. Em 1534, entrou Gregorio Silvestre ao servico do Conde de Feria, em cuja casa se guardavam os mais preciosos monumen- tos da Litteratura hespanhola antiga, e ai teve occasiiio de estudar Garci Sanches de Badajoz e de se apaixo- nar pela velha poetica castelhana, O Conded Feria ea tio de Garcilasso, e talvez incitasse Gregorio Silvestre contra as inovacdes do sobrinho. Gregorio entregou-se de preferencia 4 musica de tecla, e sé aos vinte e oito PARTE II.—LIV. I. CAP. VIII 233 annos de edade é que se deu a conhecer como poeta, em 1548. Foi entao que elle se decidiu abertamente contra a eschola italiana, sem duvida pela tradigdo auctoritaria recebida em casa do Conde de’ Feria. O modo como elle condemna os metros italianos vé-se claro na Audiencia de Amor: Unas coplas muy cansadas con muchos pies arrastrando, & lo toscano imitadas, entré un amador cantando enojosas y pesadas. Cada pié con diez corcobas y de peso doce arrobas trovadas al tiempo viejo: Dios perdone a Castillejo que bien habl6 estas trovas. Dijo Amor: — Donde se aprende este metro tem prolijo que las orejas ofende? por este metro se dijo algarabia de aliende. EI subjecto frio y duro, y el estylo tan eseuro + que la dama en quien se emplea duda, por sabia que sea, si és requiebro 6 si és conjuro. Ved si la invencion és basta; pues Garcilasso y Boscan Jas plumas puestas por asta cada uno es un Roldan; y con esto no le basta. ‘Yo no alcanzo qual engafio te hizo para tu dafio - eon locura y desvario meter en mi seijorio moneda de reino estragio. 234 HISTORIA DE CAMOES Con duenas y con doncellas, dijo Venus, que pretende quien le dice sus querellas en lenguaje que no entiende : el, ni yo, ni vos, ni ellas? Sentencio al que tal hiciere que la dama por quien muere, le tenga por cascabel, y que haga bwila del y de cuanto le eseribiere. « Em volta de Gregorio Silvestre agruparam-se os poetas que reagiam contra a eschola italiana; Castillejos era o mais terrivel; Diego Hurtado de Mendoza, que vivia em 1548 em Granada, 20 passo que escrevia nos metros italianos, ridicularisava a innovacgio. Gregorio Silvestre querendo distinguir a differenga que havia en- tre o endecasyllabo italiano e o verso peninsular em endechas, usado por Mena, descobriu que os primeiros se podiam medir por ambos e comecou a poetar n’elles. Foi assim que adoptou as formas do Soneto, Terceto e Outavas, A conversao litteraria de Gregorio Silvestre terminou as pendencias da Eschola velha extincta pela indifferencga. Em 1581, na dedicatoria dos Triumfos de Petrarcha de Hernando de Hoces, traduzidos em terce- tos, se 16: «Despues que Garcillasso de 1a Vega y Juan Boscan trajeron 4 nuestra lengua la medida del verso tos- cano, han perdido con muchos tanto credito todas las cosas hechas 6 traducidas en cualquier genero de verso de los que antes en Espafia se usaban, que ya casi nin- guno las quiere ver, siendo algunas, como es notorio, de mucho precio.» ~ PARTE IL.—LIV. IL. CAP. VII 235 Grevorio Silvestre morreu em 1570, pouco depois da revolta de Granada, com um typho (calentura pes- tilencial) e bem assim um dos seus filhos mais velhos. Pedro de Caceres, que escreveu a stia biographia, diz que em 1592, ainda viviam o filho mais mogo e duas filhas, uma admittida na Corona de Aguilon por causa do seu talento no orgio, e outra com sua mae em Ca- diz d’onde era natural. Teve Gregorio Silvestre relacdes com Luiz Berrio, Dom Diego de Mendoza, Dom Fer- nando de Acuiia, Gaspar de Baeza, Juan Latino, Pe-- dro de Padilla, Luiz de Castilha, Luiz Barahona de Souto, José Fajardo, Juan Mexia de Ja Cerda e Ma- cias Bravo. Gregorio Silvestre fot organista da cathedral de Toledo, para onde entrou com o encargo de escrever por anno nove entremezes, e muitas cangonetas e es~ trophes. Os seus antecessores na cathedral de Granada Pedro de la Mota, Licenciado Jimenes e Luiz Hurtado, de Toledo, tambem tiveram egual obrigacao. Imprimiram-lhe em Lisboa as Obras, com o titulo: «Las Obras del famoso poeta Gregorio Silvestre, Recopt- ladas y corrigidas por diligencia de sus herederos y de Pe- dro de Caceres y Lespinosa. Lisboa, por Miguel de Lira, 1592. Na dedicatoria ao arcebispo de Granada feita pela viuva de Gregorio Silvestre, Joanna de Cazorla y Pa~ lencia, se Jé: «y dile 4 corregir (el libro) al hombre mas amigo que Silvestre tuvo en vida, y de quien el adevi- naba grandes cosas en esta facultad, para que corre- gido de sn mano se pudesse Hamar hijo de quien és.» 11—Toxo 11. 236 HISTORIA DE CAMOES O revisor foi Pedro Lainez, pelo que se 18 na Appro- vagio: «Estas obras de Gregorio Silvestre he visto y passado con attencion, y apartado d’ellas las que van sefialddas por desiguales de otras, las demas me parecien dignas de salir 4 la Inz...» As Obras de Gregorio Sil- vestre exerceram evidentemente influencia sobre o ge- nio imitador de Frei Bernardo de Brito. (1) Reprodu- zindo com intelligencia o espirito camoniano, 6 para admirar como chegou a imitar a graga ingenua das re- dondilhas. A contrafaccio do Crisfal feita por Frei Bernardo de Brito, por isso que andava anonyma na Syleia de Lisardo, foi encorporada pelos livreiros do seculo XVI como constituindo uma segunda parte authentica d’essa maravilhosa Ecloga. Por essa contrafaccdo se nos re- vela o espirito de falsificacio usado na poesia portugue- za do fim do seculo xvi; Sd de Miranda, Ferreira e Camées versificaram algumas vezes no estylo antigo, e & medida que a imitacio' foi prevalecendo na eschola quinhentista, fabricaram-se monumentos poéticos e lit- - terarios que tém vindo até nés como authenticos. Nio empregaria Brito os seus talentos poeticos da Sylvia de Lisardo, westa innocente falsificaciio? Existe um poe- meto anonymo em vinte quatro outavas Sobre o despojo (1) No Hospital das Leftras, p. 846, escreve D. Francisco - Manoel: «quem segue?— Gregorio Silvestre, que ji de velho nao pode piar. Va-se com os mais este cadimo aos entrevados, e vamos nés adiante, adiante.—Como adiante? adiante de Gregorio Silvestre parece nao fica j4 sendo nosso pae Addo!» PARTE II.—LIV. I. CAP. VII 287 de Arzila, dia de S. Bartholomeu, em 24 de Agosto do anno de 1549, publicado pela primeira vez pelo editor Caminha; (1) as outavas foram moldadas no rythmo usa- do por Juan de Mena nas suas Trezentas, se 6 que a mes- ma mio no foi a que escreveu as quatro estrophes que se intitulam da Perda de Hespanha; eis wma estrophe, para que se conhega o seu caracter affectado e falso: . Quem a meu pranto dard companhia, Que fez a meus olhos de lagrimas fontes, Pera de novo chorar polos montes Que a filha de Jove mil aunos carpia: Arzilla mui chea de savalleria Que a Méros e Africa fez tao crua guerra, Soo jaz agoora desfeita per terra Deixada per medo a quem a temia. Cumpre notar que este poemeto néo se deve julgar como obra do proprio editor Caminha, como de ordina- rio se cré; porque no Ms. D-4~7 da Bibliotheca de Lisboa, junto com os papeis de Frei Joaquim de Foyos, recolhidos pelo desembargador Antonio Ribeiro dos Santos, anda copiado com algumas variantes. Ne- - nhum d’estes escriptores era capaz de uma falsificagdo e muito menos de ludibriarem o.sincero editor Cami- nha, A época em que nos apparece uma corrente de falsificacio de monumentos poeticos é no fim do seculo XVI, e 86 ai podemos collocar a composigio do poeme- to, que apezar de tudo, exprime uma grande verdade (1), Obras ineditas dos nossos insignes Poetas, t. 1, p. 194 a 204. Lisboa, 1791. * 238. HISTORIA DE CAMGES ~ de sentimento 'patriotico. Pela vida de Frei Bernardo de Brito, sube-se que elle estudou tambem em Italia, aonde a grande erudigao historica levou muitas vezes os sabios a inventarem antiguidades. Escreve elle no prologo da Mfonarchia Luzitana Acerca d’esta sua viagem a Italia, e referindo-se ao in- tuito de escrever a historia patria: « Deliberado n’este intento, me fiz na volta de Italia, mais acompanhado de pensamentos que de annos, notando no decurso d’este caminho algumas antigualhas que entéo me accendiam o desejo e... agora me servem de muito lume ao que faco.» Este muito lume refere-se sem duvida és obras de Beroso inventadas pelo eruditissimo falsificador An- nio de Viterbo, (1) e aos subsidios de Laymundo, in- ventados por. Martin Polonus. (2) Brito nao podendo continuar o seu lyrismo amoroso por causa do habito cisterciense, empregou os talentos poeticos que possuia em architectar esse imaginoso edificio da Mfonarchia Luzitana, (3) servindo-se para a historia dos materiaes que andavam em elaboragéo no cyclo erudito das epo- péas greco-romanas. Frei Bernardo de Brito morreu muito novo, com quarenta e sete annos e meio de eda- de, em 27 de Fevereiro de 1617, quando regressira de Madrid; este facto justifica-o das accusagées de falsifi- (1) Benoit de Saint More, por A. Joly, t.1, p. 541. (2) Hubner, Inscriptiones Hispanic latine, p. xvm. (3) Nomeado Chronista por Philippe 1, de Portugal, em 12 de Julho de 1614. (Torre do Tombo, Liv. 30 da Chance. de Phil. a1, A, 182. PARTE II.—LIV. I. CAP. VIII 239 cador, por que a sua falta de critica fol uma consequen- cia d’esse genio poetico que nao chegou a annos de prosa. . Restam noticias de outras obras poeticas de Frei Bernardo de Brito, como o poema intitulado Historia de Sertorio e de sua mulher Rorea, fundagdo da Cidade de Evora e derivagéio do sew nome, poema em quatro cantos, terminado em 1595. No fim da AMonarchia gen- ' tilica, (1) de 1592, traz o Elogio de Philippe IZ, em outavas castelhanas, alludindo a outra obra impressa em Madrid, que Frei Fortunato de Sam Boaventura julga ser 0 Disfarce de Amor, que Brito escrevéra em louvor de Philippe 1, e que se diz ficdra manuscripto na Bi- bliotheca do Escurial. A paixao poetica invadiu a alma do chronista bernardo, e seduzido pelas ficgoes de Mon- talbo, o continuador do Amadis, tentou escrever umas Serguas dos Principes e Infantes que no foram reis. (2) © (1) Aqui, segundo. Frei Fortunato de S. Boaventura, dé noticia de «uma traduccao italiana dos Lusiadas do grande Ca- mées, que é muito anterior 4 que vem citada na Bed. Lusit., tem, p. 75.» : (2) Hist, d’Alcobaga, p. 186. CAPITULO IX Fern4o Rodrigues Lobo Soropita O criterio ethnologico na literatura. — As prosas picarescas de Soropita e 0 estado do espirito publico sob Philippe m.— Cumo naseen em Soropita o culto por Cam*es. — A invasao ingleza em Portugal em 1589 para enthronisar o Prior do rato. —Ideias politicas de Soropi‘a. — A Satyra do Burro, - imitagdo da de Mingo Rirulgo. A,férma litteraria do Ve- Jjamen academico em Soropita.— Epoca em que Soropita manifesta conhecimentos dog manuscriptos de Camides. — Condigées especiaes de Soropita para recolher os ineditos do poeta. — Relagdes com Dom Gongalo Coutinho e Luiz Franco. — Francisco Rodrigues Lobo. accusado por Faria ¢ Sousa do roubo do Parnaso de Camdes. — Justificacio do auctor da Primavera. — Como Lobo Soropita imita tambem o lyrismo camoniano. — Suas relagdes com Estevam Rodri- gues de Castro.— Antes de 1619, Soropita abandona o se- culo e segundo se suppoe, vae fazer penitencia na Arrabida. ~—— Como pelo poeta se comprehende o seu seculo. A litteratura de um povo é como um organismo vivo que se resente do meio deleterio em que se desen- volye; uma época de despotismo e de degradacio mo- ral, péde mascarar-se com todos os apparatos exteriores do cesarismo, com todo o bem estar material do cio gordo da fabula, com a seguranga de uma ordem pas- siva, mas a violagto da dignidade humana que se il- lude com estas grandezas revela-se em uma cousa pe- quena e insignificante para esse estado pathologico de vulgaridade, pela falta de ideal. As creagées da intelli- gencia esterilisam-se, acanham-se, como estas plantas a quem falta a luz e o solo aravel; o que é natural torna- se uma violencia, o riso fica wm esgare, a graca uma PARTE .—LIV. I. CAP. IX 241 obscenidade, 0 acto. consciente converte-se no episodio picaresco. Tal é o campo litterario em que apparece Soropita, depois que Philippe 1 para fixar o dominio" de Portugal se desfez de todos os homens que lhe pare- ceram prestantes; as suas Prosas sio para o fim do se- culo xv1, 0 que foi José Daniel para o seculo xvi; aquellas paginas so recheadas de boas locucées popu- lares, de abundantes equivocos, de grotescas cabriolas de estylo, mas suam uma graca que n&o tira 0 seu con- traste do bom senso; falta-lhe porqué, intencio ou pro- fundidade; exprimem um riso de quem encobre o medo, ou nao se atreve a dizer o que quer. Dizem os anexins do povo, que o diabo tem uma manta e um chocalho; as promessas de Philip» 17 nas cértes de Thomar, as com- pras por dinheiro e honrarias, foram a manta que velou as unhas da onca do Escurial; 0 estado de abaixamento moral, a ausencia da nogao de dignidade, a anemia das forgas resistentes da nacionalidade portugueza véem-se na litteratura do seculo “xvi. Soropita ¢ 0 choealho de- baixo da manta; as suas Prosas enriquecem 0 vocabu- lario, mas sao a pobreza artistica na andrajosa sordidez. Quando a forte e vigorosa litteratura hespanhola se re- sentiu do vampirismo catholico-cesarista, caindo no ato- leiro da moda picaresca aonde escorregaram Cervantes, Aleman, Guevara, Perez de Leon, Quevedo e tantos outros espiritos de primeira ordem, como é que a litte- ratura portugueza, sem uma base organica de tradigoes nacionaes, poderia resistir a essa acgiio dissolvente? So- ropita, tio infimo nas suas Prosas, transporta 0 mesmo 242 HISTORLA DE CAMOES espirito satyrico para os seus versos da medida velha; insensivelmente abandona a palheta, sacode de si os guisos truanescos, e eleva-se a essa tristeza de quem protesta! Que sdpro divino The varreu da mente os va~ pores crassos da orgia politica? Porque lhe comega a doer a sorte de Portugal? Porque é que se sente repen- tinamente poeta e capaz de comprehender alguma cousa que falta 4 maioria do seu tempo, esse ideal de que an- dou tao afastado? Uns manuscriptos despedagados, como © proprio Soropita chama as poesias lyricas de Camdes, operaram esta transformagio, deram-lhe a Juz moral, como 0 anjo que tocou com as méos os olhos cegos de Tobias. De.ois do roub (0 rnaso e Luiz de Ca- mées, e coin a morte do poeta, ficaram totalmente igno- radas as suas poesias lyricas; apenas se conheciam pela imprensa as peeas encomiasticas que andavam juntas 4s obras de Garcia de Orta, de Manoel Barata, de Maga- lhies Gandavo. Como se lembrou Soropita tirar do fun- do d’esse mar revolto as perolas esquecidas? Um facto o determinou a isso: o interesse que Dom Gon ‘alo Cou- tinho mostrou em reparar a sepultura de Camées, em ser-Ihe Mecenas na morte, como o diz Luiz Franco; este facto impressionou Ferndo Alvares d’Oriente que allude a elle, e até o proprio Bernardes sentiu um des- afogo moral em pedir que os seus ossos repousassem junto dos de Camées. Em frente da cathedral de Florenga existe uma pe- dra a que o vulgo péz o nome: il sasso di Dante. Reza a tradigéo que ali vinha o poeta recitar 4 turba ame- PARTE II.--LIV. I. CAP. 1X 243 drontada os versos da visio do inferno. Ainda hoje o ° povo quando passa afasta-se para néo profanar a pedra vencranda. Tal é 0 poder do genio, deixa um vestigio da sua immortalidade sobre as cousas que toca. Quem falaria hoje em Fernao Rodrigues Lobo Soropita, se nao fosse o culto que elle sagrou a Camées, colligindo e estudando a primeira collecgao que se fez das suas Lyricas. Fernio Rodrigues Lobo era filho do Licenciado Manoel Alves, e natural de Lisboa; apparecendo o seu nome inscripto na matricula da Faculdade de Leis em Coimbra pela primeira vez no anno lectivo de 1578 a 1579, e sabendo-se que a admissio aos estudos superio- res comecara aos dezeseis annos de edade, nao ha risco de hypothese em inferir que nascera em 1562. Na ma- tricula que se contintia regularmente até 1583 a 1584 ndo tem o poeta o nome de Soropita; tambem nos ver- sos que andam nas Obras de Estevam Rodrigues de Castro, figura sé com o nome Fernao Rodrigues Lobo. O nome de Soropita era um aleunho, talvez adquirido sob o regimen da insolencia escholar, como se deprehen- de do seguinte incidente de Dom Francisco Manoel de Mello, que o cita no Mospital das Lettras: « Fernio Ro- drigues Lobo, a quem disseram o Zarapita, e...» Por- tanto o assento da matricula, guardado no Archivo da Universidade, refere-se indubitavelmente ao primeiro editor das Lyricas de Camées; uma contradiccio porém se levanta emquanto ‘4 naturalidade d’este poeta. Na- segunda Carta, que escreveu a um amigo quando saiu 244 HISTORIA DE CAMOES de Lisboa, em 1589, fugindo da invasio ingleza, diz que partiu de Thomar: «Alli fiquei o dia seguinte. Ao outro dia cheguei a esta minha patria, que pela alegria com que a via, me pareceu que tambem me desejava. Ainda o estio néo tinha murchado sua virtude; mas j& com contentamento meus naturaes ¢ meus parentes com muito alvorogo me acolhiam.» (1) Emquanto esteve no Porto de Mugem 4 espera de vento e maré, compdz en- tre outras quadras a seguinte: Vantagem tendes de mi, doces aguas que correis; . pois fugis donde nasceis e€ ew vou para onde naseci. (p. 25.) Referir-se-ha este verso por ventura a sua mie, que ia encontrar a Palmella, como elle diz: «chegdmos 4 villa j4 bem tarde, onde achei a mde gae me pariu...» (2); porque escrevendo depois de chegar ao sitio para onde fugia, a um amigo de Lisboa, alludindo aos bens que gosava, diz: «mas emfim, esses sio para vossa mercé; e para mim este desterro.» Se o licenciado, fora de Lis- boa, apesar de ir estar na convivencia de parentes, se ‘ julgava em desterro, podemos considerar como decisivo o assento do Archivo da Universidade. A sua vida academica, como vémos pelo Regimento escholastico para os estudantes, que se achou no ventre de (1) Poesias e Prosas, p. 28. (2) Ibid., p. 18. PARTE IJI.—LIV. I. CAP. IX 245 uma balea». pega que nao 6 hoje comprehendida, mos- tra-nos que elle foi um dos antecessores do chistoso Prior de Nossa Senhora de Nazareth, mais conhecido pelo pseudonymo de Antonio Duarte Ferrio. Os seus versos escriptos em Coimbra, alludem a costumes aca- demicos, usuaes em todas as Universidades da Europa. Quando algum licenciado tomava o gréo de Doutor e era admittido ao magisterio, uma das partes principacs da festa consistia em um discurso satyrico em prosa ou verso parodiando os panegyricos officiaes da recepciio; era um licenciado amigo do novo professor que se en- carregava desta obra a que se chamava Vejamen, 4 imi- tagio das escholas de Paris. No ultimo anno de Coim- bra, em 1584, Soropita escreveu uma « Satyra na data de umas cadeiras a um fulano Figueiredo, que era torto de um olho; e a um fulano Correa, judeu,» a qual se deve considerar como 0 typo do Vejamen usado na Uni- versidade no seculo xvi. O motivo da Satyra, isto é, a provisiio das cadeiras, é um caracteristico obrigado do Vejamen. A este tempo ja Soropita imitava as redondi- Thas chistosas de Camées: O judeu e o zarolho Ambos se deram de pé; Porque um manqueja na fé, Outro mangueja de um olho, Quem os puzera n’um molho, Como o bom Sylva deseja, Para que n’elles se veja Cumprida a letra perfeita: Tarde o torto se endireita; Guardar de cdo que manqueja. 246 HISTORIA DE CAMOES Sdémente em 1598 é que se publicou pela primeira vez a Carta I de Camées, aonde se 1é: « Mas um Ma- -noel Serrao, que sicut et nos, manqueja de um olho, ete.» Soropita conhecia esta locu¢io camoniana unicamente pela tradigéo oral? mas os Disparates da India, que elle recolheu na edigio de 1595, apparecem tambem imitados no anexim de: Quem torto nasce tarde se en- direita. Na Carta para certa senhora de Lisboa, feita por um seu affeicoado na banda d’alem, em resposta de outra sua, imita Soropita o comego da Carta 1 de Ca- moes: « Esta, sendo morrer n’essas mdos valha sem cu- nhos;» (p. 91.) Camoes escrevera: «Esta vae com a can- dea na mao morrer nas de v. m.; e se d’af passar seja em cinza, porque nio quero que do meu pouco comam muitos. i se todavia quizer metter mais méos na escu- dela, mande-lhe lavar 0 nome e valha sem cunhos.» So- ropita comeca a sua Carta a um amigo, com o verso de Gacilasso: ” Ta mar en medio y terras he dexado empregado tambem por Camées na citada Carta m1. Voltando ao Vejamen dos dois professores Figuei- redo e Corréa, Soropita continua com uma graga facil: Certo é para sentir Meus senhores estudantes, Ver lentes a dous bragantes Que muito sao para rir! . Que n&o se sabem vestir, PARTE JI.—LIV. I. CAP. IX 247 E vem n’esta occasiaio Por alta Ordenagdo A ler nos nossos Geraes Dois cerrados animaes, Ur por burro, outro por cao. (p. 99.) Estes versos, que em 1584 se escreviam em mutua amisade, por occasiio do provimento de duas cadeiras, sio hoje da mais eloquente verdade diarite da bestiali- dade proverbial de modernos doutores que entraram para o magisterio da Universidade pelo direito com que se adquire um logar nos asylos de mendicidade. Dotado de um espirito satyrico, Soropita conhecia tambem os principaes escriptos do genero, como vémos pelas suas citagoes de Gil Vicente e de Antonio Ribeiro Chiado. No Parrafo notavel sobre as barbas d’este mundo, fala Soropita de wns que por seus peccados tem « barba lu- therana, tinta de acafrao falso,» (p. 63.) e diz d’elles: «Nao ha iguaria de que mais gostem que de vos atira- rem aos focinhos com uma praga, pdsta d’aquella hora como ovo fresco, que elles amacam debaixo de-um re- moque achado nas barreduras dos Autos de Gil Vicente.» (p. 64.) Estas barreduras eram imitadas por Soropita, e excedidas na historia do namorado que ao falar coma sua dama debaixo da janella «entornaram de cima uma panella de...» (p. 122.) O poeta Chiado, que teve rela~ goes pessoaes com Camées e lhe sobreviveu, apparece- nos citado por Soropita, como quem chegou ainda a tratar com elle: « Outros (ridiculos) ha que por serem de carregacao nao entram na lenda; mas basta para elles 248 HISTORIA DE CAMOES o Chiado, (1) que hes soube assentar as costuras.» (p. 109.) Soropita ridiculisa os poctas conceituosos, que pri- meiro abracaram o cultismo hespanhol: « Outros que pelos seus peceados tocam de poetas, desenrolam-vos uma bola de metros de agua-russa, mais versados que malvas em monturo, com uns conceitos da grossura do mastro da ndo Garajdo, rombos como forma. castelhana, que nem para entulho servem; e se lh’os nao gabais, di- zem-vos logo que thes haveis inveja. —- Ha outros... que pedem cartas de amores para suas damas, e para porem de sua casa alguma cousa, accrescentam+lhe trovinha de cartapacio ao pé, tao ufanos que a souberam enxerir que se tomaram com dez Petrarchas.» (Zb., p. 108.) Este ri- diculo ja tinha sido notado por Camées nos Disparates da India: Adonde tienen las mentes Uns secretos trovadores, Que fazem cartas de amores, De que ficam mui contentes? Nao querem sahir 4 praca; ‘Trazem trova por negaca; E se lh’a gabais, que é boa Diz’ que he de certa pessoa, ete. Estavam outra vez em moda as redondilhas pala- cianas, mas renovadas pela imitagio hespanhola, chama- (1) No Hospital das Letras, cita Dom Francisco Manoel de Mello: «Antonio Ribeiro, que foi o nomeadissimo Chiado. » P. 828. PARTE I1.—LIV. IL. CAP. IX 249 vam-se Expinelas; sobre esta forma escreve Dom Fran- cisco Manoel: « Era antigamente, ao que chamavam Esparsas, que continham doze linhas; veiu depois o fa- moso poeta castellano Vicente Hspinel e lhe tirou-dous versos, reduzindo-as ao modo que hoje guardam; por cuja razio n’aquelle tempo foram chamadas Espinelas; ¢ propria poesia, ou melhor hespanhol suave, amoroso, agudo, engracado, que sé aos poetas castelhanos e por- tuguezes tem chegado, e avantajam aos italianos e fran- cezes, que ainda as nao imitaram, supposto que nos pe- quenos escriptos de Theophilo entendo que vi ja alguns remedos das nossas decima sou espinelas castelhanas. » (1) Era a este genero que Soropita chamava a medida ve- tha; por elle luctaram a todo o transe Castillejos e Gregorio Silvestre; no barco em que partira para San- tarem, diz mais que encontrara: «um poeta anciao, ainda pela medida velha... Demos muitas voltas 20 governo do mundo, reformou-se o uso da justica do reino, arre- pelou se a boa da poesia, razbes d’aqui, razdes d’alli, . ete.» (p. 24.) ‘ O estudo dos manuscriptos dispersos de Camées, trouxe Soropita do genero picaresco e das Espinelas satyricas para esse vaGo idealismo da eschola italiana, que elle tambem a principio ridiculisdra, nos Cemmen- tarios saragoganos: «As horas que nao gastava n’isto ficavam-lhe reservadas para a poesia, em que veiu a em- polgar-se de maneira que de conceitos de Petrarcha e de (1) Hosp. das Lettras, p. 338. 250 HISTORIA DE CAMOES Garcilasso e de outros beberries se the fez um chareo 4 porta, aonde andayam mais rans, que na ponte de Sore.» (p. 88.) Quando Soropita abandonou a Universidade, vindo advogar para Lisboa, eram vivos bastantes ami- gos de Camoces, entre elles Luiz Franco, Faledio de Re- zende, P.® Bartholomeu Ferreira, Bernardes, Manoel Corréa Montenegro, Diogo Taborda Leitéo, e sobre tudo a mae do poeta, D, Anna de 84, muito velha e muito pobre, como diz o Alvara de 5 de Fevereiro de 1585. Se o Licenciado Soropita tivesse logo o plano de ajuntar os manuscriptos despedacados do ‘poeta, te- ria facilmente apresentado uma maior riqueza do que aquella que forma o livro das Rythmas de 1595. A ra- zéio porque Soropita se néo aproveitou d’estes extraor- dinarios recursos existe no conflicto e alteragdes dos partidos politicos, que desde 1580 oscilavam entre o terror de Philippe 11 ¢ a tibieza do Prior do Orato. So- bre o anexim popular: Nem para traz, nem para diente Como o burro de Vicente escreveu Soropita uma Satyra em redondilhas, alludin- do a esta Iucta: Se de uma parte arrochadas De arrieiros te encaminham, Os que a soccorrer-te vinham Querem fazel-o a pedradas. PARTE II.—LIV. I. CAP. IX 251 Zurra sobre mal tamanho Asno; pois quiz teu peccado Que para tdo triste estado Viesses a dono extranho! . \ Chora sobre o mal presente Os bens que passados so; JA foste asno de Balaao, E hoje és Burro de Vicente. Deixou-te 0 cura da Egreja... Grande trabalho te vejo! . Ao moleiro do Alemtejo Nao quiz deixar-te de inveja. Tambem levar-te queria, E assés te fora melhor, O nosso honrado Prior... Tudo foi velhacaria. Fez barata a compra injusta, Por isso te desestima; Porque tudo emfim se estima Segundo o prego que eusta. , Ao retortriro te trazem Com albarda e sem cabresto,... Pelo dono a quem te deram Verds tuas perdigdes, Filho de quatro nagdes Que nunca bem se avieram. J& com teu senhor passado Sobre ti em pleito andou; Agora que te comprou, Hasde pagar 0 fiado. E wés Tagides, que ouvis O som de males tao tristes, Chorae dos bons que jé vistes As lembrangas que sentis. . 282 HISTORIA DE CAMOES Brada thes Mingo, 0 do sato Cisfranco, 0 do saco, brada... O som do metal cobarde Abateu todos os mais; E sao suas forcas taes ~ Que n’elle o fogo nao arde. Mais ai dos lobos guerreiros ! Fica sendo o mal singelo; + Porque cobras de capella” Bebem sangue de cordeiros. (p. 133.) Ao passo que Francisco Rodrigues Lobo bajulava © monarcha invasor com os seus romances castelhanos, Soropita propendia para o partido nacional do Prior do Crato. Quando diante d’elle se discutia a soberania de Philippe u, cia dizendo alguma cousa tambem, por nao parecer que me tirava féra do jogo; todas as mais vezes punha batogue, e ficava vendo de palangue os votos dos outros.» (p. 17.) Apezar de todas estas reservas, Soropita fugiu de Lisboa em 1589, por occasiéo da en- trada dos Inglezes, que vinham restaurar o partido do Prior do Crato. Fugiu de Lisboa, néo porque fosse le- vado pela covardia da outra gente, mas para « obedecer aos sobressaltos de duas femeas que tinha a men cargo, etc.» (p. 14.) No mez de Marco de 1589 mandou Phi- lippe 11 erganisar a forea que havia de resistir 4 invasio ingleza, andando os corregedores de porta em porta ar- rolando «toda a maneira de homens». Tres mil hespa- nhoes occuparam logo Lisboa, e segundo uma memoria do tempo Philippe 1 «aproveitava-se de toda a manei- ra, mandando ir para Castella aquelles fidalgos de que PARTE II.—LIV. I. CAP. 1X 258 se podia temer, por que se nio achassem aqui quando viesse o Snr. Dom Antonio... Mandou mais fazer ex- periencia em outros muitos, mandando a este reino um Santos Paes, soldado da India, que era da parcialidade do Snr. Dom Antonio, e se bateu com elle em Ingla- terra, e depois veiu ter a Castella, o qual, como era co- nhecido de muitos, por ter ido com o mesmo senhor, mandou-o el-yei, como digo, a este reino com cartas e recados fingidos Aquelles de que se podia temer.—D’este modo ficavam sabendo os que tomavam os recados e ac- ceitavam as cartas fingidas, que outrosim trazia. Ei an- dava o dito Santos Paes por todo este reino, correndo todos, a dar-lhes cartas e recados, 0 que foi occasiao de prenderem muitos homens, todos aquelles que elle disse que acceitaram as cartas e recados. Ii d’esta maneira viviam todos de sobreaviso d’af em diante, temendo mais serem presos por estés casos, que néo pela Santa Inquisigio, por que os que colhiam 4s maos por este caso eram desfeitos em tratos, ¢ além d’isso quando es- capavam, botados em degredo para sempre.» Era por este estado de sitio, que quando se fallava na expedicio ingleza se sorria de mofa, para nfo mostrar que se nu- tria esperancas de resgate. De -¢ uma ‘py da in- oleza chegou 4 Corunba em 9 de Maio de 1589, para destruir ali as forcas de Philippe 11, e em seguida veiu fazer o desembarque a Peniche. Eram dezeseis mil ho~ mens de infanteria, e um esquadrao de duzentos caval- los; marchando por terra chegaram a Torres Vedras a 28 de Maio, e a 30 estavam no Campo Grande, entéo 254- HISTORIA DE CAMOES conhecido pelo nome de Alvalade. As forgas portugue zas ou hespanholas recolheram-se a Lisboa para ai se defenderem: «e nas portas da cidade, que deixaram abertas, estavam castelhanos, que as nfo fiavam de por- tuguezes; mas o medo dos castelhanos era tanto, que davam a cidade por entrada...» No meio de uma scena de panico geral houve episodios analogos ao do Oberon quando no meio da procissaéo sodu a trombeta magica: «as freiras de Santa Clara... por ndo estarem seguras as mandaram para o dormitorio dos Frades de Sam Francisco, dando-lhes os mesmos frades por guardas.» Emquanto os inglezes estavam senhores de todos os ar~ rabaldes de Lisboa e j& tocavam os muros, ‘0 Cardeal Alberto mandava fazer as mais arbitrarias execucées em todos os que suspeitava de partidarios do Prior, to- mando por base as mais rancorosas delagdes. No dia da procissiio de Corpus Christi chegou 0 exercito inglez até Lisboa, e ficou junto dos portas de Santa Cathari- na, na Boa Vista e Sam Roque. A covardia era conta-. giosa: « Nessa noute—continua a relagio—se cuidou que accommettessem a cidade e entrassem, ¢ sem duvi- da, se accommetteram, houveram de entrar sem resis- tencia alguma, por que todos os principaes eram fugidos da cidade, e os que ficaram tinham seus furadouros prestes com cavallos e barcos para se accolherem, etc. > % n’estas circumstancias que se comprehendem estas palavras da Carta de Soropita: «J& sabeis que os se- nhores inglezes, sexta feira, depois do dia de Corpus Christi, vieram conversar tio estreitamente, que se néo PARTE I.—LIV. I. CAP. IX 255, mettia entre nds e elles mais que a Jargura dos muros, e€ esses téo enfermos e debilitados que a poder de apitos se tinham em pé.» (p. 14.) O citado manuscripto conti- nua: « N’este conflicto, o mais que accudiu a cada um, era fugirem da cidade aquelles que podiam, pela expe- riencia que tinham da facilidade com que os inglezes puderam entrar se accommetteram a cidade.» De re- pente, a 5 de Julho, viu-se og inglezes abandonarem o cérco de Lisboa, e desfilarem para Cascaes; quando imaginavam que os inglezes iam buscar artilheria, vi- ram-nos com grande pasmo darem 4 véla para Ingla- terra a 18 de Julho, fugindo das doencas da fru ‘ta ve e vor onde a expedi-fo > an tu, segundo a lin- guagem pittoresca da relagito. (1) Soropita voltou para Lisboa, e por causa das terriveis execugées, muita gente teve de fugir de Portugal. Ei de erér que por este tempo emigrasse para Italia o pocta Estevam Rodrigues de Castro. A citada Carta de Soropita di-nos coita da im- pressio geral causada pela noticia da chegada dos in- glezes; depois de aportar ao anoutecer 4 Mouta, sairam- lhe ao encontro esfuimados curiosos que o apertaramn por novas da cidade; 0 poeta n&o se esqueceu de ir ao outro dia Couvir missa a uma ermida do logar»> e & porta da egreja fallaram de politica largamente: ¢e an- tes que entrassemos ao officio, sentamo-nos 4 porta os (1) Dr. Ribeiro Guimaries, Summario de Varia historia, t. m1, p. 222, s 256 HISTORIA DE CAMOES naturaes e forasteiros que ali estavamos, e, sem ser ne- cessario tanger campana, entrdmos em cabido sobre a ordem e successiio da guerra; e com fios seccos dados em borda de alguidar vermelho, cortdmos duas duzias de consellios que os pudera vestir o principe Dom Phi- lippe... Em férma que ali fizemos e desfizemos capi- tées, jJuntdmos soldados, trouxemos soccorro, e alinha- vamos todo 0 processo do cérco, em duas palavras final- mente, puzemos o remate 4 nossa guiza ¢ prognostica- mos para diante melhor que quantos astrologos de re- monte ficaram aposentados em Arayolos.» (p. 17.) Era impossivel prever o disparate do exercito inglez, aban- donando 0 sitio, quando Lisboa estava por sua natureza rendida. O Prior do Crato era tambem ajudado com a itaes oela Hollanda, como se vé nos documentos pu- blicados por Emile Vanden Bussche; (1) mas nem o Prior estava 4 altura d’esta misséo politica, nem a na- cio pelo embrutecimento a que fora levada era digna a liberdade. . E natural que Soropita voltasse para Lisboa ainda no anno de 1589, para exercer a profissio de advo-~ gado. A sua indole juridica transparece através das gravas que exibe: «Entrei por ella (villa de Setubal) em um asno 4 brida, com dois escudeiros ao lado, que, con- forme a dircito era caso de injuria.» (p. 20.) Ei fallando (1) Memotres sur les relations qui existerent autrefrois en- tre les flamands de Flandre, particulierment ceux de Bruges et les Portugais. Deuxiéme Partie, fase. m. PARTE II,—LIV. I. CAP. IX 257 dos homens de barba lutherana: «tomando cada um pela frontaria, parecer-vos-ha lagarto em Badajoz que vae com uma appellagdo dos rendimentos do verde aog Ouvidores da Rota por mandado do Bispo de Placen- cia.» (p. 64.) Pelo seu caracter jovial, Soropita attrala em volta de si todos os poetas que haviam frequentado a companhia de Camdes; elle teve relacdes com Dom Goncalo Coutinho a quem dedicou a edicao das Ryth- ‘ mas; com Luiz Franco Corréa, que escreveu um Soneto encomiastico n’esta edigaéo, com Diogo Bernardes, com Diogo Taborda Leitao, e por ventura com Fernao Al- vares do Oriente, André Falcio de Rezende, Bernardo Rodrigues, e com Dom Manoel de Portugal. As mui- tas cépias das Lyricas que corriam de mio em mao, suscitaram em Soropita o desejo de recolhel-as; a de- mora até ao anno de 1595 explica-se pelo intervalo que se esperaria pelos manuscriptos mandados vir de Géa. No Prologo, em que se assigna Licenciado Sur- rupita, Advogado n’esta Cérte, faz-nos a exposicio do seu methodo de colleccionagio, e do estado dos differen- tes manuscriptos: «H com isto nfo resta mais.que lem- brar, que’ os erros que houver n’esta impressio nao pas- saram por alto a quem ajudou a copiar este Livro; mas achou-se que era menos inconveniente ireni assim como se acharam, por conferencia de alguns Livros de mao, onde estas obras andavam espedagadas, que nao violar as composigdes alheias, sem certeza evidente de ser a emen-_ da verdadcira; porque sempre aos entendimentos fica reservado julgarem, que nao sdo erros do Author, senio 238 HISTORIA DE CAMOES vicio do tempo e inadvertencia de quem as trasladou. E segue-se n’isto o parecer de Augusto Cesar, que na commissio que deu a Vario e a Tucca para emendar a Eneida de Virgilio, lhe defendeu expressamente, que nenhuma cousa mudassem hem accressentassem... E por isso nfo se bulin em mais, que s6 n’aquillo que cla- ramente constou ser vicio da penna; e o mais vae assi como se achou escripto, e muito differente do que hou- vera de ser, se Luiz de Camées em sua vida o dera 4 impressio.» Soropita foi ajudado n’esta empreza pelo Livreiro Estevam Lopes, por ventura parente d’aquelle Affonso Lopes, moco da Capella de Philippe u, que em 1587 den 4 luz os dois Autos de Camées, que andam na colleccao de Prestes. As Rythmas de Cumdées foram reproduzidas logo em 1598, e como diz o mesmo Hste- yam Lopes: «determinando dal-o segunda vez 4 estam- pa, procurei que os erros que na outra por culpa dos originaes se commetteram, n’esta se emendassem... baste que emquanto pude 0 communiqnei com pessoas que entendiam, conferindo varios originaes e escolhendo d’elles o que vinha mais proprio ao que o Poeta queria dizer... muitas poesias que o tempo gastara cavei eu apezar do esquecimento em que jd estavam sepultadas, acerescentando a esta segunda impressio quasi outros ‘tantos Sonetos, (43) cinco Odes, alguns Tercetos e tres Cartas em prosa, que bem mostram nao desmerecerem 0 titulo de seu dono. 3 Uma grande parte d’estas obras apparece com variantes no Afanuseripto de Luiz Fran- co, signal de que este Cancioneiro nio contribuiu para PARTE I1.—LIV. I. CAP. IX 259 estas colheitas. F provavel que Soropita ja nao traba- Thasse na reproducciio das Rythmas de 1598. Foi em 1597 que Soropita publicou a «Informagéo de Direito offerecida por parte de Francisco Corréa no feito que traz com D, Manoel de Athayde sobre a successto d Villa de B ase fructos do morgado de que a dita Villa é ca- bega.» Na cInformagéo do Direito por Ruy Telles de Me- nezes, na causa que lhe moveu D. Maria de Noronha sua . sobrinha, sobre a suecessto do Morgedo da Casa dos Tel- les,» impressa em Lisboa, em 1603, figura na ultima pagina, (p. 116) 0 Licenciado Ferndo Rodrigues Lobo confirmando o parecer a favor do réo. Os interesses do foro mataram-no para a poesia. Soropita no estudo sobre as Rimas segue o mesmo espirito de uma allegagiio pra- xistica; em vez de citar Bartholo ou Accursio, cita Dio- medes Grammatico, Nicolio Perotto, Benedotto Var- chi, Possidonio Estoico, Bembo, Vicencio Cartario e ou- tros eruditos dominantes no seculo xvi; justifica-se de ter dado 4 colleccio o titulo de Rimas, e explica a ordem seguida nas composigdes, com a pobreza de um espirito esterilisado pela vida do foro. Succedeu a peste de 1599 da qual morreu Estevam Lopes, como se vé pelo Alvara concedido a sua mullier Vicenc’a Lopes por que « ficdra pobre e com cinco filhos sem outro remedio mais que o meneo de seus‘liuros.» N’este intervalo appareceu um outro apaixonado de Camoes, Doniingos Fernandes, em 1606, promettendo uma nova colleegio de ineditos do poeta; Soropita entretinha-se a escrever 0 Parrafo no- tavel das Barbas, em que allude «aos occulos de Ja- “12—Tomo m1. 260 HISTORIA DE CAMOES eques,» (p. 60) o que fixa a sua composigio em 1609, e nos da a entender que nao proseguira na sua excavaciio de despedagados manuscriptos; por ventura a sna ab- stencAo seria para nao descobrir o seu parente Francisco Rodrigues Lobo, accusado de ter publicado na Prima- vera alguns versos de Camées. Soropita allude a este seu parente na Carta segunda ao amigo de Lisboa: ‘«Contemple vossa mercé qual iria 0 pastor Lereno v’esta floresta, Riberas del sacro Tejo...» (p. 26.) A Prima- vera de Francisco Rodrigues Lobo é dividida em flores- tas, e Lereno & 0 nome arcadico com que se acoberta na sua pastoral. Na Primavera, traz uma Cangcio, aonde se allude a Nathercia: Ah Nathercia mais bella Do que cruel, inda que o foste tanto, ‘Tudo como esquecida desprezaste. (1) Este facto e uma imitacao admiravel do estylo de Camées levaram por certo Faria e Sousa’a fazer essa extraordinaria accusacdo infundada, de ter Francisco Rodrigues Lobo roubado 0 Parnaso de Camées: «Al - tiempo que empecé a estudiar, que fué por de 1600, y los onze de mi edad, me cogié este libro (o que perten- cera a seu avd Estacio de Faria) un moco, que luego se fue a estudiar en Coimbra, aonde entonces florecia Francisco Rodrigues Lobo, que entonces publicd su li- bro intitulado Primavera, que consta de prosas y ver- (1) Primavera, p. 436., ed. 1722. 4 - PARTE II.—-LIV. I. CAP. 1X 261 sos, y siempre me parecié que en el avia algunas cosas de las que estaban en aquel libro. Mas porque yo no vi este de Lobo luego quando salié, tiempo en que de es- seotro teria algo en la memoria, sind mucho despues, quando ya no la tenia del, no pude assegurar-me bien: pero imagino que unas Otavas, que alli tiene Lobo, luego al principio, a que Ilama la historia de Sileno estaban en aquel libro; y tambien unas coplillas, que estan an- tes de ella; y tambien una Cancion, que se vé a la en- trada da Floresta sexta.» Faria e Sousa faz algumas remotas comparacées entre logares communs a Camées e Lobo, e a fraqueza da sua condemnacéo conhece-se por esta conclusdo a que é levado: « Alfin pudiera ha- zer en los escritos de Lobo muchas observaciones des- tas; pero dexolas, porque en unos mismos pensamientos pueden concorrir los Poetas sin verse, y por que no me asseguro; pero asseguro-me que en todas las obras de Lobo no ay poemas que igualen a esta Cancion y a aquellas Otavas; y que en ella y en cllas ay mucho de los modos de dezir de mi Poeta.» Rodrigues Lobo teve relagées litterarias com Fernao Alvares d’Oricnte, que © cita pelo seu nome de Lereno, e como cantor dos rios Lis e Lena; as suas pastoraes sio imitadas da Luzitania transformada, que s6 foi publicada posthuma, seis an- nos depois do apparecimento da Primavera. O Soncto CCCXXXIN, que em um Ms, traz esta rubrica decisiva: «Soneto de Luiz de Camées a hum velho falando com o Tejo, apparece em manuscriptos mais modernos com o nome de Francisco Rodrigues Lobo, de Henrique Nu- 262 HISTORIA DE CAMOES nes, de Santarem, ede Estevam Rodrigues de Castro. O Soneto cxvr, de Camées, foi encontrado por Faria e Sousa em um Ms., com o nome de Fernio Rodrigues Lobo Soropita. A feigio camoniana imprimia-se fatal- mente em quem estudava os seus versos. Nas Obras de Estevam Rodrigues de Castro, en- contra-se um Soneto de Fernio Rodrigues Lobo, que niio anda recolhido. Transcrevemol-o aqui, para nos dar o sentido de uma aproximagiao que Dom Francisco Ma- pool de Mello faz de Soropita e de Estevam Rodrigues: Claros olhos azues, olhos formosos Que o Jume d’estes meus escurecestes, Olhos que o mesmo Amor d’amor vencestes; Com vivos raios sempre victoriosos. Olhos serenos, olhos venturosos, Que ser luz de tal geito merccestes, Ditosos em render quanto rendestes, E em nunea ser rendidos mais ditosos. Que morra eu por vos vér, e que vos traga Nas meninas dos meus perpetuamente Cousa é que justamente Amor ordena; Mas que de vdés nado tenha mais que a pena, Com que amor tanta fé tio mal me paga, Nem o diz a raz&o, nem o consente. (1) Falando de Francisco Rodrigues Lobo, escreve Dom Francisco Manoel no fospital das Letras: . 1) Ap. Obras de Estevam Rodrigues de Castro; p. 168. Ed. Caminha. PARTE II.—LIV. I. CAP. IX 263 «Aurnor: Dous Rodrigues esto juntos ao primeiro, ambos poetas thizicos, segundo sao diminuidos seus volumes. Quervepo: Quacs se nomeam? Auruor: Fernam Rodrigues Lobo, a quem disseram 0 Za- rapita, e Estevam Rodrigues de Castro, aquelle com um pe- queno manuscripto, este | outro com um breve volume estampa- do em Florenga. Lirsio: Do primeiro, posso affirmar, que se padece alguma cousa da paixdo extrinseca, bem pdde ser; mas que no espirito poetico que o informou, esta sao de todos os quatro costados, Foy Poeta Mestre, e quando néo escrevera mais que os seus desvarios, bem se vé que quem desvariando acertava por aquelle modo, quanto acertaria atinado! » (1) Soropita abandonou o genero satyrico e a redondi- dha da Eschola velha, para obedecer a fascinagio do es- tylo camoniano; d’esta feliz imitagao resultou o confun- direm-se nos manuscriptos com os versos de Camées, as obras que escrevia. O snr. visconde de Juromenha encontrou a Elegia que comega: «Quando os passados bens me representa» em nome de Camées, com a ru- brica: «A uma senhora que estava em Sacavem, em uma quinta sua. Saudades.» No escripto faceto Descobrimento das Iihas da Poesia, de Soropita, vem intercalada essa mesma Elegia com a seguinte declaragéo: «Autor: A- dita tercetagem vae com o sangue na guelra. Fez-se a uma senhora de muitos merecimentos estando em Saca- vem, em uma quinta sua, e o pobre do servidor na praia. do Tejo, carregado com os ferros de suas Saudades. Tem um artificio secreto, que vdo revesados os tercetos: um que na derradeira regra tem a mesma palavra duas ve- (1) Op. cit., p. 816. 264 HISTORIA DE CAMOES zes, & 0 outro apoz elle tem a derradeira palavra contra- ria tambem 4 da ultima regra. BH assim continua desde © principio até o cabo. Him Lisboa, nao euidem que sou eu 0 namorado; porquanto, ha dias que rapei as ordens a cuidados amorosos.» (p. 114.) Se esta Elegia nio per- tence a Camoes, como o declara o Ads. do snr. visconde de Juromenha, a declaragio impessoal de Soropita: Frea-se, ¢ a affirmagiio de: «ndo cuidem que eu sou o na- morado » faz nascer duvidas acerca de a ter elle escripto, posto que lhe conhecia o artificio metrico: Quando os passados bens me representa No mais secreto d’alma o pensamento, - Que quanto mais os vé, mais se atormenta; Tal forma tomam n’este apartamento Que nada me dé agora mér tristeza, Que o que me dava mér contentamento.* “Nao sé em nome do licenciado Soropita andam So- netos attribuidos a Camoes; 0 ‘celebrado jurisconsulto Ayres Pinhel assigna em um manuscripto o Soneto coxvit Quasi todos os poetas contemporaneos de So- ropita eram mortos; Bernardes, D. Manoel de Portu- gal, Fernio Alvares do Oriente, Falcdo de Rezende e Rodrigues Lobo que morrera afogado no Tejo, estavam para sompre mudos. Soropita tomou um profundo des- gosto da vida, e procurou sepultar-se nas sombras do elaustro. Os poetas da peninsula caracterisam-se por esta tendencia mystica; seguindo aventuras de capa e espada na mocidade, por fim recolhiam o seu espirito PARTE I,—LIV. I. CAP, IX 265 jam acabar na clausura ou junto do altar; em Hespa- nha Lope de Vega, Calderon, Tirso de Molina, Vicente Espinel, e entre nés Frei Agostinho da Cruz, Frei An- tonio das Chagas, J'rei Paulo da Cruz, Simao Machado envolvem-se no burel do claustro. Se Fernio Rodrigues Lobo Soropita ¢ esse religioso trazido & Religido, de quem fala Frei Agostinho da Cruz em uma Ecloga, podemos fixar a epoca da sua mudanga da vida pouco antes de 1619. Em uma Elegia de Soropita intitulada da minha -penitencia, parece descrever a solidao da Arrabida: Aqui n’este deserto secco e pobre, Sé de medonhos monstros habitado, Que a morte triste em sua sombra cobre; N’esta imagem de bruto transformado, Por mio da consciencia vingadora Sou todos os momentos castigado. (p. 147.) A tristeza que inspira esta Elegia, tambem intitula- da Penitencia do Soropita, representa o estado geral do espirito portuguez no seculo xvi1; depois da degrada-~ ¢éo moral produzida pelo cesarismo completava-se a obra da inanigdo d’este povo por meio das consolagdes aérias do nihilismo mystico. CAPITULO 3 Miguel Leitaéo de Andrada Culto de Camées no fim do seculo xvr.—Miguel Leitéo vem embellezar a sepultura do poeta. —Factos particulares da Miscellanea, com que se revonstitue a sua autobicgraphia. —Foje de Coimbra para ix na expedig&o a Africa em 1578. —O seu cativeiro ¢ poesias que ai escreveu.— Como se achou a ponto de ser degolado em 1580 por seguir o partido do Prior do Crato.—Suas analogias moracs com Vicente Espinel. A sua viuvez ¢ o perigo de ser degolado por um crime que The imputaram. — Relagies litterarias com 0 poeta mystico Fr. Nicolau Dias. — Cita frequentemente diversos logares dos Luziadas.— Recolhe as Cangdes x11, xrv e xv, de Camdes. —Os Sonetos de Camées oxxyir a cxxxm, e o Soneto oxivur apresentam na Afiscellanea importantissimas variantes. — Dom Antonio Alvares da Cunha e a authenticidade d’estes Sonetos.— Valor litterario da Miscellanea. O grande culto que no ultimo quartel do seculo XVI se desenvolyeu entre os mais distinctos espiritos pelo genio de Camées, trouxe Miguel Leitio de Andrada, soldado da expedigio da Africa, captivo e bom poeta, a vir depdr junto da sepultura do grande epico o tro- pheu da sua adimiragao. Elle mandou collocar na pare- de da sepultura de Camées uma tarja de azulejos em que se lia essa estancia allusiva 4 humildade da pouca terra que o cobria quando o seu nome era conhecido em todo o mundo. Como poeta, Miguel Leitfio de Andrada imitou o sentimento e estylo das poesias de Camées; na Miscellanea recolheu algumas Cangdes e Sonetos inedi- tos, que andam hoje na collecgéo das obras d’esse prin- cipe dos poctas da Peninsula. Por tudo isto, Migael PARTE Il.--LIV. I. CAP. X “267 Leitao de Andrada precisa ser estudado entre a pleiada camoniana. A sua vida foi tempestuosa mas dominada ‘por uma absoluta crenga religiosa na Virgem; a obra por onde hoje se conhece é um mixto de incongruencias devotas, em que exalta Pedrogam, sitio da sua natura- lidade, e em que faz preciosas revelagoeg sobre og desas- tres politicos que comegaram em Alcacer Kibir. Com _ liberdade de intelligencia teria sido um Montaigne; a Miscellanea, que publicou aos setenta e quatro annos de edade, além das poesius diversas que encerra, ¢ 0 subsi- dio unico para o conhecermos, porque é a sua antobio- graphia. Miguel Leitéo de Angrada nasceu na villa de Pe- drogam em 1555; seus paes, Belchior de Andrada e Ca- therina Leitoa «viveram e falleceram na villa de Pe- drogam,» (1) e do seu cazamento tiveram nove filhos além do que fica nomeado. (Aiscell., p. 188.) Na sua obra cita alguns d’esses irméos, como Pero de Andrada, Frei Joao, monge de 8. Bernardo, (op. cit., p. 43) Lou- rengo d’Andrada, que morreu no naufragio da Nao St.* Clara (p. 75) e Antonia de Andrada, Maria de Audrada, e Marqueza de Andrada. Miguel Leitao era mais fana- tico pela sua nobreza do que pela religiao, e tanto, que explica a sua devocéo 4 Senhora da Luz pelos seus per- gaminhos heraldicos: «E para que vejaes de quam an- tigo tenho obrigagio de ser devoto de Nossa Senhora, e como é heranca minha desde meus avoengos. Os quaes* (1) Miscell., p. 615. 268 HISTORIA DE CAMOES traziam no nosso brazéo por orla—= Ave Maria. = E isto muitos centos de annos mais antigua que o de Garci- lasso de la Vega...» (i0., p. 277.) J& velho, mandou extrair da Torre do Tombo a certidio da sua genealo- gia, que lhe foi passada pelo Guarda-mér o Doutor Luiz Ferreira de Azevedo, em 18 de Marco de 1602. (p. 614.) A linguagem de Miguel Leitao de Andrada é bastante " pitoresca, e com as suas proprias palavras teceremos uma autobiographia. Sabe-se do seu nascimento em 1555, porque diz: « Ficaria eu de 13 annos, quando meu pay falleceu (no anno de 1568; op. cit., p. 187) deixando dez filhos, e eu d’elles o penultimo de sua velhice...» (%., p. 173.) A sua primeira educacio fez-se no Convento de Sam Domingos de Pedrogam, aonde aprendeu «as primei- ras letras do A BC, como o latim, tendo por mestres varées muito insignes que n’aquelle Convento eram en- "tio moradores... quaes eram o Padre Manoel de Sou- sa, tio do Governador do Porto, Anrique de Sousa, ora Conde de Miranda, e o Padre Frei Lopo de Sousa, que depois foi Provincial, e o P. Frei Antonio de Ou- rem, grande latino e escrivio...» (op. cit., fl. 1, v.) Esta educacgao durou até ao anno de 1568, porque depois acompanhou a Madrid seu irmio mais velho que estudava em Salamanca; frequentou depois con elle a Universi- dade de Coimbra: «O padre Frei Joao d’Andrada, que -ao seu fallecimento se achou (0 de seu pae) depois de se ter achado no Concilio Tridentino, trouxe um breve do Papa para poder estudar dez annos em qualquer Uni- PARTE II.—LIV. I. CAP. X 269 versidade de Espanha, e escolhendo Salamanca me levou 1é comsigo estudar. Donde o Cardeal Dom Anrique, que depois foi Rey, e n’este tempo commendatario de Alco- baga, 0 fez vir com rogo por sua carta, dando-the estudo em Coimbra onde o acabou, e antes que se tornasse a Portugal, fomos a Madrid visitar um parente de valia, que d’este reino havia ido com a Emparatriz, mulher de Carlos Quinto e irma del-rei Dom Jofo 11, onde es- tando alguns mezes, nos viemos, elle continuar com seu estudo e eu a casa de minha mae, d’onde me fui tam- bem a Coimbra.» (tb., p. 173.) «Achando-me em Ma- dril, com grande dor de um dente, me entrei na calhe de Toledo, na tenda de um barbeiro acossado da dor, para o tirar; 0 qual me levou a uma casa em cima sob color de mais honesto logar, ou decente; e acertando ver-me entrar um amigo portuguez Affonso Gomes Paes,.se vem 4 dita tenda para d’ali nos acompanhar- mos ambos, e perguntando por mim, espera em baixo que eu decesse. E vindo a este reino, soube depois como o dito barbeiro costumava levar os homens de féra aci- ma, onde aos que Ihe parecia, dava com uma tranca por detraz na cabeca e os matava e roubava, ¢ dava o corpo aum pasteleiro...» (op. cit., p. 84.) Miguel Leitao entre- tece a sua vida de lances maravilhosos para mostrar 0 patrocinio constante da Virgem. Podemos fixar a vinda de Miguel Leitao para a Universidade de Coimbra em 1572, porque allude aos primeiros preparativos para a guerra de Africa de 1575: «Ei ja na Instituta e pri- meiro ammo de Canon, se comegou a revolver todo 0 270 HISTORIA DE CAMOES reino em rebolicgos de guerra, com grande estrondo de passar el-rei em Africa fazel-a, e a mim o sangue de o acompanhar, e dando conta a dois estudantes naturaes da Beira, nobres e de parentes illustres, muito facil- mente os commovia meu intento e aprestando-nos do fa- tinho, que era pouco mais que do coelho, em dizendo e fazendo, puzemos por obra a vinda a Lisboa. Onde, achando ja todo o homem d’ella quasi com as esporas, como dizem, calgadas para a viagem, e este porto coa- Ihado de velas a pique para as dar ao vento. Ei n’esses poucos dias que nao desamarravam nos fémos apres- tando, e sabe Deus com quam poucas commodidades, e quam mal apercebidos nos embarcamos em um navio que ia por conta de um parente de meus camaradas, dia de 8am Joao Baptista do anno de 1578, com muita festa em todos os navios, (os quaes se dizia serem mil) de charamellas, trombetas, bastardas e com outros in- strumentos bellicos que estrugiam os ares, que todos com prospera viagem e sem receber damno algum, chegamos a Arzilla na costa de Africa, havendo estado quatro dias em Lagos no Algarve, ¢ outo em Cales, onde o Ducue de Medir - ° ‘a festejou o rei com touros e jogo de canas e outras festas. Ao terceiro dia que chegamos a Arzilla, chegou el-rei, que dous dias de antes se tinha apartado da armada nas galés, que eram cinco, para Tangere, a dar ordens a algumas cousas d’aquella cida- de.» (p. 174.) O fanatismo que arrastou estes convulsi- narios do seculo xvi acha-se n’estas palavras de Leitao: «a quatro de Agosto do anno de Christo de 1578, dia PARTE II,—LIV. I. CAP. X 271 de Sam Domingos, havendo-me eu confessado em pé detraz da tenda de el Rei ao padre Frei Vicente de Af fonseca da sua ordem, que depois foi arcebispo de Goa, me fuy pdr na primeira dos ventureiros, sem ordem al- guma de official...» (p. 176.) Dom Sebastido andava sdsinho por entre os soldados e veiu 4 fileira dos aven- tureiros arremettendo contra elles para os fazer entrar em ordem: «e por isso houve eu de ficar na tereeira fi- leira, e n’ella o terceiro da parte direita, e o segundo 4 minha direita Francisco de Medeiros, sobrinho de Mi- guel de Moura...» (ibid.) Miguel Leitéo de Andrada faz um minucioso relatorio da batalha de Aleacer Kibir, que nos n&o interessa para o conhecimento de sua vida; mas vejamos como conta a sua situagio no meio da der- rota: «E a primeira que recebi (ferida) foi por cima do morriao, o qual cortando-m’o um mouro de cavallo me chegou ao casco (pera que vejaes o como cortam os seus alfanges, e a mais forga do homem a cavallo) com ta-~ manho pezo, que cuidei cahia sobre mim uma casa, do qual golpe e d’outros perdi o mesmo morrio, e tal foi por ali o estrago que eu me vi entre todos estes mouros, e lamentos sem por ali poder entrar homem a éavallo, nem eu ver vivo nosso em estado de lhe poder fallar como a vivo, e entre elles mil espadas douradas, alfan- ges, cadeias de ouro, sem haver quem os tomasse, pelo que me pude assentar um pouco sobre um lio quo nao sei de que era, onde tiret da algibeira uma césta de bis- couto que comi sem vontade por alimentar as foreas, tendo jé do sangue e do suér e pé o rosto n’uma codea, 272 HISTORIA DE CAMOES e attentei perdera uma borracha de agua, com outra que havia tomado a um morto.» (ib., p. 192.) Emquanto Mi- guel Leitdo assi se alentava sobre 0 campo da carnifi- cina, vinham seis mouros fazendo gaztéa, dando golpes. sobre os que estavam nos paroxismos para os acabar; foi entéo que o pobre rapaz de vinte tres annos reco- brou a sua forga depois que viu que a sua espada lhe fazia cahir aos pés os que vinham envolvel-o n’essa ar- rancada de morte. Miguel Leitao foi envolvido por ou- tros mouros, e diz: «tomaram-me outros por detraz e me tiraram logo a espada da mio e deitaram uma lagada ao pescogo,+que foi a maior agonia em que nunca me vi, e muito maior sem comparagio que a mesma morte diante...» (ib., p. 194.) Os mouros o levaram ao seu ar- raial e o curaram langando-lhe sumagre nas feridas, junto com outros mouros feridos «como se foramos filhos de um pae e de-uma terra e criagio...» (ib.) O mouro de quem ficou captivo Miguel Leitao chamava-se Abdere- hamen, e foi este que no dia depois da batalla Ihe mos- trou o cadaver de Dom Sebastiao que ia atravessado em um cavallo, acompanhado por Sebastiao de Resende, fi- lho do celelire Chronista. « Ao terceiro dia d’esta infeliz batalha se partiu d’ali © canipo dos mouros e fémos dormir a Alcacerequibir, onde achando eu wm mercador castelhano na estalagem, que era de um judeu, pera se partir este dia para o porto de Santa Maria por via de Larache, escrevi por elle ao P. Frei Joao meu irmao, dando-lhe conta do triste suc- cesso e morte del-rei, e foi esta a primeira carta que en- PARTE I.—LIV. I. CAP. X 278 trou n’este reino depois d’elle. D’aqui nos partimos pera Fez, onde meu amo era morador.» (p. 232.) As muitas feridas de Miguel Leitao de Andrada foram a causa de evitar-se outra vez para elle o risco da morte; porque com a mira do resgate, o mouro seu dono alugou-lhe um cavallo para o transportar, ao passo que os outros captivos morriam pelos campos esgotados de forgas pelo calor e pela fome. Em Fez foi ofterecido aos Trinitarios para 0 comprarem, mas era apenas chegado um firade, e sem dinheiro; ali discutia os mysterios da religido com um mouro nobre, ¢ era auxiliado nos seus: argumentos por um outro companheiro, chamado Antonio ‘Cordovil; n’esta situagio, quando se complicaram as condicses do seu resgate «me determinei em fugin, e dando conta a um companheiro Belchior Curado, de Penella natural, achou elle occasiéo de uns mouros que nos queriam tra~ zer, e mostrando-me primeiro a casa se meteu n’ella, ¢ eu ao outro dia, onde os mouros tendo-nos alguns, nos. tornaram a nossos amos, dizendo que nos acharam, e alcangando d’elles as alvicaras que 14 sao grandes, e jun- tamente perdio, nos nao ouzaram a castigar, entendendo serem soldados ladroes... (p. 235.) O dono de Miguel Leitéo «era nobilissimo algimiado, que sabia a nossa, lingua... em tanto que eu lhe dizia que se eu soubera bem a sua lingua ou elle a minha, que segundo tinha claro o entendimento o houvera de fazer christdo. » (p. 241.) Depois da sua morte, 0 pobre captive comecou a soffrer mil generos de affliccdes, e, como elle diz «por minha consolaecao 14 fiz um dia este Soneto: 274 HISTORIA DE CAMOES ~ Se 14 no tribunal vosso Sagrado Onde tudo o que de ed est’ presente, Este castigo tinha justamente Em pena de meu erro aparclhado ; E sé a mim, Senhor, de meu passado Quereis fazer alheio e penitente, Com o que agora aqui minha alma sente Cumpra-se em mim, meu Deos, vosso mandado. Que assis misericordia usais commigo, Curar-me aqui meu mal com o que peno, Em quanto tem remedio estes erpes. Mas d’esta gente m4 e reino imigo, Me livrai, meu Deos, que tem veneno Mortifero e pior que o das serpes. (Misc., p. 244.) «Neste comenos me foi dada uma carta do padre Frey Joao meu irmao, em que me dizia que me vinha eredito por via de um moreador de Cales a outro que estava na Aduana de Fez, George Lopes, té dous mil cruzados, pera meu resgate (o que vindo a saber, por via do christa&o que vos disse comprara em mim um qui- nhao, fiquei impossibilitado de poder vir por resgate, porque nao havia falar em menos de doze mil cruzados. » (ib., p. 242.) N’esta colliséo resolveram os quatro possui- dores do captivo metel-o a tratos; Miguel Leitao refu- giou-se em casa da viuva do seu antigo senhor algimiado e lhe.fez um discurso sentimental, mostrando-lhe que niio pagava ‘mais pelo resgate, porque realmente néo possuia; © modo como se lhe dirigiu é altamente pi- toresco: «que olhasse ella para uns passarinhos que alli x PARTE II.—LIV. I. CAP. X 275 tinha n’uma gaiola, que por mais mimos que lhe fizes- se, antes queriam sua liberdade, emtanto que por ella se deixavam morrer de paixio, quanto mais um homem sem nenhuma consolagio senio carregado de ferros e mil outras miserias, por onde quem podia desejar mais minha liberdade que en, que pois me soffria com meu cativeiro que me deixassem com elle que assis bastava de mal, e tanto the disse que a lela (que assi chamam . as senhoras como Dom) deitou muitas lagrimas de com- paixfo e me fez assentar a par de si...» (p. 244.) Este quadro lindissimo da vida do captiveiro lembra situa- goes identicas e nio mais bellamente descriptas por Vi- cente Espinel, que tambem estivera cativo em Africa; nos romances populares portuguezes ha este facto das filhas e mulheres dos mouros se enternecerem pelos seus cativos. Miguel Leitao, como elle confessa, era «mogo de mauita forga» (p. 245) augmentada pela allucinagao re- ligiosa, e isso lhe serviu para emprehender um novo plano de fuga. Par mil diificuldades chegou a Fez o novo, e entre as mais inimaginaveis peripecias chegou a quebrar os ferros e a contractar com os contrabandistas de captivos que tinham feito voltar ao reino a Christo- vam Falcio de Sousa, filho bastardo do auctor do Cris- Jal. (p. 259.) Quando na-fuga se encontrou com outro rancho de captivos, « ouvimos que fullavam portuguez ¢ tocando em meu companheiro lhe disse: boa linguagem € aquella.» (p. 261.) centramos a salvamento em Meli- Iha, passando a bocca da sua lagoa n’um barco que 14 acerton de estar...» (p. 63.) «Recebeu-nos cm Meclilha 276 HISTORIA DE CAMOES o capitéo que Antonio Texeda se chamava, com muito amor, provendo-nos todo o tempo que ali estivemos muito bem. E um padre da Trindade, portuguez, Frei André dos Anjos que ali estava, com camisas; e nos fomos ajun- tando ali 80 captivos. —E emquanto aqui esperamos embarcacao para Espanha, que foram quarenta dias, nos fazia mil afagos e festas por nos aliviar da dor que po- diamos trazer.» (p. 267.) «Chegado a Melilha um na- vio de, Malaga nos embarcamos n’elle outenta captivos que ali viemos fugidos... EH navegando com bom vento a poucas leguas elle se mudon e nos deu um temporal norte, que todo nos levava a dar 4 costa nos penedos do Pinhao... e quiz nossa Senhora livrar-nos trazendo-nos a Malega onde desembarcamos e fomos em procissio...» (p. 272.) «D’aqui me parti para Portugal... cheguei a Almeirim onde El-rei Dom Anrigue estava (1579)... vim vér minha mae e os meus a esta villa ¢ sitio. FE pas- sando em Santarem na Torruja e fulando em um barco acho n’elle acaso Pero d’Andrada, meu irmaéo e um cu-~ nhado Gaspar de Almeida que elle levava para receber uma minha irma. E vinbam de Lisboa de se aperceber do necessario para o reccbimento. Véde agora que ale- gria seria em todos, que juntos entramos pela porta a minha mae, na gual todavia sém entrar, mas tomada a bengain, e visitado o santissimo sacramento na egreja do meu bautismo, me fai cumprir a novena a nossa Se- nhora da Conceigiio que na batalha prometti. Onde fui visitado dos parentes e naturaes todos da villa e termo, té das donzellas nobres, que com pretexto de romaria PARTE II.—LIV.1. CAP. X 277 me vinham todos visitar, e depois fiz a festa a nossa Se- nhora, que vos disse lhe promettera em Fez, que minha ande tanto desejava cumprir, que pedia a Deos a levasse logo, como jd thes contei.» (p. 278.) De facto a 15 de Agosto de 1582, Miguel Leitao fez a promettida festa: «Porém niéio acabava eu de pér em aso a festa, e ne~ nhuma outra cousa minha mie desejava mais, e pedia mui efficazmente a Deos que lha deixasse fazer, e a le~ . vasse logo para si como aconteceu. Porque feita a festa que durou tres dias, ao outro seguinte e na mesma noite contigua com a ultima hora das festas adoeceu com uma colica passio de que faleceu dentro em cinco dias... E porém do seu falecimento escrevi logo ao Padre Fr. Joio d’Andrada meu irmao... esta Elegia: (p. 184) Em que esta dura abscencia longa e triste Minha alma com dor grave tenha preza Cujo alivio, irmao, em vds consiste. Vejo-me triste, 56, sem vér agora Aquelle gasalhado e amor puro - Aos da casa t&o certo e aos de fora... Esta Elegia tem uma melancholia camoniana de uma alma que muito soffreu; o amor filial toma a expressio de um eulto. Quando em 1594 Miguel Leitéo viu abrir-se a sepultura de sua mie para af se enterrar seu irmio Pero d’Andrada, (p. 197) elle aspirou essa fragrancia ideal dos que créem na santidade e na bemaventuranga. Foi no intervallo entre a chegada do captiveiro ea morte de ‘sua mae em 1582, que Miguel Leitio de 278 HISTORIA DE CAMOES . Andrada se langou no partido da independencia na- cional, abracando a causa do Prior do Crato, A ami- sade por Camées data pelo menos da sua ida a Lis- boa depois do captiveiro de Fez, porque na fuga de Coimbra mal pode apparelhar-se para’ embarcar na ex- pedicgaéo. Em 1580 passou Miguel Leitao um dos maio- res perigos da sua vida: «No tempo que o senhor Dom Antonio se levantou Rey, me achei com elle em Lis- boa, por nio poder escusar servil-o, sendo fidalgo de sua casa. Porém vendo entregar-se a fortaleza de Sao Gidio a sua Magestade, me pareceu ir-me para o dito senhor, ¢ indo ja na Golegi, a meu parecer féra ji do perigo da pena de morte a todos os que se fossem de Lisboa, a qual executava cruelmente Manoel da Sylva, fronteiro de Santarem, ali me prenderam as justigas @aquella Villa, pela difa ida e dar nova ser entregue a Sao Gito. Os quaes mandaram logo recado ao dito Ma- noel da Sylva para. me mandarem’ assim preso a elle para fazer justica de mim, e eu com a inquietacio que podeis cuidar, e tendo tanto recado em mim, que de noite dormia o aleaide carcereiro ferrado em mim, Po- rém fingindo eu accidente de camaras, uma tarde me entrava e sala dentro n’uma casa escura, onde ao longe do chao fui con: um prego escarnando a parede, pondo diante um cesto velho, a qual parede estava muito hu- niida ao longo do chao, e indo e vindo muitas vezes fui tirando as pedras, té 0 outro dia 4 noite, que pude es- capar-me, deixando todos os que alli estavam jogando com 0 alcaide.» (p. 85.) PARTE 1I.—LIV. I. CAP. X 279 Foi depois de todos estes immensos lances, que pro- curou a tranquilidade moral no casamento; amava muito sua mulher Britis de Andrade «assi por parente An- drade que he o mesmo que Andrada, e por honestissima e ornada de muitas virtudes, como quem se hayia criado na visinhanga e dontrina dos Padres de San Roque de Lisboa, da Companhia de Jesus, nas casas da quinta de seu pae Nicolau de Altero.» (p. 277.) A mie de sua mu- ther chamava-se D. Margarida Ribcira de Vasconcelos. (p. 524.) Em ontro logar fala Miguel Leitao de Andrada ‘do naufragio da Nao Santa Clara em 1573, onde mor- reu seu irméo Lourenco de Andrada, e o que devia ser seu cunhado Tuiz de Alter d’Andrade: coutro meu ir- mao menor... que se chamava Lourenco de Andrada, que depois se perdeu indo para a India, na costa do Brazil na N4o Santa Clara, que ali se perdeu (capitio Luiz d’Alter de Andrade, nosso parente, com cuja irma, Britis d’Andrada eu casei depois.» (p. 75.) Sabe-se que onaufragio foi em 1573, porque no Indice de toda a Fa- zenda, se encontra na Armada que partira a 4 e a 19 de Abril o nome de Luiz Daltér capitaneando a Néo Santa Clara, e sem a data de torna viagem. (1) Pelo muito amor que Miguel Leitao .inha a sua mulher conservou-se na viuvez, occasionando-se por isso um outro desastre, que o ia perdendo irremediavelmente: «Por falecimento de minha mulher Britis de Andrade (1) Op. eit., p. 172. 280 HISTORIA DE CAMOES que Deos tem, me deixei estar sete ou outo annos viuvo, (cousa que # ninguem aconselharia, homem nem mu- Iher, sento que havendo de casar-se, case logo por evi- tar mil inconvenientes...» (p. 275.) Quaes foram esses inconvenientes? elle continia: «he-me foreado contar- vos como me foi imputada uma morte, nao mais que por ser apressada, sobre que houve grandes exames por um Corregedor da cdrte, com medicos ¢ parteiras, e mil per- guntas perigosissimas e barrancos, ou lacos em que ca- hir, vos nfo quero contar; porém téo persuadida ficou esta morte, do Viso-rei e dos tribunaes todos, e de todo © povo em geral, que nao havia cuidar outra cousa... Porque sendo as partes muito poderosas, de que alguns eram Desembargadores principaes e Corregedores, e tendo grandes correlagdes com os tribunaes todos, té no concelho de Castella, me mandou o Viso-rei prender com carta de seguro, escrevendo logo a sua magestade mandasse que sem embargo d’ella me livrasse da cadeia, summariamente, porque nado era caso Oo Meu a que de- vesse valer nenhum favor das leis. O que sabendo eu por via do bom conde de Linhares D. Fernando de No- ronha... escrevi tambem el-rei... mandou sua Mages tade se ine fizesse justica ordinaria, a cabo de cinco me- zes de Limoeiro. F. no mesmo dia que fui solto se tinha levantado grande rumor em toda a cidade me tiravam a degolar.» (p. 286-8.) Depois da liberdade recobrada, Miguel Leitio, sempre fervoroso e poeta ajoclhou-se diante d’um crucifixo «com algumas palavras Aquelle modo de romance de Don Diego Ordefies de Lara, o PARTE IL.—LIV. I. CAP. X 281 Bravo, na morte de el-rei Dom Sancho, sobre Gamora, que diz: Hincado esta de rodillas Con un erucifixo hablando, Las palabras que dizia Son de hombre muy lastimado: — Bien sabeis, vés Sefior mio, La verdad de aqueste caso...» Miguel Leitio de Andrada ficou «morando junto 4 Sé de Lisboa»; (p..84) ua certidio genealogica, passada pelo Guarda-mér da Torre do Tombo em 18 de Marco de 1602, ai diz: «Miguel Leitao de Andrada, Commen- dador da ordem de Christo, e é morador n’esta cidade de Lisboa, e meu visinho...» (p. 618.) . Na sua primeira educagio na villa de Pedrogam re- cebeu elle as primeiras nogées e gosto da poesia pelo mystico e poeta Frei Nicoldo Dias; a este padre se di- rigia o poeta eucarecendo-he o seu retiro :- O espirito que subir ao céo pretende Julgando o mundo ca por cousa estreita, E por seguir a via mais direita Que a elle guia: aqui se encerra e prende. (p. 150.} Frei Nicoldo Dias contava-Ihe os scus desgostos, originados pelos conflictos politicos da morte de Dom Sebastido e ambicdes do Prior do Crato, e prorompia nos mais inspirados hymnos espirituaes, que Miguel Leitaéo recolheu na Miscellanea. Talvez pela sua ami- sade no cativeiro com Diogo Bernardes e com Fernao 282 HISTORIA DE CAMOES Alvares do Oriente, veiu Miguel Leitdo a imprimir 4 admiracio por Camoes um santo fervor, que o fez reco- Ther tambem algumas obras ineditas na Miscellanea, ¢ a imitar-lhe 0 estylo, N’esse livro publicado aos setenta e quatro annos de sua edade, amalgamma de _tradicdes portuguezas, de revelacées historicas, de dados biogra~ phicos pessoaes, de credulas puerilidades devotas, en- contram-se junto com as poesias do auctor, bastantes Sonetos e Cangdes do grande epico. A sua immensa fé religiosa n&éo se encommodava com a allianca da my- thologia com o christianismo, como o pedantismo hy- pecrita do padre Macedo; diz elle: «e por remedar a verdade de taes cousas, costume miuito usado das falsas deidades querer remedar a verdadeira, como o diz Luiz de Camées, que fez Bacco em Mombaga, dizendo: Mas emfim, por derradeiro, O falso Deus adora o verdadeiro. » (Miscell., p. 586.) E a proposito de Mem Rodrigues de Vasconcellos: «que diz d’elle Luiz de Camoes: Auto para mandaj-os e regel-os, Mem Rodrigues se dis de Vaseoncellos.» (ib., 920.) Aquella formosa Cangéo ao pomar do Convento do- minicano de Pedrogam, que Miguel Leitao traz na Mis- cellanea, (f1. 9) foi achada por Faria e Sousa em um ma- nuscripto de Camdées. Leit&o recolhendo-a, nao a dd como sua, por isso que usa a linguagem impessoal: «E PARTE II.—LIV. I. CAP. X 283 em louvor d’este pomar se fez esta Cancao...» As Can- Ges XIII, XIV e XV, que sfo as recolhidas por Leitdo, fo- ram publicadas como de Camées por D, Antonio Alva~ res da Cunha, com a seguinte nota: « As tres Cangoes seguintes andam com muitos erros impressas nas Mis-, cellaneas de Miguel Leitao; é certo serem de Luiz de Camées, como se colhe de alguns manuscriptos a quem seguimos, e com quem emendamos.» Um argumento que fortalece a declaragéio do guarda-mér da Torre do Tombo, 6 acharem-se bastantes Sonetos de Camées egualmente dispersos pela Miscellanea. As variantes que apresentam, levam-nos a inferir que pertencem a uma primeira elaboragdo. Eis o Soneto cxxxul, segundo Leitao: Nunca em amor damnou atrevimento, (1) Favorece fortuna a onsadia, (2) . Que sempre.a encolhida covardia (3) De pedra serve ao livre pensamento. Quem sobe ao estrellado firmamento (4) La acha sua estrella que o guia; (5) Que o bem que encerra em si a phantesia Sao umas illusdes que as leva o vento. (6) Abrir-se deve o passo 4 ventura, (7) Ninguem sem si mesmo haverd ditoso; (8) Os principios sémente a sorte os move. (1) Nunca em amor damnou 0 atrevimento. Cam. Ed. 1668. - ‘5 Favorece a fortuna a ousadia. /b. 3) Porque sempre a encolhida covardia. Id. (4) Quem se eleva ao sublime firmamento. Ib. (5) A estrella n'elle encontra que Ihe he guia. Ib. (6) Sdo umas illusdes que leva o vento. Ib, + (%) Abrir-se devem passos & ventura. Ib. (8) Sem si proprio ninguem serd ditoso. Ib. 18—Tomo n. 284 HISTORIA DE CAMOES Atrever-se 6 valor e no loucura, Perderd por covarde o venturoso O bem que vossa graga dar-lhe pdéde. (1) (Miscell., p. 871.) O Soneto de Camoes: Se me vem tanta gloria sé de olhar-te (Son. cXLvitI) vem reproduzido em castelhano por Miguel Leitao. (Mise., p. 385.) O Soneto: De quan- tas gragas tinha a natureza (CXXXI) traz algumas va- riantes na Miscellanea. (p. 337). O Soneto: He o gosado bem em agua eseripto, (CXXx) acha-se menos correcto na Miscellanea. (p. 866.) Esse inimitavel Soneto: Huma admiravel herva se conhece (oxxvil) 6 recolhido por Lei- tao de Andrada com a primeira estrophe completamente alterada: Nascendo o sol do mar, logo apparece Uma erva que 0 segue d’hora em hora; Saindo das ondas do Euphrates fora, E estando no meio céo toda florece. (2) O pensamento d’este Soneto ja se encontra nas Re- dondilhas de Camées. O Soncto: Este terreste caos com seus vapores, (OXXVII) acha-se tambem na Miscellanea. (p. 861.) O Soneto: Crescei desejo meu, pois que a ven- tura, (OXXIX) reproduz-se na p. 365; quasi todos estes. (1) Que nos vé se os temores néo remove. Ib. (2) Uma admiravel erva se conhece Que vae ao sol seguindo d’hora em ora, Logo que elle do Euphrates se vé féra, E quando esté mais alto, mais florece. (Cam. Ed. 1668.). PARTE I.—LIV. IL. CAP. X 285 Sonetos pertencem ao grupo dos ineditos recolhidos por Dom Antonio Alvares da Cunha « que os trabalhos dos estudos nos trouxeram 4 mao de varios manuscriptos, muitos da letra do proprio Auctor,» como elle proprio confessa. A Miscellanea de Miguel Leitao foi para elle um li- vro que se lhe tornou a sua biblia; vivia dentro da sua” obra, aonde recolhia as recordacdes mais profundas de uma trabalhada existencia, as noticias que mais lhe des- pertavam a curiosidade, as poesias que mais lhe falavam ao sentimento, as tradigdes e memorias de familia e os casos marayilhosos do seu tempo. Elle fez emquanto o escreveu, 0 mesmo que Jacob Grimm quando nos ulti- mos annos da vida folheava a sua Grammatica alle- ma; recolheu af as suas mais constantes preoccupagées. Pode-se dizer da Afiscellanea, que ella foi para Miguel Leitao de Andrada: O seu Livro, com o sentido que Mi- chelet di a esta phrase: «em que muitas vezes se lé mais do que diz, e muitas vezes, inteiramente o contra- rio.» (1) . (1) Nos Fils, p. 359. * CAPITULO =I Dom Gongalo Coutinho—Dom Simao da Silveira — Vasco Mousinho Castelbranco Ocios litterarios de Dom Gongalo Coutinho na sua quinta dos Vaqueiros.— Relagdes poeticas com Diogo Bernardes.—A Armia celebrada nos seus versos, foi sua mulher D. Maria de Oliveira. — Explicagio do emblema Mihi Taxus. —So- neto inedito de Dom Gongalo Coutinho no Cancioneiro de Luiz Franeo. — Versos de D. Gongalo Coutinho dispersos nas obras de Bernardes.— A sua continuagio do Palmeirim de Inglaterra. =Dom Simo da Silveira, tambem amigo de Ca- méoes. — Versos seus nas obras de Ferreira, e no Cancioneiro de Luiz Franco.—Caracter chistoso de Dom Simao da Sil- veira e analogias de indole com Luiz de Camées.— A vida aneedotica de D. Simao da Silveira na Arte de Galanteria, nos Apologos dialogaes, e Apophthegmas.— Dona Guiomar Henriques celebrada nog seus versos. = Vasco Mousinho de Quevedo Castello Branco imita Camdes nas suas obras lyri- cas.—Seu caracter poetico.— Relacdes com Pedro Mariz e sua influencia na admiragéo de Camées.— Balthazar Estago abraca por 1590 a eschola de Camées.—O dialogismo ca- moniano torna-se o principal defeito da eschola pela exces- siva imitago. Dom Gongalo Coutinho filho de D. Gastéo Couti- nhoe . Iulippa ce Sousa, depois de uma vida tem- pestuosa, recolhen-se 4 sua uinta dos Va ueir s aonde se entregava aos mais apraziveis ocios litterarios. Aqui © procuravam as novas agradaveis, como descreve Ber- nardes: Do mal ahi mais tarde a nova sda; Do bem hi vol-o manda o bom amigo, Ou seja de Madrid, ou de Lisboa. (Carta xxvu.} PARTE IL.—LIV. I. CAP. XI 287 Em Madrid, tinha Dom Goncalo Coutinho intimi- - dade com Don Luiz de Gongora, a quem informava do movimento litterario de Portugal. No juizo que traz Dom Francisco Manoel de Mello Acerca dos Idyllios maritimos de Antonio Gomes de Oliveira, abona-se com a auctoridade de Dom Gongalo Coutinho: «este poeta foi o primeiro que trouxe a Portugal a cultura dos ver- sos aureos, de que agora nos vestimos. — Dizeis verdade, e eu me lembro, que Don Luiz de Gongora me mos- trou um exemplar d’esse livro e carta de seu auctor, communicada por Dom Gongallo Coutinho, grande entre 0s vossos sugeitos, em prosa e verso; sabio Ministro, e déstro Capitao (como se nio fale do livro que compéz da sua Jornada e Governo d’ Africa, que estas so ou~ tras mil e quinhentas) mas tambem me nao esqueca de que o Gongora sendo soberbo e desabrido assas, respei- tou notavelmente esta composicéo de Oliveira.» (1) Na Carta xxvit de Bernardes, dirigida: «A Dom Gongalo Coutinho, estando em uma sua quinta, que cha- mam dos Vaqueiros» vem descripta esta agradavel vi- venda: Ahi segundo meu entendimento De mais alegre vida vos lograes, Que quantos d’ella tém contentamento. Ai, quando quereis cagar, cagaes Péga com gaviao, com galgo lebre, A poucos passos que pelo campo daes. (1) Hospital das Letras, p. 385. 288 HISTORIA DE CAMOES Ahi pouco vos d& que as pazes quebre O Califa d’Egypto e o Saladino, Nem que o Preste Jofio morra de febre. E menos que Reynaldos paladino YA& por amor de Angelica la bella, A Serra d’Ossa a se meter beguino. Ai, sem passar mar, nem mudar sella, Vereis pintado o mundo ou por escripto Em Plinio, Tollomeu, Pomponio Mella. Ai viveis emfim sem cerimonia, E lédes, sem estorvo, um dia todo Sem vos ser necessaria Celidonia. Foi liberal em tudo a natureza Com essa vossa quinta dos Vaqueiros, E deu-lhe inda comvoseo mér riqueza... Emfim, senhor, vés escolhestes bem 3 Seja por uma via ou outra via, Tal vida por agora vos convem, Concede-vos ai a noite e o dia Branda conversagao, casta, suave, Com vossa bella esposa em companhia; Ella do peito seu vos deu a chave, ‘Vs Th’a destes tambem do peito vosso, E assi n&éo tem amor de que se aggrave. Estas ultimas estancias de Bernardes explicam-nos o sentido dos poucos versos que restam de Dom Gon- calo Continho; Armi ra o nome poetico com que ce- lebrava a dama que foi sua esposa, D. Maria de Oli- veira, filha do Dr. Manoel de Oliveira, Desembargador do Paco e Juiz da Tazenda de el-rei Dom Sebastiao, No Cancioneiro de Luiz Franco Corréa, (fl. 140, v.) en- PARTE II.—LIV. ¥. CAP. XI 289 contra-se um Soneto inedito de Dom Gongalo Coutinho a estes amores. Por occasiéo de haver restaurado a se- pultura de Camdes em 1594, Luiz Franco celebrara este illustre fidalgo como Mecenas na morte do pocta; estas relacdes nos mostram:coio lhe poderia ter che- gado 4 mao 0 seguinte Soneto que recolheu no seu Can- cioneiro: Armia mia, si te contar pudiese el mal de que me veo rodeado, descansaria yo y mi cuidado y el esperanga, triste que fencee. Mas que hara el anima que padece y va perdiendo el ser que Dios le ha dado, y fortuna y amor y mas mi hado, de todos mis placeres la empoblece. Si desto que aqui ves eres servida y nadie sino tu puedes librarme, porque no le hazes, di, fiera leona? Ora acaba, “cruel, mi triste vida, que con yo morir y tu matarme, no asde ganar victoria ni corona. Tendo Luiz Franco Corréa terminado a sua recopi- lacgéo em 1589, podemos sobre esta data determinar a epoca em que Dom Gongalo Coutinho se entregara 4 imitacdo da eschola camoniana. Por este Soneto, se vé que no fim do seculo XVI eva uma monomania geral o escrever-se em castelhano; o proprio Manoel de Faria e Sousa, que abandonou quasi completamente a lingua portugueza, néo deixou de condemnar este achaque: «huyen della muchos, que estando en el (reino de Por- 290 HISTORIA DE CAMOES - tugal) y escreviendo en la castellana, muestran clara- mente que no saben ninguna. Duelome de que siendo tan parecidas estas dos lenguas no se entienda la Portu- guesa en Castilla.» (1) Em nome de um Amigo, andam nas Rimas varias, de Bernardes, algumas composigées de Dom Gongalo Coutinho, talvez as unicas sobre que se pode formar juizo, porque o manuscripto das suas Obras, que se guardava na Bibliotheca do Duque de Lafoes, esta perdido. Em umas Sextinas, em que re- sponde pelas mesmas palavras a outra de Bernardes, con- fessa dever-lhe direcgiio no seu gosto pela poesia: Como posso eu deixar do louro verde O premio conseguir, oh novo Phebo, Se vds me daes a mao pera ir ao monte Do qual nunca acertar soube 0 caminho? (2) Em um Soneto portuguez ao mesmo amigo, a quem enderecara as Sextinas em resposta; frla Dom Gongalo Coutinho dos seus amores: Armia do meu mal estd-se rindo; Tu, Diogo, tambem segundo vejo; E eu estou chorando mais que o Tejo Mais que Ganges, que Euphrates, Nilo e Indo. Estou comtigo em parte desavindo Pelo que me escreveste tio sein pejo, Em que mostras cuidar que o meu desejo Féra d’Armia mais me esta pedindo. (1) Fuente d’Aganipe, 3.2 P, Madrid, 1626. (2) Rimas varias, p. 97. Ed. 1770. PARTE II.—LIV. L. CAP. XI 291 Se tens do meu amor este conceito, Erraste contra o amor mais firme e puro Que no mundo se teve a criatura, Rompe com seixo, amigo, esse teu pcito, Pede perdao da culpa, que en te juro, - Que péde Armia estar de mim segura. Bernardes respondendo pelas mesmas consoantes, termina graciosamente: Eu nunca de ti tive mio conceito, Nem tu tens porque deixes de ser puro Amando o Creador na criatura. Armia reine s6 n’esse teu peito, Pois tu reinas no seu; porque te juro Que fora d’isto nao ha cousa segura. Dom Goncalo Coutinho fazia de Bernardes 0 confi- dente dos seus amores; consultava-o nos seus desgos- tos, como se vé d’este Soneto: : Diogo, amigo meu, meu bom Diogo, Dois d’amor tens cantado variamente, Ora em estado triste, ora em contente, Que um conselho me queiras dar, te rego: Abrazo-ine de amor em vivo fogo; E aqnisto que mais alma triste sente, E ver tao fria a causa do accidente, Que esté d’este meu mal fazendo jogo. Dei j& de men amor mil claras provas, Com lagrimas cem mil tenho lavado A culpa que me deu a minha Armia. 292 HISTORIA DE CAMOES Estas da vida minha sao as novas; Aconselha-me tu, se n’este estado De meu remedio tenho melhoria? Estes Sonetos sio indubitavelmente de Dom Gon- calo Coutinho, e a este illustre personagem respondia Bernardes, como se vé n’este em que se descrevem as mais intimas relacées litterarias: Coutinho, em tudo puro, em tudo brando, E nos amores teus mais brando e puro; Que com felice engerho o pé seguro Moves pelo Parnaso caminhando, . Nos teus versos que li e fui notando, Nenhum disforme achei, nenbum eseuro, Nenhum sobejo ou falto, frio ov duro; Mercé d’Apollo que te vae guiando. Por isso nfo desistas do caminho Em que te poz amor.........-- (Son. exxxvir.} No Soneto cxxx1x de Bernardes, é ainda mais clara a alluséo a Dom Goncalo Coutinho, na occasiio em que saira da corte: Tantos dias tio mos, tantos chuveiros Des que d’aqui, senhor, vos attsentastes ; Desejo de saber se os passastes Na vossa dos Vagueiros com vaqueiros. Mas se por entre moutas e lameiros 86 co’as brandas musas conversastes, Dizei-me quantos versos 14 deixastes Eseriptos nas cortigas dos salgueiros. PARTE I.—LIV. I. CAP. XI 293 Que bem se deve crér que amor daria Materia saudosa a vosso engenho, . Nao vendo a vossa clara e bella Armia... Tanto o Lima, como as Rimas varias de Bernardes, foram publicadas em 1596; portanto a epoca dos amores, e da actividade poetica de Dom Gongalo Coutinho fica aproximadamente fixada. Quando Dom Gongalo Couti- nho deu sepultura honrada a Camdes, em 1594, foi a seu pedido que Bernardes celebrou esse genio de quem pre- tendeu julgar-se rival; Bernardes continuou a intimi- dade com o generoso admirador de Camées, e quando este escreveu a pequena mas preciosa biographia de 84 de Miranda, foi ainda Bernardes quem lhe communicou as preciosas tradicdes da vida honrada d’aquelle qui- nhentista iniciador, Que aproveitaveis paginas historicas da vida de Camées recolheria Dom Goncalo Coutinho, se consultasse os amigos do poeta, com quem tinha in- timidade! Nao nos poderia ter revelado esse caracter ge- neroso, visto que, segundo a tradigéo conservada por Barbosa, (1) o hospedara tantas vezes na, sua quinta dos Vaqueiros? A unica prova com que se authentica esta tradicdo esta n’esses versos de Manoel de Sousa Couti- nko, em que allude 4 amisade pessoal : Ac velut Orphao revoeasti munere amicum. (1) «Consegniu contrahir estreita amisade com o insigne Luiz de Camées... que muitas vezes o tinha por hospede na sua quinta dos Vaqueiros...» Bibl. Luz., t. u, p. 392. 294 HISTORIA DE CAMOES Quando se publicou a primeira edigio das Rimas de Camoes, em 1595, dedicada a Dom Gongalo Coutinho, Estevam Lopes adoptou para o fronstispicio do livro o emblema d’este illustre amigo do pocta, que é uma oli- veira com a legenda: Mihi Taaus. O sentido do emble- ma liga-se aos amores do poeta; do seu casamento com Dona Maria de Oliveira nao houve filhos, e por isso adoptou a oliveira fecunda com a letra de que— para elle Gra esteril como 0 teixo. A vida politica de Dom Gongalo Coutinho foi im- portantissima; como Cesar alliou a, penna com a espada, governando a Africa e escrevendo a sua jornada; foi governador do reino do Algarve, e do Conselho de Es- tado de Philippe 111; enunciamos estas circumstancias para que se conhega o alcance da homenagem publica prestada por elle a Camées. Tendo sido amigo pessoal de Camées, justifica~se de lhe nfo ter accudido nos ul- timos instantes da vida, porque estava ausente de Lis- boa, como se sabe pela declaracio do traductor italiano Carlo Antonio Paggi (1); 0 interesse com que restau- rou a sepultura do poeta foi como uma reparagito d’esta divida, em que ficara: Dom Gongalo Coutinho morreu em 1634; as suas obras poeticas ficaram ineditas na li- vraria do Cardeal Sousa, e existiam em 1747 na livraria (1) «Giacquero I’ossa, secondo molti, in vergognoso e aperto piu campo, che cimitero, se non insepolte, certamente senza honore de sepoltura, finche da D. Gonsalvo Cottigno suo stretto amigo, stato absenfe alla sua morte, ritrovate & gran fa- tica, e ritirate nella contigua chiesola di Santa Anna...» Lu- siada italiana. PARTE H.—LIV. I. CAP. XI 295 do Duque de Lafoes, d’onde se perderam pela occasiio do terremoto. Na livraria de D. Antonio Alvares da Cunha, guardava-se uma collecedo das suas Cartas ma- nuscriptas, aonde por ventura haveriam algumas com referencia a Camées. Na livraria de Joao Saldanha, se- gundo a affirmacio do Padre. Francisco da Cruz nas Memorias manuscriptas para a Bibliotheca lusitana, guar- dava-se uma extensa novella de cavalleria em tres to- mos, intitulada Historia de Palmeirim de Inglaterra e de Dom Duardos, escripta por Dom Gongalo Coutinho. _ A continuagio extemporanea do Palmeirim provém de um prurido novellesco que atacou a aristocracia no fim do seculo xv; até o chistoso Dom Simao da Silveira, que tantos annos galanteara a fria D, Guiomar. Henri- ques, na noite do seu casamento se esqueceu da esposa a lér o Palmeirim de Inglaterra. Dom Simao da Siv “> ° tambem um dos raros poetas do seculo Xv, que se atreveram a citar o nome de Camoes. Entre os Sonetos de Camées recolhidos de ineditos por Dom Antonio Alvares da Cunha, (/im. P. m1, n.° 10) vem um: «A Dom Simao da Silveira em resposta de outro seu, pelas mesmas conscantes, mandan- do-lhe perguntar quem féra 0 primeiro Poeta que fizera Sonetos.» Esta simples rubrica nos leva a inferir as suas relagoes litterarias, e portanto a recother con inte- resse 0 pouco que resta de Dom Simao da Silveira. An- tes de tudo importa separar este pocta, amigo de Ca- moes, de outro Dom Simao da Silveira que em 1510 figurava j& como poeta no Cancioneiro de Resende, e 296 HISTORIA DE CAMOES que Barbosa Machado confunde na Bibliotheca Lusi- tana. (1) O poeta do Cancioneiro era filho segundo de Nuno Martins da Silveira e de D. Philippa de Vilhena, ‘e irmao do celebre poeta Dom Luiz da Silveira, 0 va- lido de Dom Joao 111; (2) 0 amigo de Camées era filho do afamado Dom Luiz da Silveira e de D. Brites Cou- tinho. Na Carta x, do livro 11 dos Poemas luzitanos, do Dr. Antonio Ferreira, dirigida a este Dom Simao da Silveira, o illustre quinhentista lembra-lhe os talentos poeticos de seu pae, para o incitur a escrever segundo o gosto da eschola italiana: Accrescenta dos teus 4 larga historia, Brandas Musas. Eu vejo o glorioso Gram Conde encommendar-te sua memoria. Clarissimo Liiz, vaio laminoso, Marte nas armas, Apollo entre as Musas, Mas por ti, Simao, inda mais ditoso. Ao som da lyra de que tao bem usas; Vae 4 verde hera entretecendo o louro Que ji honrow Mantua, Esmyrna e Syracusas. Em ti nos mostra Apollo o seu thezouro. Hsta ultima estrophe da Carta de Ferreira allude a tentativas feitas por Dom Simio da Silveira na forma epica; de facto, entre os scus manuscriptos enumera (1) Esta mesma confusio se dA com Ayres Telles de Me- nezes, como vimos no cap. v. (2) A biographia d’este Dom ‘Simo da Silveira, vem nos. Poetas palucianos, p. 401 a 406. , PARTE Il.—LIV. I. CAP. XI ~ 297 Barbosa um Livro de Cavallerias, em outava rima, imi- tagio do espirito e estructura do Orlando furioso, que se deve julgar escripto muito antes de 1569. Dom Si- mao da Silveira foi um dos mais valentes campedes nas luctas da introducgao da Eschola italiana em Portugal, e era a elle que Ferreira dirigia as regras da nova poe~ tica, que formulou admiravelmente na Carta x. (1) A importancia litteraria de Dom Simao da Silveira, co- nhece-se por esta exaltacdo sincera de Ferreira: Dom Siméo da Silveira (este 86 nome Passe por claro titulo, em quem Marte Sempre igual honra, igual Apollo tome.) Nas brandas Musas, que tu honras tanto Mal o humilde meu verso se despeja Furtado ora a suspiros, ora 6 pranto. Dom Simao da Silveira, do mesmo modo que Fer- reira, adoptava com relagio 4 poetica de redondilha o juizo: Eu por cego costume néo me movo: Véjo vir novo lume da Toscana, Neste argo; a antiga Hespanha deixo ao povo. Portanto nao é a este poeta que pertence o Vilancete (1) Historia dos Quinhentistas, p. 161. 298 UISTORIA DE CAMOES que anda glosado nas obras de Sé de Miranda com a rubrica: A este viluncete de D. Simao da Silveira: Tu presencia deseada Zagala desconocida Di, porque la has escondida? (1) Nao sé o Vilancete, mas a glosa de Francisco de 84 de Menezes e ajuda de Sd de Miranda, pertencem 4 velha poetica do Cancioneiro de Resende; 0 Dom Si- mio da Silveira, confundido por Barbosa Machado, € aquelle que ja deixdmos estndado nos Poetas palacia- nos. A epoca da actividade poetica de Dom Simao da - Silveira deve fixar-se antes de 1567, quando a eschola italiana estava no seu maior viger. Segundo Barbosa, publicou elle em 1567 duas Elegias uma Ao Bom la- drao, outra A Magdalena, Fintre os versos de Ferreira encontra-se um sentido Soneto de Dom Simao da Sil- yeira, escripto 4 morte de D. Maria Pimentel em 1568. Transcrevemol-o como um dos poucos documentos que restam do seu talento poetico, e principalmente do seu caracter bondoso; Ferreira estava desoladissimo pela morte de sua mulher: Sepultado em tristeza, em dor, em pranto, Esquecido das Musas e de ti, Te vejo sem alegria estar assi . Como aquelle, a que deu paamo e espanto. (1) Obras de S& de Miranda, p. 410. Ed. 1804. PARTE I1.—LIV. L. CAP. XI 299 Vejo a casa em que estas, de cada canto Tremer; vejo-a chorar, vejo d’aqui Esse rio, esse monte, o céo por ti Coberto estar de negro e escuro manto. N&o reine, Antonio, em ti tal desatino; Deixa lagrimas vias, pée fim ds dores, Asserena o sembrante triste e escuro. Enche teu peito suave e peregrino D'outro desejo mais sio, d’outros amores, Com que em ti, sem temeres vivas seguro (1) O Dr. Antonio Ferreira agradece-lhe a sinceridade -dos seus consolos, e descreve o bem estar moral que re- cebeu com as suas palavras: Desfeito o sprito em vento, 0 corpo em pranto; Tam poderosamente fui de ti Chamado, que tornei, Simfo, assi Como da morte 4 vida, em novo espanto. Ergueste, doce Orpheo, ¢’o teu bom canto Um sprito morto, a cujo som d’aqui S'algou todo ar escuro, e 36 por ti Rompi d’alta tristeza o grosso manto. No Cancioneiro recolhido por Luiz Franco Corréa, vem um Soneto de Dom Simio da Silveira agradecendo a Jerouymo Cérte-Real uma Epistola que acompanhava uma Pintura da Mocidade e da Velhice. Reproduzimol-o por ser inteiramente inedito: (1) Apud Poem. Luz., Son. 12, liv. 2. 300 HISTORIA DE CAMOES Pueden ser vuestras Musas comparadas, grande Corte Real, a las sacttas que al Pio Encas fueran tan acetas y en honra de su padre disparadas. La que rompié la cuerda, es las fundadas canciones que tafieis mas quc perfettas, con que rompeis las cuerdas, y discretas almas, del son suave lastimadas. Y la que la paloma libre mata vuestro noble pinzel, que ha traspasado al alto Apcolles y abatido al suelo. La que en divino fuego se desata es vuestro verso heroico y celebrado que se quema las plumas en el cielo. (1) No Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro, encontrou Barbosa em nome de Dom Simao da Silveira um So- neto que comegava: Cese, Sefiora, ya tu dura mano, ete. ' N’este mesmo Cancioneiro se encontravam poesias de Simao Rodrigues da Veiga, hoje totalmente igno- rado. . Na Ilistoria Genealogica, de Dom Antonio Caetano de Sousa, vem fixada a morte de Dom Simao da Sil- veira em 1575. (2) As relacées de amisade com Camées poderiam ter sido estabelecidas antes da partida para a India; a pergunta acerca de quem foi o primeiro que (1) Canc, Ms., de Luiz Franco, fi. 156. (2) Op. cit., t. xu, p. 375; ou em 1574, ib., p. 41. PARTE ITI. --LIV. 1. CAP. XI 301 escreveu Sonetos, revela-nos o fervor das novas in- telligencias que abragaram a eschola italiana. O cara- cter de Camoes tem uma certa analogia com o de Dom Simao da Silveira, conhecido principalmente nas tradi- ¢des do seculo xvi pelo seu genio aventuroso e engra- ado. Na Arte de Galanteria, nos Apologos dialogaes e nas Apophtegmas de Supico, léem-se bastantes anedo- ctas da vida de Dom Simao da Silveira, que lhe dao uma certa feigéo camoniana, e que explicam a mutua sympathia. Eis como o pinta Dom Francisco Manoel: «Por esta assistencia que se deve 4 presenca das damas, succederam aquellas duas historias tao galantes ao nosso grande cortezio Dom Simao da Silveira... era costume dos fidalgos fazerem terreiro 4s damas de sorte que es- tando alguma 4 janella, nenhum mais passava adiante; pois como ellas folgassem de fazer travessuras a Dom Simao, um dia de grande sol se puzeram patentes, veiu elle e vendo tantos sées descobertos parou como devia; foram-se acinte detendo, até, que nao podenda ja sup- portar a calma por estar sem gorra, de alli proprio ne- gociou com dous mogos, a quem deu dinheiro, atiras- sem muitas pedras ao baledo d’onde as damas estavam, que atemorisadas do assalto se recolheram; elle entéo deixou de pressa o pésto com muita honra e maior graca.» Em tudo se revelava o bom humor do poota: «Comegou a chover passeando D. Simio a cavallo n’este terreiro do Pago; vendo-o as Damas se foram amostrar em parte donde elle pelas vér nfo pudesse deixar o pas- scio: porém, como a malicia fosse descuberta, e encu- 302 HISTORIA DE CAMOES berta a tarde, fez elle o giro maior um pouco e man- dando subir um mouro seu no cavallo, trocou com elle a capa e chapéo; logo lhe ordenou que passeasse em- quanto as Damas o vissem, ¢ elle subiu exuto a seu salvo 4s varandas do pago: era grande o gosto que havia nas Damas de verem molhar ao fingido Dom Simio, e o yerdadeiro tinha muito maior contentamento do engano que fazia a quem folgava de lhe dar desgostos: porém, sabida depois a galante trapaga e falsa fineza, foi de to- dos muito festejada e as Damas pediram treguas.» (1) Camées seguia tambem este systema chistoso de galan- tear as damas do pago, como se sabe pelas varias rubri- cas das Redondilhas. O caracter de Dom Simao da Sil- veira, era triste como se prova pelos desgostos de fami- lia, vendo morrer quasi todos os seus filhos, um em um duello em Almeirim, e tres nas guerras da India; (2) 0 chiste era um esforco de quem se queria aturdir. As principaes anecdotas da vida de Dom Simao da Silveira foram passadas por causa d’essa longa e resi- gnada paixéo pela dama da rainha D. Catherina Dona Guiomar Henricu s, filha de Simao Freire. Lé-se na Arte de Galanteria a este proposito: «muy calificado hombre de corte, y eralo el tanto, que admirado por Don Diogs de Mendoza, (8) le dize en una Epistola suya: (1) Apologos Dialogaes, p. 281. (2) Couto, Decada X. (3) A maior parte das suas Obras acha-se recolhida no Cancioneiro de Luiz Franco, fl. 157 a 198. PARTE IL—LIV. I. CAP. XT 3808 Dona Guiomar, deveria tu deidad Hazer algun regalo a Don Simon, Pues la merece bien su voluntad. «Estando en conversacion, Cardenales y Embaxa- dores, vinose a tratar de las cosas mas celebres' del mundo; cada uno encarecia las cosas mas notables del; Don Simon dixo: que la que estava delante de todas y era mas para admirar era una puente de tablas viejas de Palacio al mar, por donde se embarcava en el la se- nhora D. Guiomar, y no sufria que se ‘hablasse nadie sin que se tratasse d’ella. D. Diego de Mendoza- guar- dou esta regra: Dona Guiomar Anriques sea loada Ante todo el principio, que sin ella Cosa. no puede ser bien empegada...» (1) D. Simao da Silveira era um cavalleiro extempora- neo, a quem a sociedade aristocratica, mas burgueza nos” costumes, apenas achava graca; assim como elle escrevia poemas cavalheirescos, tomava tambem a serio as no- vellas de Amadis de Gaula e Palmeirim de Inglaterra. A Arte de Galanteria retrata-o com esta ingenuidade: «mysterioso es aquel de Amadis de: Gaula, libro que dex6 introduzida la imitacion de lo que no era como his- toria que fud; vino un cavallero muy principal para su casa y hallé a su muger y hijas y- criadas llorando; so- bresaltose y préguntéle muy congoxado: si algun hijo (1) Arte de Galanteria, p. 69. Ed. 1682. 804 HISTORIA DE CAMOES ‘ 6 deudo se les havia muerto? Respondiron ahogadas en lagrimas, que no. Replicé mas confuso: Pues porque Noraes? dixeronle: Sefior, hase muerto Amadis.— Don Simon de Silveira juraba sobre un Missal, que por aquelles santos Evangelios, que todo Jo que alli se dezia era verdad, respeitado por primero y por bueno inven- tor de aquella secta de quimeras, leecion que eniretiene tiempo perdido y trabajo, en muchos ingenios, e luzie- ran enfin Damas y Galanes en que tambien por lo que arremedan de finezas; nuestros portuguezes se adelan- taron a todas las naciones en esto como en todo.» (1) Nas Apophthegmas, de Pedro José Supico, vein quasi - todas estas anedoctas de Dom Simao da Silveira, e en- tre outras as seguintes particularidades do seu amor e do sen caracter: «Dom Simao da Silveira, filho serundo do Conde de Sortelh:, foi cavalleiro muito bem entendido, Ga- lanteava a D. Guiomar Henri ues, dama da rainha D. Catherina; e forain estes amores mui celebres n’aquelle tempo pelo excessivo das finezas. Nao lhe era a dama desaffeigoada, mas néo queria casar com elle por ser muito pobre; e vendo Dom Simao, estando em uma tarde assistindo-lhe, a um pobre debaixo das janellas do Palacio, que estava comendo uma cebola com um pedago de pio, lhe perguntou se sustentava sé com aquillo; e respondendo eHe que sim, lhe disse em voz alta: Homem, pelo amor de Deus, que vas dizer 4 Se~ (1) Tid, p. 145. PARTE H.—LIV. I. CAP. XI 805 nhora D. Guiomar Henriques, quam pouco basta para passar a vida.— Casou emfim com a tal senhora por quem fizera tautos extremos, tantas finezas de amor; e na primeira noite do dia das suas bodas, assim que se recolheram, pediu D. Sim&o uma vela e poz-se a lér por Palmeirim de Inglaterra, no que gastou tanto tem~ po que parecendo desproposito 4 dama, lhe disse: Se- nhor, para isso casaste? Respondeu elle: E quem vos disse a vés, Senhora, que o casar era outra cousa? —~ Foi D. Guiomar niui ciosa de D. Simo; e tinha quem lhe revelava as casas donde elle entrava; pelo que dizia elle com graga, que namorara a huma Dama e casara com um Corregedor da Cérte.» (1) No celebre livro de Goncalo Fernandes Trancoso, Contos ¢ Historias de pro- veito e exemplo, escripto durante a peste grande de 1569 (2) allude-se a um Dom Sim4o como tendo por uma das suas subtilezas abrandado o odio do rei incitado contra elle; é no conto xvi, da parte 1, que o fidalgo com o seu bom senso de Marculfo desarma a impetuosidade real. O conto de Trancoso tem todos os caracteristicos do typo popular (3), com sé tres perguntas irrespondi- veis, com a solucdo sensata e inesperada, e por isso, embora nfo seja allusivo a nenhum successo da vida de Dom Simao da Silveira, tem mais valor porque nos (1) Supi¢o, Collecgdo de Apophthegmas, P. 1, liv. 1, n.0 57, Ed. 1733. (2) Conto 1x da Part. mn, aonde vem manifesta a data. (3) Na tradigdo oral existe ainda com o titulo de Padre Jotio Sem-cuidados. 3806 HISTORIA DE CAMOES mostra como este jovial amigo de Camées, se ia tor- nando uma entidade legendaria. O idealismo platonico das composigées lyricas de Camées, que tanto o separa da primeira phase da es- chola italiana em Portugal, foi desviado para a mono- tonia do mysticismo religioso pelos poetas que o toma- ram como modello. Um dos que mais contribuiram para esta degeneragio, foi Jorge da Silva, irm&o do celebre e elegantissimo poeta latino o bispo Dom Miguel da Silva, que Dom Joao m1 perseguiu por ter acceitado sem o seu placito o cardinalato. Jorge da Silva é aquelle poeta de quem se conta a tradicdo’amorosa de se ter apaixonado pela Infanta D. Maria, e a quem Ca- inées fez 0 epigramma Perdigéo perdeu a penna; (1) pe- las suas relacgdes com a casa dos Silvas, e principalmente pela convivencia do pago, Camées teve uma grande in- timidade com Jorge da Silva. Mas a educagio palaciana e o habito de poetar para as damas do paco na medida velha, fizeram com que Jorge da Silva nunca se enten- desse bem com a metrificacio endecasyllabica. André Falcao de Resende cita-o nos seus versos, mais pela pie- dade que o caracterisava do que pelos talentos poeticos; sabe-se que Jorge da Silva morreu na batalha de Alca- cer Kibir. Eis um Soneto inedito de Jorge da ‘Silva que confirma 0 nosso juizo litterario: (1) Hist. de Camées, t. 1, p. 126. PARTE 11.—LIY. L CAP. XI 307. Todas as cousas tém seu proprio tempo, Seu priucipio, seu fim e seu logar; Tempo ha de rir, tempo ha de folgar, Tempo de descango,Soutro de tormento, Abaste quanto me levou o vento, Baste saber que o porvir ha de passar Como 0 presente, nem me ha de ficar Do prazer mais que o arrependimento. Leve o mundo o que tem levado, JA agora nfo quero bem, nem mal; Nem desejo mais que vér-me desatado. O misero, 0 em que cousa mortal Pie sua esperanga, quam enganado, Quam perdido se ha de vér este*tal. (1) . No Codice da Bibliotheca de Evora encontram-se ou- tras composicées ineditas de Jorge da Silva em que a uncciio religiosa sobrepuja o sentimento do poeta. Tran- screvemos aqui parte da « Omilia feita a Madalena, ti- vada de oriyine, de Jorge da Silva: A. Madalena ho seu Esposo buscava ja& que vivo ho ndo esperava d’achar, agsi com ele morto se contentava; ainda que se no fartava de o choraz. desejava de o ver na terra dura pera con suas lagrimas o abrandar, (1) Bibliotheca de Evora, Cod. a fi. 78. Devemos esta co- pia ao nosso estimavel amigo Gabriel Victor do Monte Pereira, homem que estuda sem alarde, e de quem as-lettras portugue- zas tém u esperar muito. O Codice aqui citado é um Ms. de 237 paginas bem conservado; contem grande numero de ver- fos, trovas, cantigas, proverbios, em portuguez e castelhano; comega com as Eglogas de SA de Miranda. Wd4—Tomou. _ 308 an § HISTORIA DE CAMOES ja sabia o bem quam pouco dura e que ho tempo disfas toda lembranga nao ousava de se ir da sepultura; ali chorava sua pouca confianga chorava lembrancas da sua dor chorava sua perdida esperanga desejava em extremo de morrer cuidando se assi morta veria quem viva ndo esperava mais de ver; sabia bem que ja nam perderia cousa que a seu Mestre fosse igual e que a dor chegara onde chegar podia que a hua mother fraca e delicada fazes que desprese a dura morte. Mas o Sfior a quem nao esquecia tantas lagrimas por elle choradas vei consolar a quem tanto se doia. Aquele socorro de desconsoladas, aquela fonte viva de piadade, aquele emparo de desemparadas apareceu-lhe em forma de ortelaéo e disse-lhe: Molher porque choras agora? que buscas com tanta dor e tanta paixio? Ouvindo Maria a voz de seu Sfior vendo @ quem tanto desejava ver viu tambem o fim a sua grande dor. A sua alma resurgiu com novo ser com novo e com glorioso pensamento, com novo @ com desacostumado prazer. ja nao avia lembranga do tormento nem chegou numqua a sua tristeza onde chegou 0 seu contentamento. (1) 1) Cod. cit. . 27.— Vid. tambem a Elegia da Alma, no- a Omelia do S. S., impressa em 1551. PARTE II.—LIV. I. CAP. XI 309 - Poetas como Balthazar Estago, que conheceu perfei- tamente a metrificagio portugueza e tinha um evidente sentimento poetico, esterilisaram-se sacrificando-se ao Mysticismo;"como resistiria Jorge da Silva a esta cor- rente deleteria? Amigo de Camées, seria um omissio censuravel, o nao alludir pelo menos ao Seu nome n’esta eschola lyrica. ; . A imitagio camoniana é um caracteristico de Vasco Mousinho de Quevedo Castello Branco, que pertéence ao ultimo quartel do seculo xv1; no seu poema historico Affonso Africano nao é mais flagrante a imitacdio do que nas suas poesias lyricas publicadas em 1590. N’esse livro encontra-se o Soneto que comeca: Espanta crescer tanto o crocodilo (fi. 61.) que anda em nome de Camées (n.° x1x) desde 1595, e que Soropita depois retirou da collecg&o, por esse mo- tivo. Em Vasco Mousinho o Soneto traz a rubrica: «A Dom Fernando Martins Mascarenhas quando 0 fizeram Bispo.» Apezar de Soropita o ter regeitado, Faria e Sousa tornara a encontrar este Soneto com o nome de Camées em differentes manuscriptos, e continuou a admittil-o na collecc&o. (Son. cLxxxvil.) As relagdes do grande epico com o Bis o Dom Gon alo Pinheiro, fazem suppdr que o plagio estd decididamente da parte de Vasco Mousinho, como o prova a insistente attri- buigéo dos manuseriptos. Pouco se sabe da personali~ dade d’este poeta; no livro das suas Rithmas da elle a * e B10 ' HISTORIA DE CAMOES entender ‘que ja estava formado em Direito em 1590; que andava aborrecido da poesia e que 86 tinha em mira tirar vantagens como jurisconsulto. Os seus principaes versos foram escriptos na permanencia em Coimbra du- rante o tempo dos estudos; é em Coimbra que localisa os seus ‘amores, e a0 Mondego a'quem communica os seus pezares. Na dedicatoria do livro a Dom Alvaro de Lencastre, deixa escapar estas pequenas particularida- des da sua pessoa: «desculpe-me a brevidade do tempo que n’isto empreguei a intervallos da obrigagito do es- tudo, com os quaes é bem d’aqui por diante correspon- der sé, porque inda que agora me mostro Poeta, fruito colhido na passada edade, espero cedo mostrar-me ju- risconsulto, fruito d’ella. » Esta dedicatoria é datada de 1590, e pelo seu final :pdde inferir-se que Vasco Mou- sinho Castello Branco chegara n’esse anno a Lisboa com a sua formatura completa. A vontade de ganhar dinheiro fel-o abandonar a poesia; a vida burgueza seduziu-o, e 0 facto de imprimir os seus versos seria talvez para alli- viar-se d’esses manuscriptos que poderiam tental-o; ao imprimil-os mostra a mais absoluta despreoccupagio lit- teraria, dizendo que nao teme a critica: «quanto a mi como nio grangeo venturas, nem as espero de traba- lhos semelhantes, nao ha que temer avessos. » «: Em’ Coimbra terminou em 1589 0 seu poema da Vida'de Santa Izabel, escripto em outava rima; (1) re- - (1) No thesouro das preciosidades do antigo convente da Madre de Deos, de Lisboa, existe um poema anonymo em ou- tava rima, escripto em 1583, e ainda inedito, sobre a Vida e PARTE. IL.—LIV. I. CAP. XI BLL ferindo-se ds consequencias do desastre de Alcacer Ki- bir, termina com uma allusio 4 Invencivel Armada que ia a Inglaterra atacar a heretica Isabel; dizendo qual foi 0, motivo do seu poema: Isabel escolhi por mais conforme A este tempo da impia Isabella, Para que a sua vida tao enorme Se confunda com esta vida bella. Durante a permanencia na Universidade, Vasco Mousinho de Castello Branco bajnlou sempre emp Sone- tos o Reytor Antonio de Mendonga; e podemos dizer que bajulou, porque tambem nos seus sonetos celebra a partida do Cardeal Alberto para Madrid, (fl. 85) que go- vernava ou occupava Portugal por ordem de Philippe 1. Vasco Mousint o de Castello Branco teve intimidade com Pedro de Mariz, Guarda-mér da Livraria da Uni- yersidade de Coimbra, e editor dos Commentarios dos Lusiadas escriptos por Manoel Corréa, e dados 4 luz em 1601; Pedro de Mariz, Preshytero e Bacharel em Martyrio de Santa Barbara; & em quatro cantos e dedicado 4 Abbadessa do referido mosteiro. Este poema inteiramente des- conhecido é uma tentativa epica, como tantas outras que se fi- zeram depois do cxemplo de Camies; pertence ao typo do poc- meto de Frei Paulo da Cruz, o Fradinho da Rainha, sobre a Trasladagio do Martyr S. Vicente, e do Primaz do Ermo, de Simao de Camées, que se guarda na Bibliotheca de Evora. A belleza profunda d’este assumptos agiographicos, esti unica- mente nas lendas populares das primitivas Acta. Sanctorum; desde que as Musas foram invocadas a celebrar e alindar estas formosas crengas do povo, tornam-se apenas cansados esforcos para contrafazcr a eschola italiana. 312 HISTORIA DE CAMOES Canones, era revisor da imprensa de seu pae Antonio Mariz, e ai imprimiu em 1594 os seus Dialogos da va- ria Historia; 0 Soneto que dedicou Vasco Mousinho em 1590 «A Pedro Mariz, sobre o seu livro» (fl. 68) prova-nos que o conheceu em manuscripto, e por*con- sequencia leva a inferir uma certa intimidade. Seria talvez por influencia de Pedro Mariz, cujo nome lhe serve de equivoco do genitivo latino maris, que elle foi levado 4 admiracéo de Camées. A reminiscencia dos versos de Camées sente~se constantemente, chegando a ponto de reproduzir-lhe alguns; um dos seus Sonetos termina: . Para consolagéo d’esta mae velha, (fl. 83.) que se acha no sentido episodio de Inez de Castro, na comparacio com Polixena: Qual contra a linda moga Polyxena Consolacio extrema da mie velha:.. Y (Zus., ut, 131.) Vasco Mousinho de Quevedo obedeceu 4 influencia hespanhola escrevendo uma grande parte dos seus ver- sos em castelhano, e sobre tudo tornando a pér em vi- gor os romances em redondilha, mas jA com esse cara- eter subjectivo como os escrevia Lope de Vega. N’este mesmo anno de 1590 escrevia segundo o ly- rismo camoniano o poeta mystico Balthazar Estaco; esta data serve-nos de ponto de partida para fixar o PARTE JI.—LIV. I. CAP. XI 313 tempo em que abandona a Esschola velha. (1) Nos seus versos (fl. 172) traz uma Ecloga 4 morte do Padre Luiz Alvares, da Companhia de Jesus, envenenado segundo pérfidas supposigdes do tempo pelos Judeus na villa de Avis em 25 de Septembro de 1590. O Padre Luiz Al- vares era amigo intimo do Prior do Crato; qual o seu afferro ao partido nacional depois da tomada de Portu- gal por Philippe 1, pdde-se vér pela seguinte rubrica de um sermao copiado junto aos Manuscriptos de So- ropita: «Pregagiio que fez o De&o da S¢é de Silves do Al- garve em Lisboa nas exequias de El-rei Dom Sebastiao, e depois soube eu que dissera o Conde de Portalegre que era de Luiz Alvares, collegial da Companhia de Jesus, o que me pareceu verisimil por esta ser a linguagem de Luiz Alvares.» (2) Balthazar Estaco tambem attribue aos judeus o seu envenenamento: Mas nao me espantarei do que aqui callo Se quem matou ao Rei, matou o vassalo. (FI. 173.) O motivo da morte @’esse eloquente prégador é fa- cil de explicar; os jesuitas sacrificaram-no 4 justiga de Philippe 11, para se defenderem diante do publico da imputagao de traidores. A fama da eloquencia de Luiz Alvares chegou a oma, e Pio v, dizia ao geral Borja: «Ougo que tendes em Portugal um Sam Paulo.».A (ly Vid. Dernardim Ribeiro e os Bucolistas. (2) Poes. e Pr., p. xxxv. 314 HISTORIA DE CAMOES este dito tradicional allude tambem Balthazar Estago na sua Ecloga: Foy do passado Paulo viva traga. Como Fernao Alvares d’Oriente, Balthazar Estago tambem glosou versos de Camoes; 0 Soneto Horas bre~ ves do meu contentamento recebeu uma glosa mystica ap- * plicada ao amor divino. Balthazar Estaco ao recclher a collecgao dos seus versos, compoz uma Ode para se excusar d’esse traba- Iho ao amigo que lh’o pedia; é n’essa poesia que a tra- dig&o de Camdes Ihe acode 4 mente e lembra o despreso e indifferenga que a poesia tinha entre o publico: 7. Como queres que cante A gente qne néo oure? Como queres que faga a Musa humana, Que ininha voz levante, E que com ella louve A quem com esperangas vis me engane? Se a Musa profana Melhor se premiara Nao era o erro tanto Abaixar pelo prentio d'alto canto, Mas se cu assi cantara, Tivera o premio humano Que teve o gréo Cantor do Oceano, Sea mente ds Musas dada + O premio lhe tirou Do esforgado brago ds armas feito, Como serd estimada A Musa que cantou Fundada s6 no verso mal acceito? PARTE H.-—LIV. I. CAP. XT 315 Seria péla sua amisade com o Padre Luiz Alvares, que elle recolheu a tradigio sympathica da vida de Ca- moes. Balthazar Estaco é profundamente mystico nos seus versos; nenhum sentimento humano transpira n’essa metrificacaéo harmoniosa, arrojada e colorida, mas mo- notona como o som de uma 86 corda. Celebra com a mesma uncdo todos os mysterios do christianismo, os sentimentos da humildade, da penitencia, todos os san- tos notaveis, mas apezar da sua perfeigio metrica, pa- rece que nao fala uma linguagem nossa; é como um ecco, uma voz sem realidade. Elle abusa até ao extremo do dialogismo usado por Camées, e que os outros poetas seguiram. Aqui transcrevemos um Soneto, que serve de typo d’esse defeito e de variante a muitos outros aqui transcriptos: Como supremo Deos na Virgem entrastes, Como homem na mie vos detivestes, Como Deos d’esta mie-Virgem nascestes Como homem mortal logo chorastes. Como Deos a tal mie Virgem deixastes, Como homem por Mie mulher quisestes, Como Deos, tendo mae pae nao tivestes, Como homem da mie vos sustentastes. Ab eterno do Pae fostes gerado . Que sem principio o pae foi vossa origem, Mas feito como Reo estar entre os réos. ‘Assi que Deos e homem sois chamado, -Pois que sois natural filho da Virgem, Como sois natural filho de Deos. (fl. 59.) 316 HISTORIA DE CAMOES Com o nome de Camées tambem ge acha este Soneto de Balthazar Hstaco, recolhido pelo snr. visconde de Ju- romenha em uma Ms. do seculo xvii: Co tempo o prado seco reverdece, Co tempo eae a folha ao bosque umbroso, Co tempo para o rio caudaloso, Co tempo o campo pobre se enriquece; Co tempo tudo anda e tudo para, Mas sé aquelle tempo que é passado Co tempo se nao faz tempo presente. (1) O pobre mystico Balthazar Estaco 4 falta de reali- dade abraca-se 4s figuras de rhetorica até ao phrenesim. Ao convencer-se da instabilidade do mundo, mostra que ha para elle alguma cousa que subsiste —a tauiologia. Este vicio destruiu a boa tradic&o camoniana do se- culo xvI, como 0 elmanismo materialisou a versificagao portugueza no principio do nosso seculo. (1) Fl. 53. Na edigdo de Camies pelo snr. visconde de Jurome- - nha, 6 0 Soneto cccxv1; tem apenas a variante: Com o tempo, ete, O facto de andar em nome de Camées n’uma collecg&o ma- nuscripta do secnlo xvi, embora nado seja uma prova irrefra- gavel da sua authenticidade, vem cada vez demonstrar mais a forte impressio do estylo camoniano nos poetas portuguezes do fim do seculo xvr. O editor de Camdes achou uma variante hespanhola ém outro manuseripte, mas com outras rimas e sem admiravel final da forma portugueza. \ PARTE II.—-LIV. I. CAP. XI 317 Acceniuando os factos em que esta pleiada robusta chamada os Quinhentistas se afunda na mediocridade, deixamos estabelecida a connexéo fatal que nos leva para a caprichosa e frivola litteratura do seculo xvur, que serviu de instrumento a todas as puerilidades das Academias, a todas as bajulagdes dos aulicos, a toda a forma de incapacidade e aberrac&o do ideal. Qual a causa desta mediocridade e d’esta insensatez em que se mos- tra a relagio intima dos dois seculos? Attribue-se o fa- * eto a uma causa palpavel: 4 absorpgaéo da nacionali~ dade portugueza sob pretexto de heranga ou de con- quista por Philippe u, e ao uso quasi exclusivo do cas- telhano ein vez da lingua patria. Nenhuma d’estas cau- sas era bastante para fazer decahir tanto uma litteratura; ai vemos a Polonia, que sob a pressio da Russia, in- spira os seus grandes poetas Mickievikz, Krasinski; ai vemos a Hungria, que sob a pressio da Austria inspira Poetefi. Nao foi dentro da epoca dolorosa e incerta da Restauragio que Beranger cantou para o povo? E re- montando-nos mais alto, os melhores trechos da Bi- blia néo foram escriptos nos captiveiros de Israel? Quando a historia se repete assim com esta regulari- dade, podemos dizer que uma lei domina a sua evolu- Gio; e portanto, a verdadeira e inspirada litteratura por- tugueza deveria ter sido produzida entre 1580 e 1640. Deu-se 0 contrario; procuremos essa outra causa mais intima. Depois de Gil Vicente e de Camées, ninguem mais no seculo xvr fundou a ercacao litteraria sobre a base 318 HISTORIA DE CAMOES organica e fecunda da tradigio nacional; as condigdes moraes que actuaram sobre esses dois genios foram indifferentes e extranhas a todos os seus contempora- neos, que sentiram a litteratura através da Grecia, de Roma e Italia. Em vez de servirem as aspiracoes da so- ciedade, exibiram os recursos de uma habil imitacao. Podemos repetir com Philaréte Chasles: « Isolando a litteratura da vida real, da vida activa, fere-se mortal- mente as obras do espirito Os Conventos e as Uni- versidades, propagando os ridiculos erros legados pelos sophistas antigos fizeram da vida intellectual uma vida especial, sem relagéio com as guerras, com as tradigdes populares, as alteragdes politicas, as descobertas da in- dustria, c as conquistas da arte.» (1) Ora, os Quinhen- tistas, depois de fixarem na escripta a lingua portugueza, nada mais tiveram que fazer, e os seus nomes ficaram ignorados, porque nunca tiveram communicagio com o pove. Procuremos um livro portnguez que.nos inte- resse pelo sentimento nacional, sé achamos, rhetorica,. rhetorica, imitagio banal. Sd a forte separacdo que se- deu entre o povo e o escriptor, a ponto de: se desconhe- cerem e de terem actividade independente, 6 que nos explica a extinccao da pleiada quinhentista na esteril mediocridade. Esta mesma, causa permaneceu nos secu- los xvu e xvm1, e d’aqui resulteu o seu cultismo e a sua obscenidade, as metaphoras seiscentistas e os mo- delos arcadices. (1) Yoyage dun Critique, ete. Espagne, p. 290. ADVERTENCIA Como esta Parte 1 da Historia de Camées & bas- tante vasta e dard na impressdo para cima de 600 paginas, resolvemos publicar em separado este 1.° Livro em que se estudain OS POETAS LYRICOS. Fica no prélo 0 2.° Livro destinado aos POETAS EPICOS Eis 0 elenco dos principaes capitulos : 1.2 Formacdo de uma epopéa nacional antes de Camées. 2° Critica dos Lusiadas. 3.° e4 parodia do Canto I dos Lusiadas. 4° Jeronymo Corte-Real. 5° Francisco d’cAndrade. 6° Luiz Pereira Branddo. 72 Vasco Mousinho de Quevedo. Catalogo geral dos Poetas portuguezes no seculo XVI. (Continga a paginagio.) HISTORIA DA POESIA PORTUGUEZA (ESCHOLA ITALIANA.—IID) Seculo XVI HISTORIA DE CAMOES POR THEOPHILO BRAGA PARTE IL ESCHOLA ‘DE CAMOES (Livro Il—Os poetas epicos) PORTO IMPRENSA PORTUGUEZA— EDITORA 1875 LIVRO It OS POETAS EPICOS CAPITULO I Frimeiras tentativas de uma Epopéa nacional Assim como na primeira Renascenca as Gestas se converteram em Chronicas, na segunda Renascepga do seculo xv1 as Chro- nicas tornain-se Epopéas eruditas.—a) Affonso Giraldes e 0 Poema da batalha do Salado, — Relagées com a Chronica em redondilhas de Rodrigo Jannes. —A Prophecia do Leao dor- mente, do seculo xix, apparece no Bandarra em 1540. — b) Diogo Brandao, ¢ a Lamentagdo 4 morte de Dom Jotio IL, A férma hespanhola do poema da Cava.—c¢) Diogo Velho, Coplas & descoberta da India, —Como se vulgarisira a tra- digdo de um designio providencial reservado aos Portugue- zes.—A inseripgao sybilina de 1508.—d) Joao de Barros, e os rudimentos de uma Epopéa portugueza: ainda a forma da outava castelhana ou de lamentagao: reminiscencias da, tentativa de Barros no canto m dos Lusiadas.—e) Luiz An- riques, e o poema da Temada de Azamor. O syncretismo his- torico do ideal patrio no nome uzitania. — Allusdo a Vir- gilio. — Camdes nas estancias supprimidas dos Lsiadas fal- Jando de Azamor, excede em belleza o poeta do Cancioneiro. —A necessidade de uma epopéa revelada com a maior cla- reza em 1564.—Como a Kneida tinha de ser fatalmente o modello da Epopéa. As Cancoes de Gesta da edade media, que foram a expressio epica do mundo moderno, sob o regimen da erudigio da primeira Renascenga do seculo xii affecta- ram um caracter historico, tornaram-se Chronicas ri- nnadas, como as escreviam Benoit de Sainte More, Phi- 1—Tomo nn. 3820 HISTORIA DE CAMOES lippe de Mouskes ou Rodrigo Jannes. (1) No seeulo xvt a férte Renascenga classica levou pelo servilismo da imi- tagéo grega e romana a traduzir-se outra vez a chroni- ca em epopéas academicas. Assim, se no seculo x11 um Affonso o Sabio baséa a Chronica general de Es- pafia sobre os romances tradicionaes do povo diluin- do-os em prosa, no seculo xvx um Lorenzo do Segura traduz e retalha a prosa dos Chronicong em versos de redondilha. (2) Sao dois actos que se ligam e comple- tam mutuamente, filhos do mesmo syncretismo que se deu em toda a Europa. Vejamos como a Epopéa do se- culo XvI nasce d’esta segunda corrente. Antes do poema dos Lustadas, a litteratura portugueza apresenta algu- mas tentativas de epopéa; como the faltava esse nucleo vital de toda a concepgao epica, o mytho obliterado na tradigdo, serviu-se dos successos historicos na sua expo- sig¢éo menos poetica, pela ordem chronologica. Faltava- nos tambem esse respeito pelas grandes Gestas da edade media, que nds parodiémos jronicamente, como se vé na Gesta de mal dizer, de Affonso Lopes Baiao. O poema de Affonso Giraldes 4 batalla do Salado é uma imita- ¢&o das formas metricas usadas na corte de Affonso x1; o poema de Diogo Brandao 4 morte de D. Jofio 1 enu- mera os feitos de D. Joio 1, Dom Duarte, Dom Af- fonso Vv e Dom Joao 11, imitando o antigo metro de arte maior, chamado na poctica hespanhola estylo de lamen- tagao, que o marquez de Santillana coustituia em ge- (1) Formagéo do Amadis de Gaula, cap. 1. (2) Epopéas da raga mosarabe, p. 283. PARTE II.—LIV. IL. CAP. I 321 nero litterario; as Coplas de Diogo Velho & Descoberta, da India dao-nos 0 fio da tradig’o prophetica do Ledo dormente com que, tanto o poema de Rodrigo Jannes como o popular Bandarra, symbolisam o rei de Portu- gal. Joao de Barros é o primeiro que, presentindo a unidade nacional, reconhece a necessidade de uma epo- péa que seja a expressio d’essa consciencia; e 0 chro- nista esboga com difficuldade 0 quadro de uma epopéa em férmas archaicas do verso de arte maior. Luiz Anri- ques conhece j4 o symbolo da unidade politica de Portu- gal representado pela identificagéo imaginaria dos Lu- sitanos com os Portuguezes; estuda Virgilio e cita o canto sexto; tira a invocagio poetica dos sentimentos christéos; assiste como heroe 4 victoria de Azamor, mas faltava-lhe a elle e a todos os outros 0 genio, essa quali- dade moral que leva o homem, como diz Carlyle, a fir- mar-se nas cousas e nio nas apparencias das cousas, Camées sentiu intimamente a realidade d’isto quo eram apenas sonhos e vagas aspiracoes. Porque é que as tentativas de uma epopéa nacional comegaram em Portugal pelas chronicas: rimadas até chegarem ao poema historico? Portugal constituiu a sua independencia em uma epoca em que a fecundidade profunda das creagdes da edade media estava termina- da; foi por isso que entrémos logo em uma actividade historica, e ja nfo era tempo nem de crear nem de ela- borar essas ¢radigoes fundamentaes d’onde se derivam as epopéas, e que produzem as litteraturas. N’este ponto Portugal teve uma certa analogia com o povo romano, 3822 HISTORIA DE CAMOES que pelo seu immenso cosmopolitismo e pelo seu espiri- to juridico entrou muito cedo no periodo consciente da civilisagdo. Como Virgilio, Camoes nao fez a sua epo- péa exclusivamente de um facto historico, mas tomou um centro em volta do qual agrupou as poucas tradigdes nacionaes que pode alcancar. Foi este instincto que deu a Cumées o primeiro logar sobre os poetas epicos do mundo moderno, depois de Virgilio. Repetimos com Comparetti, no seu livro capital Virgilio nel medio evo, explicando o motivo porque a forma epica litteraria é rarissima entre os gregos e exuberantissima entre os romanos: «Ma il sentimento dei romani era tanto ga- glidrdo e potente, e la natura loro di popole storico era tanto fortemente pronunziata che un solo le epopee sto- riche presso di loro furono piu numerose che presso di altri, ma ebbero anche maggior successo di quello si sa- rebbe potuto aspettare dal epopea storica anche la me- glio concepita, quando la freddeza sua naturale non fosse stata compensata dal calore straordinariamente intenso e persistente del sentimento a cui era rivolta e che an- che ’avea suggerita.» (1) O mesmo caracter historico do povo portuguez, que o fez abracar sem difficuldade a civilisagio romana, den a Camées essa mesma intui- do poetica de Virgilio, e naturalmente explica a con~ stante redaccio de epopéas historicas no seculo XVII, para as quaes esté o poema os Lusiadas, como a Eneida a (1) Op. git, tp. 10. PARTE II.—LIV. IL. CAP. I 323 est& para os poemas de Lucano, de. Stacio, de Silio Ita- lico e de Claudiano. Assentada esta base critica, vejamos como das fér- mas da chronica rimada passimos para a epopéa histo- rica. a) Affonso Giraldes e o «Poema da Batalha do Salado.» Uma das principaes paginas historicas em que foi empregada a lingua portugueza é esse fragmento da descripedo da batalha do Salado, ue anda ‘unt - - Liliario; este go pe capita no dominio dos Arabes, que assegurou a estabilidade e seguranca das nacionalidades da Peninsula, assim como despertou o interesse dos poe- tas foi o assumpto do primeiro poema narrativo es- cripto na lingua portugueza. A Batalha do Salado, era uma especie de chronica rimada escrista .or Affonso Giraldes, em quadras de redondilha, como se péde co- ~ nhecer pelos fragmentos publicados por Brandao e Blu- teau; (1) hoje esté totalmente perdido este monumento, mas tanto pela forma metrica, como pelo espirito da sua concepgio podemos julgal-o como uma imitacio d’esse celebre poema conhecido pelo nome Cronica en co alas vedondillas de Alfonso Onceno, escripto por Rodri- go Jannes, cue como Affo s> Giraldes, se achou tam- bem na bata + 9. «+ Jo. O poema castellano foi des- coberto por Diego Hurtado de Mendoza em 1573; nao (1) Recolhidas nos Trovadores galecio-portuguezes, p. 269. 324, HISTORIA DE CAMOES accentuaremos a sua importancia com relacio 4 histo- ria ¢ litteratura hespanhola, basta-nos apenas alguns confrontos com os fragmentos de Affonso Giraldes: St. 335: E dioles grandes franquezas Por Castilla mas valer, Todas aquestas noblezas El buen rey fizo fazer. Em um dos fragmentos de Affonso Giraldes acha- mos quasi textualmente reproduzidos os dous ultimos . versos por esta forma: Todas estas cortezias Este rei mandou fazer. Uma das poucas estrophes que restam do poema portuguez, aparece no poema de Jarines uma vez com a mesma rima, outra com um verso inteiro: St. 821: Don Goncalo Mar * nas viedo Ce rsillo a Todos lidiavan sin medo 4 Matando en log paganos. St. 1826: + Todos gran muy sin medo. Para cumplir su perdon, E Gon + a . , Levava c su pendon. PARTE II.—LIV. II. CAP. I 325 Eis a estrophe portugueza: Gon-alo Gm 7 1 > Arr~ 2° ort |, Entrava 20s Mouros sem medo Como fidalgo leal, Se os fragmentos do poema portuguez fossem mais extensos, por ventura se achariam paradigmas mais ca- rateristicos da imitaeao da Chronica de Jannes. Na tra- : digdo portugueza, que reapparece no seculo XVI nas pro- phecias de Bandarra, falla-se ainda no Ledo dormente, —e no Porco selvagem, com que pela occasido da batalha do Salado se representava a lucta do rei de Portugal na sua allianga com Affonso-x1 contra os Mouros. Na Chronica en coplas redondillas achamos 0 mesmo espirito das prophecias de Bandarra, mas com o seu sentido his- torico: St. 1807: Merlin, sabidor sotil, « Dixo luego esta rrason: Acabados los annos mill E los tresientos de la Encarnacion. finauenta e nueve conpliran os annos de esta fasanna La mar fonda passarin De besteas muy grand canpanna. Muchas cosas acontecerdn, Maestro, creeldo giertamente, Fuertes batallas seran En las tierras el Poniente. 326 HISTORIA DE CAMOES Reynard un leon provado En la provengia de Espanna, Serd fuerte ¢ apoderado, Sennor de muy grande canpanna. Escontra cl sol Poniente En el tiempo d’este leon, Reyna un Leon dormiente, Muy manso del coragon. E el leon coronado Que en este tienpo regnar, EI serd desafiado Del puerto de allen la mar. Salir-se ha el Puerco espin, . Sennor de la grand espada, De tievras de Benamarin, Ayuntard grand albergada- Con bestias bravas ¢ perros marinos, Las aguas fondas passaran, Cobririn montes e caminos En la Espahna aportarin, E todos se ayuntardn Con el Puerco apoderado, Estas nuevas Uegaran Luego al Leon coronado. El leon temblar fara Las tierras de Oriente EK. com grand sanna saldré Por las terras del Ponicnte. PARTE II.—LIV. IL CAP. I 327 x E de toda la su gente Levar’ poca criason, Desperturd el Leon dormiente Que ovo dormido a grand sason. Los Leones se abragaran Amos com muy grand plazer, Al puerto estrecho Hegaran, Descosos por comer. El] Puerco apoderado Non saldré de una montanna, FE] Leon coronado Bramaré con muy grand ganna. En las covas de Eredéles Abrin fuert lid enplasada, Muchas bestias mataran Al Puerco de la grand espada. Fl Leon dormiente bencerd E] Dragon de la grand fromera, EF] leon coronado arrancara El puerco por una ladera. El! Puerco ser& bencido Escapara de la muerte, A Marruecos sera bolvido Com muy grand desonrra fuerte. Nas prophecias de Bandarra apparecem estas mes~ mas allegorias tradicionaes: Oh senhor, tomai prazer Que 0 grao Porco selvagem Se vem ji de seu querer Metter em vosso poder -Com seus portos e passagem. (St. txvt.) 828 HISTORIA DE CAMOES J& o Ledo é esperto, Mui aberto, Jé acordou, anda caminho, Tirard cedo do ninho O Porco, e he mui certo, Fugiré para o deserto, Do Leio e seu bramido... (St. uxxv.) Um grio Ledo se erguerd E dara grandes bramidos Seus brados seraio ouvidos ' E a todos assombrara: Correra morrerd, E fari mui grandes damnos, E nos reinos africanos A todos sugeitard. (St. txxvit.) ‘ x Vi um gra Leio correr ’ Sem se deter Levar sua viagem, Tomar o Porco selvagem Na passagem Sem nada lh’o defender. (St. xcrv.) O Rei novo 6 acordado J& da brado, ete. (st. xcrv.) Ja o Ledo vae bradando E desejando Correr 0 Porco selvagem, E tomal-o na passagem Assim o vae declarando. (St. cv) Estes versos, que tanto tem occupado a imagina-~ c&o portugueza desde o seculo xvi até ao seculo xvin, acham-se explicados pelo poeta-chronista Rodrigo Jan- nes: . PARTE Il.—LIV. II. CAP. I 829 St. 1832: Estas palabras apuestas De los Leones e Puerco espin- Asi como sson conpuestas Profetisélas Merlin. El Leon coronado Sobre que funds rrason, Fue este rrey bien aventurado De Castilla ¢ de Leon. (Alfonso xt.) E el otro Leon dormiente Aquel rrey fue su natural Que rrenéd en el Poniente Que aman de Portugal. (D. Affonso rv) E el bravo Puerco espin Sennor de la grand espada. Fue el rrey de Benamarin, Que a Tarifa tovo gercada. Rrey de Granada fué el Dragon, Granada la grand fromera, Este rrey de grand coracon Cuydé ganar la frontera. Las bestias bravas e perros marinos Que aportava en la Espana, Moros fueron viejos e ninnos Que y perderan grand conpanna, Pelas relagdes entre a Chronica en coplas redondil- las e o poema de Affonso Giraldes, é que se pdde ex- plicar a connexfo entre as trovas de Bandarra reno- vadas em Portugal depois da tomada da Goleta com as antigas allegorias propheticas da victoria do Salado, em 3880 HISTORIA DE CAMGES que figura Affonso Iv como 0 Ledo dormente. Na Chro- nica de Rodrigo Jannes figura tambem a rainha D. Ma- ria, vindo a Portugal interceder para com que seu pae auxilie Affonso xt seu marido contra a terrivel inva- sio musulmana. O colorido poetico que Camdes achou n’esta tradigéo historica, bem nos revela que elle nio recebeu esse lindissimo episodio dos Lusiadas unica- mente por via das Chronicas officiaes do reino, que em geral narram os factos palidamente; e o poeta nao iria idealisar esse passo politico, se nas primeiras tentativas de epopéa historica se ndo bouvesse j& aproveitado o que elle tem de bello e de humano. b) Diogo Brandao, e a «Lamentagao 4 morte D. Joao II> & este poeta um dos principaes vultos do Cancio- neiro de Resende, (1) irmao mais vellio da decantada Maria da sentidissima Ecloga Crisfal; imitador da es- chola hespanhola do seculo xv, ignora as formas da epo- péa moderna impostas pela Italia, mas presente o va- lor dos poemas historicos diante dos inmensos succes- sos da cérte de Dom Jofio u. Em uma longa elegia 4 morte de Dom Joio u, adopta a antiga outava dos tro- vadores, como Affonso Sabio ou Francisco Imperial, com o tom narrativo de uma chronica. A tradigio clas- sica nao o preoccupa : (1) Poetas palacianos, p. 308. PARTE I.--LIV. Il. CAP. I 331 Dizer dos antigos, que sam consummidos, nain quero, em Gregos falar, nem Rom&os, mas nos que nos cdem aqui d’antre as mios, vistos de nds e de né3 conhecidos. Diogo Branddo expde rapidamente a successfio dos reis de Portugal desde Dom Jodo 1 até D. Joiio 11, ten- dendo sempre para os vagos aphorismos moraes do des- prezo do mundo: Antigos exempros a parte deixados sem os alheos querer memorar, os mortos em Canas deixemos estar com outros mil contos que sam ja passados. Deixem de ser aqui relatados: abaste falar nos possuidores desta nossa terra, que d’ella abaixados foram assi como pobres pastores. Que se fez d’aquelle que Ceyta tomou por forga aos Mouros com tanta vitorea, 0 intitulado de: Boa-Memoria, que a si e aos seus tio bem governou? As cousas tam grandes, que vivend’acabou afora nas batalhas mostrar-se tam forte, com outras facauhas em que s’esmerou nunca poderam livral-o da morte. Seu filho primeiro, bom rey Dom Duarte, . que foy tam perfeyto e tam acabado, reynando muy pouco, da morte levado foi, como quiz quem tudo reparte. Seus irmaos, os Infantes, que tanta de parte na vertude teveram, polo bem que obraram tendo nas vidas trabalhos que farte, com tristes sogessos alguns acabaram. 352 HISTORIA DE CAMOES O sobrinho d’estes, Infante de grorea, progenitor de quem nos governa, que foy de vertudes tam crara lugerna, tambem ouve d’elle a morte vitorea. Com tudo nom péde tirar-Ih’a memorea, de ser esforgado e forfe na fée, tomou este princepe, dino de estorca per forga a Mouros o grand’Anafée. O quinto Affonso nom quero calar, que assi como teve vitorea crecida, tantos trabalhos teve na vida que Ihe causaram mais ced’acabar; Tambem acabou o filho de dar fim a esta vida de tanta miscria, no qual determino hum pouco falar posto que emprenda muy alta materia. Este foy aquele bom rey dom Joham, o mais eycelente que ouve no mundo, rey d’estes reinos, d’este nome o segundo humano, catholico, sojeito aa razan... (1) } Quando Camées tragou episodicamente o quadro da historia de Portugal, nao foi levado como Diogo Bran- dao unicamente pela synthese moral para que sio tra- zidas todas estas outavas; tinha em vista fazer sobresatr pela poesia os lances mais vivos da historia de cada rei- nado. A intengao moral no basta para a obra de arte; Diogo Brandao, nao sé pela ignorancia da eschola ita- liana, como pela estreiteza do seu ideal néo podia ence- tar a grande epopéa portugueza, que a nossa vida his- torica exigia. ~ (1) Cane. geral, t. 1, p. 190. PARTE I.—LIV. If. CAP. I 333 c) Diogo Velho, Coplas & Descoberta da India As allegorias propheticas que vimos no poema imi- tado por Affonso Giraldes, receberam no principio do ° seculo xvi um sentido novo com relagio 4 descoberta do Oriente. Em 1516 escreveu Diogo Velho, da Chan- cellaria umas ¢oplas em que sob a allegoria da caga des- creve as grandes riquezas de Portugal alcangadas pelas novas descobertas maritinias; era esta tradigdo em parte mysteriosa que ia creando a aspiracéo para uma epopéa da nacionalidade. Nos povos catholicos, em quem se obliteraram completamente os mythos das racgas a que | pertencem, a Epopéa nao tem essa condicgio organica para desenvolver-se, e 6 por isso artificial sem o senti- mento profundo da generalidade que se propde repre- sentar. Na epopéa portugueza ha este vago espirito pro- phetico tradicional, que substitue o elemento mythico que falta aos outros povos; é esta aspiragio mysteriosa que conserva Camédes nos Lusiadas, conciliando da ma- neira mais harmonica a concepcdo individual com os caracteres da creagio anonyma. Vejamos como Diogo Velho narra sob a antiga allegoria os maiores factos da vida historica de Portugal: O da gram mata Lixboa onde toda caga véa, Arabya, Persia e Géa : tudo cabe en seu curral, 334 HISTORIA DE CAMOES Calequo e Cananor Malaqua, ‘Tauriz menor, Adem, Jafo interior todos vém per hum portal. Ouro, aljofar, pedraria, gomas, e especiaria, . toda outra drogaria se recolhe em Portugal. Ongas, lides, alifantes, monstros e aves falantes, porgelanas, diamantes € ja tudo muy geral. Gentes novas escondidas que nunqua foram sabidas, sam_a nds tam conhecidas como qualquer natural. Jacobytas, Abassynos, Catayos ultramarinos, buscam Godos e Latinos, esta porta principal. Que 0 anno de quinhentos e com mil primciro tentos descobriram os elementos esta caga tam real, Em este segre gintel reyna el rey Dom Manoel, que recolhe em seu anel sua, devisa e seu sinal. PARTE II.— LIV. IL CAP. 1 335 Porque he muy virtuoso, excelente e justi¢oso, Deos o fez tam poderoso rei de getro imperial. ‘ Sua santa pargar: rainha dona Maria estas maravilhas lia per esprito divinal. Esta he gentil andina pera cantar com a Mina, Cafym, Zamor, Almedina tambem he de Portugal. Rezam he que nam nos fique a alma do ifante Anrique, e que por ela se soprique ao nosso deos gclestrial ; Porque foy desejador € 0 primeiro achador d’ouro, servos ¢ hodor, e da parte oriental. O poderoso rey segundo Joham perfeito, jocundo, que seguiu este profundo eaminho tam divinal. O cabo de Boa Esperanga descobriu com temperanga por synal e demonstranga d’este bem que tanto val. E Manoel sobrepojante rei perfeito, roboante, sojugou mais por diante toda a parte oriental. 2 x - 336 HISTORIA DE CAMOES Aquelle grande prudente Profetisou do Ponente e de toda sua gente cagar caga tam real. O gram rey Dom Manoel a Jebussen e Ismael tomara e fard fel a ley toda universal. J& os reys do Oriente a este rey tam excclente pagam pireas e presente, a seu estado triumfal. As novas cousas presentes sam a nés tam evidentes, como nunqua outras gentes jamais viram mundo tal. He ja tudo descoberto, o muy longe nos é perto; os Vindouros tem por certo o thezouro terreal. (1) Dioco Velh descreve os successos do seculo xvI como uma prophecia que acabava de ser realisada; al- lude 4 divisa de Dom Manoel com o mesmo intuito mysterioso de Damiao de Goes. O severo Chronista, apesar do seu espirito critico incutido pela amisade de Erasmo, niio péde eximir-se ao prestigio deslumbrante (1) Cane. geral, t. ux, p. 462. PARTE I.— LIV. Il. CAP. I 337 de certas coincidencias. Diz elle, falando tambem da di- visa da Esphera armillar: «N’este tempo Dom Manoel nao era casado, nem tinha tomado divisa segundo cos- tume dos princepes, pelo que el-rei Dom Joao lhe deu por divisa a figura da Esphera porque os mathematicos representam a forma de poma a machina do céo e terra, * com todos os outros elementos, cousa de espantar, e que ‘parece nao carece de mysterio prophetico, porque assim como estava ordenado por Deos que elle houvesse de ser herdciro de el-rei Dom Jofio, assim quiz que o mes- mo Rei a quem hayia de succeder, lhe desse uma divisa per cuja figura se demonstrasse a entrega e cessio que lhe fazia, para, como seu herdeiro, proseguir depois da sua morte na verdadeira aucio que tinha na conquista e dominio da Asia e Africa, como fez com muito louvor seu e honra d’estes reinos.» (1) Quando Camées creava o sonho de el-rei Dom Manoel nos Lusiudas, era levado a esta férma do maravilhoso nao pelas velhas machinas aristotelicas, mas pela tradigéo viva dos designios pro- pheticos a que até os proprios chronistas obedeceram. A influencia classica da Renascenca veiu contribuir com as suas interpretagoes das obras da antiguidade para se formar essa extraordinaria tradigdo das descobertas por- tuguezas; e como quer Humboldt, a celebridade rapi- damente adquirida da passagem da Afedea, (act. UL, v 371 sq.) que se applicou 4 descoberta do Novo Mundo, veiu dar nascimento a essa inscripgdo sybilina de que (1) Goes, Chr. de D. Manoel, t. 1, cap. 5, p. 1L * 333 HISTORIA DE CAMOES fala com assombro Castanheda na Ifistoria do Desco- “brimento da India, enja fraude foi descoberta pelo juris- consulto Cesar Orlando. (1) His a 1 linguagem de Casta- nheda: «... a India, cujo descobriniento estava propheti- “ gado Wantes pola Sibila Cumea, segundo se conta em um authentico livro que anda impresso em latim que se intitula Da Sagrada Antiguidade, em que se contém muitos letreiros antigos, que foram buscados ¢ achados em muitas partes d’Asia, d’Africa e d’Europa per man- dado do Papa Nicolo quinto e Valguns senhores eccle- siasticos tao curiosos d’estas antiguidades, que com mui- to grande despeza as mandaram buscar pelo mundo, E antre estas foi achado um letreiro segundo no mes- mo livro conta Valentim Moravia: que diz que no anno de mil e quinhentos e cinco, que foi seis annos depois d’este descobrimento, aos nove dias d’Agosto nas raizes do Monte da Lua, a que chamamos agora a rocha de Cin- tra, junto da praia do mar foram “achadas debaixo da terra tres columnas de pedra quadradas, e cada uma ti- nha ¢m uma das quadras cortadas nas mesmas pedras umas letras romanas, das quaes em uma das columnas se poderam Jer por as outras estarem gastadas do tem- po, e ainda estas que se leram foram as pedras cm que estavam cosidas com grande arte, «E estava uma regra como titulo que dizia em latim: . (1) Humboldt, Hist. de la Geographie du Nouveau-Conti- nent, t. 1, p. 166. PARTE It.—LIYV. If. CAP. I 839 Sibilae vaticinium oecidius decretum «Que na lingnagem portugueza quer dizer: Profecia da Sibila determinagao aos do Occidente. «E abaixo d’esta regra estavam quatro versos lati- nos que diziam: Volvens saxa literis et ordine rectis, Cum videas oriens oecidentes opes, Ganges, Indus, Tagus erit mirabile visu, Merees commutabit suas uterque sibi. «Que quer dizer na nossa lingua: Serio revoltas as pedras com as letras direitas e em ordem, Quando tu Occidente vires as riquezas d’Oriente. O Ganges, Indo e o Tejo ser4 cousa maravilhosa de vér, Que cada hum trocaré com o outro as suas mercadorias. cE ainda dizem alguns que poucos dias antes de Nicol’ chegar a Sintra foram achadas estas co- lumnas e foi dito a el-rei Dom Manoel por cujo man- dado Ruy de Pina, que era a esse tempo era chronista, tirou em. linguagem esses quatro versos e o titulo. E quando el-rei Dom Manoel viu o que diziam ficou mui- to espantado com todos os de sta corte, e houve sobre isso diversos pareceres, porque uns 0 criam, outros di- viam que por nenhum modo podia ser, e que aquillo eram gentilidades a que se néo devia dar nenhum cre- dito. Ii estando a cousa assim em duvida, dizem que chegou Nicoléo Coelho que a desfez com a nova do des- 340 HISTORIA DE CAMOES cobrimento da India. E foi a prophecia avida por ver- ~ dadeira...» (1) Estas tradicgdes propagavam-se e exal- tavam a imaginacio. Acerca da estatua da Ilha do Corvo, escreve Damiiio de Goes: «No cume d’esta serra da parte do Nordeste, se achou uma Hstatua de pedra pésta sobre uma lagea, que era um homem em cima de um cavallo em osso, e o homem vestido de uma capa como bedem, sem bar- rete, com uma mio na céma do cavallo e o brago direito estendido,e os dedos da mao encolhidos, salvo o do se gundo, a que os latinos chamam index, com que apon- tava contra o ponente. Esta imagem que toda sata mas- sica da mesma lagea, mandou el-rei D, Manoel tirar pelo natural por um seu creado d»onx 19> que se cha- mava Duarte d’Arma ,e depois que viu 0 debuxo, man- ou um homem engenhoso natural da cidade do Porto, que andara muito em Franga e Talia, que fosse a esta Tha pera com aparelhos que levou tirar aquella anti- gualha, o qual quando d’ella tornou dixe a El-rei que a achéra desfeita de uma tormenta que fizera o inverno passado. Mas a verdade foi que a quebraram por méo azo e trouxeram pedagos d’ella, s6 a cabega do homem, e o braco direito com a mao, e uma perna, e a cabeca do cavallo, e uma mao que estava dobrada, e alevan- “tada, e um pedaco de uma perna, o que tudo esteve no guarda roupa de el-rei alguns dias, mas o que se depois fez d’estas cousas ou onde se puzeram, eu niio o pude (i) Castanheda, Hist. do Descobr., liv. 1, cap. 23. PARTE II.—LIV. HH. CAP. I 3H saber.» (1) Damido de Goes tambem fala de uma outra inscripgio analoga 4 dos marmores de Cintra, achada na Ilha do Corvo em 1529 por Pero d’Afonseca o qual «soube dos moradores que na rocha, abaixo donde es- tivera a Hstatua, estavain talhadas nas mesmas pedras da rocha umas letras, e por o logar ser perigoso para se poder ir onde o letreiro esté, fez abaixar alguns ho- mens per cordas bem atadas, os quaes imprimiram as letras, que ainda a antiguidade do tempo nao tinha ce- gas, ein céra que para isso levaram; comtudo as que trouxeram impressas na céra eram j& mui gastadas e - quasi sem férma, assi que por serem taes, ou por ven- tura, por na companhia néio haver pessoa que tivesse conhecimento mais que de letras latinas, e este imper- feito, nenhum dos que se ali a-haram presentes soube dar razio nem do que as letras diziam, nem ainda po- deram conhecer que letras fossem.» (2) d) Joo de Barros, e os rudimentos da Epopéa portugueza * Pelo estudo da historia dos grandes feitos dos por- tuguezes, Joao de Barros foi o primeiro que exprimiu a necessidade de fazer sentir o genio nacional reve- lando a sua consciencia em wma epopéa. Na Novella cavalheiresca 0 Clarimundo, escripta para ensaiar a penna que havia de tracar as Decadas, apresenta elle um pequeno esbogo de epopéa, partindo tambem d’uma (1) Chron. do principe’ D. Juéo, cap. 1x. (2) Tb, 9x. , 342 HISTORIA DE CAMOES revelagio prophetica dos extraordinarios destinos que Portugal havia de realisar. No canto 11 dos Lusiadas (est. 44-55) seguiu Camées esta mesma f$rma prophe- tica; mas embora a nao imitasse directamente, é hoje indubitavel que a leitura das primeiras Decadas deter- minou-lhe a concepgao da sua epopéa. Em 1533 reci- tou Jodo de Barros diante de Dom Joao m1 um Pane- gyrico, e ai censura. que os poetas palacianos se esgotem escrevendo trovas namoradas, em vez de cantarem os feitos de armas: Predominava a eschola lyrica hispano- italica; lia-se com fervor as Eclogas de Bernardim Ri- beiro e 0 Crisfal; era a época das complicadas intrigas “ amorosas; quem deixaria a dogura idylica pela furia grande ¢ sonorosa, a agreste avena pela tuba canora? Quando Camées estava preso, e incerto no seu destino, foi o enthusiasino das primeiras duas Decadas que lhe suscitou o desejo de visitar a India e de tomar parte activa nos feitos que queria cantar. Entre os anteces- sores de Camées cabe a Joao de Barros o principal lo- gar, e talvez unico, por ter despertado o pensamento dos Lusiadas. Transcrevemos 0 poemeto que anda interca- lado no Clarimundo, (cap. 10, do liv. 4.) por ser o maior esforco para provocar a creagéo de uma epopéa; consta de quarenta outavas em endechas, ou estylo de lamenta- ¢do, como se lhe chamava na poetica do seculo xv. Jodo de Barros é aqui bastante ingenuo e pittoresco, mas na sua justa concepedo da epopéa da navegacéo portugue- za, querendo ser poeta nao pdde livrar-se a feigdo grave e fria do chronista: PARTE II.—LIV. ll. CAP. I. © tu, immensa e sacra verdade, Verdade da summa e clara potencia, Que mandas e reges com tal providencia As cousas que obraste na mente, e vontade; O trino em pessoas, e sé divindade, Infunde em mim graca pera dizer As obras tao grandes, que hao de fazer Os Reis Portuguezes com sua bondade. No tempo que Affonso o Emperador Dera seu sangue por dar gakardio Aaquelles que dér nunea sentirio Em o derramar por scu Redeinptor, Dard tambem por mais seu louvor, A Henrique em dote matrimonial, As terras da Terra do gram Portugal Pera as possuir como justo Senhor. Aqueste com ferro mui vietorioso Rompendo as earnes de centos de Mouros, Leixard de obras tio grandes tesouros Quanto no céo estard triumphoso : Succedendo a elle o mui generoso ElRei_ D. Affonso Henriques primeiro Primeiro em nome, e em verdadeiro Rei enviado por Deos glorioso. O campo de Owrique ja’gora he eontente Da grande victoria que n’elle sera, Onde Christo em carne appareceré Mostrando as chagas publicamente. Ao qual este Rei Santo, e prudente Dird: 0° meu Deos, a mim pera que? Sé aos herejes imigos da Fé, Fé, em que cu ardo d’amor mui ardente. 343 B44 HISTORIA DE CAMGES © Armas divinas, que aqui sereis dadas, Dadas por Christo por mais perfeigao, Ter-vos-hAo todos tal veneracio Quanto com obras sereis exalcadas, Porque pelas terras ircis espalhadas Ranhadas em sangue de nossa victoria, Cobrando de imigos tao grande memoria Que sobre todas sereis collocadas. E tu esforgado Dom Sancho ser4s Aquelle a quem elles hao de seguir Té chegar ao Rio de Gualdaquivir Que com saugue de imigos escurecerds: E por mais mercceres, depois tomaras A cidade de Silves contraminando E as almas de corpos sempre tirando De corpos de Mouros que alli matards. Alcacer do Sal seréd bom penhor, O’ mui poderoso Dom Affonso segundo, De tuas obras c& n’este mundo, E no outro coréa de conquistador ; E partindo para elle mui vencedor, Aos teus leixaris Dom Sancho Capelo Por Rei de virtudes e obras de zelo De zelo mui santo, e clemente senhor. Bolonha, Bolonha, quanto hasde perder, E tu Portugal quanto hasde cobrar No terceiro Affonso, que se hade chamar Rei do Algarve, por seu gram saber! Aqueste por, mais se ennobrecer Dourados castellos em campo vermelho, Pord na orla dag Quinas, e espelho, Em que todalas armas se poderio ver. PARTE IJ.—LIV. I. CAP. I 345 Paderne, Alvor, Silves, e Loulé, E Faro sentem jai o destrogo Do grande podcr, e bravo esforgo D’elle que hade pugnar pela Fé. E o santo favor que foi sempre, e he Em ajuda das obras de tal qualidade, Serd n’estas suas com prosperidade . Que as erga, exalce, e ponha em pé, Q justo Diniz, tao nobre e clemente, Lhe succederd como filho primeiro Em obras de Principe mui verdadeiro, E em todalas consas sabido, e prudente. E por mais estender seus povos e gente, Fundaré as villas e nobres Ingares, Igrejas maiores, sagrados Altares, Em que se Jouve por mui excellente. O Quarto Affonso seré commovido Com rogos d’aquelle seu sangue amado Que leixe 0 seu Reino, por ser no Salado Em ajuda e soccorro delRei seu marido. E d@aqui ficard assi tanto temido Antre infieis, e danados pagaons Quanto no conto dos nossos Chyist3os Pera sempre. louvado, e mui conhecido. O rigor da justica se hade leixar A ti Dom Pedro, Dom Pedro Primeiro O nome de Cri por ser verdadeiro Verdugo d’aquelle, que males obrar. Mas tu por ella hasde ter e cobrar - A gloria que dao a quem a mantem; | E seris isento dos males que tém Aquelles que julgam por se affeigoar. 346 HISTORIA DE CAMOES Bem vejo Fernando andar agastado, - E mui descontente por hym grande mal, Sendo o primeiro, que em Portugal Hade sentir tao grave enidado. : Mas nfo leixard seu Real estado Isento de fama e obra famosa Pois cercard a mui populosa Lisboa de novo com muro dobrado. Santa Maria de Agosto sera De ti Dom Joo de Boa memoria, Memoria honrosa de quanta victoria N’este tal dia o teu brago tera. E onde se mais claramente vera O quanto em ti cobrar Portugal, Serd n’aquella batalha real Que aqui a gram se ordenara. E a Loba marinha, ¢ gran tragadora, Ceita dannosa aos navegantes, Nao.tem poder, nem forcas possantes Que 4s tuas forgas resista uma hora, Mas fazendo-se serva de Grande Senhora Ja te obedece, Magnanimo Rei, Rei que por lei, e povo, e grei Daras teu sangue sem alguma demora. O’ Duarte Primeiro, se pudesses viver Mais de seis annos depois de ser rei, Que povos, e terras, que vejo ¢ sei Que mui facilmente poderas vencer ! Mas tu soubeste melhor escolher, Leixando esta vida tao trabalhosa; E ir por aquellas onde a gloriosa Madre de Deos havemos de ver. PARTE II.—LIV. II. CAP. I 347 Tanger e Alcacer niio hiiode escapar Do grande poder de Affonso o Quinto, O’ Joaime seu filho, que obras que sinto, Que asde fazer quando se entrar A villa de Arzilla pelo Albacar! Isto em tempo que a sua idade O peso das armas com difficuldade Nas brandas carnes podera sustentar. 6 tempos, 6 tempos, tempos de guerra De guerra com Mouros e paz com Christéos, Quem fosse entio por beijar as mios, As miios que terdo por divisa Esphera! divinas obras, nas quaes se esmera A fama famosa do gran Manoel, Quem se vissc n’aquelle tropel Que vés cercareis as partes de terra! Os mos e ingratos que a Christo mataram, Por elle tio santo, e poderoso rei Serao convertidos, tornados 4 Lei A lei da graca que elles negaram, E assi cobrarao 0 que nunca cobraram, Depois de perder o que tinham perdido Com suas inaldades, e endurecido O mio coragdo, que nunca abrandaram. Bem como 0 rio que com invernada Derriba ¢ estraga o que acha adiante, E se he impedido se faz mais possante Pera sahir com furia dobrada: Assi a forga d’este seré esmerada Em quem a ella quizer resistir, E a quem na obedecer, amar e servir, Mansa, pacifica, e nui aplacada. 348 HISTORIA DE CAMOES Que falas, que dizes, ou dize que ouviste gifim com todalas tuas cabildas, Pois tio temcroso ji agora te humildas, As armas d'’aquelle, que tu nunca viste? + Nao temas, nado temas, que nao serds triste Quando te vires em poder de quem A todos teus males tornard em bem, Ein bem repousado, que nunca sentiste. E tu Aduquélla com teu Azamor ‘Tambem eu vos vejo com ferro lavrados, E com sangue dos vossos tambem ji regados Que sexta feira serd bom penhor. Penhor do que digo, e grande louvor Das armas d’aquelle que isto fario: As quaes de contino assi lavrardo As terras de imigos por este temor. Afotas, Asas, com os de Cumania, E seu poderoso e grande Xarife Vendo hum seu pequeno esquife Se ajuntarao com os de Acania. E vindo todos com grande alegria * Entrardo carregados com cheio alforge, Na cidade d’ouro chamada Sam Jorge Por ser achada n’aquelle tal dia. Os ers Andiotes da gran terra Danda Com os Aciros, Laniis, Beramiis, Sabendo a nova, dirao: Ora sus, Vamos servir aquella que manda, ‘Terras ¢ mares 0 seu nome anda Por todalas partes tanto temido Que da poder ao menos valido E ao poderoso depde e desmanda. * PARTE II.—-LIV. I]. CAP, 1 349 E aqnelle gram Cabo de Boa Esperanca Que tanta de terra esconde ao mundo, Vird mui alegre com rosto jocundo A Ihe obedecer sem algnma tardanga. De terras e povos fazendo uma danga Vindo cantando com doce harimonia, Estas palavras de grande alegria: Vivamos contentes com tanta bonanga. Com tanta bonanga, pois temos rasito Que Deos he comnosco, segundo o publica, O seu nome santo, que nos testifica Vivermos a vida sem mal ¢ paixdo, E na outra cobrar e ter salvacio Das almas, que agora temos danadas Seguindo j& todalas suas pizadas Pizadas de casta e limpa tencio. E quem a todos trard a dianteira, E para tal festa estard mais a pique, Sera o fiel e Ical Mogambique Vindo Gofala por sua bandeira. A qual é louvada por ser thesoureira Do mais precioso e pesado metal, E com vozes alegres dird: Me fez para sempre sua pri E n’esta envolta viré mui contente A Ilha do Sancto em grelhas assado, Trazendo destro um rieo toneado Da flor que ella tem por mais excellente. Cereundo em torno toda aquella gente De IIhas pequenas suas comareans Mostrando-se todas muito lougas “Por serem sujeitas ao Rei do Poente. 350 HISTORIA DE CAMOES Quiléa, Mombaca, Mclinde, Patém, Baraba cidade, e Abalandarim, Com a fraca gente do forte Apenim, Zapenda, Guardafi, e o Cabo que tem, Trarado comsigo a grande Adem Inda que venha ensanguentada, E_com sua dura cabega quebrada, Das forgas do Rei d’aquem e d’alem. E o Rei de Ormts, Macrio e Neutaques, Dinlicente, Rezbutos, Cambaia, Com os Guzarates que he gente que ensaia Mal sua vida em guerreiros embates. E Meliquiaz com seus baluartes Com elles vird tambem n’esta involta, E Chaul e Dabul 4 redea solta E Géa tomada por muitos combates. Batigala, Angediba, e Onor, Com a terra toda do grao Malabar, Em tio alegre tempo nao hao de negar Companhia ao forte é grao Cananor. O qual se noméa por grande senhor Em ser guardado e mui difendido Com Naires fidalgos, que acecitam partido De morrex, e viver por pouco valor. Tambem vird aqui a forte cidade Caleevt e Cochim, e a Ilha Ceildo, Onde se acha o povo christio Que tem e mantem alguma verdade. Ainda que faz a mér neeedade Na romagem do Cabo do gram Gamorim, Pois dando as vidas com lastima (assim) Obrar n’isso euida excclsa piedade. PARTE IL.—LIV. IL CAP. I BBL E os Quelinis, Chatins nomeados Por ser estrangeiros e nio mercadores, Ajuntar-se-hio com quantos primores Acharem n’aquelles que sio guerreados Dos de Narsinga, pouco esforgados Por mingua de armas ‘c de coragiio, Que em corpos e boa disposigéo S&o bem assds proporcionados. E péstos em .ordem mui concertada. Esperardo pela rica Malaca, Que vem carregada com uma curraca Das terras e povos de que ella 6 amada, Onde entra Simio com sua enseada, E Patane, que tem por desenfadamento Ver guerra de gallos e o vencimento Que cada um ha va sua ligada. Champa e a China com a Cidade Que perder4 o povo dos Persas, Passando por terras muito diversas Logo vir com gram brevidade, Em busea dos Lequeos, que tratam verdade Levando comsigo a Burnea gente, E ajuntandos todos faric um presente De fé e amor e gram lealdade. O qual trar%o por mui certo sinal Que inda que fossem os derradeiros N’aquelle tempo seréo 08 primeiros Para servir e amar Portugal. E Gamatra, que cérta a Equinocial Com todolos Reinos, e povos que abarca, Ajuntar-se-ha com a grande Comarca D'aquella e Archipelago oriental. 3 . “ HISTORIA DE CAMOES E n’este alegre e novo prazer, E grande triumpho que todos fario, Entre Jodo e Angane, e Bin3o Armado das forgas e forte poder De Pantasilea, que quiz parecer Na antiga batalha d’aquelles troyanos Que no cabo e fim de tempos e annos Por grego engano fara fenecer. Pois Banda com todolos Reis de Timor, Ambona, Maluco, e as mais que nao digo, Todas virao trazendo comsigo Umas amor, e outras temor: Porque estes dois meios sAo o tenor Por onde se rege dos homens a vida, E elles a fazem ter mui commedida Aos mais grandes reis, e fraco pastor. Agora, agora em feitos maiores Dobrada, Senhor, me da tua ajuda, Pois minha lingua se turva e se muda Nas obras que vejo de tantos louvores. Nao negues aqui o furor dos favores, Pois nunca o negaste a quem t’o pediu, E em sua Fé levou e sentiu Que tu és o Senhor dos grandes Senhores. A ti, Portugal, que estds descontente, Quero eu dar alegre esperanga, Com que dos males hajas vinganga Dos males passados de toda tua gente. A justa justiga do muito clemente El-rei Dom Jodo d’este nome terceiro, Fard com que vivas em mui verdadeiro Descango eterno é muito contente. PARTE T.— LIV. WW. CAP. 1 353 E quando se vir em forga perfeita Do mal se punir, e a quem merecer Dar galardio por nao parecer A. sua verdade e via direita; Entao da ovelha a vés sera acceita No meio dos altos e mui fortes prados, E 0s mansos cordeiros fartos guardados Do lobo danado c4 vida lhe espreita. Pois tu que nio queres com sono acordar Espera, espera um grande despejo; Oh meu Deos, Senhor, quantas obras vojo, Em que néo vejo por onde entrar. (1) Com que tristeza se lamenta Joio de Barros por nio vér surgir um genio que comprehenda o alcance poetico do grande facto da descoberta do Oriente; na Decada I exclama: «Certo, grave e piedosa cousa de ouvir! vér uma Nagao a que Deos deu tanto animo, que se tivera criado outros mundos ja ld tivera metido outros padres de victorias, assim he descuidada na posteridade do seu nome; como se nao fosse tao grande louvor dotal-o por penna como ganhal-o pela langa!» (2) O verso quasi proverbial de Camées, Se mais mundo howvera ld chegdra, —e tambem a allianga que sempre estabelece entre a penna c a espada, além de pequenas particularidades, convencem-nos que a generosa aspira- gio de Joao de Barros o impressiondra profundamente. 1) Clarimundo, cap. 4, liv. ux. 2) Decada TI, tiv. 5, cap. 11. * 354 HISTORIA DE CAMOES e) Luys Anriquez, poema sobre a «Tomada de Azamor» O poema historico mais completo tentado antes mes- mo da comprehensio das férmas epicas da Renascenga, é 0 cue escreveu Lui Henriques para celebrar a victo- ria do Duque Dom Jayme em ‘Azamor, em 1513, Pou- co se sabe da vida d’este poeta, mas quasi todas as suas composicées revelam algum facto ou época por onde se nos d& a conhecer: em 1491 celebrou o desastre do principe Dom Affonso; em 1495 escreveu uma Lamen- tagdo 4 morte de Dom Jofo it, em outavas segundo o est lou+do per . noo Sab" - em 1498 commemo- rou tambem a trasladagao dos ossos de Dom Joao ny, e em 1506 paraphraseou o hymno Ave maris Stella, ces- tando o reyno muy enfermo de peste ¢ de fomes.» Pelos seus versos sabe-se que tambem esteve em Valenca de Aragio, aonde galanteava uma dama «que lhe disse’ que ‘a deiwvasse de servir, porque era mal criada e o tratava mal.» Finalmente seguiu a vida das armas achando-se na Mina. Luiz Henriques revela nos seus versos 0 fio de certas tradicdes que o levavam para a concepeiio da epopéa; o nome de Portugal ja se lhe substitue na men- te pela designagao erudita de Lusitania, com que se quiz dar a este povo uma origem ethnologica indepen- te de Hespanha. Na lamentacio 4 morte de D. Joao m1, diz elle: © morte cruel, sem tempo chegada a ty, Lusitania, de lastima dina. (Cane. ger., t. u, p. 246.) PARTE W.—LIV. II. CAP. I 355 Assy, Lusitanos, que vossa graveza deveis confortar com rey tio humano. (Ib., p. 248.) Em 1481 é que o nom Tau * é empregado significando o povo portuguez, no Discurso latino reci- tado pelo bispo Dom Garcia de Menezes diante de Six- to rv. (1) A renascenga erudita aproveitou-se dessa vaga designacio empregada pelos geographos gregos, e diante do facto da unidade nacional consummado por Dom Joo 11, transportou para o passado essa uni- dade confundindo o nome de Portugal com Lusitania. Antes de Henrique Cayado e Cataldo Siculo adoptarem esta designagio de um modo poetico nos seus metros latinos, ja Luiz Henriques a empregava nas outavas historicas de lamentacdo. O syncretismo poctico do nome de uma tribu com o nome de uma nacionalidade ° entrou na corrente scientifica por Ayres Barbosa, An- dré de Resende, Margalho, Osorio, Goes até 4s ultimas phantasmagorias por Frei Bernardo de Brito; mas este syncretismo representa uma nocdo verdadeira a que se tinha chegado: a consciencia da unidade nacional com que comecava para nds o grande seculo xvi. Quando Camées formou eruditamente 0 nome da epopéa d’esta nacionalidade, serviu-se da palavra impropria mas que primeiro tinha expresso a consciencia d’essa unidade. Quando Ayres Barbosa usou em uns yersos latinos a pulavra Lusiadas como patronymico dos portuguezes, (1) Hereul., Hist. de Port., t. 1, 10. 356 HISTORIA DE CAMOES ainda a confuséio entre lusos e portuguezos pertencia 4 pesada erudicéio; quando Camées designou com ella o seu poema,, jd essas imaginarias origens ethnologicas tinham ensoberbecido as imaginagdes do vulgo. Luiz Henriques concilfa esse ideal erudito com o sentimento catholico que o néo deixa imitar os poetas classicos, aonde elle via como parte essencial as invoca- goes, sempre reproduzidas nas modernas epopéas. No poemeto 4 trasladacio de Dom Joao 11 condemna a in- vocagio das Musas: As Musas, que invocam famosos poetas em suas obras e doce poesia a estas niio chamo, nem quero por guia, caso que sejam muy justas e netas. Ajuda demando de quem os planetas e céos obedecem desde ab inicio: a elle invoco, que n’este exercicio dé parte da graga que deu 6s prophetas. (1) Em umas trovas de Luiz Henriques «a um homem que nao cria que elle fizera umas trovas de arte, mayor porque levavam muita poesia» revela-nos um largo co- nhecimento da mythologia romana, e principalmente da epopéa de Virgilio: ni menos que el duque, el fijo d’Anchises foy al Erebo, segun el prudente (1) Cane. geral, t. 1, p. 249. PARTE II.—LIV. I. CAP. I BiT Virgilio recuenta, por el conseguiente que al su passage tremio la paluda, . ni que Lapenca passé morte cruda por el piadoso, qual ela lo siente. (1) Por todos estes conhecimentos Luiz Henriques foi insensivelmente levado para a composigio de um poema historico; na conquista de Azamor foi tambem heroe, mas a realidade do que conta deu-lhe essa simplici- dade e rudeza de uma Gesta da edade media; se as suas outavas fossem monorrimas, seria rigorosamente uma Gesta, escripta no tempo em que ellas se tinham tor- nado Chronicas. Elle comega como o antigo jogral que pedia a atteng&o do povo que se agrupava em redor: A quinze d’Agosto de treze e quinhentos da. era de Cristo, nosso redentor, do que se passou estae muy attentos, no dia da madre do mesmo senhor: © duque eycelente, nosso guyador, Dom James, da casa d’antigua Braguanca, de gente levando muy grande pujanga geral capitéo partiu vencedor. Nom pego favor que possa contar © que se passou na santa viagem, nem menos ajuda me praz d’invocar as antiguas Musas, nem sua linhagem. O poeta descreve o brasio prophetico da nacionali- dade com o mesmo ideal de independencia e grandeza da patria, que inspirou Joao de Barros ¢ Camées: (1) Tdéd., p. 269. 358 HISTORIA DE CAMOES Levando comsigo a bandeira real que nunea veneida se péde dizer, pois he invencivel aquel sinal tomado das chagas que quiz padecer O summo bem nosso com muitos marteiros, porque salyasse o mundo perdido; tambem senefica os trinta dinheiros per cujo prego foi Cristo vendido. Na Oragdo de Vasco Fernandes de Lucena diante de Innocencio viil em 1485, vem pela primeira vez ma- nifestamente declarado o sentido allegorico das armas portuguezas. Gil Vicente e Sa de Miranda, alludiram mais tarde nos seus versos a este mesmo emblema com que o sentimento ecatholico se envolvia com o ideal da nacionalidade. A causa da tomada de Azamor foi um pretexto para tomar sympathico o Duc ue Dom Jayme e laval-o da nodoa do assassinato da duqueza d Bra- gan a; Luiz Henriques o da bem a entender: Onde per ele Ihes fuy decrarado toda a tengiio del rey, seu sevhor, que foi envial-o sobre Azamor pola maldade do erro passado. C’a todos pidia que d’amor e grado quizessem sem outra vontade, nem zello em sua tomada tambem commetel-o pera que sempre lhes fosse obrigado. Era uma aventura romantica, que se repetiria na cérte ainda depois de terem expirado os velhos poetas que foram a essa expedigao, como o corajoso Dom Joao de Menezes, que Si de Miranda diz que ainda vin, exul- PARTE II.—LIV. I. CAP. I 359 tando por esses bons tempos. Tambem chegaram a Ca- mées essas tradicdes da arbitrariedade e do cavalheiris- mo impetuoso, e no canto vit dos Lusiadas celebrava elle a faganha de Azamor. No manuscripto dos Lusia- das, que possuia Manoel Corréa Montenegro, amigo de Camées, encontram-se essas outavas em louvor do Du- que Dom Jayme, que a Censura su or “u. Pdde-se affirmar positivamente, que o Santo Officio cortou esta passagem do poema, visto que Luiz de Camoes era amigo intimo do successor de Dom Jayme, Dom Theo- dosio, que elle celebrou no tempo em que frequentava as escholas de Santa Cruz de Coimbra, e cujo progeni- tor quereria conservar no pantheon da sua epopéa: Este deu gréo principio 4 sublimada Tilustrissima casa de Braganga, Em estado e grandeza avantajada A quantas o hespanhol Imperio alcanga. Vés, aquelle que vae com forte Armada Cortando o Hesperio mar, e logo aleanga O valoroso intento que pertende, " Ea villa de Azamor combate e rende. He o Duque Dom Gemes, derivado ‘ Do tronco antiguo e successor famoso Que o grande feito emprehendc, e acabado A Portugal da volta victorioso ; Deixando d’esta vez tio admirado A todo o mundo, e o Mouro tio medroso, Que inda atégora nunca ha despedido O grio temor entonces concebido. 360 HISTORIA DE CAMOES E se o famoso Duque mais avante Nao passa c’o a catholica conquista Nos muros de Marrocos e Trudante, E outros lugares mil 4 eseala vista, Nao é por falta de animo constante, Nem de esforgo e vontade prompta e lista, Mas foi por nio passar o limitado Término, por seu rei assignalado. Achou-se n’esta desigual batalha Um dos nossos, de imigos rodeado; Mas elle de valor, mais que de malha, E militar esforg¢o acompanhado, Do primeiro o cavailo mata e talha O colo.a seu senhor, com desusado Golpe de espada; e passo a passo andando Os torvados contrarios vae deixando. N’estas quatro outavas, que.a Inquisicéo amputou, apresenta Camées mais poesia do que Luiz Henriques nas suas marteladas trinta e cinco; o poeta do Cancio- neiro ignorava a estructura da outava italiana inventada por Boccacio e admittida na epopéa por Ariosto, e re- lata como um chronista; Camées dramatisa, mostrando a forca de caracter do Duque Dom Jayme que inter- rompe as suas victorias para cumprir estrictamente a vontade real, e inventa logo um episodio. Luiz Henri- ques, que tomou parte na tomada de Azamor, nada tes- temunhou que o levasse a esbocar um quadro pittoresco. O poema de Luiz Henriques, por isso que era escripto no antigo metro de lamentagdo, affecta tambem um cara- cter archaico; esta mesma affectacdo inspira 0 poemeto do Despojo de Arzilla. A. Miscellanea, de Garcia de Re- sende, nada significa n’estes esforgos para uma epopéa. PARTE IL--LIV. If CAP. IT 361 A necessidade de uma epopéa nacional tornara-se uma monomania publica. O celebre impressor Jofio de Barreira, dedicando em 1564 ao filho do Conde da Vidi- gueira a [Historia das cousas que o muy esforgado capitdo Dom Christovan da Cam fez nos reinos do Preste Jodo, que achou escripta por um Miguel de Castanhoso, com- panheiro de trabalhos do Capitdo, formula claramente a aspiracgio de uma epopéa que celebrasse a empreza do Gama: «Nam sem razio o grande Alexandre se mos- trava descontente por nam cair em seus tempos hum Homero, que seus feitos e faganhas celebrasse... E se alguma hora este Homero se houvera de desejar, hou- vera de ser n’estes tempos, em que acharia materias dignas de seu estylo. Porque se os errores de Ulysses lhe pareceram materia conveniente a seu engenho, e os feitos de Achilles, mais alta empreza era e maior campo de mostrar a divindade de seu espirito, a navegacio do Conde Almirante Dom Vasco da Gama vosso avé, de aqui até a India: e os feitos de Dom Christovam da Gama seu filho, vosso tio, na terra da Ethyopia. Porque por a viagem de Ulysses e os casos que em poucas le- goas do mar Mediterraneo lhe aconteceram, acharé a navegacéo de vosso avd desde o ultimo occidente até o nascimento do sol, por mares nunca navegados, por gen- tes nunca vistas nem ouvidas, descobrindo novos mun- dos, novas terras, novo céo e novas estrellas. Levantando a gloria de seu rei: e poendo as Quinas reaes de Portu- gal onde Alexandres nem Cesares poderam chegar. De que vieram ser tributarios os reis do Oriente aos de Por-

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