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Farabeuf 1

1 - O título da novela Farabeuf, em suas primeiras edições sempre foi acompanhado pelo subtí-
tulo “ou a crônica de um instante”. Em 1994, no entanto, o autor suprimiu esse subtítulo. (N.E.)
Toute nostalgie est um dépassement du présent. Même sous la forme
du regret, elle prend un caractère dynamique: on veut forcer le passé,
agir rétroactivement, protester contre l’irréversible. La vie n’a de con-
tenu que dans la violation du temps. L’obsession de l’ailleurs, c’est
l’impossibilité de l’instant; et cette impossibilité est la nostalgie même.

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E. M. Cioran, Précis de Décomposition

2 - “Toda nostalgia é uma superação do presente. Mesmo sob a forma de remorso, assume um
caráter dinâmico: quer-se forçar o passado, agir retroativamente, protestar contra o irreversível.
A vida só tem conteúdo pela violação do tempo. A obsessão do alhures é a impossibilidade do
instante; e esta impossibilidade é a nostalgia mesma”. E. M. Cioran, Breviário de decomposição
(1949). (N.T.)

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Capítulo I

Lembra-se...? É um fato indubitável que precisamente no momento em


que Farabeuf cruzou o batente da porta, ela, sentada no fundo do corredor,
agitou as três moedas nas mãos entrelaçadas e depois as deixou cair sobre a
mesa. As moedas não tocaram a superfície da mesa no mesmo momento e
produziram um leve tilintar, um pequeno ruído metálico, apenas perceptí-
vel, que pôde ter servido para criar muitas confusões. De fato, nem sequer
é possível precisar a natureza concreta desse ato. Os passos de Farabeuf
subindo a escada, arrastando lentamente os pés nos descansos ou sua respi-
ração ofegante, chegando até onde você estava através das paredes empa-
peladas, desvirtuam por completo nossas precisões acerca da índole exata
desse jogo que ela jogava na penumbra daquele corredor. É possível, por-
tanto, conjecturar que se trata do método chinês de adivinhação mediante
hexagramas simbólicos. O ruído que faziam as três moedas ao caírem sobre
a mesa faz supor isso. Mas o outro ruído, talvez o ruído de passos que se
arrastam ou de um objeto que desliza em cima de outro produzindo um
som como o de passos que se arrastam escutados através de uma parede,
bem pode nos levar a supor que se trata do deslizamento da tabuinha indi-
cadora sobre outra tábua maior, marcada com letras e números: a ouija.
Esse método de adivinhação, tradicionalmente considerado como parte do
acervo mágico da cultura do Ocidente, contém, no entanto, um elemento
de semelhança com o dos hexagramas: que, em cada extremo da tábua, está
gravada uma palavra significativa: a palavra SIM do lado direito e a palavra
NÃO do lado esquerdo. Não alude este fato à dualidade antagônica do
mundo que expressam as linhas contínuas e as linhas quebradas, os yang e
yin que se combinam de sessenta e quatro modos diferentes para nos dar o
significado de um instante? Tudo isso, é claro, só serve para aumentar a con-
fusão, mas você tem que fazer um esforço e lembrar esse momento no qual
cabe, por assim dizer, o significado de toda a sua vida. Alguém, talvez ela,
balbuciou ou proferiu umas palavras em uma língua incompreensível ime-
diatamente depois que se produziu o tilintar das moedas ao caírem na mesa.
O nome desse que está aí na fotografia, um homem desnudo, sangrando,

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rodeado de curiosos, cujo rosto persiste na memória, mas cuja verdadeira
identidade é esquecida... O nome foi aquilo que ela disse... talvez...
— “O senhor é uma pessoa meticulosa ao extremo, doutor Farabeuf.
Essa meticulosidade contribuiu, sem dúvida, para fazer do senhor o
cirurgião mais hábil do mundo. O senhor está seguro de não ter esquecido
nada? Qualquer indício de sua presença nesta casa pode ter conseqüências
terríveis e irremediáveis. O senhor deve ter certeza, com a meticulosidade
que o caracteriza, de que não falte nenhum dos seus instrumentos. Repasse
em sua mente a lista do instrumental. Para isso, o senhor pode empregar
diversos métodos. O senhor pode, por exemplo, repassar cada um dos
instrumentos em ordem descendente de tamanho: desde o enorme fórceps
de Chassaignac ou o espéculo vaginal número 16 de Collin até os pequenos
cateteres e sondas oftálmicas ou os pequenos alicates para a hemóstase capi-
lar ou as afiadíssimas agulhas hipodérmicas ou de sutura. O senhor pode se
assegurar, também, aplicando este método inversamente, quer dizer, pela
ordem ascendente de tamanho. É preciso, sobretudo, que o senhor não se
esqueça de nada aqui. O senhor já revisou a mesinha de ferro com tampo
de mármore que se encontra apoiada na parede debaixo do quadro alegóri-
co? Remova os algodões sanguinolentos e as gazes manchadas de pus; uma
agulha imprescindível, uma pequena sonda nasal de grande utilidade pode
estar oculta entre eles. Repasse, um a um, seus instrumentos de trabalho; os
que o senhor mesmo inventou e desenhou, e que lhe deram um justo
renome em todo o mundo, assim como aqueles que se devem ao engenho
de seus colegas mais notáveis. Não se distraia, doutor, ao fazer este inven-
tário mental. Não preste nenhuma atenção nessa bela mulher nua represen-
tada no quadro que tem na frente de seus olhos. Tenha cuidado de não
olhar para o chão; os jornais velhos que foram estendidos poderiam distraí-
lo igualmente. O senhor talvez já saiba por quê. Vai sair daqui de dentro em
alguns minutos e talvez não volte nunca mais a esta casa. Hoje o senhor teve
que se desviar consideravelmente de seu caminho habitual ao sair da Escola
de Medicina para vir até aqui. O senhor vacilou antes de se atrever a entrar
nesta casa em que viveu por tantos anos. Ao chegar pela primeira vez na
frente da porta, não entrou e voltou sobre seus passos para se dirigir nova-
mente ao Carrefour 3 para esperar o ônibus que o levaria para sua casa no
outro extremo da cidade. Mas o senhor voltou depois de pouco tempo e ei-
lo aqui a ponto de ir embora, talvez para sempre. É por isso que o senhor
3 - Cruzamento. (N.T.)

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deve se assegurar de que não deixa nada esquecido. Pense detidamente... as
diferentes facas para amputação cujo fio extremo é um de seus orgulhos...
as navalhas com suas formas diferentes de punho que se adaptam tão per-
feitamente à mão que os segura... os aguçados bisturis cujo peso basta para
produzir delicadíssimos cortes... a serra de dorso móvel que tão bons resul-
tados lhe deu aplicada sobre o fêmur... ou sua própria serra universal de
lâminas intercambiáveis, útil, sobretudo, quando se trata de fazer saltar os
braços conservando a articulação da cabeça do úmero na cavidade glenóide
do omoplata... cisalha, também de sua invenção, de incalculável valor para
aplainar as bordas que deixa a serra depois do corte de um osso ou nos esti-
lhaçamentos traumáticos sempre tão incômodos ao desenvolvimento de
uma intervenção nítida, perfeita... os diferentes clamps 4 e ligaduras, algu-
mas delas de bronze lustrado com parafusos de pressão dos dois lados, ou-
tras de plástico avermelhado e outras, enfim, de plástico cor de âmbar... os
cateteres... as tortuosas sondas que permitem penetrar através das fossas
nasais até as cavidades cranianas do occipício ou que permitem, pela boca,
explorar os meandros do ouvido interno... Não se esqueça, especialmente,
suas complicadas pinças, entre todos os instrumentos de sua invenção, as
que mais lhe honram, já que unem a rapidez instantânea, sim, ins-tan-tâ-
nea, à precisão e limpeza do corte na decapitação dos ossos alongados... e a
serra de Gigli, outro complicado produto da inventiva médica, com a qual
se solucionou para sempre o problema molesto do pó de osso que tantas
grandes reputações havia comprometido... O senhor está seguro de que não
falta nada? O senhor está com todos, mas absolutamente todos os instru-
mentos devidamente embrulhados nos pequenos lenços de linho, cuida-
dosamente guardados dentro da velha maleta de couro negro?...”
Ao passar por aquele batente — quem o teria ultrapassado sob a chuva,
vindo daquela encruzilhada? — se confundia a lembrança com a experiên-
cia (isto talvez devido à tenacidade dessa chuva miúda que não cessava de
cair havia muitos dias). A vida ficava sujeita a uma confusão na qual era
impossível discernir qual teria sido o presente, qual o passado. Ao passar
pelo batente daquela casa luxuosa e decrépita ao mesmo tempo, um tran-
seunte que tivesse parado para contemplar a fachada enrugada daquela casa,
projetada de acordo com a mais pura tradição do modern style, cheia de
beirais voluptuosos engordurados de salitre, de fumaça, de neblina e de
chuva, sim, se teria detido como se fosse inquirir as pedras carcomidas
4 - Pinças. (N.T.)

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daquele parapeito talhado na forma de enormes gargantas — o do lado
esquerdo, no qual estavam arraigados os liquens acinzentados — qual era o
verdadeiro significado daquele encontro marcado através das idades, daque-
le momento que só agora se realizava. É um homem — o homem — que
desce apressadamente de um pequeno automóvel esportivo de cor verme-
lha, com as mãos enluvadas e os olhos ocultos detrás de uns óculos escuros,
dirige-se à grade, empurra o portão de ferro para abri-lo e penetra naquele
meandro de buxeiro, descuidado, crescido além da sua harmonia original
até se converter em construções tortuosas que se confundem com os
arabescos vegetais que ornam a arquitetura da casa. “Como está descuida-
do...” pensa para si ao passar entre essas cercas abandonadas ao capricho de
seu próprio crescimento. É um ancião — o homem — que chega a pé sob
a chuva vindo do Carrefour, dentro de um grosso sobretudo de pano negro,
na gola do qual estão costuradas, como na gola de sua jaqueta, as listras de
três condecorações. Carrega em uma mão uma maleta de couro negro e, na
outra, um velho guarda-chuva através do qual escorre a água, caindo em
grossas gotas sobre os ombros do sobretudo impregnado de caspa seca. Você
se lembra seus gestos cheios de fadiga, não é? Lembra-se do seu passo artríti-
co cruzando aquela rua feita de lajotas; lembra-se do som lento — como o
som que faz a ouija quando começa a se mover —, o som árido de suas anti-
quadas botas ortopédicas sobre os degraus da escada deserta daquela casa —
3 rue de l’Odéon —, lembra-se da inquietude que emanava de sua respi-
ração ofegante quando se detinha apoiado no corrimão, em cada um dos
descansos acarpetados de pelouche 5 cor de vinho, a recuperar o fôlego
enquanto acariciava nervosamente os enfeites de bronze do final da escada?
Tenho certeza de que você guardou tudo isso em sua memória. Dê uma
olhada nestas paredes. Voltou depois de algumas horas — você, eu —
voltou depois de muitos anos — ele, ela. Veio porque ela — a mulher — o
chamou há apenas meia hora. Tirou o fone do gancho e, sem ter tempo
para dizer nenhuma palavra, já escutou a voz dela distante que lhe implo-
rava que viesse em sua ajuda, que lhe pedia que viesse para o seu lado pro-
ferindo uma fórmula já combinada. Você por acaso esqueceu? Já não espe-
rava essa chamada e no entanto o telefone tocou quando você sabia que
tocaria. Agora você veio em busca da lembrança da Enfermeira — a mulher
— sempre vestida de branco. Já não importa em nada a sua identidade real:
talvez seja o velho Farabeuf que chega até essa casa depois de ter feito saltar
5 - Pelúcia. (N.T.)

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duas ou três pernas e braços no enorme anfiteatro da Escola de Medicina,
ou talvez seja um homem sem significado, um homem inventado, um
homem que só existe como a figuração de outro homem que não conhece-
mos, o reflexo de um rosto no espelho, um rosto que no espelho há de se
encontrar com outro rosto. Isso é tudo. O que importa agora é se lembrar
daquele recinto. Você se lembra, não é assim? Mas sua memória não vai
além daquele rosto. Gostaria de esquecê-lo. Gostaria de esquecer a sensação
que produzia aquele objeto oceânico, putrefato, entre seus dedos. É preciso
que eu reviva tudo em sua memória enfraquecida; cada um dos detalhes
que compõem esta cena inexplicável. Não deve esquecê-lo porque só assim
será possível chegar a tocar o mistério daqueles acontecimentos singulares
que algo ou alguém, talvez uma mão que desliza sobre um vidro embaça-
do, tenta apagar. Não... é preciso não só se lembrar do rosto daquela mu-
lher vestida de branco — ou de negro, talvez — mas também as circunstân-
cias e os objetos que a rodeavam no momento em que decidiu se entregar,
urgida pela excitação que lhe havia provocado a contemplação de uma
imagem que tivera perante os olhos durante longo tempo enquanto caía a
chuva — supõe-se — antes de ligar e proferir a fórmula combinada; uma
imagem imprecisa na qual se representava, confusamente, um fato incom-
preensível, ou talvez terrivelmente claro. Não terá esquecido, estou seguro
disso, aquele salão enorme, que só por sua enormidade, duplicada na super-
fície daquele espelho adornado com uma moldura dourada, parecia luxuo-
so e esplêndido, mas que, na realidade, estava minado e manchado pelo
tempo e por todas as coisas que, ao longo dos anos, haviam se refletido nele.
A luz imprecisa, escurecida pelo pó, do entardecer infiltrava-se pelas duas
janelas que davam para a rua por cima do pequeno jardim abandonado. Na
contraluz não era possível ver com precisão o estado do veludo das cortinas
que bordeavam os batentes daquelas janelas. Sabíamos, no entanto, que era
um veludo desbotado pela luz dos anos, umas cortinas fúnebres com os for-
ros rasgados pelo seu próprio roçar, desfiados em sua parte inferior pelo
arrastar pesado por aquele piso de parquet 6 que a chuva, que às vezes se
enfiava através do batente da janela, havia carcomido e tornado áspero. Foi
justamente sobre essa parte do piso, apodrecida pela água, junto às franjas
sujas das cortinas de veludo desbotado, que uma mosca — seguramente
que se lembra disso, não? — caiu morta, depois de revoar insistentemente
perto da janela, depois de bater repetidas vezes nos cristais embaçados. Você
6 - Assoalho de madeira. (N.T.)

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teria corrido ao subir pela escada, pousando apenas suas mãos com luvas
no gasto corrimão da escada. Você teria apenas acariciado, ao chegar aos
descansos daquela escada que estala, os enfeites de bronze, mas ao chegar
na frente da porta fechada daquele salão, teria se detido um instante para
pensar que existia uma presença que a aguardava e a acolheria do outro
lado daquela porta e sua memória teria evocado o vaivém das ondas, acre-
ditando, por um momento, estar na beira do mar. Uns passos, o ruído pro-
duzido por duas pequenas tábuas de madeira que se roçam, por umas
moedas que caem sobre uma mesa, teriam proporcionado a segurança que
você buscava. Mas a porta e as paredes eram muito grossas e todos os ruí-
dos que se escutavam eram ruídos distantes e sem sentido para você naque-
le momento.
Três yin... uma linha quebrada.... ao arrancar a acelga também sai a
raiz... a perseverança traz consigo a boa fortuna...
“É preciso entrar neste salão sem dizer uma só palavra”, pensou o
homem ao chegar ao final da escada.
Abriria a porta imediatamente depois que se produzisse o ruído das três
moedas ao cair sobre a mesa e a veria de costas. Em seus olhos, havia ficado
gravada a imagem desse momento, desse espaço onde a luz fraca do entarde-
cer ia se coagulando ao redor dos objetos como o sangue que brota logo após
a incisão ser feita no corpo de um cadáver e veria todas as coisas que ali se
encontravam como se fosse a primeira vez que entrava no salão. Perto da
porta do corredor, a mesinha de ferro com o tampo de mármore. Em cima
da mesa, pendurada na parede, a cópia, em tamanho natural, de um famoso
quadro que tinha em sua moldura uma reluzente plaquinha de bronze com
o título gravado em letra inglesa: incompreensível por estar escrita em uma
língua desconhecida. Entre as duas janelas, o toca-discos que girava na
penumbra difundindo insistentemente o refrão de uma canção antiquada e
obscena. Iria até a mesinha onde deixaria suas luvas depois de tê-las tirado
cuidadosamente. Era preciso não falar nem uma só palavra. Absorveria men-
talmente cada um desses objetos colocando toda a sua atenção neles, na luz
que os iluminava, e esqueceria momentaneamente o rosto dessa mulher que
o esperava imóvel sem virar para seu lado, que o esperava sem que ele co-
nhecesse seu verdadeiro rosto, seu rosto daquele momento que talvez fosse,
então — se as moedas tinham caído na disposição de três yang ou de dois
yang e um yin — o rosto de outra e não da que ele havia conhecido, essa
mulher cuja voz o havia chamado angustiadamente a seu lado pelo telefone.

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Apoiado em um lado da pequena mesa com tampo de mármore, podia
ver seu rosto refletido no enorme espelho pendurado na parede oposta e
podia ver o reflexo da figura da mulher, de costas para o espelho, na mesma
forma em que esta representação teria surgido na mente de alguém que pre-
tendesse descrever o momento de sua chegada àquela casa. Perdeu, então, a
noção de sua identidade real. Acreditou ser nada mais que a imagem
mostrada no espelho e, então, baixou a vista tentando esquecer tudo.
— Doutor, não dê muita atenção ao que dizem esses jornais espalhados
no chão... só estão aí para que o parquet não se manche.
Ela teria escutado o golpear da chuva contra os cristais. As primeiras
gotas teriam produzido exatamente o mesmo ruído que uma mosca que se
choca reiteradamente contra a janela tentando escapar, ou teria escutado em
uníssono aquela canção absurda que parecia repetir a mesma frase para sem-
pre e teria sentido que ele transpunha o batente daquela porta nas suas
costas e chegava cautelosamente, temeroso de manchar com o barro aderi-
do a seus sapatos o parquet do salão, pisando cuidadosamente nos jornais
velhos que ela havia estendido desde a porta de entrada do salão até onde
começava o corredor. Mas não teria voltado o olhar para ele. Olhava fixa-
mente o fundo daquele corredor, adentrando com o pensamento nessa
penumbra em que sua ansiedade havia imaginado a existência de um ser, o
ser que ela quisera ser, das coisas que ela quisera saber e que alguns minu-
tos antes havia tentado concretizar, traçando com o índice da mão direita
um sinal incompreensível sobre o vidro embaçado de uma das janelas, a do
lado direito olhando para o exterior, um sinal que ela havia desejado ser e
compreender; porque nessa capacidade de compreender o que ela fazia ao
azar e sem sentido, por um capricho, residia a concretização e o significado
do ser que ela se imaginava, um ser antiquado, cruel, belo, vestido sempre
de branco, que acolhe uma carícia sangrenta e em cujas mãos lívidas per-
siste para sempre a sensação de uma matéria viva, viscosa, que apodrece
lentamente entre as pontas dos dedos, um ser inesquecível que tudo o que
toca se torna inesquecível e que se enfia, de tão inesquecível, na memória e
nas recordações daqueles que nunca o teriam conhecido.
— Na verdade — disse o Mestre —, trata-se ou de uma Asteria rubens
ou de uma Asteria aurantiaca...
Se você tivesse se voltado para mim nesse instante, não a teria reconheci-
do usando aquela touca, seu uniforme branco de enfermeira manchado com
o sangue de algum desconhecido a quem teria amado em sua memória. Sim,

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era um fato que o amava, imaginado nesse êxtase sanguinário que teria queri-
do presenciar ou que teria querido esquecer. Ambas as coisas eram agora
impossíveis porque ao se voltar, perturbada pela minha presença naquela casa,
teria sido outra, inesquecível como o homem que a estivera contemplando
fixamente, em sua nudez, da atmosfera turva daquela fotografia borrada que
alguém, talvez um antigo inquilino, havia esquecido em algum resquício
mofado daquela casa, entre as páginas amarelentas de um livro, muitos anos
atrás e que, então, em um instante de loucura, nos imaginou em seu futuro,
contemplando nossa própria imagem, um, na superfície de um espelho, e
outro, no fundo de seu próprio desejo insatisfeito.
Quem é esse que à noite nos invoca para sua imaginação como a con-
cretização de nosso próprio desejo insatisfeito? Quem, na tarde chuvosa,
nos chama mediante uma operação mágica que consiste em fazer, por um
impulso cuja explicação todos desconhecem, com que uma tábua menor
deslize sobre outra tábua maior com uma ordem e um sentido, soletrando
vacilantemente um nome, uma palavra que nada significa? Ou por acaso
você teria se chamado R...E...M...E...M...B...E...R?
Esse livro... lembra-se?... o livro que alguém deixou esquecido nessa casa
e em cujas páginas amareladas você encontrou duas cartas; uma que
descrevia um incidente totalmente banal ocorrido na praia de um balneário
luxuoso, e outra, redigida febrilmente, talvez um rascunho, com muitas li-
nhas ilegíveis e que falava de uma curiosa cerimônia oriental e propunha,
ao destinatário, um plano inquietante para conseguir a canonização de um
assassino... lembra-se deste livro?
Aspects Médicaux de la Torture Chinoise... Précis sur la Psychologie... não,
Physiologie… e depois dizia algo assim como: renseignements pris sur place à
Pekin pendant la revolte des Chinois en 1900... o autor era H. L. Farabeuf...
avec planches et photographies hors texte... Isto é o que eu me lembro...
Quem teria podido nos imaginar com tanta realidade como a que agora
temos? Tanta que este espelho chegou a nos refletir e nele nossos rostos se
encontraram tantas vezes. Você se lembra de tudo isso, não é? Brincamos,
inúmeras vezes, de nos encontrar, de repente, no espelho. Teríamos passa-
do a ser parte de uma realidade alheia à nossa vida se, na verdade, tivésse-
mos nos encontrado ali. Brincamos de tocar nossos corpos sobre essa super-
fície fria, de nos beijar na imagem refletida sem que nunca nossos lábios se
tocassem. Algo indeterminado teria nos proibido. Essa mulher retratada no
quadro que representa a virgindade do corpo se antepunha sempre que eu

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teria desejado quebrar você como se fosse uma boneca de barro enquanto
que a outra mulher — uma figuração alegórica da Enfermeira, sem dúvida
— parecia oferecer ao mundo a urna de seu corpo em um gesto cheio de
presságios. Não em vão, seu corpo se apoiava sobre um alto-relevo que re-
presentava o conúbio sangrento entre um sátiro e um hermafrodita ou uma
cena de flagelação erótica. Beijávamo-nos virtualmente sobre a superfície de
azougue daquele espelho enorme, propiciando com isso a materialização
daquele que um dia nos concebeu, exatamente nestas atitudes: você, na
frente do espelho, de costas para ele; eu, na frente do quadro incompreen-
sível e irritante que só incidentalmente — um detalhe mínimo dentro da
esplêndida composição — representa uma cena de flagelação erótica escul-
pida ao lado de um sepulcro clássico ou de uma fonte retangular, talhado
em um estilo remanescente de Pisanello ou de Della Robbia, em cujo fundo
um menino tenta, indiferente às duas magníficas figuras alegóricas, extrair
algo. Tenta, talvez, tirar dessa fossa um objeto cujo significado, na ordem
de nossa vida, é a chave do enigma que todas as tardes uma mulher vestida
de branco propõe à ouija ou tenta elucidar mediante os hexagramas do I
Ching sentada no fundo do corredor. Nunca consegui desentranhar este
mistério, no entanto...
Sua mão se perdeu nos resquícios enlameados, tortuosos das rochas
daquela praia para extrair dos lugares mais escorregadios, marcados por
pequenos caranguejos, uma estrela-do-mar...
— Uma estrela-do-mar...?
— Sim, um objeto putrefato que depois, com asco, você lançou nas
ondas, lembra-se...?
Não me lembro de nada. É preciso que não me exija isso. É impossível
me lembrar. É necessário que não me atormente com essa possibilidade,
com a probabilidade dessa mentira que forjamos juntos na frente daquele
espelho enorme que nos refletia entre suas manchas e rachaduras. É
necessário que não me atormente com essa possibilidade da memória.
Somente uma imagem se gravou em minha mente, mas uma imagem que
não é uma lembrança. Sou capaz de me imaginar convertida em algo que
não sou, mas não em algo que fui; sou, talvez, a lembrança remotíssima de
mim mesma na memória de outra que imaginei ser. É por isso que eu não
posso me lembrar. Só posso escutá-lo, ouvir sua evocação como se se
tratasse da descrição de algo que não tem nada a ver comigo. É preciso, eu
sei, acreditar em você quando me conta tudo que fizemos juntos. Estou dis-

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posta a acreditar, mas não posso me lembrar porque, para você, eu não sou
eu. Sou outra que alguém imaginou. Sou, talvez, a última imagem na
mente de um moribundo. Sou a materialização de algo que está a ponto de
se desvanecer; uma lembrança a ponto de ser esquecida...
Isso é o que você teria querido ser, mas a memória não teria consegui-
do retê-la, de tão fugaz. De pé, imóvel, na metade do salão, você se moveu,
com o desejo de ser outra, para o fundo do corredor de onde inquire sem-
pre uma mesma pergunta, fazendo pouco-caso de si mesma; um corpo
abandonado na frente do espelho, de frente para um quadro incompreen-
sível, de costas sempre para quem olha para você nessa fuga de si mesma na
qual não admite mostrar seu rosto, porque quando o recém-chegado se
dirige a você, você gira lentamente até ficar de novo de costas para ele. Você
se vira. Corre até a janela para fugir novamente de seu olhar. Quem, quan-
do nos imaginou nessa suspensão de todo movimento, teria pressentido esta
súbita ruptura da quietude? Seu olhar está fixo nesse fundo de luz da janela
e, ao passar em frente ao recém-chegado, seu pé roça a base de ferro da
mesinha e sua mão a dele.
Você a teria retido por um momento em sua mão?
Corre como tentando reconstruir, nesse momento único, uma longa
corrida para a beira do mar, até se deter bruscamente sem ter chegado à
beirada da janela porque uma lembrança imprecisa a assaltou de repente. A
lembrança de algo que você não havia experimentado em sua vida, mas na
vida da Enfermeira. Você pára na frente da janela, a uns passos da beirada.
Soa em seus ouvidos uma frase que se repete tediosamente como o vaivém
das ondas e tenta, ao mesmo tempo, decifrar esse sinal que seu dedo, impul-
sionado pelo desejo que não é possível conter, traçou no vidro embaçado.
Acredita de repente ter descoberto seu significado e balbucia um nome sem
terminar de dizer porque, nesse momento, de pé na frente da janela do lado
direito do salão, alguém lhe lembrou, por sua vez, alguém que na rua e sob
a chuva, quieto como uma mancha negra desenhada no vidro, contempla
fixamente a janela do lado esquerdo e intui sua presença por trás da facha-
da áspera e carcomida, uma fachada do mais puro estilo art nouveau, daque-
la velha casa.
Por que você se deteve? Por que este momento se congelou? Por que
você o invocou mediante aquele garrancho que sua mão traçou ao acaso
sobre o vidro embaçado? Se tivesse chegado até onde ia, se tivesse consegui-
do apagá-lo com a palma de sua mão, a vida, talvez, teria prosseguido e

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nada teria parado. Alguém, naquela imobilidade tão súbita, pressentiu seu
corpo impreciso atrás daquela janela...
Há olhares que pesam sobre a consciência. É curioso sentir o peso que
pode ter um olhar. É curioso comprovar como o afã de reter uma lembrança
é mais potente e mais sensível que o nitrato de prata estendido cuidadosa-
mente sobre uma placa de vidro e exposto durante uma fração de segundo
à luz que penetra através de uma combinação mais ou menos complicada
de prismas. Essa luz se concretiza, como a da lembrança, para sempre na
imagem de um momento. Uma imagem confusa, a nitidez cujo verdadeiro
significado, compreendido na solidão e no silêncio, é capaz de fazê-la gritar
na metade da noite. Esse grito não é mais que a máscara de sua verdadeira
dor. Uma dor agudíssima, mil vezes mais aguda que o lento desmembra-
mento que eles, com a lentidão do gelo que racha sob o sol, mas súbito
como o vômito de um moribundo, vão talhando no corpo do supliciado.
— A fotografia — disse Farabeuf — é uma forma estática da imortalidade.
Depois depositou cuidadosamente a velha maleta de couro negro sobre
o tampo de mármore da mesa. Seus olhos pousaram um instante sobre o
quadro suspenso na frente de seus olhos, mas a alegoria ali representada não
pareceu chamar muito sua atenção. Fixou o olhar apenas na nudez da mu-
lher que aparece do lado direito do quadro, mas baixou, no ato, a vista e con-
tinuou extraindo cuidadosamente cada um dos instrumentos, embrulhados
em pequenos lenços de linho, do fundo da velha maleta de couro negro.
Você tinha parado. O que era inexplicável era que, apesar de sua imo-
bilidade (um fato concreto, irrefutável, pois só a quietude não admite dúvi-
das), nesse momento que não ocupava nenhum lugar na extensão do
tempo, se manifestou de uma maneira inconfundível a existência de um
movimento, pois quando você se deteve bruscamente, alguém (acaso era eu
mesmo) escutou com toda clareza um ruído como o que produz uma tábua
de madeira ao deslizar lentamente, impulsionada por uma força impon-
derável, animada talvez por um desejo secreto, movida por uma ânsia de
comprovação mais que de inquisição, sobre outra tábua de madeira. Ou
como o som que produzem três moedas ao cair sobre uma mesa. E esse som
era a manifestação incontestável de um movimento, o único nessa quietude
e nesse silêncio, que aparentemente abarcava tudo.
— Fotografem um moribundo — disse Farabeuf — e vejam o que acon-
tece. Mas levem em conta que um moribundo é um homem no ato de mor-
rer e que o ato de morrer é um ato que dura um instante — disse Farabeuf

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— e que, portanto, para fotografar um moribundo é preciso que o obturador
da máquina fotográfica acione precisamente no único instante em que o
homem é um moribundo, quer dizer, no exato instante em que o homem
morre.
O senhor é, e todos sabemos, querido mestre, o autor deste pequeno
précis 7 que tanto deu o que falar nos círculos de sua especialidade. Uma
pequena obra inquietante. A Faculdade, precisamos falar, não participou em
nenhum dos aspectos do escândalo que se produziu. São as pessoas letradas
e em especial os dreyfusards 8 que acudiram com pressa para beber nas fontes
dessa sabedoria pouco saudável que o senhor, querido doutor, não sem certo
engenho e bom humor, fez brotar no deserto da filosofia médica de nosso
tempo. Particularmente sua exaustiva análise do leng-tch’é 9, com as magnífi-
cas fotografias que a acompanham, devidas — como todos sabem — à sua
perícia técnica na arte de Daguerre, merecerá, nos anos futuros, sem dúvida
alguma, um lugar de honra na história das curiosidades médicas. É um fato
que, desde os cursos do grande Claude Bernard que produziram a Introdução
ao Estudo da Medicina Experimental não se havia produzido, no seio de nossa
Faculdade ao menos, um texto teórico tão importante como o seu. Só
podemos lamentar o uso tão inapropriado que os literatos estão fazendo
dele. Se não fosse por isso, sua candidatura, querido mestre, seguramente
seria bem acolhida.
O que nos esperava mais além, no tempo futuro, fazia com que o passeio
pela beira do mar tivesse um sentido especial. Para recordá-lo teria sido
necessário que tivéssemos dado as mãos. Isto teria dado à nossa experiência a
concretude que têm as coisas quando acontecem tal e qual devem acontecer
na imaginação popular, na imaginação daquelas pessoas ociosas que cami-
nhavam despreocupadamente pelo cais e que, sem querer, às vezes, con-
seguiam nos vislumbrar enquanto íamos pela areia sentindo o quebrar das
ondas ao nosso lado. Para sermos verdadeiros é preciso que sejamos tal e qual
nos imaginam os desconhecidos. Entretanto, nós caminhávamos separados
um do outro. Você ia na minha frente; por isso conseguiu correr sem que eu
pudesse detê-la. Pensei por um instante que a plenitude deste mar cinzento a
surpreendera e que você tentava se afastar do embate das ondas, mas depois
7 - Resumo, compêndio, manual. (N.T.)
8 - Nome dado aos defensores de Alfred Dreyfus, oficial judeu acusado injustamente de espio-
nagem. O episódio ficou conhecido como Caso Dreyfus. (N.T.)
9 - Método de tortura chinesa que consiste no progressivo despedaçamento da vítima tentando
retardar o momento de sua morte. (N.T.)

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percebi que, na realidade, estava fugindo de mim, de minha proximidade que
lhe fustigava. Você começou a correr. Ignorou, ao passar na frente dele, o
menino que construía um castelo de areia. Teria estado dentro de seu caráter
parar, acariciá-lo, dirigindo-lhe algumas palavras elogiosas. Era, então, outra
que eu não conhecia. É por isso que ao cruzarmos com aquela mulher vesti-
da de luto você fez algum comentário que eu não consegui ouvir claramente,
mas ignorou o cachorro que a seguia. Eu teria querido detê-la quando você
correu afastando-se do meu lado e depois, repentinamente, se deteve de
maneira brusca. Você se agachou e, entre as pedras redondas daquela praia,
encontrou uma estrela-do-mar que me mostrou dizendo, “Olhe, uma estrela-
do-mar”, e esse ser putrefato seguro delicadamente no meio de seus dedos lhe
contagiou com uma ansiedade como se suas mãos tivessem tocado um
cadáver antes que seu coração tivesse percebido, lembra-se...?
Há, em tudo isso, uma circunstância curiosa; um efeito que não pode
ser explicado nem pela mais extravagante teoria da técnica fotográfica.
Quando escalamos aquele promontório e nos sentamos sobre as rochas a
contemplar o vôo das gaivotas e dos pelicanos, eu tirei uma fotografia sua.
Você estava reclinada nas rochas desgastadas pela fúria das ondas. Tratava-
se, simplesmente, de uma paisagem marinha, banal por certo, onde, no
primeiro plano, seu rosto tinha a expressão de estar fazendo uma pergunta
sem importância. Por que, então, quando a fotografia foi impressa, você
aparecia de pé na frente da janela deste salão?
Não teria pressentido a presença daquele homem; um homem cujo sig-
nificado se achava suspenso no momento de aguardar imóvel o impulso
definitivo de sua vontade para ultrapassar aquele batente e que, por sua vez,
imaginava-me de costas para a porta. Esperava isso, no entanto, sem pressen-
ti-lo cabalmente. É por isso que havia me colocado de costas para a porta,
tentando descobrir no fundo daquele corredor escuro a imagem que meu
desejo invocava. Não era em vão que eu havia contemplado durante tantas
horas aquela fotografia apagada cuja visão havia despertado, em mim, outro
ser desconhecido — talvez pressentido — que crescia nas sombras e passava
as horas invocando uma imagem que era, na realidade, somente minha e que
a Enfermeira havia abandonado nessa zona que abarcava todas as coisas e os
rostos que eu havia esquecido definitivamente ao concretizar-se essa imagem
no que eu teria querido ser; o que ela havia sido segundo eu a concebia: a
testemunha de um rito sanguinário e solene que já havia esquecido no fundo
do que teria sido minha memória se tivesse sido a Enfermeira e que se havia

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extraviado no momento exato em que eu havia ganhado essa imagem para
mim. Pensei então que eu era feita das memórias que ela havia esquecido e
que ela era a reencarnação de meus esquecimentos, lembrados de repente ao
ver aquela fotografia; que eu era a materialização de suas lembranças ou
acaso um ser feito de esquecimentos que alguém estava lembrando, dando
com isso uma matéria que talvez pesava e ocupava um lugar no espaço.
Como, senão, você se teria sentido tão penetrada por esse corpo que lhe
era tão alheio?
Mas... de quem é esse corpo que teria amado infinitamente e cuja carne,
como tiras, havia ganhado tanta realidade dentro daquela casa, cuja
memória impregnava tudo, manchando na nossa frente aqueles jornais ve-
lhos estendidos sobre o parquet? Quem teria transformado a banalidade de
um acontecimento, de um encontro imprevisto semelhante, em uma
imagem apagada, em uma presença irrealizada que enchia tudo de sangue?
Quem teria posto em sua mão, preenchida com uma luva muito limpa de
plástico cor de âmbar, essa faca afiadíssima que você, então, apontava para
minha garganta? Quem se teria deixado penetrar perante aquela presença
que invadia tudo com seu êxtase? Quem se teria deixado matar pelo roçar
de um toco inchado, se o que éramos na frente daquele espelho era a
imagem de uma mentira ociosa, de uma ilusão sem sentido forjada pela
perícia sempre precária, mas às vezes certeira, de um mágico inepto tentan-
do torpemente impor nossa presença intangível, de sugestionar nossa irrea-
lidade a um grupo de dementes ou de idiotas em uma sessão de festival de
manicômio barato?
A Son Em. T. Rev., Lut... ci-joint coupures (Ch’eng pao, jan. ‘901…,
Shun tien sh’pao, No. Chin. Daily News, trad. Shang Yü: Princeps mongol,
exigem que… Fu Chu… seja queimado… pena cruel demais… infinita
misericórdia... Chu lí... morte lenta... et caet... pour profiter de cette
heureuse circonstance et faire parvenir le zèle de notre haute mission aux
buts voulus et donc si sagement préétablis par la Providence Divine qui
mène toujours les affaires de ce monde selon le meilleur dessein pour que
chaque démarche de notre Société s’accomplisse ad majorem D. G., tel
qu’en ce cas dont l’utilisation ingénieuse rendra possible, d’une fois pour
toutes, l’établissement de la Foi et des Evangiles dans le Royaume Central,
tâche à laquelle se sont consacrés, depuis des siècles, tant de nos com-
pagnons-en-armes... (ilegível)... même leur sang et leur vie... deux étapes du
plan: 1º) ... publication du petit tract sur les divers procédés, ceci pour

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atteindre les gens de lettres, puis, 2º) publication des documents pho-
tographiques dans la presse Catholique en déguisant habilement le caractère,
plutôt politique de ces événements et en réhaussant leur caractère, disons,
religieux et mystique, jusqu’à faire apparaître cet individu comme un apôtre
et un martyr de la Foi. En attendant mon retour en Europe, je me chargerai
de recueillir le plus grand nombre de renseignements sur la vie privée du dit
F. Ces renseignements pourront aussi être «justifiés» et réaccomodés pour
servir (riscado : a nos...) aux fins de la Sainte Compagnie avant de les faire
parvenir à Rome; celle-ci étant une tâche à laquelle je pourrais me consacrer
pendant la traversée, de telle façon que mon bateau, arrivant à Barcelone vers
la fin avril, je pourrais soumettre à Votre Em. T. Rev. à Monserrat, le brouillon
de mes notes après avoir pris contact avec certains emigrés habitant le quar-
tier chinois du dit port, dont je pus apprendre les signalements ici à Pekin et
dont la nature de leurs connaissances sur l’application et la sublimation des
procédés classiques pourrait, peut-être, être fort profitable. Entretemps il
faut veiller avec grand soin à ce que l’indiscretion ou la malveillance de nos
ennemis acharnés ne fasse aboutir nos démarches à un echec pareil à celui de
l’affaire des tai ping qui tant a fait reculer l’avance de notre Sainte Religion
en Chine par la maladresse avez laquelle nos frères, les D. O. M., ont mené
la question. Je vous prie, Em. T. Rev., de me faire parvenir votre acquiesce-
ment, dans le chiffre convenu: Gratias agamus Domino Deo nostro, au nom,
comme toujours, de M. Paul Belcour, Grand Hôtel des Wagons-Lits, Pekín,
aussitôt que possible.10
10 - “Para aproveitar esta feliz circunstância e para que o zelo de nossaalta missão consiga
alcançar os objetivos desejados e tão prudentemente pré-estabelecidos pela Providência
Divina que guia sempre os assuntos deste mundo, segundo o melhor desígnio para que cada
passo de nossa Sociedade se cumpra para a maior graça de Deus; de tal modo que neste caso
sua utilização engenhosa tornará possível, de uma vez por todas, o estabelecimento da Fé e
dos Evangelhos no Reino Central, tarefa a que tantos de nossos companheiros em armas,
desde vários séculos, consagraram (ilegível)... inclusive seu sangue e sua vida... duas etapas
do plano: 1º)... publicação do pequeno opúsculo sobre os diversos procedimentos, com o
objetivo de captar as pessoas de letras, depois, 2º) publicação dos documentos fotográficos
na imprensa católica dissimulando habilmente o caráter preferencialmente político destes
acontecimentos e dando realce a seu caráter, digamos, religioso e místico, até fazer aparecer
este indivíduo como um apóstolo e um mártir da Fé. Na espera do meu regresso à Europa,
me encarregarei de recolher o maior número de informações sobre a vida privada do citado
F. Essa informação poderá também justificar-se e ser readaptada (riscado: por nós...) para
servir aos fins da Santa Companhia antes de fazê-la chegar a Roma; para esta tarefa poderia
consagrar-me durante a travessia; já que meu barco chega a Barcelona no final de abril;
poderia submeter a Vossa Eminência Reverendíssima em Montserrat o esboço de minhas
notas depois de ter-me posto em contato com certos grupos emigrados que viviam no bair-
ro chinês de dito porto, dos quais eu aprendi aqui em Pequim os sinais e dos quais a

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Ao pé e continuando no outro lado da folha, a seguinte anotação:
Post Script — Depuis quelques semaines j’ai pris contact avec Soeur
Paule du Saint Esprit selon les instructions de V. Em. T. Rev. Bien qu’elle
se rende fort serviable, je me suis absteint de lui faire connaître notre pro-
jet sur le supplicié. En ce moment elle travaille comme infirmière à l’hôpi-
tal militaire, attachée aux Services Médicaux de la Force Expéditionaire.
Inutile de dire q’elle maintient incognito son vrai état et se fait appeler
Mlle. Mélanie Dessaignes, de Honfleur, Calvados. Le moment arrivé, je
crois que cette personne pourra nous être très utile. Étant donné que la
prise des plaques était une opération plutôt difficile à soustraire de l’atten-
tion publique, je me suis présenté à elle comme photographe-correspon-
dant de la revue scientifique La Nature de Paris, dont le directeur, M. de
Parville, étant étroitement lié à la Cause, comme V. Em. T. Rev. le sait bien,
n’hésitera pas à attester de la véracité de cette atribution. Je préviens V. Em.
T. Rev. de ceci en cas ou Elle déciderait établir liaison entre cette personne
et moi. Il ne faudra, sous aucun pretexte, lui révéler ma vraie identité avant
que je n’aie une assurance absolue sur la sienne et sur le rôle qu’elle joue
dans les événements qui à présent se déroulent en Chine. 11
Na margem, escrito com a mesma letra, mas a lápis:
natureza de seus conhecimentos sobre a aplicação e a sublimação dos procedimentos clássi-
cos poderia, talvez, ser muito aproveitável. Entretanto, temos que velar com grande cuida-
do para que a indiscrição ou a malevolência de nossos encarniçados inimigos não faça com
que a nossa gestão termine em um contratempo parecido ao do assunto dos tai ping, que
tanto fez retroceder o avanço de nossa Santa Religião na China por causa da torpeza com
que nossos irmãos, os D. O. M., dirigiram o problema. Rogo a Vossa Eminência
Reverendíssima, que faça chegar vossa aquiescência, por meio do sinal convencionado:
Damos graças a Deus, Nosso Senhor, em nome, como sempre de Paul Belcour, Grande
Hotel de Wagons Lit, Pequim, até o mais breve possível”. (N.T.)
11 - “Depois de algumas semanas, entrei em contato com a Irmã Paula do Santo Espírito seguin-
do as instruções de Vossa Eminência Reverendíssima. Ainda que ela tenha se mostrado muito
serviçal, me abstive de dar-lhe a conhecer nosso projeto sobre o supliciado. Na atualidade, ela tra-
balha como enfermeira no hospital militar, designada para os Serviços Médicos da Força
Expedicionária. É inútil dizer que ela mantém sua verdadeira identidade incógnita e se faz chamar
senhorita Mélaine Dessaignes, de Honfleur, Calvados. Quando chegar o momento, considero que
esta pessoa poderá ser muito útil para nós. Dado que era um trabalho demasiadamente difícil evi-
tar a atenção pública sobre a tomada das fotografias, me apresentei como fotógrafo-correspon-
dente da revista científica La Nature, de Paris, cujo diretor, o senhor de Parville, por estar estreita-
mente unido a nossa causa, como Vossa Eminência Reverendíssima bem sabe, não terá dúvidas
em testemunhar a veracidade de tal atribuição. Eu previno Vossa Eminência Reverendíssima disso
por se ela decidisse estabelecer uma relação entre este personagem e eu. Não terá de revelar, sob
nenhum pretexto, minha verdadeira identidade antes de que eu tenha segurança absoluta sobre a
sua e o papel que joga nos acontecimentos que atualmente se desenvolvem na China”. (N.T.)

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Transcrit au chiffre Misereatur vestri omnipotens Deus, le 29 janvier,
1901, au soir. 12
E um pouco mais abaixo, novamente à tinta e com letra de forma: H.
M. S. ADEN (P. & O.) Via Port Said — le 30 jan.
O magnicídio, querido mestre, cometido ou propiciado ainda que em
nome de ideais sublimes, não deixa de ser um delito grave. O senhor esta-
va a par dos pormenores e dos preparativos que precederam o assassinato do
príncipe Ao Jan Wan? Trata-se de um documento autêntico ou simples-
mente o senhor pretendia, mediante o encobrimento de sua verdadeira
identidade e mediante uma intriga jesuítica descabida, dormir com a freira
como se fosse um romance vagabundo? O senhor realmente enviou esta
carta cifrada? Quem era o destinatário? Quem era a chamada Mélanie
Dessaignes? O senhor a reconheceria se a visse de repente, vestida de bran-
co com os véus cinza de sua touca caindo sobre as costas, sentada no fundo
de um corredor escuro? Ou vestida de preto, refletida na superfície mancha-
da de um espelho enorme, de pé na frente de uma janela — sim, a do lado
esquerdo olhando da rua — com seu olhar fixo em um sinal incompreen-
sível que, com a ponta do dedo, havia traçado sobre o vidro embaçado? O
senhor a reconheceria se uma tarde, uma dessas tardes em que o senhor está
acostumado a trabalhar sozinho no Grande Anfiteatro da Faculdade, seus
olhos a encontrassem de repente nua, deitada em uma prancha de már-
more, com a boca entreaberta e os olhos fixos nessas cenas que um famoso
pintor traçou sobre a abóbada do anfiteatro, cenário de suas mais surpreen-
dentes experiências? O senhor a reconheceria, mestre, no momento preciso
em que a grande faca convexa de Larrey traçasse, guiada pela sua mão, uma
incisão de sangue lentíssimo, quase coagulado ao longo da dobra da virilha
para praticar uma experiência supra cadaver com o objetivo de bater sua
própria marca na amputação da perna separando da bacia: 1 minuto e 8
segundos? O senhor a reconheceria nessa atitude de entrega, nesse aban-
dono que vai mais além da vida, nesse único instante em que, como no
coito, a nudez e a morte se confundem e em que todos os corpos, mesmo
os que se enlaçam em um abraço inadiável, exalam um eflúvio de
necrotério, de carniça conservada assepticamente, em que a gaze imaculada
recebe, quase sem que tenhamos percebido, como se fosse a cuspida de um
carrasco, uma salpicada violenta de pus?

12 - “Transcrito em código cifrado Deus onipotente se apiede do senhor, 29 de janeiro de 1901,


pela tarde”. (N.T.)

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