1) O documento discute a conexão entre estudos experimentais de percepção pré-consciente e cegueira inatencional.
2) Alguns experimentos de percepção pré-consciente se baseiam na psicanálise e nos escritos de Freud sobre interpretação de sonhos.
3) A teoria psicanalítica sobre cognição é analisada, incluindo noções como pensamento consciente e inconsciente.
1) O documento discute a conexão entre estudos experimentais de percepção pré-consciente e cegueira inatencional.
2) Alguns experimentos de percepção pré-consciente se baseiam na psicanálise e nos escritos de Freud sobre interpretação de sonhos.
3) A teoria psicanalítica sobre cognição é analisada, incluindo noções como pensamento consciente e inconsciente.
1) O documento discute a conexão entre estudos experimentais de percepção pré-consciente e cegueira inatencional.
2) Alguns experimentos de percepção pré-consciente se baseiam na psicanálise e nos escritos de Freud sobre interpretação de sonhos.
3) A teoria psicanalítica sobre cognição é analisada, incluindo noções como pensamento consciente e inconsciente.
pr-consciente Rafael Raffaelli Universidade Federal de Santa Catarina Resumo: Os estudos experimentais em percepo pr-consciente pos- suem uma conexo com os estudos cognitivos em cegueira inatencional. Alguns dos experimentos desenvolvidos para estudar a percepo pr- consciente so baseados na Psicanlise, seguindo os escritos de Freud sobre interpretao dos sonhos. Alguns aspectos da teoria psicanaltica sobre a cognio so analisados numa perspectiva metapsicolgica. Nos anos 70 os estudos experimentais sobre percepo consciente em Psico- logia Cognitiva descreveram o efeito de cegueira de mudana devido ao movimento ocular. Os estudos em cegueira inatencional baseiam-se na pesquisa de Neisser sobre olhar seletivo e dizem respeito ao fenmeno de anulao perceptiva temporria de determinados objetos por falta de ateno. Analisam-se brevemente a metodologia e as implicaes prticas desses estudos. Palavras-Chave: Ateno; Percepo pr-consciente; Cegueira inatencional; Cognio; Psicanlise. INATTENTIONAL BLINDNESS AND PRECONSCIOUS PERCEPTION Abstract: The experimental studies on preconscious perception have a link with the cognitive studies on inattentional blindness. Some of the experiments developed to study the preconscious perception are based on Psychoanalysis, following the writtings of Freud about dream interpretation. Some aspects of the psychoanalytical theory on cognition are analyzed in a metapsychological point of view. In the 70s the experi- mental studies on conscious perception described the change blindness effect due to ocular movement. The studies on inattentional blindness are based on Neissers research about selective looking and deal with the phenomenon of temporary perceptive annulment of certain objects by lacking of attention. The methodology and practical implications of those studies are analysed in brief. Keywords: Attention; Preconscious perception; Inattentional blindness; Cognition; Psychoanalysis. estudo da ateno j est presente desde os primrdios da Psicologia e no seu sentido mais amplo foi assim definida por William James: It is the taking possession of the mind, in clear and vivid form, of one out of what seem several simultaneously possible objects or trains of thought. Focalization, concentration of consciousness are of its essence (James, 1890/1981, p. 381). Por outro lado, a Psicanlise sempre foi reconhecida como uma teoria geral do desen- volvimento infantil e da personalidade humana, eminentemente voltada para a prtica clnica, e no como uma teoria cognitiva. 61 O Rafael Raffaelli Entretanto, na obra central do pensamento freudiano - A Interpretao dos Sonhos - encontramos uma anlise acurada dos aspectos cognitivos envolvidos no fenmeno onrico, que pode ser entendida como um tratado sobre a percepo inconsciente (vide Raffaelli, 1997). Entre os aspectos cognitivos analisados por Freud podem ser listados: a natureza da representao mental, a distino entre o pensamento consciente e inconsciente, as dife- renas entre processos primrio e secundrio, os mecanismos da ateno e os aspectos cognitivos dos estados alterados de conscincia. Muitos desses aspectos foram contemplados nas pginas do Projeto para uma Psicologia Cient fica (1895) e desenvolvidos posteriormente no Captulo 7 de A interpretao dos sonhos (1900). Os conceitos de pensamento primrio e secundrio so relacionados com o desejo alucinatrio, os mecanismos de condensao, deslocamento e simbolizao so explicitados e realiza-se a distino entre representaes objetais e representaes de pala- vra. Textos posteriores de Freud, como Uma nota sobre o Bloco Mgico (1925), teorizam sobre as capacidades cognitivas humanas, postulando a existncia de sensores inconscien- tes que ordenariam os estmulos percebidos. Em termos metapsicolgicos, esse processo se localizaria nas instncias narcisistas (ego, ego ideal, superego, ideal do ego), constituindo- se no seu contedo representacional. As representaes inconscientes so advindas das experi ncias somticas do ego primitivo, formando o eu-pele (cf. Anzieu, 1989). A assimila- o dos padres de percepo pelo ego ocorre devido associao com as imagens vincu- ladas a uma relao objetal especfica. A relao entre nutriz e infante a gnese do padro pelo qual os perceptos se estruturam, transformando o contato corporal em representao, como objeto imaginrio. A idia de juzo ou pensamento judicativo, assimilada da filosofia iluminista e de Kant em particular, se traduz nessa parada do processo primrio na encruzilhada da satisfao, sem saber em que direo investir, dependente de sua imagem-guia. A anlise da funo do julgamento nos permite compreender a gnese do intelectual a partir do conflito pulsional, pois sem a denegao (Verneinung), representante da pulso de morte, no teria sido possvel a suspenso temporria do recalque que liberta o aparelho psquico da compulsividade do princpio do prazer; alm disso, talvez possamos aproximar o conceito de denegao da idia do proton pseudos (mentira original) tal como apresentada no Projeto - como o momento inicial do descolamento entre necessidade e desejo. O ego est vinculado com a realidade e com a conscincia, envolvendo nessa relao todas suas facul dades intelectuais, o que acarreta um superinvestimento (berbesetzung) e a erotizao do pensamento. Essa ligao do ego com a realidade se manifesta pela funo de julgar, que gerada pela angstia (Angst) perante uma ameaa interna ou exter- na. Dessa forma, o ego o lugar em que se localiza a angstia, que funcionaria como uma espcie de gatilho do pensamento. Essa a segunda teoria da angstia em Freud, exposta em sua obra Inibies, Sintomas e Ansiedade (1926), que se contrape noo anterior de angstia enquanto um processo automtico de sinalizao para a descarga de quantidades excessivas de excitao, semelhante a um termostato (Freud, 1926/1987, p. 113). 62 Cegueira inatencional e percepo pr-consciente A base dessa argumentao que a angstia um estado afetivo e, sendo assim, s pode ser sentido pelo ego. O id, por no se constituir em uma organizao, no pode avaliar situaes de ameaa e, assim, no sente angstia. Freud admite uma inequvoca relao da angstia com a expectativa, atribuindo-lhe as qualidades de indefinio e falta de objeto. Devido a isso existe a necessidade da internalizao da sensao ameaadora, para que ela possa tornar-se um objeto de percep- o para o ego, isto , uma representao associada a um trao mnmico permanente, j que criancinhas esto constantemente fazendo coisas que pem em risco suas vidas (Freud, 1926/1987, p. 196). Entretanto, se determinados parmetros advindos da estruturao do ego provocam angstia, por outro lado uma classificao de sensaes que permite identificar esses parmetros. Se a classificao de sensaes pode ser entendida como fundamento de uma atividade seletiva inconsciente, em que o julgar (pensamento judicativo) est presente, e sendo a angstia a base dos pensamentos, podemos supor, ento, que foi a necessidade de encontrar uma resposta aos sinais de angstia que motivou essa atividade seletiva. Assim, da angstia primitivamente descarregada pela atividade motora, parte foi conservada como investimento vinculado a uma rede associativa, tendo como sustentao as imagens in- conscientes, e essa estrutura desenvolveu um mecanismo de filtragem de sensaes segun- do critrios de evitao da angstia. Isso significa que sem angstia no h pensamento e sem pensamento no h como classificar e selecionar sensaes, isto , sem a vinculao do investimento mvel da angstia inexiste base econmica para a sustentao do processo seletivo. E como a sede da angstia o ego, e como esse processo seletivo tem nele sua gnese e seu motor, poderamos denomin-lo narcisista. Em Moiss e o Monotesmo (1939), Freud supe que a origem da conscincia est vincu- lada percepo, especialmente em relao aos estmulos desprazerosos. O organismo se defende da angstia primitiva derivada do excesso de estimulao criando um escudo protetor constitudo de trs barreiras. A primeira dessas barreiras atua na direo real - inconsciente (sensao ou registro inconsciente), a segunda na direo inconsciente - pr- consciente (percepo ou registro pr-consciente) e a terceira na direo pr-consciente - consciente (percepo consciente). O advento da fala tornou exeqveis as percepes conscientes de eventos internos, tais como idias e processos de pensamento, exigindo-se, porm, a intermediao de um julga- mento que as separe das percepes do mundo externo: a prova de realidade. Tal julga- mento realizado pelo ego, que cont m em si os processos de pensamento conscientes. Como o ego tambm se utiliza das sensaes de angstia para despertar esses processos, pela vinculao com traos mnmicos, possvel uma confuso entre as percepes que se originam de dentro das que se originam de fora. Contudo, no se pode supor que essa prova de realidade conduziria percepo real ou ltima das coisas, pois, como j afirma o prprio agnosticismo freudiano, o real no passvel de cognio. Esse pensamento observador pode se sobrepor ao prprio processo primrio e sua fun- o estabelecer um discernimento bsico das vias de realizao do desejo, sempre par- ciais. Desse modo, representa a maneira mais acabada de incorporao das pulses de vida 63 Rafael Raffaelli pela estrutura psquica, a verdadeira fonte da vontade de viver e que zela pela integridade do corpo. A esse ncleo primitivo do ego compete, ento, o estabelecimento de perceptos ade- quados a partir de sensaes corporais, por meio da integrao das imagens captadas dentro de quadros mnmicos comparativos, utilizando como instrumentos de verificao a similaridade, a proximidade e o seqenciamento, e tendo como critrio de seleo o prazer/desprazer. Tais quadros mnmicos vo se complexificando, pelo acmulo de experincias, no inte- rior do ego primitivo, e sua solidificao acontece com o advento do ego ideal no estdio do espelho. O processo se completa com a cristalizao do superego ao final do dipo e sua separao do ideal do ego. Assim, o ncleo representacional primitivo responsvel pela percepo inconsciente passa a ter uma atividade orientada pela preval ncia de uma das instncias narcisistas num deter- minado momento, de acordo com as associaes de imagens provocadas por uma sensao especfica. No dizer de Freud: os exemplos que submetemos anlise realmente no nos autori- zam a supor que tenha havido uma reduo quantitativa da ateno; encontramos algo que talvez no seja exatamente a mesma coisa: uma perturbao da ateno por um pen- samento que se impe e demanda considerao (Freud, 1926/1987, p. 124). Um desses exemplos citados por Freud retirado de um relato de Otto Rank - demons- tra a importncia do processo de ateno seletiva inconsciente: Uma jovem que dependia materialmente de seus pais queria comprar uma jia barata. Na loja, perguntou o preo do objeto de seu agrado, mas ficou desapontada ao descobrir que custava mais do que a soma de suas economias. E no entanto apenas a falta de duas coroas a separava desse pequeno prazer. Com o nimo abatido, comeou a perambular em direo a casa pelas ruas da cidade, repletas das multides ao entardecer. Num dos lugares mais movimentados, chamou-lhe de repente a ateno -muito embora, por seu depoimento, ela estivesse profundamente imersa em pensamentos - um pedacinho de papel cado no cho, pelo qual ela acabara de passar sem reparar nele. Ela se voltou, apanhou-o e ficou atnita ao constatar que era uma nota de duas coroas, dobrada. Pensou consigo mesma: Isto me foi enviado pelo destino para que eu possa comprar a jia, e retomou alegremente o caminho de volta, pensando em aproveitar esse sinal. No mesmo instante, porm, disse a si mesma que no deveria faz-lo, pois dinheiro achado dinheiro da sorte e no deve ser gasto. [...] Seu inconsciente (ou seu pr-conscien-te), portanto, estava predisposto a achar, muito embora, por causa de outras demandas feitas a sua ateno (imersa em pensamentos), essa idia no se tornasse inteiramente consciente. Podemos ir mais alm e, com base em casos semelhantes j analisados, afirmar inclusive que a disposio de busca inconsciente tem muito mais probabilidade de xito do que a ateno conscientemente dirigida. De outro modo, seria quase impossvel explicar como foi que justamente essa pessoa, dentre as muitas centenas de transeuntes, e ainda sob as condies agravantes da iluminao crepuscular deficiente e da densa multido, pde fazer o achado surpreendente para ela mesma. A grande amplitude dessa disposio inconsciente ou pr-consciente realmente indicada pelo fato notvel de que, depois desse achado - isto , num momento em que essa atitude j se tornara suprflua e certamente j escapara da ateno 64 Cegueira inatencional e percepo pr-consciente consciente -, a moa encontrou um leno mais adiante a caminho de casa, num trecho escuro e solitrio de uma rua de subrbio (Rank, 1915 apud Freud, 1926/1987, p. 185). O processo de percepo inconsciente e pr-consciente pode ser rastreado por meio da interpretao dos sonhos e dos atos falhos, como ficou experimentalmente comprovado por Ptzl e outros. Aquilo que foi descrito por Freud como o processo de elaborao onrica - condensao, deslocamento, simbolizao, elaborao secundria - e a relao do pen- samento com os desejos e seus afetos podem bem ser entendido como a descrio do processo perceptivo inconsciente. Em 1917, o neurologista Otto Ptzl publicou um estudo - A relao entre imagens onricas experimentalmente induzidas e a viso indireta - versando sobre os mecanismos pr-conscientes descobertos pelo emprego do taquistoscpio - instrumento que permite a apresentao de estmulos visuais em velocidade muito rpida. Esses experimentos foram conduzidos com pacientes portadores de disfunes visuais derivadas de distrbios neuro- lgicos, buscando relacionar campo visual e conscincia, sendo que seu principal objetivo era demonstrar experimentalmente a ocorrncia da percepo pr-consciente e suas vinculaes com os sonhos, tendo por base a teoria psicanal tica sobre a funo dos res - duos diurnos na elaborao onrica. Basicamente, Ptzl estabeleceu uma lei de excluso segundo a qual a elaborao onrica incorpora em seu trabalho as imagens oriundas da percepo pr-consciente, em detrimento daquelas obtidas pela via consciente, o que coerente com a hiptese psicana- ltica sobre os res duos diurnos, como o prprio Freud reconheceu numa nota de 1919 adicionada ao texto de A Interpretao dos Sonhos (1900). Posteriormente, Allers & Teler (1924) e Malamud & Linder (1931) tambm empregaram o mtodo experimental para corroborar aspectos da teoria psicanal tica, notadamente a vinculao entre percepo e os mecanismos inconscientes do sonho. O estudo do fenmeno de Ptzl foi retomado sob a denominao de percepo pr- consciente ou percepo subliminar (subception) ou mesmo nos estudos correlatos sobre hipermnsia e alucinaes negativas. Nessa linha se incluem as pesquisas de Luborsky & Shevrin (1956, 1958), Eriksen (1951), Eriksen & Johnson (1961), Klein (1959) e Fisher (1954, 1957, 1959, 1960). A percepo ento teorizada como um processo que parte do registro sensorial in- consciente (subliminal registration) e sofre uma el aborao inconsciente, na qual o registro sensorial pareado com traos de memria semelhantes. S depois de cumprida essa etapa que o percepto surge como imagem, podendo ser reproduzida verbalmente. A lei de excluso de Ptzl entendida como uma funo pr-consciente vinculada ao sentido das imagens percebidas, relacionando-se com a ateno. Estudos das dcadas de 70 e 80 (Becker & Erdelyi, 1974; Erdelyi, 1970, 1972; Erdelyi & Stein, 1981; Kepecs & Wolman, 1972; Masling, 1983; Whitehouse et al., 1988) enfatizam o vnculo entre percepo pr-consciente e ateno. Outros autores, como Brakel (1989), pro- pem uma reviso da teoria psicanal tica tendo em conta seus aspectos cognitivos. Na dcada de 90, vrios pesquisadores (Bootzin, Kihlstrom & Schacter, 1990; Barron, 65 Rafael Raffaelli Eagle & Wolitzky, 1992 e Bornstein & Masling, 1998, entre outros) desenvolveram mtodos experimentais para testar alguns conceitos psicanal ticos, revelando a identidade de inte- resses entre a Psicologia Cognitiva e a Psicanlise, em especial quanto anlise da vinculao entre percepo pr-consciente e ateno. Outra linha de pesquisa, originada na Psicologia Cognitiva, que tambm caminha na mesma direo - s que em sentido inverso - aquela associada aos estudos da cegueira inatencional (inattentional blindness), que engloba o mesmo grupo de fenmenos descritos pelo conceito de alucinao negativa (vide Brakel, 1989). O conceito de cegueira inatencional diz respeito ao fenmeno de anulao temporria da percepo de determinados objetos por falta de ateno, mesmo quando claramente observveis e estando no foco central da viso ocular. Esse fenmeno, facilmente notado no dia-a-dia, como j postulava Freud no seu Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), decorre de uma insuficincia atencional motivada por processos inconscientes, con- duzindo a aes equivocadas (Vergreifen). Essas deficincias do funcionamento psquico e certos desempenhos aparentemente inatencionais revelam, quando a eles se aplicam os mtodos da investigao psicanal tica, ter motivos vlidos e ser determinados por motivos desconhecidos pela conscincia (Freud, 1901/1987, p. 208). Na parania, por exemplo, ocorre uma exacerbao do limiar perceptivo, notando-se sinais no comportamento social que normalmente so irrelevantes. No dizer de Freud, h algo de verdadeiro nessa percepo - o fundo de verdade da parania - que capta os adarmes de agressividade presente em todos os relacionamentos (cf. Freud,1901/1987, p. 221). A partir de 1970 os pesquisadores em Psicologia Cognitiva comearam a reconhecer o fenmeno denominado cegueira de mudana ( change blindness), no qual os sujeitos expe- rimentais mostravam-se incapazes de observar alteraes no seu campo visual enquanto movimentavam os olhos (Posner, 1978; Treisman, 1985, 1986, 1988; Theeuwes, 1991). Paula- tinamente, o interesse dos pesquisadores dirigiu-se para o estudo da ateno, gerando o conceito de cegueira inatencional. Essa terminologia torna-se reconhecida quando da publicao do trabalho de Mack & Rock (1998), mas remete s idias e metodologia de olhar seletivo (selective looking) desen- volvidas por Ulric Neisser autor da denominao Psicologia Cognitiva - na dcada de 70, na Universidade de Cornell, Estados Unidos. O trabalho de Mack & Rock buscou estabelecer a relao entre ateno e percepo por meio de um procedimento padro, no qual o est mulo se constitua numa cruz na tela de um monitor de vdeo localizado a 76 cm do rosto do observador. Os sujeitos eram apresentados ao estmulo em exposies breves e solicitados a observar qual dos braos da cruz era maior. Enquanto os sujeitos estavam com sua ateno voltada para a execuo da tarefa proposta era apresentado um objeto inesperado, na forma de um pequeno retngulo colorido definido como estmulo crtico (critical stimulus), que invadia um dos quadrantes da cruz. Imediatamente aps a apresentao do estmulo crtico os sujeitos eram inquiridos sobre se haviam observado algo na tela alm da cruz. Se os sujeitos reportassem ter visto algo, era- lhes solicitada a identificao da imagem, descrevendo-a ou selecionando-a de um conjunto de imagens previamente preparadas. Cerca de cinco mil sujeitos foram testados 66 Cegueira inatencional e percepo pr-consciente dessa maneira, com viso normal e idade oscilando entre 17 e 35 anos, mantendo-se a equival ncia entre os sexos. Os resultados apontaram que aproximadamente 25% dos sujeitos da amostra no perceberam conscientemente o estmulo crtico, confirmando a ocorrncia do fenmeno da cegueira inatencional em tarefas que exigem ateno con- centrada. Esses resultados contradizem a crena do senso comum de que percebemos tudo o que se apresenta no campo visual e que a ateno somente age na busca dos detalhes que diferenciam os objetos. Entretanto, absolutamente normal a experincia de no vermos certos objetos que esto bem na nossa frente, experincia essa facilitada pela concentrao da ateno em alguma tarefa ou pelo afloramento de emoes. Mesmo com os olhos abertos e o objeto claramente refletido na retina, nesses casos nada parece ser integrado conscincia. Por outro lado, se a ateno est consciente ou inconscientemente focalizada na busca de certos sinais carregados de ansiedade - como um telefonema, uma pessoa que chega, o rudo do motor de um carro, uma sombra que pode ocultar um ladro - certos perceptos so mal-interpretados ou distorcidos de forma a atender esses anseios. A expectativa distorce a percepo pela focalizao da ateno em determinados padres e esse processo trans- corre na sua maior parte de forma inconsciente. Na atualidade, a extensa literatura sobre ateno demonstra a variedade de interpreta- es desse conceito bsico (Jonides & Yantis, 1988; LaBerge & Brown, 1989; Searle, 1992; Folk, Remington & Wright, 1994; Rensik, ORegan & Clark, 1997). Nesta pesquisa o termo ateno ser empregado para se referir ao processo que permite a conscientizao do est- mulo, pressupondo que a focalizao da ateno a condio sine qua non para se perce- ber algo de modo consciente. O que distingue a percepo pr-consciente ou inconsciente da percepo consciente a focalizao da ateno. O estmulo inicialmente percebido de forma pr-consciente e s ser conscientizado pela cooptao da ateno, de forma voluntria ou involuntria, como no caso do arco-reflexo e da dor. Dado a percepo consciente depender da ateno, o seu desvio gera um campo perceptivo deficiente, com imagens visuais no conscientizadas. Em termos psicanalticos, a estimulao captada no processo perceptivo s parcialmente conscientizvel, dentro da dinmica do processo primrio. O processo secundrio perceptivo conduzido pelas instncias narcisistas, que estabelecem o vnculo dessas imagens com as estruturas mnmicas pr-existentes. Os objetivos gerais desse campo de pesquisa seriam estabelecer quanta informao vi- sual pode ser decodificada pela mente humana, de forma consciente ou inconsciente, e quais as razes para que certos objetos sejam imediatamente conscientizveis, enquanto outros no. Isso envolve elucidar as estruturas e dinmicas envolvidas na percepo pr- consciente e inconsciente e determinar seus efeitos sobre o desempenho de atividades profissionais dependentes da acuidade visual. Assim formulados, esses objetivos possuem relevncia terica para a compreenso do processo perceptivo e implicaes prticas no que se refere performance humana em atividades como a aviao e a direo de veculos de trao mecnica (automobilismo). 67 Rafael Raffaelli Atualmente vrios pesquisadores dedicam-se a essa temtica, buscando metodologias mais sofisticadas para a anlise desse fenmeno, utilizando animaes em vdeo com o emprego de atores. Em um desses experimentos o estmulo usado se constituiu em um vdeo apresentando um jogo entre dois times de basquete - um trajando branco e o outro trajando preto - que faziam passes de bola aos quais o sujeito devia atentar. Durante essa tarefa era apresentado o estmulo crtico: uma mulher com um guarda-chuva cruzava a imagem por alguns segundos. Tambm nesse caso foram obtidos resultados prximos aos de Mack & Rock, com mais de um quarto da amostra relatando no haver observado o estmulo crtico (Chabris & Scholl apud Carpenter, 2001). Os estudos nessa linha de pesquisa tm se atido aos aspectos bsicos do fenmeno, buscando demonstrar sua ocorrncia de modo inequvoco e postular teorias explicativas para o mesmo (cf. Mack & Rock, 1998). Mas existe consenso quanto ao fato da import ncia prtica desses estudos (cf. Carpenter, 2001), para avaliar esse fenmeno do ponto de vista da cincia aplicada, analisando suas implicaes nessas atividades humanas corriqueiras. Desse modo, a pesquisa em cegueira inatencional possui diversas implicaes srias para a direo de automveis. Muitos acidentes automobilsticos podem ser imputados a essa falha atencional, motivada pelo desvio da ateno para outra atividade ao dirigir. Ao se estabelecer o automatismo inerente ao de conduzir um veculo, cria-se tambm a pos- sibilidade de dispersar a ateno em atividades paralelas, tais como ouvir msica, falar ao telefone celular, ou mesmo fumar ou conversar. Dada a velocidade que podem atingir os veculos atuais, especialmente em pistas expressas, essas distraes momentneas podem se constituir num srio risco para a segurana do trnsito. Mesmo pequenos desvios da ateno, como olhar as placas indicativas, podem causar acidentes graves. O ndice brasileiro de acidentes de trnsito, incluindo os atropelamentos, terrificante. Milhares de pes soas anualmente perdem a vida ou sofrem algum tipo de seqela devido a acidentes de trnsito. E a falta de ateno, junto com o lcool e o excesso de velocidade, uma das causas mais freqentes de acidentes. Referncias ALLERS, R. & TELER, J. (1924). Uber die verwertung unbemerkter eindrcke bei associationen. Ztschr. Neurol & Psychiat., 89, 492-513. ANZIEU, D. (1989). O eu-pele. (Trad. Z. Y. 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