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Impune até quando?

Essa é uma história de invasão de terra, desmatamento ilegal, destruição de patrimônio e


ameaça de morte. Não é sobre a irmã Dorothy e não passa no Pará. Passa aqui perto, no
município de Iranduba, onde tenho um sítio, com uma vista linda do rio Negro. Na
verdade, o sítio é meu e de tres sócios, também colegas de trabalho. Compramos há uns
doze anos, principalmente porque continha uma área muito bonita de floresta primária.
Nos dedicamos a proteger a floresta lá, mas não adiantou.

Na noite da sexta-feira passada, a casa do sítio queimou até o chão. Foi incendiada
propositalmente por uns quatro homens que chegaram se perguntando em voz alta, “A
gente mata ele ou só bota fogo na casa?” Foi isso que o caseiro ouviu a umas 2200 horas,
logo antes de fugir pelos fundos. Ele só não estava dormindo naquele horário porque
tinha recebido mais cedo um recado através de um parente dele: “Saia da casa se quiser
continuar vivo”. Quando não tinha mais jeito, acabou seguindo o conselho.

Assim, então, foi a etapa mais recente do conflito que se acirrou ao longo dos últimos
meses. Aqui em Manaus estamos acostumados, calejados até, a ouvir falar sobre a
invasão de terras, principalmente de mata virgem. Sabemos, inclusive, que é o método
preferido de expansão urbana, pois é barato e certeiro. Aproveita da imagem de gente
pobre sem terra, acontece rapidamente e depois não tem como recuperar a floresta
perdida, e oferece a candidatos políticos popularidade em anos eleitorais através da
legalização retroativa. É uma indústria, tácitamente aceita e até encorajada por governos
locais—já faz parte do planejamento do desenvolvimento.

No caso do nosso sítio, o terreno vizinho, também coberto por floresta primária, parece
pertencer a um ex-prefeito da região. Esse, segundo fontes locais, teria prometido loteá-
lo em centenas de terrenos menores. Apesar de disputas sobre a verdadeira posse dessa
propriedade, colocou-se um administrador chamado “Pingelão”, um cara temido pelo
povo local, para tocar a distribuição e ocupação do loteamento, denominado “Residencial
Portelinha”. A partir daí começou o desmatamento e, eventualmente, a invasão e
desmatamento de grandes partes do nosso sítio.

Mas antes disso, já houve conflitos. A principal indústria no município de Iranduba são
as olarias—fábricas de tijolos e telhas de barro. É uma indústria de exploração de
recursos naturais: o barro que compõe o solo da região é cavado, preparado, e assado em
fornos a lenha, também extraída das matas ao redor. Na ausência de um sistema de
plantio de espécies próprias para lenha, o desmatamento resultante já afetou a região
quase toda, nossa área sendo uma das poucas ainda a ter mata alta e bonita. Foi
justamente isso que nos atraiu para o local, onde já foi catalogada uma biodiversidade
maravilhosa, inclusive espécies de sapo e macaco novas para a ciência. Sempre tivemos
que proteger o terreno contra a extração ocasional de madeira.

Naturalmente, a chegada do asfalto e da luz elétrica ao ramal de acesso, há vários anos,


aumentaram a pressão em cima da florestinha. E também trouxeram facilidades,
inclusive para a nossa capacidade de vigiar. Mas no último ano, talvez devido ao começo
da construção da ponte sobre o rio Negro e a perspectiva do outro lado do rio se tornar
uma continuação da área urbana de Manaus, acelerou notavelmente a venda e invasão de
terras por lá.

O loteamento da Portelinha, que parece não ter nenhum tipo de autorização ambiental, já
desmatou sua área toda e começou a invadir o nosso terreno, derrubando floresta primária
e pondo fogo. Tivemos que iniciar uma seria de denúncias em todas as instâncias
possíveis, que até hoje não resultaram em nenhuma resposta legal. Enquanto isso,
tivemos que remarcar repetidamente os limites de nossa propriedade e que remover
construções feitas dentro dela. O incêndio da nossa casa parece ser uma resposta direta e
pessoal a nossa insistência em manter o que é nosso.

A casa não fica perto da área invadida, não há outra ocupação ou desmatamento próximo,
e o fogo não originou em outro local. No meio de uma área isolada e particular, uma casa
queimou até o chão em poucas horas. Não tenha dúvida de que foi proposital. Foi
anunciado. E também foi ameaçado e debatido assassinar o caseiro.

Incêndio doloso é crime sério. Mas desmatar, invadir terra particular e ameaçar vida
humana também são. Quando começará a haver investigação, condenação e punição?
Quem executa o crime já é criminoso. Quem está por trás é bandido. Enquanto estes
elementos sejam tolerados agindo em prol do desenvolvimento regional, onde está a tal
“governança” que nos foi garantida mudar o curso da história para um desenvolvimento
ecológico e sustentável? Se não há controle no quintal da capital, devemos acreditar na
governança nos mega-projetos do interior? Essa é a Manaus, o Amazonas, social e
ambientalmente corretos que estamos correndo para mostrar ao mundo em 2014?

Mario Cohn-Haft
07 dezembro 2009
A mata primária no nosso sítio e nos terrenos vizinhos foi o que nos atraiu para o local
(Foto: R. Mesquita).
Até pouco tempo, tínhamos uma casa de dois andares com uma varanda ampla no nível
onde o rio Negro enche na época da cheia (Foto: W. Spironello).
A casa do nosso sítio queimou até o chão em poucas horas na noite de sexta-feira, 04 de
dezembro de 2009 (Foto: M. Cohn-Haft).
Residencial Portelinha, nosso novo vizinho no sítio: um enorme loteamento em área de
floresta primária (Foto: M. Cohn-Haft).
Placa anunciando a entrada da Portelinha (Foto: M. Cohn-Haft).
Derrubada, queimada e construção no Residencial Portelinha, vistas do nosso terreno
(Foto: R. Mesquita).
Tivemos que remarcar a divisa entre nosso terreno (esquerda) e a Portelinha (direita),
após a invasão, com desmatamento e queimada de ambos os lados. Até poucos meses,
essa área toda era coberta de floresta primária (Foto: R. Mesquita).
Vista do limite da Portelinha para nosso terreno, mostrando desmatamento, derrubada e
queimada de madeira de lei, e cercas dos lotes que invadiram (Foto: R. Mesquita).

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