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BENTO masons ETICA Ee) DE CARVALHO Ce Bento de Espinosa FILOSOFIA - POS~ G2AD uis ETICA BS Introdugiio e Notas de Joaquim de Carvalho Eee Er Rua Sylvio Rebelo, n° 15 1000 Lisboa — Tel. 8474450 994 2665 ; 17.02 esr ei “Titulo: Etica = i ‘Tradugdo: Pan I: Joaguim de Carvalho 000088296 Parte Ile Il: Joaquim Ferreira Gomes Parte IV e V: Anténio Simoes Introducao e Notas: Joaquim de Carvalho Posfécio: Joaquim Montezuma de Carvalho Capa: Femando Mateus sobre Efigie de Espinosa publicada na revista "Archivo Pittoresco”, vol. XI, 1868, Lisboa. © Rel6gio D'Agua Editors, 1992 ‘Composico: Relégio D’Agua. Impresstio: Arco-fris, Artes Grificas, Lda. Depésito Legal n? 3 501/92 . . Filosofia yeneae Seen gtica 17. 02/ESP /ett (2069/74) Spinoza ist Hauptpunkt der modernen Philosophie: centweder Spinozismus oder keine Philosophie. ‘Wenn man anfuingt zu philosophieren, so muss man zuerst Spinozist sein; die Seele muss sich baden in diesem Ather der Einen Substanz, in der alles, was ‘man fir wahr gehalten hat, untergegangen ist. HEGEL A existéncia humana sobrevém num mundo que Ihe € dado ¢ ccuja construtura e fenomenalidade so 0 que so; como pensar ‘em ordem a que o Universo se torne racionalmente explicavel, 0 pensamento se adeque plenamente & razao de ser de tudo o que existe ¢ a vida espiritual se converta em fruigao da beatitude, ou por outras palavras, em plena compreensdo e em inalterdvel Contentamento e paz de consciéncia? Tais so as perguntas capitais a que este Livro procura res- ponder ¢ cujo alcance ¢ fntimo enlace somente se apreendem desde que sejam consideradas como marcos de uma tinica in- quirigo, que ao adentrar-se em si mesma se foi transmudando em teoria do ser, em teoria do saber ¢ em teoria do proceder, Quase tudo o que saiu da pena de Bento de Espinosa! se en- 1 B esta a forma que preferimos, por mais portuguesa, mas € de observar 9 deregou ao esclarecimento destas perguntas, a comecar no seu primeiro escrito filos6fico!, 0 Korte Verhandeling van God de Mensch em deszelfs Welstand (Tratado breve? sobre Deus, 0 Homem e sua Felicidade), publicado pela primeira vez em 1862. Este livro, de alto préstimo para o estudo da génese do espino- sismo e que € anterior as influéncias que as ideias ¢ 0 vocabulério de Descartes exerceram no desenvolvimento do pensamento de Espinosa, d4-nos como que o primeiro esbogo do que viria a ser a Ethica more geometrico demonstrata, mas s6 esta proporciona a resposta definitiva, cujo teor ele se esforgou por pensar e expri- mir com a mente fria de quem somente aceita por verdadeiro o que a humana compreensao demonstra racionalmente, olhos postos na necessidade I6gica da Matemética, mas também com o calor da inquietude emotiva de quem sente apostada na inquirigdo a pulsago dos mais intimos anelos eo risco do proprio destino. A resposta de Espinosa assinala uma das mais profundas e impressionantes criagdes do génio filoséfico de todos os tem- Pos, que cumpre ser presente a quem queira conhecer a histéria ‘que se nfo ha divida quanto 20 aportuguesamento do nome, que aparece gra- fado Baruch (hebraico). Benedictus (latino) ¢ Bento (portugues), nao apare- cendo nunca a forma castelhana Benito, 0 apelido, pelo contrio, apresenta- -se com as variantes: Spifioza; d'Spinoza; de Spinoza: Despinoza. Nos do- ‘cumentos referentes a familia: Despinoza; Espinoza; Spinosa; Espinosa; de Espinosa; de Espinoza; Despinosa; dEspinose, Spinoza; e na pedra tumular dda mie do fil6sofo: Hana Debora dEspinoza mulher D Mikael d'Espinoza, Vid. Freudenthal, Die Lebensgeschichte Spinozas in Quellenschrifien. Urkunden und nichiamalichen Nachrichten, Lipsia, 1899, pig. I, passin; Carl Gebhardt, Der Name Spinoza, in Chronicon Spinozanum, 1 (Haid, 1921), pags. 272-276, 1 Dizemos filosético, porque a Apologia para justficarse de su abdica- cin de la Sinagoga, que Esp. escreveu apés 0 decreto de excomunho ‘Schammata, a mais terrivel das excomunhes, que o expulsou da comuni- dade de Amsterdao (27 de Julho de 1656), embora deva ter sido anterior a0 Korte Verhandeling,€ crivel que tivesse a feigo de uma autobiografia men- tal. E desconhecido o texto da Apologia, que parece ter sido destrufdo, ¢ também se ignora se foi redigido em portugués ou em castelhano, pois a in- dicagao do titulo nfo € prova suficiente de que o houvesse sido nesta lingua. 2 Isto 6, em resumo, Contractus, seria a trad. exacta, no juizo do ed. W. Meijer. 10 do pensamento metafisico ou pretenda tomar posigao reflectida conscienciosa sobre problemas de sempre. Sob dois aspectos diferentes pode ser considerada: epocal e © intemporal Pelo primeiro, representa a concregao do pensamento de um homem que viveu em certa época e em determinado meio, so- freu influéncias vérias, desde o endoutrinamento da Sinagoga & assimilagdo de algumas concepgGes de pensadores ocidentais designadamente Renato Descartes e Tomés Hobbes, ¢ se nao furtou, como ninguém pode furtar-se, & conjuntura hist6rica e &s circunstancias em que Ihe foi dado viver. Pelo aspecto intemporal, é o desenvolvimento de uma intui¢ao do Ser, cuja raiz profunda esté para além da historicidade cir- cunstancial, aparentando-se, por exemplo, com o ser essente de Parménides, com 0 curso eterno da fenomenalidade do Universo, de Heréclito, com a concep¢io estéica do Universo, ‘com o panteismo de Plotino e com a ideia da Natureza una ¢ in- finita de alguns filsofos da Renascenga, especialmente Giordano Bruno, e de uma atitude perante a Vida, que se nutre de anelos ¢ de sentimentos que propendem para o enlevo teopd- tico dos misticos de todos os credos. ‘Sob o primeiro ponto de vista, estudar Espinosa é compreen- der uma manifestagao caracteristica do pensamento do século XVIle, em especial, a projecgio metafisica da entZo nova con- ‘cep¢io meciinica da Natureza, e descobrir alguns impulsos da reflexdo ético-politica de uma consciéncia que com ser solitéria se no sequestrou ao ambiente social da Holanda; sob 0 se- gundo, € tomar contacto com uma das possfveis maneiras de conceber 0 Mundo e a posigio do Homem no Universo; cuja ar- ticulago conceptual e verbal apresenta em Espinosa correspon- déncia com certos dados da Ciéncia coetinea, mas cuja estrutura e alcance so trans-hist6ricos, e, portanto, susceptiveis de serem repensados com dados ¢ ilagdes da Ciéncia contempordnea, do que deu original testemunho Samuel Alexander, o extraordinério metafisico do Space, Time and Deity (1920). Por isso, se compreende que Hegel tivesse afirmado que 0 espinosismo deve ser a filosofia de quem comega a filosofar, ¢ il Bergson tenha escrito que «se Espinosa tivesse vivido antes de Descartes teria escrito, sem davida alguma, coisa diversa do que escreveu, mas vivendo e escrevendo, nao deixamos de estar certos de que terfamos o espinosismo>!, Nao € de acesso fécil um pensador que assim se apresenta com uma explicagdo racional de todas as manifestagdes da exis- téncia e com uma religiéo metafisica, no belo dizer do Dr. Carl Gebhardt? — ou por outras palavras, com um sistema em que a filosofia € conhecimento pleno e norma de vida perfeita, isto é, um sistema de conhecimentos demonstrados e de verdades tidas por necessérias, relativas a0 Mundo, ao Homem e ao seu lugar e destino no Universo, As razdes da dificuldade so varias, procedendo, umas, da forma como Espinosa exprimin o pensamento e derivando ou- tras da propria natureza dos problemas e da conexdo que entre eles 0 Fildsofo estabeleceu. A Etica, com efeito, nao € um livro de leitura facil ¢ 0 que nele hd de profundo somente se oferece a quem o procura com es- forgo de compreensio. Tal como o ser intimo de Espinosa, de seu natural reservado e suspicaz — Caute, foi a divisa que adoptou —, a ponto de um dos seus visitantes, Saint-Evremond (1613-1703), haver dito que ele ne s‘est pas découvert tout d'un coup?, assim também a riqueza interior € a vastido de horizon- tes da sua filosofia somente comegam a avistar-se aps reiterada convivéncia. ‘A exposigdo impessoal, com o aparato proprio de um tratado de Geometria, ndo convida o leitor amimado do nosso tempo; € © primeiro contacto com a desenvolugao de um pensamento que se esforga por nio sair do plano da necessidade, da eternidade da universalidade, gera em mentes apressadas ¢ afeitas ao im- pressionismo das aparéncias a sensagio de uma filosofia drida, g6lida e até inumana, 1 Vid. Lintuition philosophique, in La pensée et le mouvant, Paris, pig. 143. 2 Vid. Spinoza, Lipsia, 1932, pags. 88 € segs. 3 Vid, Freudenthal, Die Lebensgeschichte Spinozas, cit., pag. 238. 12 A primeira dificuldade procede, pois, da forma expositiva, mas esta dificuldade € puramente exterior, ¢ até deixa de ser di- ficuldade para se tornar em atractivo desde que 0 leitor preze a concisio considere que o rigor deve ser a norma de toda qualquer expressao verbal. ‘A segunda dificuldade € bem mais complexa ¢ custosa de vencer, pois consiste em descobrir 0 sentido profundo das pala- ‘ras ¢ a intuicdo que subjaz a construgdo do sistema, ou dito de outra maneira, em apreender o ser real e vivente, a inquietude a certeza, 0 encadeamento I6gico € a evasio afectiva, sob a en- fiada dos axiomas, das definigdes, dos lemas ¢ dos escdlios. ‘Como as recompensas raras e custosas, que s6 se deixam al- cangar por quem se toma digno de as merecer pela tenacidade isengdo do esforgo, assim a apreensdo da intuigao fundamental do sistema de Espinosa e, sobretudo, a compreensdo das nogdes e correlagdes em que ela se diversifica com incompardvel fasci- nagGo, ndo se oferecem com prontidio nem transparéncia. Daf, a diversidade das interpretagdes © modos de ver, derramados por copiosissima literatura! e por juizos antagénicos, que véo desde © *. Foi este 0 texto que, na véspera de falecer, isto , no dia 20 de Fevereiro de 1677, Espinosa meteu numa papeleira com os demais escritos que vieram a constituir a Opera posthuma (1677), confiando-os & guarda do seu hospedeiro, o pintor Henderyk van der Spyk, com a recomendacdo expressa de os entregar, logo que expirasse, ao livreiro de Amsterdio, Jan Rieuwertsz, seu amigo dedicado®. 1 Vid. a cit. Ep. LXVII, a Oldenburg. 2 Vid. 0 prefécio das Opera posthuma. O letor curioso de conheoer al- guns pormenores relativos aos manuscritos que Espinosa entregou ao seu hospedeiro na véspera do falecimento, nfo perde em ver as paginas, de saber actualizado, de Adolfo Rava, Le Opere di Spinoza, in Rivista de Filosofia (1927), pags. 275-279, 3 Vid. cit. Gesprach...,in L. tein, Leibniz u. Spinoza, pig. 282. 4 Vid. Benoit de Spinoza, Paris, 1902, pag. 159. 5 Vid. Colerus, Vida de Bento Spinoza, Trad, de J. Licio de Azevedo (Coimbra, 1934), ig 52, Ci. as observabes de Gebhard cit I, pe. 12. 30 Fees77y7 poe A Etica €, pois, a obra de uma vida, que a respectiva medita- {g80, redacgao e revisao, aplicou os tiltimos quinze anos do seu breve transito de quarenta e quatro anos de existéncia, que a tf- sica consumiu. Pela concepedo, pela densidade de pensamento ¢ pela compe- netragio do pensar e do viver, a Etica € dos mais profundos ¢ nobres testemunhos da capacidade intelectual do espirito hu- ‘mano; € pela forma expositiva, concisio ¢ relativa escassez de péginas, tem lugar inconfundfvel no exiguo rol das mais noté~ veis produgGes filoséficas de todos os tempos. ens) ‘A primeira coisa que impressiona o leitor da Erica € a sua re- dacgio sob a forma de um tratado de Geometria. ‘Aparentemente, tem seu qué de excentricidade a exposigao de pensamentos filos6ficos com a ordenagio ¢ a nomenclatura dos Elementos, de Euclides; e, realmente, por ser singular, a analo- gia com a imorredoira obra do geémetra grego, a que j4 se cha- mou, com propriedade, o Evangelho da Razo, concorreu, € ndo pouco, para o renome da Etica e do seu autor. 7 Cronologicamente, € possivel que a Etica nao seja o primeiro livro filos6fico com fei¢o geométrical, mas pertence sem dii- vida alguma a Espinosa a primeira aplicagdo do método eucli- diano a uma concepgao sistemstica da realidade do mundo, da existéncia humana e do fundamento da vida espiritual. ‘Tudo leva a crer que colheu a ideia da aplicagio do método em Descartes, mas uma vez convencido da respectiva viabilidade, ela adquiriu posteriormente no seu espirito fundamentagao pré- pria, tomando-se como que consubstancial gestagdo ¢ desen- volugio do sistema exposto na Erica. ISobre os antecedentes, vid. a bibliografia ¢ os informes de L. Roth, Spinoza, Descartes and Maimonides, Oxford, 1924, ng. 40. 31 Com efeito, as Secondes objections as Meditagées metafisicas (1641) terminavam exortando Descartes a expor as suas concep- {gBes «segundo 0 método dos geémetras»!, ao que este respon- deu nas Réponses aux secondes objections que cumpria distin- guir duas coisas na «maneira de escrever» dos geémetras: a or- dem e 0 processo (maniére) de demonstrat. A ordem consiste apenas em evitar que 0 que precede seja co- nhecido pelo que se Ihe segue, isto é, nada deve ser explicado pelo que vem depois. processo, porém, pode ser analitico ou sintético. A andlise, ou resolugdo, «mostra a verdadeira via pela qual uma coisa foi metodicamente achada e faz ver como 0s efeitos dependem das causas». Este fora o método das Meditacdes me- tafisicas, e 0 que Espinosa aplicou no Tratado da regeneragdo do entendimento, como talvez possa dizer-se nfo com muita segu- ranga, apesar da opinidio de Ioachim?, porque o propésito de in- dagar da existéncia de um bem absoluto que dé ao espirito a fe- licidade plena e sem fim, em rigor nio parece significar privagao ou desconhecimento desse bem, mas a posse ou o conhecimento incipiente de uma ideia a aprofundar ¢ a fundamentar. A sintese, ou composigdo, pelo contririo, demonstra o que se contémnas conclusdes, mediante o encadeamento das definigées, dos axiomas e dos teoremas, o qual mostra que 0 consequente re- sulta dos antecedentes. E um método que «arranca a anuéncia do leitor, por mais obstinado € opinioso que seja», mas «no dé ‘como 0 outro inteira satisfagdo ao espirito dos que desejam apren- der, visto nao ensinar 0 método pelo qual a coisa foi achada»’ 14... Ce serait une chose fort utile, sid la fin de vos solutions, apres avoir premiérement avancé quelques définitions, demandes et axiomes, vous conclueiz de tout selon la méthode des géomeires, en laquelle vous étes si ‘bien versé, fin que tout d'un coup, et comme d'une seulté oeillade, vos lee- teurs y puissent voir de quoi se satisfire, et que vous remplissiez leur esprit de la connaissance de la dvinité.» 2 Vid. A study of the Ethics of Spinoza, Oxford, 1901, pag. 10. 3 Das cit. Réponses aux 2€ Objections. Utilizémos o texto da ed. Adam- Tannery, das Oeuvres de Descartes, t. IX, pig. 122, tanto neste passo como nas ulteriores citagdes. 32 Descartes acrescentava que 0 método sintético assim enten- dido nao era perfeitamente adequado as questées metafisicas, pela dificuldade «de conceber claramente ¢ distintamente as pri- meiras nogdes», 0 que no acontece nas «primeiras nogdes que do supostas para demonstrar as proposigdes geométricas». Por estas razées, dizia ter antes escrito Meditacdes «que disputas ou {questdes, como fazem os fil6sofos, ou ainda teoremas ou pro- blemas, como os ge6metras, a fim de testemunhar desta maneira que escrevi somente para quem queira dar-se a fadiga de meditar ‘comigo seriamente ¢ considerar as coisas com atencdo». Mostram estes perfodos que, tanto em Descartes como nos seus criticos, existiu a ideia de se aplicar método demonstra- tivo dos ge6metras aos problemas da metafisica, mas Descartes niio 0 empregou por pensar que as demonstragdes metafisicas no alcangavam tfo facilmente a certeza como as demonstragdes ‘geométricas, em virtude da imprecis4o das nogdes fundamentais de que elas partiam ou em que assentavam. ; passo que Descartes nao quis dar, deu-o Espinosa —, sem diivida, porque a sua razao se ndo sentiu peada como a do pen- sador genial e sem precedente das Meditacdes metafisicas, cuja posigio e ponto de partida marcam a viragem do pensamento antigo para o pensamento moderno. Concorreram para isso a conjuntura epocal da cultura ¢ 0 intrinseco ditame dos postula~ dos epistemol6gicos de Espinosa. ; Desde que Galileu estabelecera que havia uma s6 Fisica, to vé- lida para © mundo sublunar como para o mundo celestial, € que © Universo, como haviam intufdo os pitagéricos, estava escrito ‘cm garacteres matemiticos, ¢ depois da tentativa de Descartes de uma explicagdo racional do Universo com base na extensio como propriedade fundamental da matéria, o que implicava que a Fisica fosse considerada sub specie Geometriae, tornara-se como que correlato da conjuntura hist6rica modernizante 0 in- tento de infundir na Filosofia a exactiddo matemética, ou, mais propriamente, de converter a Filosofia em ciéncia de rigor, para empregar uma expresso de Husserl escrita ha quarenta anos. Como testemunham Francisco Sanches, no Quod nihil scitur — cuja tradugdo precisa é, a nosso ver, Da insciéncia da 33 Metafisica —, Galileu, com a obra imensa de experimentador ¢ com algumas reflexdes assistematicas, Bacon, com 0 Novum Organon, Descartes, com as Regulae ad directionem ingenii com 0 Discurso do método para bem conduzir a razdo e investi- gar a verdade nas Ciéncias, ¢ outros, de algum modo minores, os problemas de metodologia ocuparam lugar de relevo na or- dem temética durante a primeira metade do século XVI, tanto mais que abrangiam por vezes, como que rudimentarmente, 0 dominio da epistemologia, cuja emancipagao Locke iniciou em 1690 com Essay concerning human Understanding e Kant ge- nialmente haveria de firmar em 1781 com a Kritik der reinen Vernunfe. _ A opgio do método geométrico ndo é, pois, completamente independente da conjuntura cientifica e de certas orientagées metafisicas coetineas, notadamente de Tomas Hobbes, em cujo De cive (1642) Espinosa colheu sem divida sugestdes que in- flufram na construcdo da sua teoria politica e podia ter colhido também o incentivo metodol6gico de tratar matematicamente os seus filosofemas, Entre as opinides extremas de Léon Brunschvicg, de que 0 método geométrico de Espinosa seria 0 método especifico de Descartes, nao o de Euclides!, e a de Léon Roth, de que «a forma da Etica, de facto, longe de ser um tributo a Descartes, é © mais vivido protesto contra a sua autoridade>2, temos por mais acertado que a sugestio da aplicago do método nasceu das reflexes suscitadas pelas Segundas objeccdes as Meditacées metafisicas, acima referidas, mas enraizou-se no espirito de Espinosa pelo incentivo de Hobbes e, sobretudo, pelas implica. ges do seu proprio pensamento pessoal e da sistematizagao de- dutiva que desde o inicio pretendeu dar-Ihe. ‘Sugerido ou espontiineo, o seu emprego, exigiu, sem diivida, uma contengdo prolongada, herdica e rara, obrigando a atengao ! Vid. Descartes et Spinoza, in Rev. de Metaphysique et de Morale, 1904, Parece-nos decisiva a critica de G. Huan in Le Dieu de Spinoza (Paris, 1914), pég. 29, nota 1 2 Cit. Spinoza, Descartes and Maimonides, pig. 44. 34 po a repartir-se, se este € o termo, pela concepgio, pela demonstra- gio e pela exposiga0. Sob este ponto de vista, por mais copioso ue se organize o indice das omissbes, das repetigdes, dos para- logismos e das deficiéncias probatérias!, a Etica € obra sem pre- cedente nem paralelo, cujas imitagdes, mais ou menos raquiti- cas, raramente se furtam & disformidade da caricatura. Espinosa aplicou-o como método de exposigio ¢ como mé- todo de demonstragao. Como método de exposigdo € susceptivel de ser considerado independentemente do assunto exposto, pois qualquer teoria ou concepco, cujos fundamentos, extenso e dimensées sejam co- nhecidas, pode ser apresentada more geometrico, sem que 0 ex- positor vincule 0 seu assentimento. Como tal, é vestidura e mera disposigao formal. Disto deu Espinosa exemplo digno de atengdo, a0 expor more geometrico os Princtpios de filosofia de Descartes, nos quais havia concepgGes que tinha por erréneas. ‘Na Etica, 0 caso € diferente, pois a ordenagdo a maneira dos ‘gcémetras é simultaneamente método de exposigdo e método de demonstragdo de proposigSes sempre tidas por verdadeiras?, Sendo assim, método e sistema esto correlacionados, mas nao € fécil estabelecer a natureza do correlato eo grau da correlagaio. Como em quase todos os temas da filosofia espinosana, es- pecialmente os que se relacionam com a Parte I, que € a mais estudada, nfo faltam as opiniGes e jufzos divergentes. Assim, € apenas a titulo de exemplo, pode pensar-se com Toachim, que se Espinosa empregou 0 método geométrico foi por ter admitido que toda a causalidade Idgica ¢ de ordem geométrica; com Brunschvicg, que embora o método seja apropriado ao sistema, © sistema € independente do método, ¢ ainda com Kuno 1 Pode ver-se uma exposigio destes defeitos em Couchoud, Benoit de Spinoza,cit., pigs. 164-170, ¢ em especial na meméria de R. Zimmermann, Uber einige logische Felher der Sp. Ethik, in Sitzungsberichte der phil. hist. Classe der Kais. Akademie der Wissenschaften, Viena, 1850. 2 Nisto me afasto do prezado colega Léon Roth, em cujo parecer o mé- todo foi sempre aplicado por Espinosa com intengao expositiva. Vid. Spinoza, Descartes and Maimonides, cit., pags. 41-42. 35 Fischer, que 0 método ¢ o sistema se condicionam reciproca- ‘mente, a ponto de um ser insepardvel do outro!, Em tao discutivel assunto, temos por mais admissfvel 0 jutzo de Windelband de que «foi sobre a base da premissa metatisica do pantefsmo que Espinosa se serviu do método geométrico para a solugdo do seu problema; mas, inversamente, foi este mesmo método que determinou a solucdo do seu problema e 0 cardcter especial do seu pantefsmo. Aplicando este método, veio a pensar a relagao da divindade com as coisas singulares com analogia matemética, e se a concepedo panteista do mundo se ca- racteriza de maneira completa somente pela relago que ela ad- mite entre a divindade, que € Uno e Tudo, ¢ as coisas singula- res, 0 espinosismo nio & mais do que um pantefsmo matemé- tico, alids mais exactamente determinado pelo facto da analogia ‘geométrica ter sido a analogia preferida por Espinosa para expli- car aquela relagdo»?, Salvaguardando o jutzo de o espinosismo ser «um pantefsmo matemético», pela interpretagdo estitica que pode sugerir, com- preender para Espinosa consiste em conhecer a ligacdo do efeito causa, da consequéncia & razo, da situagao da coisa ou da ideia ao conjunto a que adequadamente pertence. A quem assim pensa, ou por outras palavras, jamais deixa de ter a mente fita na concatenatio omnium rerum, nenhum outro método mais coe- rente que este, como claramente deixou expresso no escélio da Prop. XVII, I, ao dizer que da omnipoténcia de Deus resulta uma infinidade de coisas numa infinidade de modos, da mesma ‘maneira que da natureza do tridngulo resulta de todo a eternidade a igualdade da soma dos seus Angulos a dois rectos. O paralelo poe a claro a nogio de causalidade como raziio 16- gica, tZo necessdria e necessitante na derivagdo das propriedades das figuras geométricas como na geragao dos seres ¢ no dina- mismo das paixdes humanas, cujo estudo, num passo explicito 1 Vid. a nota de pag. 31 de Le Dieu de Spinoza, cit., de Huan, na qual se ccoligem outras opinises além destas. ? Vid, Storia della Filosofia Moderna (trad, de Aldo Oberdorfer), 1 (Florenga, 1925), pag. 224. 36 do prefacio da III Parte da Etica, levou a cabo «como se se tra- tasse de linhas, de planos ou de corpos». ‘O método assim entendido ndo € um formalismo extrinseco a0 sistema. Pelo contrério: é a prépria marcha do pensamento de- monstrante, ou como diz no Da regeneracdo do entendimento, Methodus nihil aliud esse nisi cognitionem reftexivam aut ideam ideae, a ponto do sistema nfo se tornar claramente compreensi- vel sem ele, embora possa ser exposto sem o aparato geométrico. ‘Bem consideradas as coisas, 0 método tem uma significacdo ontolégica, no perfeito dizer de Darbon!, ou por outras pala- vvras, identifica-se com a concepgao de que as relagdes que as coisas ¢ as ideias tém entre si e com o principio ou ratio que Ihes di razio de ser so andlogas as relagdes que de dada definigao de uma figura geométrica deduz as respectivas propriedades. Por isso, racionalismo de Espinosa somente se apreende com clareza explicitado pelo método geométrico, quer na ambigio, genial e her6ica, de tudo submeter a inteligibilidade da razio, quer na impassibilidade, implacével e obstinada, com que eli- mina todas as manifestagdes da subjectividade irredutfveis ao seu dogmatismo de possesso da Verdade. Por isso, a correlagiio intima do método e do sistema, se por um lado implicou a clarificagdo de certos aspectos do pensar, também determinou por outro, alguns inconvenientes, tais ‘como: o desconhecimento total da historicidade, entendendo por tal a relatividade e temporalidade do acontecer humano que nao entronca directamente na causa sive ratio; a auséncia de alguns problemas, notadamente o da existéncia do mundo externo, que ‘Descartes ¢ Malebranche tiveram de examinar; e ainda, e sobre- tudo, a exclusdo da finalidade e de toda ¢ qualquer consideragio teleol6gica, no domfnio da ac¢o, cuja incompatibilidade com a razio geométrica deu aos perfodos do Apéndice da parte pri- meira (hic pags. 164 e segs.) 0 tom agastado de quem se defromta ‘com absurdos, — to agastado que nao sem fundamento se tem dito que somente o «fanatismo da raziio» levou uma ou outra vez Espinosa a perder a serenidade intelectual. 1 Vid. Etudes spinozistes, pub. por Joseph Moreau, Paris, 1946, pag. 110. 37 © método apresenta-se, pois, intimamente relacionado com a elaborago, com a articulagdo e com a expresso do sistema. Extrinsecamente, como processo de expresstio do pensamento filoséfico, é original —, téo original como foram literariamente © tratado didactico de Aristételes, 0 diflogo de Plato, a Epistola de Séneca, a quaestio resolutiva de S. Tomds de Aquino, a meditagdo metafisica de Descartes, o ensaio de Locke, € as tra- dugées verbais da aplicagao do método transcendental, por Kant, do método dialéctico, por Hegel, e do método fenomeno- l6gico, por Husserl, Intrinsecamente, porém, o caso muda de figura. A juizo de Kant, nas Investigacdes sobre a evidéncia dos principios da Teologia natural e da Moral (1764), dissentindo de Wolff, que se esforgava por aplicar 0 método matemético a Filosofia, nao ‘hd equipoléncia entre a evidéncia matemitica e a evidéncia filo- s6fica; no parecer de Hegel, nas Licdes de Histéria da Filosofia (1836), 0 método € 0 defeito capital do espinosismo, e Eduardo von Hartmann, na Histéria da Metafisica (1899), néo hesitou em escrever que 0 seu emprego equivalia & aplicagdo de uma «camisola de forgas». Todos estes jufzos encerram uma parcela de verdade, mas pe- cam por excesso. Em relagio & estrutura e desenvolugio interna do sistema, mormente se 0 considerarmos independente da mente que 0 pensou, os seus defeitos so incontestaveis. Considerado, porém, em relagao a época, dominada pelo fulgor da demonstragdo matemitica e pela fecundidade da concepgao mecanicista da Natureza, e em relagdo 4 pessoa viva do filésofo, temos de reconhecer que este era o método ideal e que nenhum outro se lhe podia comparar, dado Espinosa ter por tao natural como o ar que se respira que, se a vida é dada para viver, a ra- zo € dada para compreender, para julgar e para proceder de harmonia com os seus ditames. Consequentemente, 0 método geoméirico de demonstracao ti- nha de acudir ao seu espirito como expresso acabada da im- passibilidade do jufzo, sobranceiro a precipitagao e & prevengdo de que Descartes pusera de sobreaviso quem quer que se propu- sesse a inquiridor de verdades, e como processo incompardvel de constranger o assentimento pleno, que € 0 desiderato de toda a verdade que se demonstra * * A primeira parte da Etica tem por titulo, De Deus; dada a equagdo Deus ou a Natureza — no prefécio da IV Parte, Aeternum illud et infinitum ens quod Deum seu Naturam appel- lamus —, pode considerar-se um tratado de ontologia, se se nfo preferir chamar-lhe uma explicagdo metafisica da realidade no seu conjunto. Constituem-na 36 proposigdes, seguidas de um Apéndice. O seu todo, apesar de concatenado, pode dividir-se em grupos, de harmonia com 0 tema predominante em cada um. Assim, com Harald Hoffding, consideraremos os seguintes: a) Definigdes e axiomas; b) Teoria da substincia e sua identidade como conceito de Deus (Prop. 1-14); c) Deus e os seus atributos, ou a ‘Natureza naturante (Prop. 15-28); d) Deus as coisas particula- res, ou a Natureza naturada (Prop. 29-36); e) Ciéncia e teleolo- gia. (Apéndice)!, 4) DEFINIGOES E AXIOMAS Pela forma, como pelo fundo, o espinosismo é um sistema que pretende deduzir da defini¢o de ser infinitamente infinito, ou Deus, a ordem e a factualidade do Universo. Daf, o desfgnio de raciocinar, como na Geometria, a partir de nogées claramente definidas, ou mais explicitamente, em fungio do método que adoptou, a necessidade de apoiar 0 encadeamento das proposi- ‘ges sobre um conjunto de definigdes ¢ de axiomas. ; Pelo emprego frequente que de umas e de outras faz, assim 1 Seguimos Hoffding na descriminagto dos grupos, mas nao completa- mente na respectiva designagao. Vid. Das erste Buch der Ethica, in Chronicon Spinozanum, Il pags. 20-53. H4 outras divisdes, notadamente de Couchoud (Ben. Spinoza, cit, pag. 173): a) Teoria da substancia (Prop. 1- ~16); Teoria da causalidade em Deus (Prop. 16-30). 39 como pelas comparagées que por vezes estabelece, como por exemplo no escélio da Prop. XVI, I, (hic, pag. 44), é-se le- vado a crer que Espinosa admitiu a equivaléncia, pelo que res- peita ao uso, entre as definigdes ¢ axiomas dos Elementos, de Euclides, ¢ as definigdes e axiomas da Etica, A colocagao t6pica no inicio de cada parte confirma esta maneira de ver. Serd, po- rém, assim? Em carta a Tschirnhaus, de 15 de Julho de 1676 (Ep. 83), declara Espinosa que a opiniio deste seu correspondente acerca da impossibilidade de se deduzir mais de uma propriedade, da definigao de uma coisa considerada em si mesma, talvez tenha lugar nas coisas mais simples e «nos seres de razio (nos quais conto as figuras), mas no nas reais»! —, quer dizer, no iden- tificava as definig&es geométricas, relativas a figuras ideais imaginadas no espago, com as definigdes de coisas, que atingem a realidade. De comum, somente teriam a fungdo I6gica no en- cadeamento das proposigdes; € sendo assim, as definigdes ¢ os axiomas da Erica teriam maior compreensdo que as definigdes € 08 axiomas de Euclides. Com efeito, as definigées e os axiomas da Etica contém ter- ‘mos de antiga ¢ continua aplicagdo, como causa de si, substan- cia, atributo, modo, esséncia, existéncia, eternidade, liberdade. Como vocébulos, nio so criagio de Espinosa, porque tém atrés de si os séculos da Escoléstica; no entanto adquiriram na pena do autor da Etica sentido préprio, j4 em fungao da sua ontolo- gia, j4 em fungdo da concepgdo da unidade do Mundo, jé em da factualidade do Universo. Sustentou-se jf que as definigdes tinham o sentido de puras ccategorias do entendimento; nao contestando que elas exprimem formas gerais de pensar a realidade, julgamos nao obstante que no so puramente formais, porquanto epistemologicamente es- tabelecem a identidade entre a realidade e a respectiva ideia, 0 que determina logo de inicio que o sistema seja a um tempo de- dugio l6gica ¢ expresso ontolégica. De modo geral, pode dizer-se com Hiffding que as definigdes 1 Ed, Gebhardt, IV, pig. 335, 40 € 08 axiomas da parte primeira — os axiomas apresentam feigao diferente nas diversas partes da Erica — tém o seu fundamento na andlise do conceito de Ciéncial, A sua expressio nao é simples, nem intuitiva a apreensio do seu sentido. E que sdo o resultado de larga elaboracao e assimi- ago doutrinal, e de contetdo to denso que constituem verda- deiras proposigdes. Segunda Espinosa, a nocdo de axioma, em si mesma, € mais extensa que a de definigo, em virtude dela abranger as verdades eternas, enquanto que a definicdo somente é aplicdvel a esséncia das coisas ou as afecgdes delas?. As oito definigdes enunciam conceitos que estruturam e con- dicionam a desenvolugao do sistema. ‘Uma, em particular, chama a atengdo: € a primeira. O facto de Espinosa iniciar a tabua de definigdes com a de causa de si ¢ de colocar em terceiro lugar a de substdncia, que € fundamental no sistema, parece mostrar que aquela € logica- mente anterior a esta e se destina a exercer uma fungdo capital. Qual e em que termos? A interpretagdo que se nos afigura mais plausivel? 6a seguinte: A definigao de substincia (ITI), como tal, exprime a ideia do ser incondicionado e absoluto; precedendo-a da definigdo de causa de si, Espinosa teria significado que este absoluto nio estético, mas essencialmente dindmico, isto é, causa primeira ¢ infinita, tanto de si mesmo como de tudo o que existe. Assim entendido, haveria uma relagdo necesséria entre a causa de sie a substincia, de sorte que a existéncia da substincia seria acto ou congequéncia da sua poténcia. O sistema, logo de inicio, surgi- ria, pois, com pretensio ontolégica e por assim dizer, dindmica, ndo como pura e abstracta dedugdo, a cuja estratificagio légica mais tarde viesse juntar-se a realidade existente, 1 Vid. cit. Das erste Buch der Ethica, cit. Chron. Sp., pag. 27. 2 o que expressamente diz na Carta IX (1663) a Simfo de Vries, Pelo que respeita& definig20 vid. I, prop. VIII es.; hic, pig. 112. 3 Sobre o tema da causa de si vid. Huan, Le Dieu de Spinoza, cit. pigs. 50-62. 41 Com serem diferentes, as definigdes e os axiomas tém como que um denominador comum: a discriminagdo ontolégica entre © que existe e & concebivel por si e em si mesmo tem a sua razio de ser, ou causa, € 0 que nio existe por sie nfo € concebivel sem a referéncia a outro conceito. A primeira maneira de ser, chama substancia; a segunda, modo. Esta mesma discriminagdo subjaz aos sete axiomas, dos quais cumpre fixar a atengdo especialmente no I, pelas suas conse- quéncias ontol6gicas, e no IV e no VI, pelas respectivas impli- cages epistemolégicas. Do axioma I se diz correntiamente, ¢ ndo sem razZo, que ele ‘contém potencialmente a concepgdo espinosana da realidade. Pelo axioma IV, o conhecimento legitimo procede da causa para o efeito, e nfo inversamente —, donde a consequéncia de que o conhecimento adequado da realidade deve proceder da ‘causa infinita para 0s efeitos finitos, e nao inversamente. E pelo axioma VI, que equivale ao repiidio da nogio tradicio- nal de Verdade — conformidade do pensamento e da coisa — que € a nogdo do senso comum, estabelece, ou mais precisa mente, reconhece com Descartes que o pensamento verdadeiro possui validade intrinseca, isto é, por ser verdadeiro é que con- ‘vém ao ideato, ou objecto pensado, ndo sendo verdadeiro por convir ao objecto, Embora ja se tenha visto na doutrina deste axioma a confirma- ‘¢40 da interpretagao idealista da epistemologia espinosana, cre- mos que a posigdo de Espinosa foi radicalmente realista € que 0 idealismo, mormente no sentido kantiano, & incompativel com as premissas da sua teoria do conhecimento. E que, em seu jufzo, o pensamento somente reconhece, pelas notas intrinsecas a0 proprio pensamento verdadeiro, a existéncia de certas ade- quagées, conformidades ou relagGes, ¢ no, como Kant, que 0 condicionalismo a priori do pensamento organize os dados da experiéncia sensivel e dite a lei as coisas. A capacidade inerente ao pensamento humano de reflectir so- bre si mesmo no exclui de maneira alguma a anterioridade do Ser em relagdo ao pensar. Pelo contrério; é um dado primério e fundamental do sistema de Espinosa, e por o ser, o emprego do 42 4 58O46° método geométrico e, consequentemente, 0 estabelecimento prévio das definigGes ¢ dos axiomas, esti inteiramente relacio- nado com 0 realismo da sua teoria. ‘Como adiante veremos, noutra introdugdo, Espinosa conce- beu 0 conhecimento perfeito, por um lado, como encadeamento de consequéncias reportadas ao princfpio donde resultavam, e por outro, como conformidade com uma ordem de coisas que se condicionam analogamente as ideias. Por outras palavras: a rea- lidade no seu conjunto, assim na ordem conceptual como na or- dem factual ou existente, € concebida como sistema que depende € resulta do ser tinico infinitamente infinito, isto é, a ‘Substiincia, causa e razio de ser de tudo 0 que existe. O método geométrico era 0 método mais adequado a estes pressupostos ontol6gicos e epistemol6gicos, por ser 0 que mais claramente expressava a necessidade pela qual de uma dada ideia se deduziam as propriedades ou consequéncias que ela contém. Por isto, as definigGes e axiomas desta parte primeira da Etica contém potencialmente a desenvolugdo do sistema, que, visto a esta luz, e como que na sua feigio estética, que nfo é a expres- sio integral do sistema, se apresenta como a dedugao analitica e a priori dos princfpios estabelecidos. b) TEORIA DA SUBSTANCIA E SUA IDENTIFICACAO COM DEUS (Prop. I-XIV) E de velho uso 0 termo de substincia. Grosso modo, no vo- cabulfrio filoséfico correntio, derivado da Escoléstica, ele de- signa o que permanece nas coisas através das sucessivas altera- des delas, e das quais é como que suporte. Sujeito e substrato, io palavras que esto ligadas a este sentido, mas que exprimem insuficientemente a nogdo espinosana de substincia, porque embora esta implique a nogdo de substincia como sujeito l6gico de ineréncia, sem a qual no teria sentido a aplicagao do método geométrico, o sistema de Espinosa ndo pode ser considerado uma sistematizagao de géneros, de espécies e de ideias singula- res hierarquicamente dispostas por graus de subordinagao 16- a3 [’ gica, porque pretende ser a explicagiio da realidade no seu con- junto, isto é, a Natureza como totalidade unificada de seres e de eventos, Por isso, a substincia tem no vocdbulo espinosano um set tido inteiramente diferente do sentido correntio, e cuja definigao convém que o leitor tenha presente. E a seguinte: «O que existe em sie por si € concebido, isto é, aquilo cujo conceito nao ca- rece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado» (Def. m). Constitui esta definigao o ponto de partida do sistema, se 0 considerarmos como dedugao analttica, pois contéma afirmagio daexisténcia de uma realidade universal e absoluta, l6gica e onto- logicamente anterior as suas manifestagdes, ou modos na lin- guagem de Espinosa, ¢ que tem em si mesma a sua razao de ser. Assim entendida, a substincia tem propriedades e atributos, que a razio discrimina mas que na realidade substantiva (isto €, nao modal) se ndo separam. Seguindo a ordem da Etica, note-se em primeiro lugar que & inerente & substancia, como tal, ser idéntica, incriada, infinita, Ginica e necessiria. Resumindo e simplificando ao maximo as demonstragdes, a dedugao destas propriedades pode obter-se da seguinte maneira: Se houvesse varias substncias, ou seriam da mesma natu- reza, divergindo apenas nas afecgSes, ou seriam de natureza di- versa, No primeiro caso, seriam indiscerniveis, porque a substancia € anterior as suas afecgdes (Prop. I) e portanto nao podiam di- ferir entre si (Prop. V). Pelo que é impossfvel a pluralidade de substincias absolutamente semelhantes. No segundo caso, nada teriam de comum entre si (Prop. II), ¢ Porque entre coisas que nada podem ter de comum entre sino pode haver relagZo causal (Prop. III), segue-se que uma subs- tincia ndo podia ter sido produzida por outra (Prop. VI). Daqui a consequéncia de que a substincia € incriada, e mesmo que se admitisse a existéncia de varias substncias tinham de ser todas, incriadas, ou por outras palavras, a substincia é causa de si mesma, 44 Nao € possfvel, porém, a pluralidade de substancias. A de- ‘monstragao da unicidade da substincia esté ligada a da sua infi- nidade. E que se a substincia ndo pode ser concebida senfo por si mesma € porque nao pode existir sendo por si, isto 6, nao pode ser produzida por outra, da qual seria dependente (Prop. VIN); por conseguinte no pode existir sendo como infinita (Prop. VIII), dado ser coisa finita a coisa que é limitada por ou- tra da mesma natureza. Sendo infinita, tem de ser tinica, porque se houvesse duas ou mais substncias infinitas limitar-se-iam reciprocamente e, con- sequentemente, deixavam de ser independentes (Prop. VIII). Sendo tinica, a substancia existe necessariamente, visto nada cexistir fora dela que possa limit4-la ou impedir-Ihe a existéncia; e € eterna, porque a eternidade de uma coisa € a sua propria exis- téncia enquanto esta resulta da sua definigdo (Def. 8), ou por outras palavras mais claras, porque a existéncia da substancia resulta € d4-se imediatamente com a sua propria esséncia, pelo que esté fora do curso do tempo e desde sempre na actualidade do presente. Sendo-the inerentes estas propriedades, a substincia nao pode considerar-se de maneira alguma como res{duo da abstraccfio ou como um conceito vazio, nem tampouco identificar-se com a nogdo de matéria, se por tal se entender a massa inerte ¢ passiva. Pelo contrario: € 0 ser absolutamente infinito, que, além das propriedades referidas, envolve tudo o que exprime uma essén- cia etema e infinita (I, Prop. 10, esc.). Espinosa.chama atributo ao que «o intelecto percebe da subs- \4ncia como constituind a esséncia dela» (Def. IV), de sorte gue os atributos sao esséncias constitutivas da substincia me- diante as quais esta é apreendida pelo intelecto. O atributo apa- Tece, assim, como manifestagdo da substincia, mediante a qual se exprime uma esséncia constituinte da substancia e se torna inteligivel a sua existéncia. Por outras palavras: os atributos de- signam a constituigao e actividade da substincia e so expresso da sua inteligibilidade. Sendo tinica ¢ infinita, a substincia € dotada de infinitos atri- butos, cada um dos quais é infinito porque exprime uma essén- 45 cia da substincia, Entre a infinidade da substncia e a infinidade dos atributos h4, porém, a diferenga de que a substincia é abso- Iutamente infinita, isto é, abrange a totalidade das esséncias que constituem o ser, enquanto que os atributos sao concebidos por si (Prop. X) € somente «so infinitos no seu género» (Prop. X1), isto €, relativamente A esséncia que exprimem. Dagui, a um tempo, a homogeneidade ¢ a diversidade dos atributos. Como proprios de uma s6 e tinica substncia, 0s atri- butos so, sob esse ponto de vista, homogéneos, visto exprimi rem a esséncia ou natureza da substancia, da qual se nfo distin- guem, como expressamente consigna a expressio — Deus, isto 6, todos os atributos de Deus (I, Prop. XIX ¢ XX, cor. 2); mas por serem infinitos somente no seu género, sdo diversos, visto cada um exprimir uma esséncia que se néo confunde com as demais e tem de ser concebida por si. Por isso, a substincia nio 6a soma dos seus atributos, dada a sua unidade unicidade; os atributos € que so a expresso da infinidade da substancia, ‘mediante a qual esta se toma inteligivel. Pode pensar-se que adedugo das propriedades e dos atributos inerentes A substncia teve por fim preparar a identificagdo da substdncia com Deus. £ uma interpretagao possfvel, mas no in- discutivel, como adiante mostraremos,dado que 0 método geomé- trico indica a ordem ou derivagao l6gica endo a génesee sucesso das ideias na mente de Espinosa. No entanto, seja qual for 0 juizo que se faca, éfora de divida que a unicidade, a infinidadeee a eter- nidade que se predicam de Deus, eram apresentadas como pro- priedades da substincia e, consequentemente, Deus ¢ substncia tornavam-se designagdes diversas de uma s6 ¢ mesma realidade. A Definigdo VI, de Deus, continha implicitamente a identifica~ Ho, que se tornou explicita na Prop. XI, cujo objecto € a de- monstragao de que «Deus, ou por outras palavras, a substncia que consta de infinitos atributos, .. existe necessariamente». objectivo de Espinosa nesta proposigao consiste em mostrar que a esséncia de Deus, ou 0 que é 0 mesmo, da substincia, en- volve necessariamente a sua esséncia —, ou por outras palavras, ‘em demonstrar a existéncia de Deus a partir da sua esséncia, Em rigor, ndo se propde demonstrar a existéncia necessaria de 46 Deus como substincia, que jé havia demonstrado na Prop. VII, mas sim demonstrar, como notou Huan, «que somente pode ser dada na Natureza uma tinica substncia e que esta substancia tinica €absolutamente infinita ou Deus»/ Com efeito, o final do escolio conceber-se coisa alguma nele ou fora dele que Ihe seja contréria ou contradit6ria; e além disto, ha simultaneamente necessidade I6gica de reconhecer ao ser absolutamente infinito um poder de existéncia sem o qual a prépria realidade do finito seria inconce- bivel, e necessidade real de levar este poder a graus tanto mais ‘elevados quanto mais se complica enriquece a esséncia das coi- sas, até se alcangar uma poténcia infinita de existéncia absoluta.»! Embora se ndo possa dizer com seguranga como e quando se formou na mente de Espinosa a concepgdo pantefsta, € fora de diivida que iniciou a redacgao da Erica com a ideia clara do que se propunha demonstrar. As exigéncias l6gicas e metodolégicas ditaram, porém, que procedesse gradualmente nas dedugGes € derivagées; por isso nao estabeleceu, de inicio, explicitamente, a identificagdo de Deus ¢ da Substancia. Ela estava implicita nas definiges preliminares; porém, s6 depois de demonstrar a existéncia de Deus estabeleceu expressamente na Prop. XIV a identidade de Deus com a nocdo de substincia, tal como a havia definido e caracterizado anteriormente; «afora Deus, niio pode ser dada nem concebida nenhuma substincia». Deus, isto é, a Substincia, isto é, a Natureza —: tal é a equa- do que Espinosa estabelece, mas com terem estas palavras sig- nificagao andloga, pode dizer-se com Léon Roth que Espinosa emprega a expresso Deus quando considera o Ser infinito sob © ponto de vista da origem; a expresso Substincia, quando o considera sob o ponto de vista da matéria, e a expresso Natureza, quando o considera sob o ponto de vista da estrutura. As trés expresses designam uma s6 e a mesma coisa, conside- rada sob diversos pontos de vista2. Em resumo, e esquematicamente, sio estas as ideias capitais contidas nas primeiras catorze proposigdes da Etica. Cumpre agora tomar conhecimento de alguns dos numerosos problemas que elas suscitam e das principais solugdes. Reparti-los-emos relativamente a génese da teoria da Substincia e & equagdo Deus = substancia 1 Vid. Le Dieu de Spinoza, cit., pag. 80. 2 vid. Spinoza, Londres, 1929, pag. 61. 50 a 1° — GENESE DA CONCEPCAO MONISTA DA SUBSTANCIA + Foi correntio entre os historiadores da Filosofia anteriores indagagdo das fontes ideol6gicas filiar-se 0 monismo substan- cialista de Espinosa no processo resolutivo de aporias da filoso- fia de Descartes. Hoje o tema jé se no apresenta com a simpli- cidade de outros tempos, pois os resultados da inquirigdo sobre as origens intelectuais das concepydes de Espinosa sio tio nu- ‘merosas ¢ to penetrantes, que o problema da génese do espi- nosismo, em geral, e 0 da concepgao monista da Substancia, em especial, se assinalam entre os mais versados € controvertidos da Hist6ria da Filosofia Moderna. ‘A primeira explicagdo coerente foi dada pela tese da origem cartesiana. Antevista por Leibniz, que num passo de uma carta (HI, 1697) a Nicaise escrevera que peut-on dire que Spinoza n'a fait que cultiver certaines semences de la philosophie de Mr. ‘Descartes, a tese beneficiou da autoridade imensa de Hegel, a0 afirmar nas Vorlesungen iiber die Geschichte der Philosophie (1836) que «o espinosismo € remate do cartesianismo>, e tor- nou-se por fim objecto de minuciosas e penetrantes investiga- ges, mormente por parte de historiadores franceses. Em resumo sumarissimo, pode diz rosso modo, que esta tese considera 0 monismo substancialista de Espinosa, j4 como sequéncia I6gica da diferenca estabelecida por Descartes entre a substancia divina ¢ as substancias criadas, jé como solu- G0 das aporias inerentes ao dualismo cartesiano, jé como de- senvolvimento de certas teses metafisicas, designadamente a identificagiio da matéria com a extensio, a necessidade racional, que Descartes derivava da liberdade divina, e a implicagao recf- proca da existéncia empirica e da esséncia, objecto de intuigdo intelectual. Descartes afirmara que o nome de substincia aplicado a Deus tinha um sentido que ndo convinha as criaturas, ¢ que as subs- tncias criadas, isto é, a matéria e o espirito, se distinguiam pe- los respectivos atributos essenciais, isto é, a extensio ¢ o pen- samento, sem os quais nao podiam ser consideradas. Conse- quentemente, fora levado a formular duas definicdes diferentes, 51 uma nas Réponses aux 2.¢ objections — «toute chose dans la- quelle réside immédiatement comme dans un sujet, ou par la- quelle existe quelque chose que nous apercevons, c'est-d-dire quelque propriété qualité, ou attribut dont nous avons en nous une réelle idée, s'appelle substance» —, outra nos Principes de Philosophie (I, 51) —: «Lorsque nous concevons la substance, nous concevons seulement une chose qui existe de telle facon quelle n'a besoin que de soi-méme pour exister> (hic, pag. 180). A primeira destas definigdes, que Espinosa reproduziu nos Princtpios de filosofia de Descartes, tem o vinco do significado tradicional de substancia nao se enlaga com a definigao da Etica, cuja nota propria e diferencial no é tanto o existir in se ‘como, principalmente, 0 per se concipi. A segunda, pelo contrério, sugere a conexdo que a primeira no comporta, pois, como escreveu Pillon, «da diferenga esta- belecida por Descartes entre a substancia divina e as substncias criadas podia sair logicamente 0 monismo substancialista de Espinosa. A substincia divina sustenta continuamente as subs- tdncias criadas e, tinica, existe por si, sustenta-se, por assim di- zer, a si propria; é, pois, suporte delas, suporte universal e ne- cessério, a substincia das substincias materiais ¢ imaterais. Porque néo fazer que ela suporte, sustente directamente os atri- butos extensio € pensamento? Porque interpor entre ela e estes atributos pretendidas substincias que ndo podem subsistir se no forem constantemente sustentadas por ela e que no podem conceber-se separadas dos seus atributos?...»! Por outra via se estabeleceu ainda a dependéncia conceptual do monismo substancialista relativamente a Descartes. O fildsofo das Meditacaes metafisicas estabelecera como condigao ontoldgica da pensabilidade do Mundo a existéncia de duas substncias que permitissem a explicagdo coerente dos fe- némenos fisicos e dos fenémenos psfquicos: a matéria, com 0 1 Vid. L‘évoluion de Vidéalisme au XVINE siecle. La critique de Bayle. critique du panthéisme spinosiste, in L’Année Philosophique (1899), pig. 98. 52 atributo essencial da extensdo, ¢ o espirito, ou substancia imate- rial, com o atributo do pensamento. Considerando, porém, irre- dutfveis estas duas substancias, Descartes tomava inexplicével a unio do inextenso e do extenso, isto , da captagao de fenéme- nos materiais pelo espirito ¢ da expressio fisica de actos psiqui- cos, notadamente voluntarios. ‘Acsta luz, Espinosa teria resolvido a aporia com a concepgio monista do ser, pois a substincia, séndo in se, per se € de in- finitos atributos, bastava-se a si mesma ¢ explicava satisfatoria- mente a coexisténcia e o paralelismo do pensamento ¢ da exten- séo, considerados como atributos de uma s6 substincia e no como substancias independentes e imedutiveis. O bissubstancia- lismo cartesiano, constitufdo por uma extensao que é somente extensio e pelo pensamento que é s6 pensamento, era superado pelo monismo da substincia, ou Deus. Esta tese, que apresentamos sob forma como que nuclear, al- cangou largo e vério desenvolvimento, especialmente nas pene- trantes andlises de Albert Léon, admirdvel na sagacidade com que procurou mostrar que o espinosismo era o desenvolvimento dialéctico de princfpios cartesianos!, e de Léon Brunschvicg, no menos penetrante e mais profundamente, na demonstragdo de que o espinosismo safra da reflexio do cartesianismo, do qual Espinosa se separara, dentre outras razées, por haver dado sentido dindmico a concepgao da substancia?. O talento e o saber destas andlises e explicagdes nao sdo, po- rém, suficientes para levar ao convencimento de que o espino- sismo se filia directa e principalmente, sendo exclusivamente, no cartesianismo, jf nas aporias que solicitavam uma superago coerente, ja, especialmente, no processo de dissolugdo ¢ de transformagao da categoria de substancia. E que a substituigao da concepgdo de substrato pela de essentia actuosa, ¢ a demons- tragdo da unicidade e a afirmacZo da imanéncia conferem & 1 Vid. cit. Les eléments cartésiens de la doctrine spinoziste sur les rap- ports de la pensée et de son object, Paris, 1907. 2 Vid. La révolution cartésienne et la notion spinoziste de la substance, in Revue de Metaphysique et de Morale, 1904. a substdncia espinosana propriedades que nao é possfvel conside- rar como produto ou derivagao puramente I6gica de principios cartesianos/ Por isso, a grande maioria dos historiadores e intérpretes de Espinosa abandonou a velha opiniéo por demasiado unilateral, pois embora seja incontestvel a influéncia do pensamento car- tesiano no vocabuldrio, no conteddo e na estruturagao da dou- trina da Etica, nem o espinosismo pode reduzir-se a metafisica da substincia, nem Espinosa foi levado a filosofia pela proble- miitica ¢ pela ligdo de Descartes, nem as suas lucubragdes po- dem ser amesquinhadas a passatempo engenhoso de quem se entretivesse a excogitar safdas airosas para as aporias e contra- sensos do pensador genial das Meditacdes metafisicas. Coincidindo, porém, no repidio da tese de filiagao carte- siana!, nem por isso se estabeleceu unidade de vistas entre os intérpretes do espinosismo. Concorreram para isso a complexi- dade do assunto, que se ndo sujeita a unilateralidade de um s6 ponto de vista, ¢ a vastidao e profundidade atingidas nos dlti- mos decénios pelas investigagdes das fontes intelectuais dos es- critos de Espinosa, principalmente do Tratado breve e da Etica. A luz dos resultados desta minudente inquirigao, 0 espino- sismo emerge e avulta como produgao de um génio que assimi- lou e transformou elementos de variada proveniéncia em ordem a fundamentagao e desenvolugao I6gica de uma inicial intuigo do Universo, na qual a consciéncia humana se Ihe apresentou ‘como manifestagdo conexa insepardvel do ser ¢ da razio de ser de tudo quanto existe. Sofrendo, assim, numerosas e variadas influéncias, a filosofia de Espinosa, por intrfnseco ditame da mente que a pensou e do método de trabalho com que a apro- fundou, ndo é, de forma alguma, uma filosofia derivada e muito menos um produto de escola ou a marchetaria habilidosa de ideias de outrem. 1 Como estudo de conjunto, vid. Delbos, Le spinozisme, cit, pigs. 208- -214; e para o estudo analitico L. Roth, Spinoza, Descartes and Maimonides, ci, cap. II, ¢ Richard McKeon, The philosophy of Spinoza. The unity of his Thought, New York, 1928, cap. Il. 54 458046" Deixando de lado o problema geral das origens do espino- sismo, designadamente das teses que o filiam na filosofia de Descartes, na filosofia medieval judaica, nas correntes naturalis- tas da Renascenga, na teologia hebraica, na filosofia arabe me- dieval, no movimento critico ¢ liberal da Holanda coetineo do fildsofo, sem esquecer a quota que pertence a segunda Escolstica, notadamente de Suarez e, possivelmente, dos Conimbricenses, notaremos apenas, por mais pertinente ao tema desta introdugdo, o essencial acerca das principais teorias expli- cativas da génese da concepcao monista da substincia. ‘A tese da filiagdo cartesiana, acima referida, além das dificul- dades légicas, no se harmoniza com as mais recentes investiga- goes!, as quais poem a claro que a intuigdo fundamental, de que a Etica € explicitagao, foi anterior & influéncia cartesiana, a ponto de Avenarius ter julgado que quando ela se exerceu jd a concep- ‘¢do panteista se achava constitufda na mente de Espinosa, por forma que somente deu azo a modificagdes”, ‘Ao contrério de Malebranche, a filosofia de Espinosa nao s6 rio teve por ponto de partida a filosofia de Descartes, sendo que a evolugdo do seu pensamento, apesar de continua, apresenta duas fases distintas no conteddo das leituras: a inicial, corres- pondente ao perfodo da escolaridade rabinica em Amsterdio (até 16512-16542), e a de desenvolvimento, posterior & excomunhao pela Sinagoga (1656). ara o pensador que deveras se vota a sua obra, a maturidade 1 Vid, as pags. 322-327 que McKeon, The philosophy of Spinoza, cit dedica a bibliografia relativa a Esp. e 2 filosofia medieval, da Renascenga ‘modema. J. Maréchal, no t. I, pags. 107-113, do Précis d'Histoire de la Philosophie moderne, fez um resumo didéctico do assunto, para cujo desen- volvimento cumpre principalmente ver os dois monumentais vols. de S. von Dunin Borkowski, Der junge De Spinoza. Leben und Werdegang im Lichte der Weltphilosophie, Munster i. W., 1910; € Spinoza. Aus den Tangen Spinozas, Geschehnisse, Gestalien, Gedankenwelt, 1 (Das Entscheidungsjahr 1657), Munster i. W., 1933. 2 Vid. Ueber die beiden ersten Phasen des spinozischen Panthetsmus und das Verhiiliniss der zweiten zur dritten Phase. Nebst einem Anhang: iber Reihenfolge und Abfassungszeit der alteren Schriften Spinoza’s, Lipsia, 1868, pag. 19. 55 € quase sempre a desenvolugdo de anelos € pressentimentos da juventude. Espinosa parece nao ter feito excepgdo a regra co- ‘mum, porque embora se ndo saiba com segura exactidio 0 curso dos pensamentos € 0 teor dos dizeres que deram motivo a ex- comunhao, tudo concorre, ndo obstante, para o juizo de que a ideia nuclear do espinosismo, ou seja a unidade de Deus e do Mundo, isto é, 0 ser do Mundo como Deus desenvolvendo-se ¢ manifestando-se, se gerou durante a escolaridade na Ez Hayyim yeshiba anexa a Sinagoga de Amsterdao. Sdo quase sempre indetermindveis as nascentes do pensa- mento vivo, mas é-se como que constrangido a admitir que 0 espirito do jovem seminarista se deixou enlear pelo contraste entre a concepgdo antropomérfica da Divindade, que era sem diivida a do ambiente religioso em que vivia, ¢ a metafisica in- finitista sugerida pela concepgdo monista do Zohar e por algu- ‘mas frases de misticos e de tedlogos israelitas da Meia-Idade!. No século XVII, Wachter aproximou o espinosismo da Cabala, ideia que Leibniz levou tio longe que na sua refutagao da Etica chegou a identificar os modos eternos ¢ infinitos da teoria da substancia com os sephirot dos cabalistas®; no século passado, M, Joel procurou estabelecer que o espinosismo é 0 emate de uma longa evolugio da teologia hebraica e a sintese das tendéncias intelectualistas ¢ mfsticas dos judeus da Idade Média’; e mais recentemente Dunin Borkowski afirmou, a pro- pésito da Puerta del Cielo de Abraham Herrera (+1639, em Amsterdio), que as doutrinas cabalisticas deste judeu peninsular estavam mais préximas do espinosismo que a poesia metafisica de Giordano Bruno‘, ‘Acesta luz, Espinosa aparece como elo de uma longa cadeia de ' Sobre o ambiente intelectual ¢ as possiveis leituras de Espinosa antes dda excomunhao, € capital Dunin Borkowski, no cit. Der junge De Spinoza. 2 Vid. Remarques critiques de Leibniz, in Foucher de Careil, Leibniz, Descartes et Spinoza (Paris, 1863), pags. 196-198. 3 Em varios estudos, mas especialmente no Zur Genesis der Lehre Spinoza’s mit besonderer Bericksichtigung des Kurzen Tractats Von Gott, dem Menschen und dessen Gliickseligkeit, Breslau, 1871. 4 Vid. cit. Der junge De Spinoza, pag. 189. 56 fil6sofos israelitas. A sua mente teria assimilado € repensado velhas concepgGes, notadamente por mais pertinente a0 tema destas paginas, de Levi ben Gerson, por intermédio de Chasdai Crescas, que Espinosa cita numa epistola (XID), a ideia da ex- tensio infinita e indivisivel, e de Maimonides, no Guia dos transviados (Moreh Nebukim), dentre outras, a concepgao de que a unidade de Deus se manifesta na unidade da Natureza!. A intuigdo da identidade de Deus com o Ser ou substincia do Mundo € 0 sentido ético-religioso inerente ao espinosismo te- riam nascido, assim, durante a escolaridade no semindrio israe~ lita de Amsterdio. Pode até pensar-se, com vista nas sdbias ob- servagées de H. Austryn Wolfson?, que a propria construgao da Etica, abtindo com a definigdo ¢ teoria da substincia, se ndo furtou a tradigao dos tratados medievais de Metafisica, que tive- ram por modelo o Al-Shafa de Avicena e sempre comegavam pela formula: O Ser divide-se... Seja ou no exacto este modo de ver, que permite reportar escolaridade ndo s6 a intuigao ontol6gica como a génese arquitec- t6nica da Etica, um ponto se deve ter por seguro: 0 abandono, por esta época, da concepgdio de Deus criadore transcendente, que era a crenga que religava e afervorava os fiéis 4 Lei velha, pela qual muitos deles haviam sofrido e padecido provagdes de toda a es- pécie; e consequentemente, o amanhecer de outra concepeio ético- -religiosa que se haveria de edificar sobre a imanéncia de Deus no Universo. Nao sem acerto escreveu S. Karppe, que no fundo do pensamento de Espinosa «6 Iahvé que existe, quando o nao satis- faz 0 dualismo cartesiano do espirito e da matéria, é Iahvé que se ‘encontra como elemento integrante da sua substancia. Nao é, cer- 1 Vid. especialmente Léon Roth, Spinoza, Descartes and Maimonides, Git. cap. Ill ¢ IV: 0 excelente artigo de Julien Weil, Spinoza et le Judaisme, in Rev. des Etudes Juives, v. 49 (1904) pags. 16i e segs; Hari Austryn Wolfson, The philosophy of Spinoza, unfolding the latent process of his reasoning, Cambridge, Mass, 1934. Merece ler-se sobre este livro a recen- so critica de A. Koyré (Ethica more scholastico rabbinosque demonstraia) in Rev. philosophique, Set-Out. 1935. 2 Vid. os seus artigos no Chronicon Spinozanum, especialmente 0 pri- ‘meio, intitulado: Spinoza’s definition of substance and mode, ae tamente,o Iahvé dos profetas e dos tedlogos judeus tradicionalis- tas/éum Iahvé que estudou Plato ePlotino, os pantefstas do século {le Giordano Bruno, Maimonides, Gerson e Chasdai ben Crescas, Bacon e Descartes, mas € sempre por muitas feiges o lahvé da Biblia, Assim como no monotefsmo hd apenas lugar para Iahvé, assim também no monismo de Espinosa hé tao-somente lugar para a substancia. A Etica € 0 comentério do vers{culo do Exodo: «Eu sou 0 ser», comentério alimentado por certo niimero de doutrinas filos6ficas colocadas entre a Escritura ¢ a época de Espinosa. Com a expulsio de Israel, em 1656, comegou para Espinosa, se que se no acentuou, uma vida intelectual aberta a outros ru- mos do espfrito. Como seminarista da Ez Hayyim yeshiba, a pre- paragiio para o rabinato somente lhe facultava o contacto unilateral coma literatura teol6gica filos6fica de autoria israelita, notada- ‘mente em castelhano; agora, porém, liberto de escriipulos, de tutelas e vetos, abria-se-Ihe o passo livre da cultura ocidental, de que o latim era instrumento e vefculo. A partir de entio, leu muito, meditando principalmente Descartes, Hobbes, ¢ alguns dos escolasticos, isto é, os «recentiores Peripatetici», a que alude no final de uma epfstola (XII) a Lufs Meyer e cuja indivi- dualizagio se ndo precisa com inteira seguranga, o que aliés nlio ‘exclui que neles se contenham com muita probabilidade Suarez. Pedro da Fonseca. A intuigdo da unidade e da infinidade da substincia jé estava, porém, arreigada no seu espirito; exprimindo-a em termos do vocabulério escoldstico e cartesiano, Espinosa deu expresso actual a uma ideia antiga, que € possivel tivesse sofrido na sua teorizacao modificagdes ¢ desenvolvimentos na vestidura que definitivamente lhe deu, mas cuja raiz € anterior a0 conheci- ‘mento da filosofia de Descartes. 1 Vid, Essais de critique et dhistoire de Philosophie, Paris, 1902, pag. 124. 2.No inventério da livraria de Espinosa, organizado depois da sua morte, no figura nenhum livro em portugues, nem de portugueses. Contam-se al- guns em catelhano, notadamente as poesns de Gdngors cup morte pre- cedida de amnésia total, se refere na Erica, como diremos no lugar proprio. 58 | | 2° — IDENTIDADE DE DEUS E DA SUBSTANCIA A leitura das primeiras proposigdes da Etica, na ordem por que se apresentam, gera a impressdo de que Espinosa demons- trou a unicidade e a infinidade da substincia para poder estabe- lecer na Prop. XIV que afora Deus ndo existe nem pode conce- ber-se substancia alguma, ou por outras palavras, a substincia e Deus séo um € 0 mesmo ser. Com efeito, se uma substincia no pode ser produzida por outra (Prop. V), a esséncia da substincia tem de envolver a sua existéncia (Prop. VII) € na sua ordem tem de ser infinita (Prop. VIII). Ora € impossfvel a existéncia de duas ou mais substancias infinitas, cada qual com infinidade de atributos infinitos, pelo que a substncia tem de ser tinica (Prop. XII e XIII) ¢ 0 seu conceito se identifica com 0 de Deus, que por definigdo (VI) € , Com serem esséncias determinantes e fung6es, quando consi- derados em relagdo aos modos que deles procedem, os atributos nem por isso deixam de ser idénticos em Deus, ou por outras palavras, em Deus, o Pensamento ndo se distingue da Extensio. A concebivilidade das respectivas esséncias ndo afecta a unidade da substincia ou Deus; 0 facto, porém, de serem concebiveis distintamente ndo confere ao sistema espinosano a caracteristica de um monismo idealista? E a opinido de Frederick Pollock, ao sustentar que a «doutrina de Espinosa, quando reduzida aos seus termos mais simples, € a de que nada existe a ndo ser o Pensamento e seus modos...>. «... 08 atributos de Espinosa so definidos na realidade como objectos, ou antes como mundos objectivos; porém, a forma ge- ral da definigao encobre este facto supremamente importante: © mundo do Pensamento, ¢ ele somente, é simultaneamente sub- jectivo e objectivo. O intelecto que percebe um atributo como constituindo a esséncia da substancia pertence ao atributo do Pensamento. Desta maneira, se levarmos mais longe a andlise, achamos que 0 Pensamento absorve todos os outros atributos, CE. ocap. XVII do Etude de la philosophie de Matebranche (Paris, 1924), de V. Delbos: 0 cap. IX de La Théorie de a connaissance dans ta phitosophie de Malebranche (Paris, 1929), de L. Bridet, E. Brchier, Matiere cartésienne et création, in La philosophic et son passé (Pais. 1940). pigs. 79-99. 1! vid. Les origines cartésiennes du Dieu de Spinoza (Paris, 1932), pags 119-120 nN Porque todos os atributos concebiveis vém a ser aspectos objec- tivos do proprio Pensamento»! 0 idealismo absoluto caracteriza, pois, a jutzo do insigne ex- positor de Espinosa, a estrutura teorética do sistema, Sem con- testar a sagacidade e profundeza das reflexdes de Pollock, pen- samos com Delbos que a interpretagdo idealista parte de um Pressuposto que nao é adequado ao sistema espinosano: 0 de admitir «que em razo da sua virtude representativa, o Pensa- ‘mento, tomado como entendimento, desempenha o papel de condigao necesséria, de principio, em relagio aos objectos que cle representa, e até em relagdo & existéncia destes objectos. Ora, para Espinosa, qualquer género de ser que ndo seja o Pensa- mento, ainda mesmo quando representado pelo Pensamento, no deixa de ter uma natureza radicalmente distinta,.. Que 0 Pensamento represente todos os outros atributos, isso significa, na filosofia espinosista, que todos os atributos, ao mesmo tempo que so géneros de ser, so supremamente inteligiveis; ora isto € 0 racionalismo, e no precisamente, mesmo em germe, o idealismo. Consequentemente, a unidade dos atributos no é a unidade de todos os atributos num deles, mas a de todos 6s atributos na substincia tinica que eles constituem»? A gnoseologia de Espinosa somente se torna compreensfvel a partir do conceito de substancia e portanto do realismo do ser. ‘Todas as interpretagGes que considerem outro ponto de vista, como a relagao ou a transcendentalidade do objecto, esto em {ntimo desacordo com os fundamentos do sistema. 4° A CAUSALIDADE EM DEUS Oque até agora temos exposto reporta-se principalmente ao ser essente de Deus; cumpre agora atentar no seu ser operante, pois possuindo Deus infinidade de atributos, deles resultam (sequi 1 Vid. Spinoza, his life and philosophy. Londres, 3* ed. 1912, pags. 164 € 167-8. O ponto de partida da interpretagtio encontrou-o Pollock na Ep. LXVI, a Tschimhaus (18-VIN-1675). 2 Vid. Le Spinozisme, cit., pig. 47 B 158946° debent) necessariamente infinidade de coisas infinitas, isto 6, tudo 0 que pode recair sob um intelecto infinito (I, Prop. XVI). ‘A poténcia de Deus é a sua propria esséncia (I, XVI, cor. 2; XXXIV), pelo que se no pode entender a afirmagdo de que «Deus, ou por outras palavras, todos os atributos de Deus sto imutdveis> (I, XX, cor. 2) no sentido de Deus ser inerte. Pelo contrério; a produtividade é coessencial ao ser divino, de tal ma- neira que nao pode dizer-se que Deus existe e cria, sendo que é 0 proprio criar. Consequentemente, Deus nao é concebivel in- dependentemente da sua actividade, sendo em virtude dela, ou por outras palavras, das leis da sua prépria natureza, a causa eficiente da esséncia e da existéncia de tudo o que existe (I, XVI, cor. I; XVII; XXIV, cor., e XXV), por forma que coisa alguma tem em si mesma 0 poder de agir, isto é, fora de Deus nio existe nenhuma causa propriamente eficiente (1, XXVI e XXVID). Deus 6, pois, a «causa tinica» (Er., Il, X, ese.). Como em que sentido? . Fixando a atengdo especialmente no livro I da Etica encon- tram-se as seguintes designagdes da causalidade: causa ou razio (Prop. XI, dem. 2%); causa imanente e causa transitiva (Prop. XVIII); causa préxima e causa remota (Prop. XXVIII). A primeira, causa ou razio, € sinénimo da relagéo da conse- quéncia para a respectiva razio. Espinosa exprimiu-a frequen- temente com o exemplo da definig4o de triangulo, da qual ne- cessariamente resulta que os trés angulos sio iguais a dois rec- tos, Neste caso, causa significa fundamento e conexao I6gica A segunda, causa imanente, tem o sentido de causa inerente interiormente ao agente € que se nfo consome nos efeitos. Opse-se a causa transitiva (ou transiente), cuja nogao implica o conceito de transitoriedade, pelo que é transitiva a causa que ‘cessa com o efeito produzido. Deus como causa imanente signi- fica, pois, uma causa que é intrinseca ao Ser, que € permanente € sem a qual 0 efeito no pode ser produzido. ‘A quarta, causa eficiente, exprime a ideia de acco e de pro- dutividade (I, XVI, Cor. 1). A quinta e sexta, isto €, causa proxima € causa remota, signi- ficam, respectivamente, causa imediata, isto é, que produz 0 19 efeito sem intermedirio, e causa «que nao esté ligada ao efeito por qualquer modo» (Prop. XXVIII, Esc. II). Nesta distingao, tém importancia capital as concepgoes de causa ou razio, de causa eficiente e de causa imanente. A primeira é, por assim dizer, caracteristica do racionalismo espinosano, dado o paralelismo que Espinosa estabelece entre a derivagao das propriedades de dada definigio, v. g. a de tridn- gulo, ¢ a derivagao da existéncia real de tudo o que o intelecto infinito de Deus conhece da esséncia de Deus (I, XVI), pelo que Deus € causa de tudo o que advém 3 existéncia, A relago l6gica da consequencia & razio € identificada A relagdo efectiva da causa para o efeito, de sorte que se toma inerente 2 causa a sequéncia necesséria do efeito (ax. 3), conceito de causalidade como «causa ou razio» fundava logicamente a concepcao da causalidade divina como fluir ne- cessdrio, sendo que Deus nao possui entendimento nem vontade (, XVII, esc.), nao age por vontade (I, XXXII, cor.) nem em atengao a fins (I, Apénd.), ndo é indiferente, é imutével nas suas determinagées, ¢ € livre, isto é, nem extrinseca, nem intrinseca- mente se da seja o que for que o constranja a fazer ou a no fa- zer (1, XVII, esc.; XXXI, cor.). Se a nogao de causa como razio fosse a tinica nogo de cau- salidade inerente a Deus, poderia pensar-se com alguns intérpre- tes, notadamente Windelband, que o Deus de Espinosa € essen- cialmente razio légica € no causa real e activa, tal como 0 ¢s- ago ndo é causa real do tridngulo ou da igualdade dos seus an- gulos a2 rectos. Neste modo de ver, Deus seria causa sem set forga activa, tal como o trifingulo é causa nao activa dos scus trés Angulos serem iguais a 2 rectos, A identificagao da causa I6gica e da causa real num s6 con- ceito de causalidade contraria, porém, este modo de ver, tanto ais que a nogo de causa eficiente, também inerente a Deus (1, XVI, cor. 1), implica a ideia de acgdo e de produtividade. E in contestavel que Espinosa acentua por vezes a feigdo geométrica da causalidade divina, designadamente quando estabelece que ela produz os seus efeitos com a mesma necessidade, eterna e imutdvel, com que da definigao de widngulo resulta a igualdade 80 dos seus angulos a2 rectos; no entanto, ndo é esta a tinica no de causalidade que Espinosa reporta a Deus, além de que, a0 empregé-la, 0 metafisico da Etica, como observou Huan, tem em vista refutar a concepgo que atribui a Deus entendimento e vontade livre (Et., I, XVII, esc.; XXXII, esc. 2, e I, TH, esc.) Deus é ¢ esté sempre em acto (I, Prop. XV, XVI, XVID, re- sultando desta concepeo uma nogdo de imanéncia em que cum- pre atentar (I, XVID. : A primeira coisa que logo ressalta é que a actividade divina iio se exerce em algo ou sobre algo que seja exterior ou inde- pendente de Deus, pois coisa alguma existe fora ou indepen- dente de Deus. Consequentemente, a causalidade divina nao é existente, isto é, nio sai fora do préprio ser divino, nem tran- siente (ou transitiva), quer se entenda por esta expresso, usual na Escoléstica, a causa que se consome no efeito produzido, quer a que modifica algo independente do agente causante. A causalidade divina é, pois, imanente, e, por conseguinte, no é Deus que estd age no Mundo, sendo que € 0 Mundo, desprovido de autonomia e de substantividade prépria, que estd em Deus. «Deus € anterior a todas as coisas — escreve Huan — nfo s6 por natureza (Et., I, 1), mas por causalidade (Er., I, XVII, esc.); por conseguinte, se nada existe e no pode ser concebido sendo pela sua esséncia e pela sua poténcia, Deus existe e pode ser concebido por ele préprio, nao s6 na sua esséncia como na sua poténcia; portanto, todas as coisas dependem da sua poténcia ou da sua causalidade no mesmo sentido em que elas dependem da sua esséncia, Ora Espinosa repete varias vezes que todas as coi- sas existem em Deus ou sio contidas em Deus (Et., I, XV; II, VIII; V, XXIX, esc.); € ndo diz nunca que Deus esté contido nas coisas, ¢ a razio disto € claramente expressa pelo escélio da Et., I, X. Com efeito, se Deus estivesse nas coisas no mesmo sentido em que elas esto nele, ndo s6 as coisas ndo poderiam cexistir nem ser concebidas sem Deus, sendo que o préprio Deus 1 Vid. ob. cit., pags. 94-95, 81 no poderia existir nem ser concebido sem as coisas, isto é, constituiria propriamente a esséncia delas.»! Como é, porém, possfvel que se dé a existéncia das coisas € da factualidade do Mundo em Deus ¢ elas nada acrescentem a0 ser de Deus, se corrompam e peregam subsistindo a causa donde resultam? A primeira pergunta, Espinosa respondeu com a teoria da producdo necesséria; € A segunda, ndo deu resposta na Etica, Constituindo o seu siléncio uma das grandes dificuldades do sistema, Considere-mo-las separadamente. ‘A teoria da produgio necesséria dos seres é evidentemente a \inica compatfvel com a teoria do ser e da causalidade em que assenta o sistema afirmando-a expressamente na Etica (I, Prop. XXIX e XXXII). Sem impropriedade se pode dizer que Espinosa nfo cuidou tanto em fundamentar a teoria da produgdo necesséria como em deixar bem acentuada a falta de fundamento da concepgao que Ihe € contréria, ou seja a da criago do Mundo por acto da vontade divina. Por isso, ao longo da sua obra, no Tratado breve, nas Cogitacdes metafisicas, na Etica (I, XVI, XXXII e XXXII), sempre procurou mostrar a impossibilidade l6gica desta tltima concepgdo, j em si mesma, como acto de vontade, j4 no que ela implica, a saber, a possibilidade do Mundo poder nao existire ser diferente do que é. ‘A temporalidade e a mutabilidade do devir mundanal propée, como dissemos, uma subtil dificuldade. Com efeito, dada a unicidade do Ser e a imanéncia da sua causalidade, que naquela se funda (1, XVIII), como € possfvel metafisicamente. a existéncia do mundo factual, no seu acontecer incessante de eventos e na individuagao concreta de seres ¢ de coisas que nele se produzem? A permanéncia, 0 equilibrio, 0 ritmo e 0 desenvolvimento necessério das forgas € seres que constituem 0 Universo tornam-se compreensiveis, quando con- siderados no seu conjunto, porque so coerentes com a concep- 40 do ser tinico, imutavel, e eternamente idéntico a si mesmo; mas 0 nascer, o devir ¢ 0 perecer dos seres concretos ndo seré a 1 Vid, ob. cit, pag. 107. 82 negacdo ostensiva do monismo da substincia? Se os seres ¢ os acontecimentos que ocupam 0 espago real e o tempo vivido nao so meras ficgdes da imaginagZo — e nao sio nem podem sé-lo perante 0 realismo e o nominalismo de Espinosa —, a sua exis- téncia carece de explicago coerente com o sistema; qual? ‘A explicagio mais aceitavel, que € também a mais razodvel apesar das adversativas que ela implica, é a da existéncia de uma dupla causalidade em Deus, mas nao de Deus. Em Deus, como efeito, ¢ ndo de Deus, porquanto de Deus, como vimos, somente se seguem a causalidade imanente e coi sas eternas e infinitas. Dada, porém, a existéncia de modos fini- tos, isto é, de seres e de eventos concretos com duragio varid- vel, a explicacZio mais conforme, o que ndo quer dizer que seja firmemente segura, consiste em admitir em Deus a dupla causa- lidade imanente e transitiva, Considerando exclusivamente os passos do Livro I da Etica, que sio os que o leitor pode facilmente considerar, verifica-se que Espinosa admitiu a existéncia de produtos eternos e infinitos da causalidade imanente de Deus, como sejam os modos eternos ¢ infinitos, quer derivados imediatamente da natureza absoluta de qualquer atributo de Deus, quer mediatamente por intermédio de um modo eterno e infinito (1, XX II). Os modos finitos e particulates, que so os modos da nossa experiéncia, tém a sua raziio de ser, como os modos eternos e infinitos, na causalidade divina, mas nao integralmente na causalidade imanente directa, que somente produz efeitos eternos e infinitos. A causalidade imediata que os produz tem de ser uma causalidade finita, € a ‘inica causalidade desta natureza coerente com o sistema € a que entende por causalidade finita a causalidade divina imanente en- quanto Deus € concebido como determinante de um modo parti- cular de qualquer dos seus atributos ou dos modos etemnos ¢ in- finitos, ou enquanto 0 modo particular e finito condiciona a existéncia de outros modos particulares e finitos do atributo a que pertencem (1, XXVIII). Assim entendida, a causalidade finita e transitiva nao independente, mas como que interme- didria e tanto mais eficiente quanto as coisas tém menos perfei- ¢4o ou realidade (1, XXVIII, esc.; Apénd.), 83 Esta explicagao é, porventura, a mais aceitével, mas as difi- culdades inerentes & transposigio do infinito no finito do eterno no temporal sempre conferirao incerteza e fragilidade a todas as explicagdes que se excogitem!, ‘Qualquer que seja ou venha a ser a explicagdo mais cocrente, um ponto cumpre notar: a importancia ¢ a simplificagao do princfpio da causalidade na explicabilidade do processo cés- ‘imico, No esquema explicativo de Aristételes, a explicagio cabal exigia 0 concurso das causas material, formal, eficiente ¢ final. Agora, no esquema da Erica, a causa material era eliminada, porque a matéria nao € causa activa, a causa final, expulsa como ficgio da imaginago, e a causa formal ¢ eficiente coincidiam numa s6 e mesma causa, que é a causalidade imanente de Deus, isto €, 0 sere razio de ser de tudo 0 que existe. d) DEUS E A NATUREZA NATURADA (Prop. 29-36) Ontologicamente, 0 Mundo foi considerado por Espinosa duplamente: no seu ser ¢ razio de ser, invisiveis aos olhos da face, € na manifestagio do ser e raziio de ser, sensfvel aos nos- sos sentidos. primeiro, € a Natureza naturante, ou Deus, que é a tinica realidade substantiva; o segundo, é a Natureza naturada, intei- ramente desprovida de substantividade, com existéncia pura- mente modal, isto €, existe como manifestagao da produtividade inerente 4 Natureza naturante, ou Deus. Hé, assim, como que dois aspectos da metafisica do existente: © substancialista e © modal, ou por outras palavras, a realidade que é, una, eterna, infinita, imutdvel, e a realidade que estd, di- versa, temporal, finita, mutdvel na sucesso necesséria do seu acontecer. Vimos nas paginas anteriores as condigdes ontol6gicas da 1 Vid. para desenvolvimento deste complexo assunto as paginas 103-134 do cit, Le Dieu de Spinoza, de Huan 84 pensabilidade da Natureza naturante; agora atentaremos, com mira ao essencial e sumariamente, na modalidade da Natureza naturada. Com distinguir as duas expressdes do ser, a reflexio de Espinosa nao abandonou jamais o terreno puramente ontol6- gico, isto é, a reflexdo metafisica, que nio fisica. Nao teve, pois, em vista a observagao e a investiga¢Zo do comportamento da realidade que nos € patente ¢ sensfvel, nem tampouco a res- pectiva explicagdo cientifica ou utilizagdo pritica. A reflexiio se- gue sempre 0 mesmo curso, sem nunca se desviar da teoria ge- ral do ser, mas, como € 6bvio, vai incidindo sobre objectivagdes diferentes, em planos diversos. Comecemos por atentar na teoria da modalidade, que € a teo- ria sobre que assenta a concepco da Natureza naturada, para de~ pois tomarmos nota de alguns problemas que esta teoria propée. Os atributos, como sabemos, exprimem a esséncia da subs- tancia e, consequentemente, constituem a Natureza naturante, ou por outras palavras, a realidade que existe em si e por si mesma € concebida. Nao sio consequéncia do ser de Deus, e porque existem em si e por si so concebidos nenhum resulta de outro ou de outros atributos. So coiguais e coextensivos a esséncias da natureza divina, pelo que cada um exprime a realidade ou ser da substincia (1, X). Os modos, pelo contririo, so afecgdes ou modificagdes da substancia, na qual se dao, pela qual sao concebidos (Def. V), € da qual sio «consequéncia necessdria» (I, XXIX). E, pois, préprioda existéncia modal dar-se, por assim dizer, insitamente, ou por palavras mais rigorosas e expressivas da discriminagao ontol6gica que 0 nosso verbo ser comporta e que assinalam uma das riquezas do nosso idioma, 0 modo estd e nao é, por e com ascidade. Tem ser estante, e, nao, como asubstiincia, ser essente, E que os modos pertencem A ordem do causado € nao pro- priamente do causal, e portanto esto desprovidos de substan- tividade prépria. A sua esséncia, como a sua existéncia, pro- mana de Deus (I, XXIV e XXVI) e € pela causalidade divina que so determinados a agir (I, XXVI; XXVID. A sua existén- cia exclui absolutamente a contingéncia, isto é, a possibilidade 85 i de se darem ou nio na realidade (I, XXIX); por isso, quando considerados na sua expressio finita e particular, isto €, separa- damente da substincia donde dimanam por causalidade imanente e lhes dé razio de ser, as coisas e os acontecimentos concretos, isto é, os modos, tanto na ordem da Extensio como na ordem do Pensamento, apresentam-se como determinados uns pelos outros, num processo de encadeamento sem fim (I, XXVIII). Aordem por que se sucedem ¢ encadeiam os infinitos aconte- ccimentos da Natureza naturada é imutavel e necesséria, isto é, nfo podia ter sido outra (I, XXXII). Vindas & existéncia pela produ- tividade necesséria e imutavel inerente a Deus, as ideias, isto os modos finitos do Pensamento, e os acontecimentos ¢ coisas, isto €, os modos finitos da Extensio, ndo tém em si, nem entre si, qualquer valor, estético ou ético, que os torne intrinseca- mente belos ou feios, morais ou imorais. Existem exclusivamente na categoria do ser. Existem, esto, mas no valem, porque o valer nao é uma categoria da realidade ou da idealidade, visto os valores serem somente expresso verbal de apreciagdes pura- ‘mente subjectivas da mente de cada um, Objectividade pura e absolutamente necessdiria no modo como se da, sem qualquer valoridade — tal €a visio espinosana da rea- lidade espdcio-temporal, mas esta desnudez do Ser, real, ideal ou pensdvel, nao significa que entre os modos finitos no haja dife- rengas ontol6gicas, ou por outras palavras, que as ideias, as coi- sas € 0s acontecimentos nao exprimam graus diversos da realidade Tudo 0 que existe procede necessariamente da natureza de Deus na méxima perfeigdo, visto resultar «de uma natureza que € dada como a mais perfeita» (I, XXXIII, esc, 2). Na variante infinita da sua modalidade, as coisas, porém, ndo so idénticas na capacidade, pelo que umas so mais perfeitas que outras, nfo emrelago a sensibilidade humana, mas em relagao & custa donde procedem (Apénd., hic, pégs. 175-6). «Estabelego em primeiro lugar», escreveu Espinosa numa carta (Ep. 23) a Guilherme de Blyenbergh, em 13 de Margo de 1665, «que Deus é, absoluta e efectivamente, causa de tudo, seja o que for, que tem uma es- séncia. Se puderdes demonstrar que o mal, o erro, o crime, etc., exprimem uma esséncia, concordarei inteiramente que Deus € 86 causa dos crimes, do mal, do erro, ete. Creio, porém, ter de- monstrado suficientemente que 0 que dé forma ao mal, ao erro, ao crime, nfo consiste em algo que exprima uma esséncia, pelo que se ndo pode dizer que Deus seja a causa de tais coisas...» <«... Tudo 0 que existe flui necessariamente das leis eternas e dos decretos de Deus e dele depende continuamente, mas as coi- sas diferem mutuamente em grau e na esséncia. Assim, embora 6 rato como © anjo, a tristeza como a alegria, dependam de Deus, nem por isso o rato é uma espécie de anjo e a tristeza uma espécie de alegria.»! No proceso cdsmico, tudo 0 que advém a existéncia dé-se numa ordem que resulta necessariamente da natureza de Deus. Como tal, € ordem essencialmente l6gica, de causa sive ratio, € niio propriamente temporal, porque em Deus ndo ha antes nem depois; ¢ os seus elos como que se encadeiam gradativamente, pois € «efeito mais perfeito o que € produzido por Deus imedia- tamente e... quanto mais causas intermedirias uma coisa carece para ser produzida tanto mais imperfeita 6». (Apénd., hic, 169.) Na sua teoria da modalidade, Espinosa distinguiu modos in- finitos imediatos, modos infinitos mediatos e modos finitos. Os primeiros, resultam imediatamente da natureza absoluta dos atributos, pelo que s4o infinitos e eternos como ela (I, XX1). Assim, 0 movimento é modo imediato infinito da Extensio. Os segundos, resultam dos atributos enquanto afectados por uma modificagdo eterna e infinita, pelo que também sao eternos € infinitos (1, XXII). Assim a face do Universo na sua totali- dade, por cuja expresso Espinosa talvez entendesse a totalidade do movimento no sistema do universo fisico (vid. hic, pags. 188-189), € um modo mediato infinito e eterno2, Os terceiros, so as coisas particulares, isto é, 0s modos dos atributos enquanto so determinados a agir de certa e determi- nada maneira (I, XVII). Consignamos no apéndice de notas (pags. 187-190) algumas ! Vid. ed. Gebhardt, IV, pags. 147 e 149. 2 Este exemplo, bem como o anterior, encontra-se na Ep. (64) a Schuller, de 29 de Julho de 1675. Vid. hic, pag. 188. 87 UF6) linhas do essencial desta complexa teoria, que prope variados problemas de incerta interpretagdo, especialmente no que res- peita aos modos finitos, Por isso, dado 0 objectivo destas pégi- nas, em vez de convidarmos o leitor a embrenhar-se no dédalo das subtilezas, mais ou menos conjecturais, proprias da investi- ‘2aclo monogrifica, parece-nos preferivel traduzir em linguagem correntia o essencial desta teoria, despindo-a do vocabulério com que Espinosa a apresentou e largamente utilizamos, tanto mais que na Parte II teremos de atentar na relagio entre a ordo rerum e a ordo idearum. No Mundo sensfvel, Espinosa via somente ideias ¢ ideatos, isto 6, objectos a que as ideias se reportam, coisas, aconteci ‘mentos, seres viventes, homens, sociedades, Estados, etc., etc. Quer dizer, os seus olhos somente viam, e a sua razio somente considerava, objectos acontecimentos singulares ¢ concretos. Em parte alguma do Mundo em que vivemos dava pela existén- cia de ideias gerais, de abstracgdes, de valores, de princfpios absolutos, de fins normativos, superiores e independentes da objectividade concreta. A seu ver e a seu ju(zo todas estas gene- ralidades ndo passavam de generalizagdes da cabega de cada um, porque a tinica realidade existente € a que € dada pelos objectos € acontecimentos na respectiva singularidade e concretizagao do seu acontecer, que € sequéncia necesséria da causalidade ima- nente A substincia de tudo que existe, isto é, Deus. ‘O mundo existe como sequéncia necesséria da produtividade divina, mas em si mesmo € como que dessubstanciado, isto é, despojado de realidade ontol6gica prépria, ¢ fenomenizado em plexo factual de seres e de eventos, que mantém com 0 ser tinico einfinito relagdes de conexaio idénticas as que intrinsecamente re- portam aconsequéncia a raziio donde ela procede necessariamen- te, tal como da definigdo de tridngulo resulta que os seus ngulos, de etemidade e para a eternidade, so iguais a dois rectos, Nesta metafisica do concreto, os seres gozam da existéncia, ‘mas ndo sdo a existéncia, porque cada um, singularmente, seja pensamento, seja objecto, dura tanto quanto pode perseverar no seu ser e enquanto as condigdes que Ihe proporcionaram a exis- téncia ndio cedem a outras condigGes. Se cada pensamento nasce 88 de outro pensamento, se cada corpo nasce de outro corpo se dissolve noutro corpo, ¢ assim indefinida e infinitamente, cada sef ou acontecimento do Universo exprime a dupla necessidade de resultar das circunstncias que Ihe do existéncia e de durar 0 tempo consentneo com a sua prépria natureza. A necessidade com que advém a existéncia, €, portanto, a forma com que se apresentam, constituem toda a sua perfeigdo. Nao tm outra, como o serem belos ou feios, porque se por perfei¢do se enten- der o valor das coisas, isto é, a sua valorizagao ética ou estética, tal perfeigdo é mero produto da subjectividade de quem aprecia. Tal €, segundo Espinosa, a estrutura metafisica da realidade do Mundo em que nos € dado viver. Resume-se em poucas pa- avras: tudo 0 que existe e se dé na Natureza € manifestagio ne- cesséria da esséncia absoluta de Deus. Sao estas palavras como que a sintese do Livro I da Etica, mas a sintese ficaria inconclusa sem o jufzo acerca do signifi- cado da relacdo de Deus com a Natureza. ‘O tema envolve varias perguntas. De harmonia, porém, com 0 que expusemos, limité-las-emos a seguinte: Se Deus ¢ a tnica realidade essente ¢ actuosa, € 0 Universo uma congérie de apa- réncias e, portanto, irreal, ou, pelo contrério, tem uma forma de ‘existéncia compativel com a unicidade do Ser? ‘A resposta no sentido da irrealidade implica a concepgio do panteismo de Espinosa com a significagao de acosmismo, para ‘empregar a expresso de Hegel, na Enciclopédia das ciéncias filosoficas (§ 50). Neste sentido, o sistema, longe de divinizar a ‘Natureza, desdiviniza-a, por compreender e identificar em Deus a infinita diversidade do acontecer césinico desprovido de substancialidade propria. Esta maneira de ver, que € partilhada por numerosos intérpre- tes, encerra uma parcela de verdade. Nao a temos, contudo, por inteiramente exacta, variando o grau da sua inexactidio em fun- io da medida em que se privar 0 Universo de realidade. E que Espinosa afirma a existéncia de realidades «fora do intelecto> (1, IV) ea realidade efectiva dos modos (1, XVI), cuja heterogenei- 89 dade resulta da diversidade dos atributos!, Nao priva, portanto, © Universo de realidade, dado que a ordo rerum é to real como 8 ordo idearum, mas isto nao quer dizer que lhe confira existén- Cia Ontica, em si e por si, porque esta forma de existir somente se dé em Dens Assim considerado, o pantefsmo de Espinosa, como jé acen- twémos, ndo € material, mas de razao, isto é: Deus € a condigao da pensabilidade e da explicabilidade ontolégica e légica do Universo, ¢ nao o ser real infundido nas coisas e subjacente ao acontecer fisico. Tudo o que existe, existe em Deus (1, XV), € no inversamente, mostrando 0 contraste que, pelo menos na maneira de ser, as coisas se distinguem de Deus (I, XVII, esc. hhic, pags. 135-7), sem alids dele se separarem autonomamente ou sem ele poderem ser concebidas. ) CIENCIA E TELEOLOGIA (Apéndice) O apéndice que Espinosa aditou ao Livro I no contém ideias novas, mas éaexplicitagdo clara de algumas ideias nele expostas. Disse-se jd, endo sem acerto, que, dada a prevaléncia da tema. tica ética sobre a temética ontoldgica e espistemol6gica, a Etica devia ser lida a partir das derradeiras demonstragdes do seu tiltimo livro, nas quais se afirma rotundamente a certeza racional do co- nhecimento que salva, expressa notadamente na concepgao do amor intelectual de Deus © no sentimento da fruigao da Eternidade. Parafraseando tal modo de ver, pode dizer-sc tainbém que as pagi- nas deste apéndice constituem como que a introduc leitura do Livro I, dado que preparam 0 leitor a apreender mais facilmente a exposigaio more geometrico da concep¢ao da solidariedade eabsolu- tanecessidade imanente a tudo 0 que se die passa no Universo, que €um dos suportes, senio a trave mestra,do sistema espinosano. Com efeito, apés a brevissima indicagao dos assuntos capitais } Vid. em Huan, ob. cit. pags. 243-246, a larga fundamentagdo critica da tese da irrealidade do Mundo em Espinosa, 90 oa 1, Espinosa entra imediatamente no tema principal do ae ‘a exposigio e rtica dos «prejufzos que. poderiam e jem impedit os homens de abranger 9 ‘encadeamento das coi- mncatenatio rerum) tal como o expliquei. ..» “iS prejuizos podem considerar-se sob 0 ponto de vista da natureza da mente humana; porém neste apéndice so considera- dos somente como consequéncias de um falso pressuposto fun- damental: a concepgio teleolégica do Mundo. Nascendo igno- rantes das causas do acontecer ¢ com a tendéncia a apetecer 0 que parece ser-Ihes ttil, os seres humanos imaginam-se livres no exercicio da vontade e créem que a actividade humana tem por fim a utilidade e que a propria Natureza foi disposta por um ou alguns Entes transcendentes e omnipotentes a agir em ordem rminados fins. +e creunstincia de Espinosa haver separado este assunto den- tre os varios de que se havia ocupado no Livro 1é, pelo menos, indicio de que pretendeu acima de tudo deixar bem expressa a sua concepcdo do Mundo. Nesta ordem de ideias, pode até pen- sar-se que deu prevaléncia a concepgao da Natureza naturada em relagdo & da Natureza naturante —, ou por outras palavras, pre- feriu acentuar a sua concepcao da factualidade do Universo como expresso modal ou estante do Ser, expondo-a directa- mente € & luz indirecta da concepco que Ihe é antagénica, em vez de acentuar a condigdo ontolégica dessa mesma factuali- dade, ou seja o ser essente e actuoso da substncia!, ‘Adiando para outra oportunidade o exame deste modo de ver € © das implicagées que dele se seguem, notadamente a minimiza- do da interpretacio substancialista do sistema, baste agora notar que a eleigdo deste tema para assuntode um excurso redigido em termos de fécil acessibilidade mostra claramente que Espinosa teve em vista salientar a concepgdo de que a Natureza € constituida pela factualidade temporal e espacial, desprovida, portanto, de 1 Vem a propésito a observagto de que a Erica empregao termo substin- cia somente nas primeiras 10 proposigdes, ¢ em mais ts casos, no con- junto das 259 prop. que a constituem, O conceito de substancia € depois ‘substituido pelo de Deus ¢ de Natureza. o1 onticidade prépria e independente, e que os acontecimentose se- res que nela se produzem se ligam em «concatenacao» absoluta € necessdria, Na Natureza assim considerada nada ocorre por casualidade, por espontaneidade ou em obediéncia a fins predeterminados, ‘Tudo advém numa sequéncia absolutamente necesséria, sendo a imanéncia da causalidade no Universo a ideia que Espinosa quer afirmar como tinica coerente com a unicidade do Ser, ou Deus, ¢ com a norma do pensar exacto, cujo paradigma € a relagdo que tune numa dedugdo geométrica a consequéncia a respectiva razio. Daf, a exclusio da causalidade transcendente, exiente, transiente ou finalista, a admissibilidade da interpretago do monismo pantefsta com acento mais pronunciado no produzir que no set da substncia, e a concepgio do saber como compreensio ade- quada da realidade. Concebendo a realidade em si mesma como manifestagio da «concatenagdo» absolutamente necesséria do existente, cujo nexo causal € intrinsecamente l6gico, e portanto absolutamente desprovido de finalidade, de valor ou de desva- Jor, Espinosa tinha forgosamente de identificar o agir com 0 existir, 0 produzir com 0 pensar, o ser com a perfeigao. Por isso, o saber tem acima de tudo de compreender, ¢ para compreender tem de indagar a validade e no o valioso, dado que as noges de belo ¢ feio, de mal e bem, «nada mais so do que modos de imaginar, nos quais a imaginagio € afectada di- versamente» (hic, pag. 173). O pensamento que pensa com exactiddo pensa uma ordem de ideias impessoais, isto é, nao pensa acontecimentos subjectivos nem quimeras da imaginagdo, mas intuigdes de ideatos, ou por outras palavras, objectos € coneretizagdes da «concatenagao» imutavel da Natureza una, que a constituigo do nosso intelecto intui sob a forma de corpo- reidade (Extensio) e de idealidade (Pensamento). Se a vida do intelecto puro ndo é a vida de um intelecto singular, a Ciéncia no é, nem pode ser, uma representagdo pessoal da realidade, Por mais genial e capacitada que se imagine a mente que a con- ceba, mas tem de ser a pr6pria realidade. O antropomorfismo da Ciéncia, ou por palavras actuais de algumas correntes da Epistemologia e da Teoria da Ciéncia, a legalidade da Natureza 92 como construgio do espirito, como sintese e6moda de economia mental ou como paralelo do «tudo se passa como se...», € to jlégico como o antropomorfismo na concepgao do Ser absoluto. ‘A concepcao espinosana da Ciéncia, que noutra introdugao consideraremos sob 0 ponto de vista gnoseoldgico, pretende, pois, subtrair a consideragio da realidade as vicissitudes cam- biantes da consciéncia empfrica ¢ &s ilusdes da imaginago para a situar na consciéncia teorética da pura racionalidade I6gica e da conexo ontolégica. ‘Coimbra, Abril de 1950. JOAQUIM DE CARVALHO 93 n es peace ADVERTENCIA BIBLIOGRAFICA A presente tradugdo segue 0 texto da Spinoza Opera im Aufirag der Heidelberger Akademie der Wissenschaften herausgegeben von Carl Gebhardt, vol. I (s . Heidelberg, Cart Winter, ed). Consltamos também a ed, de Giovanni Gentile, B, Spinoza, Eca, Texto latino con note. Bari, 1915, Denise as tradug es ulizamos princpalmente: — Sp. Ethique, tad. nowelle de Charles Appuhn. Pars, ed. Gamer; — Sp. Eth, tad, de R, Lantzenber, Pris, ed, E. Flammarion, — Sp. Eth. Premitre partic et fragments. Trad. nouvelle... par A Cuvier. Paris. Ed. Larousse. —B. Sp. — Erica. A cura di Antonio Renda. Milo, 1939. — The Philosophy of Sp. as contained in the first, second, and fifth Parts of the «Ethics» and in extracts from the third and fourth. Translated from the Latin, and edited with notes by George Stuart Fullerton. New York, 1907. — Sp. Ethik. Uberset und mit einer Einleitung und einem Register versehen von Otto Baensch, 10* ed, Lipia, 1922 O Korte Verhandlung van God de Mensch en deszefs Welstand foi uili- atl na trad. de Charles Appuhn, Oewsres de Sp. vo. I, Pais ed Garier Abreviamos por E, a Etica; por IE, 0 De intellectu emendatione ¢ por Ep. as Epistolae. 95 ETICA ETICA PARTE | DE DEUS DEFINIGOES! 1. Por causa de si entendo aquilo cuja esséncia? envolve a existéncia; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza ndo pode ser concebida sendo como existente’. IL Diz-se que uma coisa € finita no seu género* quando pode ser limitada por outra da mesma natureza’, 1 No LE. diz que a definigdo para ser perfeita debebitinimam essentiam rei explicare. sto mostra que para Esp. a definiglo ndo € a explicitagao 16- gica de um conceito mediante o género préximo e a diferenga especifica Este tipo de definigdo assenta nas propriedades, est igada ao método da di- visdo e € diferencial, enquanto que as definigdes de Esp, pretendem ser es- senciais, isto 6, dar aideia clara ¢distinta da esséncia da coisa definida e da ‘ual aideia 6 inseparvel; por isso identifica definigdo verdadeira com ideia Adequada, isto 6, esséncia objectiva, ou por outras palavras, aesséncia pre sente ao intelecto que define: ea rei idea sive defintio (Ep. LX). Na Ep. IX distingue os seguintes genera: a definiglo que explicat rem prout est extra intellectum..., isto 6, a definigio, €a definigio que explicat rem, prout a nobis concipitur vel concipi potest. que € & definigio nominal. Em rigor. as definigbes aqui dadas sio deste tipo; porém pela intenglo pertencem a0 primeiro, dado que no sistema de Esp. tudo se passa como expresso da ne- Cessidade real, que também € a necessidade Iogica. ‘As deinigBes aqui apresentadas enunciam conceitos fundamentais, dada a exposigo more geometrico do sistema, «A meu ver», escreveu Esp. no fi- nal da Ep. LX, «a tnica regra a observar 6 que cumpre achar uma defiigao dda qual tudo possa deduzr-se... Propondo-me trar do conceito de uma coisa tudo 0 que dele € possfvel deduzir, € bem de ver que o que vem depois é ‘mais dificil do que o que est antes.» ‘Com serem distintss, a8 8 definigdes assentam na discriminagSo de das determinagbes ontol6gicas: ser que € causa de si, possui infinitos atribi tos, 6 livre, etc, ito 6, a substincia, ou Deus, ¢ 0 ser que nao € causa de isto 6, € condicionado, existe e € concebido por outro, ou sejam 0s modos. 2 Vid. a definigao 2* da P. II. Esséncia nfo tem o sentido de universal nem o de entidade ideal; ¢ o ser proprio, tanto na ordem das ideias como na ascoisas, 3 Vid. nota 1 do Apéndice. 4 Esta nogdo opde-se a ente absolutamente infinit. Vid. def. 6 ¢ a sua cs 5 Freudenthal (Sp. ud. Schol., 120) mostrou a origem escolistica desta ogo de ser ou coisa finita, exposta notadamente por Suarez nas 99 i Por exemplo: Um corpo diz-se que € finito, porque sempre podemos conceber outro que Ihe seja maior. Do mesmo modo, um pensamento é limitado por outro pen- samento. Porém, um corpo nio limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo!. IIL Por substincia entendo o que existe em sie por si é con- cebido, isto é, aquilo cujo conceito nao carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado?, IV. Por atributo entendo o que o intelecto percebe da subs- tancia como constituindo a esséncia dela’. V. Por modo entendo as afeccdes! da substncia, isto é, 0 que existe noutra coisa pela qual também é concebido®. VL Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma substincia que consta de infinitos atributos, cada um dos 4quais exprime uma esséncia eterna e infinita’, Disputationes metaphysicae, XXX, s. 2: Dicitur aliquid finitum, non quia est hoc et non aliud, sed quia terminatur ad allud, E ainda de notar, sob 0 ponto de vista hist6rico, que Esp., apés Suarez (Disp. met., XXVII, 1) € outros escolésticos, ndo separon as definigdes de finito e de infinito; e sob 0 ponto de vista I6gico, que o conceito de infinito 6 uma maneira diversa de exprimir 0 conceito de causa de si (causa sui). 1 Cf. hic, x. $e prop. 10;¢ na Et. Ill, prop. 2. Esta definigo implica a teoria, adiante exposta, da homogeneidade da série causal ea da autonomia ex; «le néant ne peut avoir aucuns atributs, ou proprietés ou qualités». No esc. 1 da prop. 40, II, Esp. expe a causa destas nogdes, que considera «fundamentos do nosso raciocinio». 1 Esp. tem por absurdo admitir-se que a idcia de substincia € verdadeira, mas que esta verdade nto implica a da respectivaexistencia. O absurdo $6 8¢ verifica no plano da substincia, que existe por sie por si se concebe, porque no plano das afecgbes da substncia, isto é, dos modos ou mais precisa mente, das coisas singulares, que existem in alio, podem exist ideias ver- dadeiras de coisas inexistentes, como als claramente o disse acima. (Vid. além da cit. Ep. XIL, esp. Et. Il, 8, onde se notaré a dificuldade que esta , E ainda de notar que um e outro se socorrem do principio das ideias claras distintas. Vid. esp. os Princ. de la Phil., I, 60, de Descartes, como expres- ‘So da tese aqui contraditada. 2 Este passo tem intengSo polémica, nao se sabendo ao certo quem visa. Aventou-se ja Simao de Vries, a quem Esp. responde na Ep. IX, dentre ou- tras objecgdes, & de mostrar por um ex. como uma sO mesma coisa pode ser designada por dois nomes; mas parece mais provavel que tenha em vista Descartes, que nos Princ. de Phil., 1, 53, afirmara que uma substancia sé tem um atributo essencial: «Mais encore que chaque autribut soit sufisant pour faire connoltre la substance, il y en a toutefois un en chacune, qui consttué sa nature et son essence, et dé qui tous les aures dépendent. 14 Natureza do que ter de conceber-se cada ente sob algum atributo e que quanto mais realidade ou existéncia o ente tiver tantos mais atributos ele terd, os quais exprimem a necessidade, ou por outras palavras, a etemnidade e a infinidade; ¢ por conseguinte, nada de mais claro também do que ser forgoso definir 0 ente ab- solutamente infinito (como na def. 6) como o ente que consta de infindos! atributos, cada um dos quais exprime uma determi- nada esséncia etema e infinita, Se alguém agora perguntar por que sinal € possivel discrimi- nar a diversidade das substancias deve ler as proposigdes que a seguir se expdem, as quais mostram que na Natureza somente existe uma nica substancia e que, portanto, debalde se procu- rar tal sinal. rox gO PROPOSICAOXI 9 A&C \ VIE RODID C Deus, ou por outras palavras, a substancia que consta de in- finitos atributos?, cada um dos quais exprime uma esséncia eterna e infinita, existe necessariamentes. DEMONSTRAGAO Se negas isto, concebe, se te for possfvel, que Deus néo existe e, portanto (ax. 7), a sua esséncia ndo envolve a existén- cia. Ora isto (prop. 7) € absurdo; por conseguinte Deus existe’. QED. 1 No texto infnitis, mas como a palavra 6 aplicada no sentido de inume- rabilidade preferimos este termo por mais adequado. 2 As propriedades da substincia anteriormente expostas, Esp. acrescenta agora, sem demonstracio, esta outra: a infinidade de atributos. 3 Prop. importante, por implicar a demonstracio da existéncia de Deus, dda qual Esp. apresenta a seguir quatro provas. 4 E esta a primeira das quatro pfovas da existéncia de Deus. Assenta no argumento ontol6gico e tem como forma a demonstracto pelo absurdo: Deus é substincia; ora € da esséncia da substincia que ela exista; portanto é inconcebivel supor que Deus ndo existe. 15 ‘OUTRA DEMONSTRACAO Para cada coisa deve poder designar-se a causa, ou razio, pela qual a coisa existe ou néo existe. Por exemplo: se um tridn- gulo existe, deve dar-se a razdo ou causa em virtude da qual existe; se ele nao existe, deve dar-se também a razdo, ou causa, que impede que ele exista, ou por outras palavras, Ihe iniba a existéncia. Ora esta razio ou causa deve estar contida ou na na- tureza da coisa ou fora dela. Por exemplo: a mera natureza do cfroulo indica a razao pela qual ndo existe um cfrculo quadrado, a saber, por envolver contradi¢do; e, pelo contrério, a existéncia da substncia também resulta somente da natureza dela, a qual envolve a existéncia (prop. 7). Porém a razio pela qual um cir- culo ou um triangulo existe ou nao existe nao resulta da natureza que lhes é propria, mas da ordem da natureza corpérea na sua totalidade!, pois desta ordem deve resultar ou que tal triangulo exista agora necessariamente ou que seja impossivel que ele agora exista. Tudo isto € de si evidente. aqui se segue que existe necessariamente aquilo de que nao é dada qualquer razo ou causa que lhe impega a existéncia. Por conseguinte, se nao pode ser dada qualquer razio ou causa que impega que Deus exista ou que Ihe iniba a existéncia, é absolu- tamente forgoso concluir que existe necessariamente. Ora se fosse dada uma tal razo ou causa ela deveria ser dada ou na prépria natureza de Deus ou fora dela, isto é, sem outra subs- tancia de natureza diferente. Com efeito, se fosse da mesma natureza de Deus, conceder- -se-ia que Deus existe; se fusse numa substincia de natureza di- ferente, nada podia ter de comum com Deus (pela prop. 2), pelo que nao podia dar-Ihe a existéncia, nem tirar-Iha, Por consequéncia, visto que a razio ou causa que iniba a exis- téncia divina nao pode existir fora da mesma natureza divina, ¢ forgoso concluir que essa causa se d4 na propria natureza divi- 1 No texto: ex ordine universae naturae corporeae, que € diferentemente traduzido. Por ex.: Otto Baensch: aus der Ordnung der allgemeinen karperli- chen Natur. 116 ¥ na—, mesmo que Deus nao exista, o que envolveria contradig&o, ‘Ora € absurdo afirmar isto do Ente absolutamente infinito € sumamente perfeito; por conseguinte, nem em Deus, nem fora de Deus, ndo é dada causa ou razio alguma que Ihe iniba a existéncia, pelo que Deus existe necessariamente!. Q. E, D. OUTRA DEMONSTRACAO Nao ter poder para existir é impoténcia, e pelo contrério ser capaz de existir € poténcia (como por si € noto). Por conse- {guinte, se 0 que agora existe necessariamente é constituido ape- has por entes finitos, segue-se que os entes finitos tém mais po- der que o Ente absolutamente infinito —, 0 que é absurdo (como por si € noto). Portanto, ou ndo existe coisa alguma, ou um Ente absolutamente infinito tem necessariamente de existir. Ora nés existimos ou em nés préprios ou noutra coisa que exista necessariamente (vid. ax. I e a prop. 7); por conseguinte existe necessariamente um Ente absolutamente infinito, isto é, Deus 2, (Def. 6) Q. E. D. ESCOLIO Nesta dltima demonstragdo quis mostrar a existéncia de Deus 4 posteriori, a fim de que a demonstracao fosse mais facilmente centendida, e ndo porque a existéncia a priori de Deus se nao de- duzisse deste mesmo fundamento. 1 esta a segunda prova, de forma negativa como a anterior. Pode resu- mir-se: Tem que haver raz ou causa tanto para a existéncia como para a inexisténcia de uma coisa. Ora ndo € possivel conceber razio alguma, in- ‘rinseca ou extrinseca, que obste & existéncia de Deus; portanto.. © nervo do argumento consiste em pressupor que entre o impossivel ¢ 0 necessdrio tertius non datur. Adiante, no esc6lio I da prop. 33, encontra-se a definigo destes conceitos, sobre os guais também & conveniente ter presente a doutrina do. E. (Pp. 19-20 da ed. Gebhardt). 2 Terceira prova, a posteriori, como Esp. diz no escdlio seg., pela qual Esta prop. prepara a atribuigo da Extensto a Deus (Prop. XIV e XV), isto 6, uma teoria que vai de encontro ao senso comum, as etencas religio. sas ¢&tradigSo flos6fica ocidental. Esp, porém, parece ter tido directamemte em vista 0 passo dos Princ. de Phil, I, 23, em que Descartes afirma: « Concepeto baseada na teoria dos quatro elementos e que persistiu com vicissitudes varias até Lavoisier. Para a sua compreensio, bem como para a dos periodos anteriores, im- porta atentar nas seguintes linhas de Léon Brunschvicg: L'unité de la ligne est dans le mouvement intelleciuel qui Tengendre tout entiere par sa défini- ‘ion méme; Cunité dela durée dans la «tendance a persévérer dans tres qui 128 r Desta maneira, julgo ter respondido também ao segundo ar- gumento, visto ter o mesmo fundamento de que a matéria, en- quanto substancia, seria divistvel e composta de partes. ‘Mesmo que assim no fosse, desconhego a razio pela qual a matéria seria indigna da natureza divina, visto (pela prop. 14) no poder haver fora de Deus substincia alguma pela qual ela fosse afectada. Tudo, digo, existe em Deus, ¢ tudo 0 que acon- tece, somente acontece pelas leis da infinita natureza de Deus € resulta (como jé irei mostrar) da necessidade da sua esséncia. Pelo que se nfo pode dizer de maneira alguma que Deus ¢ afec- tado por outra coisa ou que a substincia extensa é indigna da natureza divina, ainda que se suponha divisfvel, contanto que se conceda que ela é etema e infinita, Por agora, é isto suficiente PROPOSICAO XVI Da necessidade da natureza divina devem resultar coisas in- ‘finitas em ntimero infinito de modos, isto 6, tudo 0 que pode cair sob um intelecto infinito!. est l'essence de chaque chose, parce qu'elle est la marque de sa, participation a Ja vie eternelte de I'Etre unique; I'unité de l'eau enfin dans la loi unique et iniversele qui rend la matre indvisbe et fat du déplacement de chague particule la conséquence nécessaire des mouvements de l'ensemble. (Les éta~ pes de la philosophie mathématique, 145.) 1 Esta prop. inicia a teoria da causalidade em Deus, cujo plano, segundo Ccoucnous (henott de Spina, Pars, 1902 p. 173, paces te sido. IP — Deus é causa livre (prop. 16-18); 2® — Deus ¢ causa das existéncias (prop. 15.23 — Dae eae desis op 3-25) 81— Des € ea ). 26-33). As, 34-36 seriam como que . e nas Cog. met.; nela se acusa a influéncia da Escoléstica, notadamente na discriminagao dos oitos modos pelos quais se pode dizer que Deus € an Entre as fontes indicadas por Freudenthal conta-se Suarez, Disp. met., XVI e XVIII. Tschirnhaus (Ep. LXXXII, de 23-V1-1676) admitia que esta prop. talvez fosse a mais importante do L. I da Btica, e observava parecer-Ihe im- possivel poder deduzir-se de uma dada def. varias propriedades da coisa get rida, designadamente que da extenso infinita se pudesse tirar a variedade 129 DEMONSTRAGAO Esta proposigao deve ser evidente a quem quer, se pelo menos atentar nisto: da definigdo dada de uma coisa qualquer, o intelecto conclui varias propriedades, que efectivamente so sequéncia ne- cesséria da mesma definigao (isto é, da prépria esséncia da coisa), econclui tanto mais quanto adefinigdo da coisa exprime mais rea- lidade, isto €, que a esséncia da coisa definida envolva mais reali- dade. Como, porém, a natureza divina possui absolutamente in- finitos atributos (def. 6), cada um dos quais exprime uma esséncia infinita no seu género, € de consequéncia que da sua necessidade devam resultar necessariamente coisas infinitas em modos infini- tos (isto é, tudo o que pode cair sob um intelecto infinito)!.Q E.D. COROLARIOI Daqui resulta que Deus ¢ causa eficiente de todas as coisas que podem cair sob um intelecto infinito. COROLARIO II Resulta em segundo lugar que Deus é causa por si2, € no por acidente. ops finitos, ‘Como se vé pela demonstracdo, esta prop. tem caricter universal, isto 6, vale para a ordem das esséncias e para a das existencias, & ainda de notar, pelas consequéncias que implica, a nogio de infinidade divina como desen- ‘volvimento sem fim nem limites da nica realidade por si existente. E a es- sentia actuosa, da Et. 11,3, es 2 Per se, no texto, isto &, que Ihe & coessencial, em oposigao a acidental, contingente ou exterior. Richter (Sp, philosophische Terminologie, cit) aduz.0 seg. passo do Lexicon Philasophicum (1613) de Goclenius: «Per Se... interdum opponitur ex accidente seu... contingenti, idemque est quod essencialiter...» H& quem traduza: causa em si mesmo, ¢ causa por si ‘mesmo; traduzindo como traduzimos, temos em vista a lteralidade e, sobre- tudo, a consideragdo de que na natureza divina se identificam a esséncia, a existéncia ea actividade causante, Vid, Et, 1,34 130 458946" COROLARIO III Resulta em terceiro lugar que Deus é absolutamente causa primeiral, PROPOSICAO XVII Deus age somente segundo as leis da sua natureza, sem ser constrangido por ninguém?, DEMONSTRACAO Acabamos de mostrar na prop. 16, que resultam em absoluto coisas infinitas somente da necessidade da natureza divina, ou (0 que € mesmo) somente das leis desta mesma natureza; ¢ na prop. 15 demonstramos que nada pode existir nem ser conce- bido sem Deus, ¢ que tudo existe em Deus, donde se segue que fora dele nao pode existir coisa alguma pela qual seja determi- nado ou constrangido a agir, e por isso Deus age somente se- gundo as leis da sua natureza, sem ser constrangido por nin- guém3, QE. D. 1 No Tra. breve, I. 3, Esp. distinguira oito formas diversas pelas quais se pode dizer que Deus 6 causa, a saber: emanativa ou presentativa; imanente «no trasitva; livre e ndo causa natural; por si mesmo e nBo por acidente: Principal primeira ou inicial; gerale préxima. Trendelenburg mostrou que sta dstingao, designagoes ¢ ordem respectiva foram colhidas por Esp. no Collegium logicum, de Heerebord. ‘Cumpre nolar a exclusto da causa final, isto 6, de Deus agir em atengio fins; ¢ além disto, ue o facto de Esp. distinguiroito causas no Trat. breve ce trés nos cor, desta prop. no sigifica que a causalidade dvina possa deixar ‘de ser sempre considerada como relacio da razdo para a consequéncia 2.4 nemine coactus, no texto. Esta maneira de dizer, em vez. de outra, como a nullo, ue abrangesse simultaneamente pessoas e coisas, mostra c ramente que Esp. tinha em mente a concepeo antropomsrfica do ser divino. Leibniz traduziu: contrain par rien hors de li, que dé 0 sentido exacto. Vid, Refut. inéd., cit, pig. 323. 3A demonstrago equivale a estabelecer a liberdade absoluta de Deus, en- 131 COROLARIOI Dagui resulta: 1. Nao existe causa alguma, extrinseca ou intrinseca a Deus, ue o incite a agir, além da perfeigao da sua propria natureza COROLARIO TI __ IL 86 Deus € causa livre. Com efeito, 86 Deus existe pela ‘unica necessidade da sua natureza (pela prop. 11 € corol. 1 da Prop. 14) € age somente pela necessidade da sua natureza (prop precedente); pelo que (pela def. 7) s6 ele & causa livre!. ESCOLIO Hé quem julgue que Deus ¢ causa livre porque, segundo pen- sam, pode fazer que as coisas que, como dissemos, resultam da sua natureza, isto €, que esto no seu poder se no fagam, ou or outras palavras, nao sejam produzidas por ele2. Ora isto ‘como se dissessem que Deus pode fazer com que da natureza do tridngulo nfo resulte que os seus ngulos sejam iguais a dois {endendo-se, porém, por liberdade a produtividade absoluta segundo a lei da natureza divina, Note-se a identificacio de «causa live» ¢ de «agir pela necessidade da sua natureza>, que tem precedentes, notadamente na tradigto estdica [vid. Hamelin, Sur une des origines du Spinozisme, in Année Phi, XI (1900), P. 11-28) © em G. Bruno, que dente outros passos, escreve no De infinit... «Onde sono a fatto medesima cosa liber, volont, necessita, ed lt il fae, possere ed essere.» Dil. mee. Gente, 294) re 05 autores a quem Esp. se refere ¢ nfo cila pode contar-se, se- gundo Trendelenburg (Hist. Beitr. z. Phil. Il, p. 325, n.), 0 Praeceptor Germaniae Melanchton, que nas Definitiones multarum appellationum quo- ‘rum in Ecclesia usus est, em apend, 208 Loci (Lipsia, 1559, p. 201), es- ‘revera: «Libertas in Deo est posse res creare et non creare, et cum sit im- ‘mutabliter bonus, posse dare bona et posse non dare, conservare naturam ut non conservare, agere per creaturas secundum naturae ordinem, quem institut, aut naturae ordinem moderari aut mutare ac immediate agere sine 132 rectos, ou que de uma dada causa ndo resulte 0 efeito, o que é absurdo!, Demais, mostrarei adiante [neste escSlio], sem 0 so- corro desta proposi¢ao, que 0 intelecto e a vontade néo perten- cem a natureza de Deus?. Sei que h4 muitos que se julgam capazes de demonstrar que 0 intelecto sumo e a vontade livre pertencem 4 natureza de Deus, pois dizem que ndo conhecem nada de mais perfeito que possa atribuir-se a Deus a no ser o que é em nés a suprema perfei- 403. Além disto, embora concebam Deus sendo em acto su- 1 Isto €: So tem realidade 0 que € necessario, ow por outras palavras, 0 que nio é necessirio, seja possivel, provavel ou fortuito, € impossivel em acto. Esp. estabelece, portanto, a coincidéncia entre a esséncia e a existén- cia, a qual consttui um dos temas da oposigao de Leibniz, em cujo parecer Deus somente deu existéncia aos composstveis, isto é, 3s esséncias que nfo so mutuamente incompativeis. 2 Intelecto e vontade esttio empregues no sentido vulgar, isto €, respecti- ‘vamente, determinacto da idea pelo objectoe liberdade de opya0. Esta con- ‘cepso tem precedentes e desenvolvimentos ulteriores. Como precedentes podem indicar-se, v. g., Plotin, En., VI, 9, 6, ¢ St.° Agostinho, em al- guns momentos, notadamente De Trin.. V, 1, 2 (...sine intelligentia creato- rem). No desenvolvimento ulterior, avulta Ed. von Hartmann com a teoria da inconsciéncia de Deus, ou por outras palavras, a concepyao de Deus como unbewusster und unpersonlicher Geist, a qual ecoa neste terceto de Antero de Quental: ‘

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