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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

PÓS – GRADUAÇÃO LATO SENSU

ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOLOGIA HOSPITALAR

BRUNO BARROSO DIAS

A ESCOLHA DE HONORATO

“Trabalho de conclusão da disciplina Psicologia Hospitalar I”

Professor: JACQUES NUDELMAN

Rio de Janeiro, maio de 2008


Estava impecável quando adentrou sua carruagem. Todo de preto. Calças, paletó e sobretudo,

além de sua bengala, de mão prateada em forma de cabeça de cavalo e de sua irretocável

cartola negra. Aprumou-se em seu assento, pernas afastadas, pés firmes no chão com as duas

mãos apoiadas sobre a bengala, uma sobre a outra. Honorato era um homem notável, sempre

conquistando o respeito e a admiração de todos a sua volta . Tinha um porte de um homem

comum, não era baixo nem alto, nem gordo nem magro, diferenciava-se por outros atributos.

Sempre foi conhecido por sua correção, tanto na vida pessoal quanto no trabalho. Cumpria

seus compromissos de forma religiosa, sua vida funcionava como um relógio. Não bebia ou

fumava, nas ocasiões em que se encontrava com seus amigos refastelava-se em xícaras e mais

xícaras de chá, dessas sim Honorato fazia uso abusivo.

Não se tinha notícias de sua família, somente se sabia que ele viera de um cidade do

interior para estudar na capital, ficando neste período hospedado na casa de um tio, que

morreu no mesmo ano que Honorato começou seu curso de direito. Desde então passou a

morar sozinho em um pequeno quarto alugado que pagava com seu salário de tradutor, já que

com dezesseis anos já havia aprendido, por conta própria, a língua inglesa. A partir daí sua

trajetória foi meteórica. Na metade de sua graduação já dava aulas particulares de inglês e

direito, cobrando por elas um bom preço. Se destacava de todos seus colegas e logo após se

formar já trabalhava como assessor de um notório político local. Seguiu então dois caminhos

paralelos, a docência e a política, atuando brilhantemente em ambas as frentes. Uma dentre

suas qualidades se destacava, era um excepcional orador. Sua vida política teria um futuro

exuberante não fosse a surpresa que o destino lhe reservara. Há pouco mais de oito meses

Honorato foi diagnosticado com um tumor na traquéia. A notícia a princípio não o abalou

tanto. Pensava que poderia resolver a questão com algum tratamento intensivo ou algo do

tipo, já que seus sintomas não lhe causavam dor, apenas um pigarro esporádico e alguns

ataques de tosse. Logo após o diagnóstico afastou-se de suas atividades para se internar, mas
logo percebeu que seu problema não era tão simples, e que neste período a doença havia

avançado, com seus sintomas se tornando muito mais agudos.

Retomou então o trabalho como se nada lhe afetasse. Suas tosses, porém, se tornaram

mais constantes e fortes, sua voz falhava durante suas aulas e discursos, e acima de tudo,

começou a sentir dor. Todo esse quadro avançava mês a mês. Até que tomou a decisão de se

afastar de seu cargo de professor e pedir uma licença de seu posto político. Há uma semana já

não conseguia expressar uma palavra sequer sem ser acometido por uma forte pontada de dor,

seguida de uma forte tosse que lhe fazia doer mais ainda.

Esta noite Honorato seguia para uma cerimônia de homenagem, na qual seria

contemplado com o título de cidadão honorário e receberia uma medalha de excelência em

serviços prestados à sociedade.

Chegando no salão foi acolhido com uma fervorosa salva de palmas. Reconhecia nos

olhares sentimentos diversos, compaixão, desdém, tristeza, inveja, estranhamento,

cinismo...Seu ar era um tanto estranho naquele momento. Portava-se com a altivez típica, mas

seu olhar repetidamente vacilava, visitando o chão, as mãos e muitas vezes o nada. Poucos

minutos após sua chegada foi convidado a ocupar uma cadeira no púlpito do lado esquerdo e

logo deu-se início à cerimônia. Um longo texto remontando sua trajetória política, seus

méritos e virtudes foi lido, sem pressa, pelo próprio presidente da câmara, sendo em cada

pausa interrompido por mais salvas de palmas. Ao fim da leitura foi chamado a se levantar

para receber a medalha e o diploma. Honorato parecia não mais estar ali. Seu rosto esboçava

um sorriso visivelmente forçado, seus olhos estavam completamente anuviados, sua

respiração curta e ofegante. Atravessou, apesar disso, toda a cerimônia firme como uma rocha.

Após alguns minutos recebendo cumprimentos pessoalmente, com as bebidas e

comidas circulando pelo salão, Honorato pede licença e se retira da maneira mais discreta

possível do meio de seus colegas.


Um disparo. O corpo do homenageado sem vida no chão do jardim. Na mão direita

uma pequena pistola preta, na esquerda, a bengala. No dia seguinte, sobre a escrivaninha de

seu escritório, uma carta.

Caros amigos e colegas,

escrevo-lhes para me despedir, apesar de já ter partido quando tiverem esta


carta em mãos. Os últimos meses têm sido insuportáveis para mim. Desde a
semana passada já não consigo proferir uma palavra sequer e os médicos não
são otimistas quanto a reversão deste quadro. Durante minha internação
acabei por conhecer um senhor um pouco mais velho que eu, que afetado
pela minha mesma patologia, veio a falecer há alguns dias atrás. As dores
têm sido tanto mais intensas quanto mais constantes, os medicamentos para
controlá-las parecem estarem perdendo a luta contra o avanço da
enfermidade. Gostaria de deixar claro que minha decisão é a de um homem
lúcido que considera que manter-se vivo a qualquer custo não é um
possibilidade. Como vocês bem sabem, minha vida é meu trabalho. Não
casei ou tive filhos, pois meu trabalho sempre foi responsável pela atração de
quase todo meu afeto. Por conta dele construí tudo o que tenho, minhas
casas, meus bens materiais, minhas melhores amizades, minhas viagens ao
estrangeiro, assim como minha reputação. Eu não saberia quem sou sem
poder viver para o meu trabalho. Sendo assim prefiro definitivamente deixar
de ser de forma radical a me tornar apenas um corpo enfermo nas mãos de
médicos experimentadores. Se não servi aos lençóis tão bem como amante
me recuso a servi-los agora como doente. Fosse o caso de minha patologia
comprometer outras partes de meu corpo, talvez meu destino pudesse ser
outro, mas estou resignado apesar do extremo sofrimento que me afeta, tanto
física como espiritualmente, sei que prorrogar minha vida é estender à minha
derrocada o tapete, para que avance a ponto de nada mais me restar. Prefiro
sair de forma súbita e consciente, deixando nas memórias de vocês uma
imagem mais próxima do que consideraria a ideal. Estarei hoje recebendo
um homenagem que acredito ser uma demonstração de comiseração, o que
eu repudio profundamente, mas sei que todos vocês também precisam
exorcizar a presença de minha morte que se anuncia e que um ritual para isso
acaba caindo muito bem. Para que não haja nenhum mal-entendido,
descreverei brevemente meus planos. Ao terminar de escrever esta carta,
rumarei para a frente de minha casa, aonde o cocheiro já estará me
aguardando para seguir em direção ao salão cerimonial da câmara. Chegando
lá seguirei todos os protocolos da homenagem, receberei a medalha de honra
assim como todos os cumprimentos de vocês, meus colegas. Em algum
momento deixarei o salão principal e rumarei para o jardim. Nesta hora, de
meu bolso interno do paletó, sacarei meu último remédio, aquele que irá
garantir que eu não perca mais nenhum traço daquilo que, com tanto amor,
construí ao longo de minha vida. Que meu corpo caia só, para que meu
espírito reste firme de pé.

De mão firme e coração trêmulo,

Francisco Honorato.

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