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I Cultura: um conceito reacionario? / © conceito de cultura ¢ profundamente reacionétio, & uma maneita de separar atividades semidticas (atividades de orientagio no mundo social { e césmico) em esferas, 8 quis 0s homens so remetidos. Tals atividades, assim isoladas, sio padronizedas, institufdas potencial ou realmente e capi- tulizadas para ‘0 modo de semiotizacio dominante — ou seja, simplesmente cortadas de suas rcalidades politicas. Toda a obra de Proust gita em torno da idéia de que é impossivel autonomizar esferas como a da miisica, das attes plisticas, da literatura, dos conjuntos arquiteténicos, da vida microssociel nos sales. . + A calrura enquanto esfere autGnoma s6 existe a nivel dos mercados {de poder, dos mercados econdmicos, ¢ néo a nivel da produgio, da criagio \ e do consumo real. O que caracteriza os modos de produgio capitalisticos' & que eles nfo fancionam unicamente no tegistro dos valores de troca, valores que sio 1 a somes 0 nin“ lang ex haa ng gh ge Eee ate tet fea ern a ty ne aoe irieea tise ata 15 subjetivagie, que eu chamaria de “cultura de equivaléncia” ou de “siste- mas de equivaléncia na esfera da cultura”. Desse ponto de vista o capital ( funciona de modo complementar a cultura enquanto conceito de equivalén- © capital ocupe-se da sujeigio econémica, e a culture, da sujeigio sub- jetiva, E quando falo em sujeisio subjetiva’ nfo me refiro apenas 4 pu- blicidade para a produgéo e 0 consumo de bens. a prépria esséncia do lucro cepitdlista que nio se redux ao campo da“mds-valia econémica: ela esté também na tomada de poder da subjetividade ° Cultura de massa e singularidade ® © titulo que propus para este debate na Folbe de Sao Paulo foi “Cultura de massa e singularidade”. O titulo reiteradamente anunciado foi “Cultura de massa e individualidade” — e talvez esse nfo seja um mero problema de traducio, Talvez seja dificil ouvir 0 termo singularidade e, esse 480, traduziclo por individualidade me parece colocar em jogo uma dimensio essencial da cultura de massa. & exatamente este 0 tema que eu (( sstaria de abordar hoje: a cultura de massa como elemento fundamental (da “producio de subjetividade capitalistica” Essa culture de massa produz, exatamente, individuos; individuos notmslizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierdrquicos, el sistemas de valores, sistemas de submissio — nio sistemas de submissio visiveis e explicitos, como na etologia animal, ou como nas sociedades da ordem do capital, das semisticas monetérias ou dos modos de finan- ciamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da arcticas ou pré-capitalistas, mas sistemas de submisséo muito mais dissi- mulados. E eu nem diria que esses sistemas sio “interiotizedos” ou “in- | teralizados” de acordo com a expressio que esteve muito cm voga numa certa época, e que implica uma idéia de subjetividade como algo a ser | preenchido. Ao contrério, o que hi é simplesmenta uma produgao de subje- | ( tividade, Nio somente ‘uma produgio da subjetividade individuada — subjetividade dos individuos — mas uma producéo de subjetividade soct uma produgio da subjetividade que se pode encontrar em todos os niveis \ da produc e do consumo. E mais ainda: uma produgio da subjetividade jinconsciente. A meu ver, essa grande fébtica, essa grande méquina capita- istica_produz inclusive ‘aquilo que acontece conosco quando sonhamos, quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos ¢ assim por diante. Em todo caso, ela pretende garantir uma fungio hegeménica em todos esses campos. ‘A essa méquina de produgio de subjetividade en oporia a idéia de que € possfvel desenvolver modos de subjetivagio singulares, aquilo que a ‘Binds Binion, guene eee ¢ om ‘meng cl Iaut ¢umcno” tlg Cane 30 eal staat" don deals penfepants as’ metasedoeda eh Queio, bem come hon Bete thtee Spans bebe : 16 poderiamos chamar de //processos de singularizacio": uma mancita de recusar todos esses modos de encodificacéo preestabelecidos, todos esses modos de manipulagio e de telecomando, recusélos para construit, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relagio com 0 outro, modos de producio, meds de riatvidade que produsam oma subistvidd sin ‘gular, Uma singulatizagio existencial que coincida com uni desejo, com um ‘gostd dé viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos en contramos, com a instauragdo de dispositivos para mudar os tipos de so- iedade, os tipos de valores que nio sio os nossos. Hé assim algumas palavras-cilada (como a palavra cultura), nogéesanteparo que nos impedem de pensar a realidade dos processos em questo. A palavra cultura teve vétios sentidos no decorrer da Histéria; seu sentido mais antigo € 0 que aparece na expressio “cultivar © espitito”. ‘Vou designé-la “sentido A” © “cultura-valor”, por corresponder a um jul gamento de valor que determina quem tem cultura, e quem nfo tem: ou se pertence 2 meios cultos ou se pertence a meios incultos. O segundo riiclo semantico agrupa outtas significagdes relativas & cultura. Vou de- signé-lo “sentido B”. H a “cultura-clma coletiva", sindnimo de civilizaco. Desta vez, jf nfo hé mais o par “ter ou nfo ter”: todo mundo tem itura. Essa é uma cultura muito democritica: qualquer um pode reivin dicar sua identidade cultural. & uma espécie de “a priori” da cultu fala-se em cultura negra, cultura underground, cultura técnica, etc. E uma espécie de alma um tanto vaga, dificil de captar, e que se prestou no curso da Histria a toda espécie de ambigitdade, pois ¢ uma ‘dimensio semantica que se encontra tanto no partido hitletiano, com @ nogio de volk (povo), quanto em numerosos movimentos de emancipaggo que querem se reapropriar de sua cultura, ¢ de seu fundo cultural, O tereeito niicleo semantico, que designo “C*, corresponde 2 cultura de massa ¢ eu © chamaria de “cultura-mercadoria”, Ai j& no ha julgamento de valor, nem territétios coletivo® da’ cultura mais ou menos sécretos, como nos sentidos Ae B. A caltura so todos os bens: todos os equipamentos (casas de cultura, etc.), todas as pessoas (especialistas que trabalham nesse tipo de equipamento), todas as referénciss te6ricas © ideol6gicas relativas a esse funcionamento, enfim, tudo que conttibui para a producio de objetos semidticos (livros, filmes, etc), difundidos num mercado determinado de Giculagao monetéria ou estatal. Difundese cultura exatamente como Coca- Cola, cigarros “de quem sabe 0 que quer”, carros ou qualquer coisa. Retomemos as trés categorias, Com a ascensio da burgucsia, a cultura: valor parece ter vindo substituir outras nogies segregativas, antigos sis- temas de segregacio social da nobreze. Jé nao se fala mais em pessoas de qualidade: 0 que se considera é a qualidade da cultura, resultante de determinado trabalho. & 2 isso que se refere, por exemplo, aquela {6rmule de Voltaire, espécie de palevra de otdem no final de Candide: *Cultivem seus jardins”. As elites burguesas extraem a legitimidade de seu poder do fato de terem feito certo tipo de trabalho no campo do saber, no 7 campo das artes, € assim por diante. Também essa nogio culturavalor tem diversas acepgées. Pode-se toméla como uma categoria geral de valor cultural no campo das elites burguesas, mas também se pode usila para designar diferentes niveis culturais em sistemas setoriais de valor — aquilo que faz com que se fale, por exemplo, em cultura clissica, cultura cien- tifica, cultura artfstica E af, passo a passo, vai-se chegando a definigéo B, a da cultura. alma, que é uma nogio peseudocientifica, elaborada a partir do final do século XIX, com o desenvolvimento da antropologia, em particular da antropologia cultural. No inicio, a nogio de alma coletiva é muito préxima de uma nocdo segregativa e até racista; grandes antropdlogos como Lévy- Brubl ¢ Taylor reificam essa noso de cultura. Fala-se, por cxcmplo, {que as sociedades primitivas tém uma concepgio animista do mundo, uma “alma primitive”, uma “mentalidade primitiva” — nogies que servirio para qualificar modos de subjetivacio que, na verdade, sio perfcitamente heterogéneos. E, depois, na evolugao das ciéncias antropolégicas, com 0. estruturalismo © 0 culturalismo, houve uma tentativa de se livrar desses sistemas de apreciagao etnocéntricos. A cortente culturalista € muito diver- sificada no que diz respeito a cssa tentativa, Alguns continueram @ ter uma visdo etnocéntrica. Outros, em compensagio, como Kardiner, Margareth Mead, Ruth’ Benedict, com nogdes tais como “personalidade de base”, “personalidade cultural de base”, “patter cultural”, quiscram livearse do etnocentrismo. Mas, no fundo, pode-se dizer que se essa tentativa consistiu em sair do etnocentrismo — renunciar a uma referéncia geral em relacdo 2 cultura branca, ocidental, masculina, etc. — ela, na verdede, estabeleceu uma espécie de policentrismo cultural, uma espécie de multiplicagio do cetnocentrismo. Essa “culturaalma”, no sentido B, consiste em isolar © que chamarei de uma esfera da cultura (o dominio’ do mito, do culto, da numeragio, etc.) A qual se oporio outros niveis tides como heterogéneos. Por exem plo, © campo do politico, o campo das relagées estruturais de parentesco, tudo aquilo que diz respeito & economia dos bens ¢ dos prestigios, etc. E assim acabase desembocando numa situaglo em que se separa aquilo ‘que cu chamatia de atividades de semiotizacio, numa esfera que passa a ser designada como a da cultura, E a cada alma coletiva (0s povos, as etnias, os grupos sociais) scré atribuida uma cultura. No entanto, esses OVOS, etnias € grupos sociais no viver essas atividades como uma esfera separada, Da mesma maneira que 0 burgués fidalgo de Molitre descobre que ele “faz prosa”, as sociedades primitivas descobrem que “fazem cultura”; elas sto informades, por exemplo, de que fazem musica, danca, atividades de culto, de mitologia, etc. E’descobrem isso sobretudo no ‘momento em que pessoas vém Ihes tomar a producio para expé-la em museus ou vendéla no mercado de arte ou para inseri-la nas teorias, antro- polbgicas cientificas em circulacio. Mas las nfo fazem nem cultura, nem danga, nem miisica. Todas essas dimensGes sio inteiramente articaladas 18 ~ uumss as outras num processo de expressio, e também atticuladas com sua mancira de produzit bens, com sua mancira de produzir relagGes sociis. Ou seja, eles no assumem, absolutamente, essas diferentes categorizagdes que so as da antropologia. A situacio € idéntica no caso da produgio de um individuo que perdeu suas coordenadas no sistema psiquidtrico, fon no das criangas antes de sua integragio 20 sistema de escolatizacao Elas brincam, articulam relagSes.sociais, sonhem, produzem ¢, mais cedo ou mais tarde, vio ter que aprender ‘a categorizar essas dimensses de semiotizagio no campo social normalizado, Agora € hora de brincar, agora hora de produzir para a escola, agora & hora de sonhar, e assim por diante. Ja a(categoria culturamercadoria) — 0 terceiro micleo de sentido — se pretende muito mais objetiva; coltura equi_ndo € fazer teoria, mas produzir e difondir mercadotias calfurais, em principio sem levar em con- sideracio os sistemas de valor distin‘vos'do nivel A (culturawalor) ¢ sem se preocupar tampouco com aquilo yue eu chamaria de alveis terrtoriais dda culture, gue sio da algada do nivel B (colturaalma). Nao se trata ide uma cultura a priori, mas de uma cultura que se produz, se reproduz, se modifica constantemente. Assim sendo, podese estabelecer uma espécie de nomenclatura cientifica, para tentar apreciar o que 6, em termes quan- titatvos, essa produgio de cultura. Hé grades -muito elaboradas (penso naquelss que esti em curso na Unesco), nas quais se pode classificar os niveis culturnis das cidades, das categorias sociais, ¢ assim por diante, em fungio do indice, do mimero de livros produzides, do niimero de filmes, do mimero de salas de uso cultural, etc ‘A minha idéia € que esses trés sentidos que apareceram sucessiva- mente no curso da Histéria continuam a funcionar, ¢ 20 mesmo tempo, Ha uma complementatidade entte esses tts tipos de niiclos semanticos. A. produgio dos meios de comunicagio de massa, a produgio da subje- tividade capitaistica gera uma cultura com vocagio universal. Esta € uma dimensao essencial na confeccéo da fore coletiva de trabalho, ¢ na com feccéo daquilo que eu chamo de forga coletiva de controle social. Mas, independentemente desses dois grandes objetivos, ela esté totalmente dis posta a toletar ferritérios subjetives, que escapam relativamente a essa cultura geral, E preciso, para isso, tolerar margens, setores de cultura mi- noritéria — subjetividades em que possamos nos reconhecer, nos recuperar entre nds numa orientagéo alhcia & do Capitalismo Mundial Integrado (CMI). Essa atitude, entretanto, ndo € apenes de tolerdncia. Nas «tltimas décadas, essa produgio capitelistica se empenhou, ela prdpria, em produzir suas margens, ¢ de algum modo equipo novos tertitérios subjetivos: os individuos, as familias, os grupos sociais, as minorias, etc. Tudo isso parece ser muito bem calculado. Poderse-ia dizer que, neste momento, Ministérios da Cultura estio comecando a surgir pot toda parte, desen- volvendo uma perspectiva modernista na qual se propdem a incrementar, de maneica aparentemente democrética, uma produgio de cultura que lhes permita estar nas sociedades industriais desenvolvidas. E também encorajar 19 formas de. cultura particularizadas, a fim de que as pessoas se sintam de algum modo numa espécie de tertitério © nfo fiquem perdidas nom mun- do abstrato. Na verdade, no € bem assim que as coisas acontecem. Esse duplo modo de produgio da subjetividade, essa industrislizagio da produgio de cultura segundo os niveis B e C no renunciou absolutamente ao sistema de valorizagio do nivel A. Atés dessa falsa democracia da cultura con- tinuam a se instaurar — de modo completamente subjacente — os mesmos sistemas de segregagio a partir de uma categoria geral da cultura, Os ‘Ministros da Cultura e os especialistas dos equipamentos cultarais, nessa perspectiva modemnista, declaram nfo pretender qualificar socialmente os consumidores dos objetos cultursis, mas apenas difundir cultura nom de- terminado campo social, que funcionaria segundo uma lei de liberdade de trocas. No entanto, 0 que se omite aqui € que 0 campo social que recebe a cultura no € homogéneo. A difusio do livro, do disco, etc., no tem absolutamente a mesma significagio quando veiculeda nos meios de elites sociais ou nos meios de comunicagio de massa, a titulo de formacéo ou de animago cultural ‘Trabalhos de sociélogos como Bourdieu mostram que hé grupos que jf possuem até um metabolismo de receptividade das produgSes culturais. E Sbvio que uma crianga que nunca conviver num ambiente de leitura, de produgéo de conhecimento, de fruisio de obras plésticas, etc., nao tem © mesmo tipo de relagio com a cultura que teve, por exemplo, alguém como Jean-Paul Sartre que, literalmente, nasceu numa biblioteca, Ainda assim Se quer manter a aparéncia de igualdade diante das prodagSes cultu- tais, De fato, conservamos o antigo sentido da palavra cultura, a cultura: valor, que se inscreve nas tradigGes aristocréticas de almas bem nascidas, , de gente que sabe lidar com as palavtas, as atitudes © as etiquetas. A cultura nio € apenas uma transmissio de informacio cultural, uma trans- missio de sistemas de modelizagio, mas € também uma maneita de as elites capitalisticas exporem o que et chamaria de um mercado geral de poder. Néo apenas poder sobre os objetos culturais, ou sobre as possibili dades de manipulélos e criar algo, mas também poder de atribuir a si os objetos culturais como signo distintivo na relasao social com os outros. sentido que uma banalidade pode tomar, por exemplo, no campo da Titeratura varia de acordo com o destinatério. O fato de um aluno on um professorzinho do interior dizer banalidades sobre Maupassant nfo alcera seu sistema de promogdo de valor no campo social. Mas se Giscard d'Es- taing, num dos grandes programas literérios da televisio francesa, falar de Maupassant, ainda que uma banalidade, 0 fato se constitui imediata- mente em um indice — no de seu conhecimento real acerca do escritor, mas de que ele pertence a um campo de poder que € o da cultura. Tomarei um exemplo mais imediato, situsdo naquilo que estou con- siderando como contexto brasileiro. Constuma-se insinuar que o Lula e 20 © PT sio pessoa e empreendimento muito simpiticos, mas que vio sem dévida se revelar completamente incapazes de getir uma sociedade alta- mente diferenciada como & a brasileira, pois cles nio tém competés técnica, nfo tém nfveis de saber suficientes pars tanto. Recentemente, estive na Polénia, € constatei que esse mesmo tipo de argumentacéo é uusado contra Walesa. Dirigentes do Partido Comunista Polonés empregam todos os meios possiveis para tentar desconsideri-lo. Espedalmente um inho nojento que se chama Racowski, e que declara a imprensa ocidental que simpatiza muitissimo com esse personagcm tio sedutor, tio charmoso, mas considera que, separado de seus conselheitos, de seu entou- rage habitual, ele no € neda, € um incapaz, Na verdade, 0 que esté se colocando em jogo io sio esses niveis de competéncia, mesmo porque, para comego de conversa, € not6rio 0 nivel de incompeténcia e corrupsio das elites no poder. Alifs, nos agen- ciamentos de poder capitalistico em geral sfo sempre os mais estipidos gue se encontram no alto da pirtmide. Basta considerar os resultados: a gestio da economia mundial hoje conduz centenas € milhares de pessoas A fome, ao desespero, a um modo de vida inteiramente impossivel, apesar dos progtessos. tecnoldgicos ¢ das capacidades produtivas extraordinérias que estéo se desenvolvendo nas revolugées tecnol6gicas atuais. Assim, no podemos aceitar que o que esteja sendo efetivamente vi- sado ou tendo um certo impacto na opinigo seja a competéncia. Além disso, fesse argumento promove ume certa fungio encarnada do saber — como sc a inteligéncia necessdria nesta situagio de crise que estamos vivendo pudesse encarnar algum suposto talento ou saber transcendental. Esse argumento simplesmente escamoteia o fato de que todos os procedimentos de saber, de eficiéncia semiética no mundo atual participam de agenciomen- tos complexos, que jamais sfo da alcada de um tinico especialista. Sabe-se muito bem. que qualquer sistema de gestio moderna dos grandes. processos industtiais e sociais implica a articulagio de diferentes niveis de compe- ‘téncia. Nesse sentido, nao vejo em que o Lula seria incapaz de fazer tal articulagao, E quando eu falo do Lula, na verdade estou falando do PT, de todas as formagies democrétices, de todas a5 cortentes minoritérias que estio se agitando neste momento de campanha eleitoral no Brasil, Entéo, no dé para entender por que essas diferentes potencialidades de ‘competéncia no poderiam fazer 0 qué as elites hoje no poder fazem — igual ou melhor. Acho que © pontochave dessa questo nio esté af, ¢ sim na relacio ‘do Lula com a cultura, como quantidade de informagio. Nao a cultura- alma — pois & dbvio que, nesse sentido, ele tem a cultura de Sio Ber nardo, ou a cultura operdtia, € nfo vamos tirar isso dele —, mas sim com um certo tipo de cultura capitalistice, uma das engrenagens funda ‘mentais do poder. As pessoas do PT, em particular o Lula, no participam de determinada qualidade da cultura dominante. E muito mais uma ques- tio de estilo ¢ de etiquets. Poderseia dizer até que € algo que funciona 2k ‘um nivel anterior 20 término de uma frase, a configuragio de um dis- curso, Tais pessoas nfo fazem parte da cultura capitalistica dominante, A pattir dat desenvolvese todo um vetor de culpabilizacio, pois essa con- cepsio de cultura impregna todos os niveis sociais ¢ produtivos. Daf tais pessoas nfo poderem pretender uma legitimidade para gerie os processos capitalisticos, coisa que clas préprias acabam também dizendo, © que dé um caréter de estranhamento a ascenséo politica e social de pessoas como Lula é 0 fato de sentitmos muito bem que nio se trata apenas de um fendmeno de ruptura em relagio a gestio dos fluxos sociais © econémicos. Mas sim de colocar em pritica um tipo de processo de subjetivacio diferente do capitalistico, c “er an le producto fe valores universais por um Jado, ¢ d&“tetersitorial fm pequenos guetos subjetivos, por outro lado. Colocabem_prética @ produgio de uma subjetividade que vai ser capaz de gerir a realidade~das sociedades desen- volvidas ¢, 0 mesmo tempo,. gerir processes det singularizagid subjetiva, {que_nio vio confinar as diferentes categorias sdeinis~(minorias. sexuai saciais, culturais, tc.) no esquadrinhamento dominante do poder. Entio, a questio que se coloca agora nao & mais “quem produz cultura”, “guais vio set os tecipientes dessas produgées culturais", mas como agenciar outros modos de producfo semistica, de maneira a possi- Dilitar a construgio de uma sociedade que simplesmente consiga manter-se ce pé. Modes de, prodigio semisiica que permitam assegurar_uma diviséo social, da produgio, sem. por isso fechar os individuos em’ sistemas de ‘Septegacdo opressora ou categorizar suas, produgSes semisticas em esferas cistintas da cultura. A pintura como esfera cultural referese antes de mais “nada aos pintores, ais pessoas que tém curticulo de pintoras ¢ as pessoas ‘que difundem essa pintura no comércio ou nos meios de comunicasio de massa. Como fazer com que essas categorias ditas "da cultura” possam ser, 20 mesmo tempo, altamente especializadas, singulatizades, como € 0 caso que acabei de mencionat, da pintura, sem que haja por isso uma espécie de posse hegeménica pelas lites capitalisticas? Como fazer com que a misiea, a danga, a criagio, todas as formas de sensibilidade, pertengam de /’ pleno direito ao conjunto dos componentes sociais? Como proclemar um direito 4 singularidade no campo de todos esses niveis de produgio, dita “cultural”, sem que essa singularidade seja confinada num novo tipo de etnia? Como fgzer pa ‘outros, articularse ad conjunto do campo social, artiGilarse a CSnjinto dos Giitos ‘tipos de produgio (6 que eu” chamo de’ pfodixdes_maquini- cas: “toda essa revolugio informética, tclemética, dos robés, ete.)? C abrir — ¢ até quebrar — essas antigas esferas culturais,fochadas si imesmias? Como ‘produzir novos agenciamentos de singuleriéagio que ‘Wabalhen por tims sensibilidade estética, pela mudanga da vida num plano ais cotidiano ¢, a0 mesmo tempo, pelas transformagées sociais a nivel os grandes conjuntos econémicos & sociais? 2 Para concluir, eu ditia que os problemas da cultura devem necessa- iamente sair da articulagio entre 0: trés nacleos semfnticos que evoquei anteriormente. Quando os meios de comunicagio de massa ou os Ministros da Cultura falam_de_ collars, guere ‘estio tratando de problemas pollicos"S socials. Distiibut BITING, Cound se diseibui wii ‘misimo Vital de alimentos em algumes sociedades. Mas os agenciamentos de producio semiética, em todos esses niveis artfsticos, as criagSes de toda espécie implicam sempre, correlati- vamgnte, dimensGes micropoliticas e macropoliticas. C Buantualmente, eu poderia falar dos efeitos dessa concepsio hoje, na Franga, com o governo Mitterrand, para tentar descrever a mancira pela qual 0s socilistas estio gitando em falso com essa categoria de cultura E ssa_posaue_mua_tentativa-de_demacratizagio_de_cultuia_nio_esté real ente conectada com 95 procestos de subjetiva lat com ani. nora _CUNETaTS 0 que Fiz com que dla restabdlecaSétipre, apesar das boas intefigGes, uma relagio privilegiada entre o Estado e os diferentes sistemas de produgio cultural. Neste momento, algumas pessoas za Franga, entie as quals me incluo, consideram muito importante inven- tar um modo de produso cultural que quebre radicalmente os esquemas atuais de poder nesse campo, esquemas de que dispée o Estado atualmente, através de seus equipamentos coletivos ¢ de sua midia, Como fazer para que a cultura saia dessas esferas fechadas sobre si mesmas? Como otganizar, dispor ¢ financiar processos de singulariza¢i0 cultural que” desmontem os. particularismos afusis_ne_ campo da cultura EH mesmo tempo, os empreendimentos de pseudodemocratizagio da ceultura? Nao existe, 2 meu ver, cultura popular ¢ cultura erudita. Hé uma cultura capitalistica que permeia todos os campos de expresso semistice E isso que tento dizer ao evocar os trés niicleos seminticos do termo “cultura”. Nao hé coisa mais horripilante do que fazer a apologia da caltura popular, ou da cultura proletéria, ou sabese Id o que desta nz tuteza. Hé processos de singulatizagao em praticas determinadas, ¢ hé procedimentos de reaproptiagio, de recuperacao, operados pelos diferentes sistemas capitalisticos. . No fundo, s6 hé uma cultura: a capitalistica, FE uma cultura sempre etnocéatrica e intelectocéntrice (ou logocéntrica), pois separa os universos semidticos das produgses subjetivas. Hi muitas maneiras de a cultura ser ctnocéntriea, ¢ niio apenas na relagio racista do tipo cultura masculina, branca, adults, etc. Ela pode ser relativamente policéntrica ou polietnoctntrica, ¢ preservar @ postulagdo 23 de uma referéncia de “culturavalor”, um padrio de tradutibilidade geral das produgées semiéticas, inteiramente paralelo 20 capital. Eoin como o capital & um modo de sembotizagdo que permite ter um equWalente geral para as produgées econdmicas ¢ sociais, a cultura € 0 equivalente geral para as produgdes de poder. As classes dominantes sem- pre buscam essa dupla msisvalia: a maisvalia econémica, através do di- hiro, © @ maisvalia de poder, através da cultara-yalor/ Considero essas duas fungdes — mais-valia econdmica ¢ mais-valia do poder — inteiramente complementares. Elas constituem, juntamente com ‘uma terceira categoria de equivaléncia — 0 poder sobre a energia, a caps- cidade de conversio das energias umas nas outras — os trés pilares do CMI. 24

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