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CIX2ZIAP LEZPELOOELZ snivaaa STHOTdd - oneoy 6 Compagnon, Antoine © demnia ds tora erature senso comumy Antoine Compagnon; taducao de {leonice Paes Belo Hor 2305p. ‘Tradugio de: Le démon de la théorie linéatre et sens comsmn TEVISNO DE TEXTO E NORMALIZAGAD hear kemoeerc ME N T O'S de Coltimbia, em Nova virio intitulado “Some Puzzles for Em torno de mos alguns textos fundadores da teoria lite- ‘dos como definitivos € cuja avaliacao ja nto nos js. Posteriormente, na Sorbonne, dediquei um eratura. Desta vez, diante de um piiblico i-me necessirio fazer um discurso magistral, sem bordagem aporética, Este livro é fruto desse gracleco aos estudantes que 0 tornaram possivel. -agio de La Troisiéme République des Lettres ica clas Letras) (1983), criticaram-me varias o de haver interrompido a pesquisa no momento em interessante: esperavam pelo fim da hist6r ou uma Quinta Repiiblica das Letras. Como des- jento em que a hist6ria literdria foi substituida pela ar os epis6dios seguintes, sem que nossa ria intelectual neles se integre? Para romper 0 € por fim as controvérsias, decidi escrever um 10, Les Ging Paradoxes de la Modernité (Os Cinco Modernidade) (1989), do qual este € também a o. Sou grato a Jean-Luc Giriboni, que me estimulou assim como a Marc Escola, a André Guyaux, a mbardo e a Sylvie Thorel-Cailleteau, que o releram. pogos do Capitulo II foram publicados com os titulos logie” {Alegoria e Filologial, em Anna e Carla Locatelli, Ed., Retorica e Interpretazione, Roma, 1994, € “Quelques Remarques Sur la Méthode des 's Paralléles® [Algumas Observacdes sobre 0 Método s Passagens Paralelas], Studi di Letteratura Francese, 0.22, * and the Canon’ [Sainte-Beuve e 0 Cinone], Mode Notes, CX, 1995. APETULO 1 3 35 38 Comper dt enn: «Toma da expresdo 39 Ltceedade 08 econo 2 conus € err “ carrito wo AUTOR ” 1 teve dere do stor ® x Voluntas © actio — Algor «flog 36 loops © herent 9° Jeng « constncia 65 © eo da psmgens parks 6s ‘Sait fom the bore’ mouth n Inteogdo coer %5 (Os dos agumertos cone 3 itengdo 9 Reino a neneo a Sendo nto 6 sgiagio 85 Inengo no € premedasto 30 2 presunio de ienconaldade 93 cavimiwo mt © MUNDO 7 Cone 4 mate 2 nites 102 . © realm, reflexo 0 contengto 106 2, reference intetentaade 109 ‘A resiséncia do leitor Recepcio e influgecia ae 0 gr con osc dee ere L Searvemer oma, | cans aoe ea cee eeeoed Sa Oa se pana es Bao cmt men or tees crme a | ines ee ee ess aos pa rs ad 2 cole nee ee & fog Ste ace ian es ae onan | ome oma poems so ming ease aes We ceca De wee vcore es Valor € posted Poe um relativism modersdo 46 “7 153 156 157 159. 163 165 166 173 176 180 0 QUE RESTOU DE NOSSOS AMORES? « Socrates, $6 havia 0 Demnio da proibio; 0 meu rador, © meu é um Demdnio de ago, um Deménio de combate. Baudelaire, “Expanquemes ox pobre” > uma célebre frase: “Os franceses no tém a Pelo menos até a explosio dos anos sessenta A teoria literiria viveu entio seu momento de gl se it f€ do prosélito Ihe houvesse, de repente, permi ‘um século de atraso num fitimo de segundo. Os imo fuss0; ao citculo de Praga, ao New Griticism mericano, sem falar da estilistica de Leo Spitzer nem pologia de Emst Robert Curtius, do antipositivismo de jenedetto Croce nem da critica das variantes de Gianfranco , ou ainda da escola de Genebra e da critica da cons- ou mesmo do antiteorismo deliberado de F. R. Leavis € de seus discfpulos de Cambridge. Para contrabalangar todos cesses movimentos originais e influentes que ocuparam a pr ira metade do século XX na Europa € na América do Norte, 86 poderiamos citar, na Franga, a “Poética” de Valéry, segundo © titulo da cétedra que ocupou no Golégio de Franga (1936) — efémera disciplina, cujo progresso foi logo interrompido pela guerra, depois pela morte —, ¢ talvez as sempre enig- maticas Fleurs de Tarbes (Flores de Tarbes), de Jean Paulhan (1941), tateando confusamente a definigio de uma ret6rica geral, nao instrumental, da lingua: esse “Tudo € ret6rica’, que a desconstrugio deveria redescobrir em Nietzsche, por volta de 1968. © manual de René Wellek ¢ Austin Warren, Theory of Literature (Teoria da Literatural, publicado nos Estados Unidos em 1949, encontrava-se disponivel (ios fins ‘cio de bolso. Em 1960, pouco antes de morrer, buia esse atraso € esse isolamento franceses a trés| -s: um velho sentimento de superioridade ligado a uma “io literiria e intelectual continua e eminente; o espirito _geral os estudlos literdrios, sempre marcaclo pelo positivismo ancilar das formas literirias, impedindo 0 desen- volvimento de métodos formais mais sofisticados. Acrescen- dle bom grado, mas isso é evidente, a auséncia de uma ca e de uma filosofia da linguagem compa invadiram as universidades de lingua alema ou inglesa, dlesde Gottlob Frege, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein Jolf Carnap, assim como a fraca incidéncia da tradigao hermenéutica transformada, entretanto, na Alemanha, intei- mente, por Edmund Husserl ¢ Martin Heidegger. fm seguida, as coisas mudaram rapidamente —aliés, come- 2.5e mover, no momento em que Spitzer fazia aquele \andstico severo —,a tal ponto que, por uma muito curiosa ersio que leva a refleti, a teoria francesa viu-se, momen- taneamente, algada 2 vanguarda dos estudos literirios no undo, um potico como se tivéssemos, até entao, recuado ara saltar melhor, a menos que um tal fosso, subitamente sposto, tenha permitido inventar a polvora com uma ino- céncia e tum ardot tais que deram a ilusto de um avanco, durante esses mirificos anos sessenta, que se estenderam, de fato, de 1963, fim da guerra da Argélia, até 1973, com o pri- meio choque petroleiro, Por volta ce 1970, a teora literdria \trativo sobre os jovens ‘poética”, “estruturalismo”, “semiologia”, “narratologia” —, el brithava em todo seu Jor. Quem viveu esses anos feé- ricos $6 pode se lembrar deles com nostalgia. Uma corrente poderosa arrastava a todos nds. Naquele tempo, a imagem do ‘estudo Merdvio, rexpaldada pela teoria, era sedut iriuvnfante, se uma pequena a quanto a expli- 10, energicamente. A estag- Depoi os estudos literdrios franceses alean- iram 08 outros no caminho do form: de, as pesquisas te6ricas nao conheceram imentos na Franca. Seria o caso de incriminar ist6ria literiria sobre os estudos franceses, 0 ica nao teria conseguido abalar em profiindl disfarcar provisoriamente? A explicagio — le Gérard — parece insuficiente, pois a nova critica, sino que nio tenha derrubado os muros da velha Sorbonne, 1u-se solidamente na Educagio nacional, sobretudo nsino secundario, Talvez por isso mesmo ela tenha se do tigida. £ impossivel, hoje, passar num concurso sem ur os distinguos sutis € jargao da narratologia. Um lato que nao saiba dizer se 0 pedaco de texto que tem ou “heterodiegético”, “singulativo” b os olhos € *homo- ou ‘iterative’, de “focalizagao interna” ou “externa” nao iclmitido, assim como outrora era necessario distinguir um nacoluto de uma hipalage, e saber a data de nascimento de Montesquieu. Para compreender a singularidade do ensino superior e da pesquisa na Franca, € preciso ter sempre em mente a dependéncia hist6rica da universidade em relacao ‘aos concursos de admissiio de professores ao ensino secun~ dario. E como se nos tivéssemos provido, antes de 1980, de tudo 0 que é suficiente como teoria para renovar a peda gogia: um pouco de poética ¢ de narratologia para explicar (verso e a prosa. A nova critica, assim como, algumas geragdes antes, a hist6ria literaria de Gustave Lanson, viu-se rapida mente reduzida a algumas receitas, truques ¢ asticias para brilhar nos concursos. O impulso teérico estancou-se desde que forneceu uma certa ciéncia de apoio 4 sacrossanta explicagio de texto, B Franga, um fogo de path, © asp n 1969 — sessenta € setenta nao tiveram sucessores. O proprio Barthes foi canonizado, o que nao é a melhor forma de manter viva e ativa uma obra. Outros mudaram e se entregaram a trabalhos Muito distanciados de seus primeiros amores; alguns, como Tavetan Todorov ou Genette, orientaram-se para a ética ou a estética, Muitos voltaram-se para a velha hist6ria literaria pelo viés da redescoberta de manuscritos, como revela a moda da critica dita genética. A revista Poétique, que existe ainda, Publica essencialmente exercicios de epigonos; 0 mesmo se 4 com Littérature, outra instituigao p6s-68, sempre eclética, acolhendo 0 marxismo, a sociologia e a psicandlise. A teoria acomodou-se € no é mais o que era: esti af assim como todos 08 séculos literdrios esto af, como todas as especiali- dades convivem na universidade, cada uma em seu lugar. Encontra-se compartimentada, inofensiva, espera os estudantes A hora certa, sem outro intercambio com outras especialidades em com 0 mundo a nao ser por intermédio desses estudantes que vagueiam de uma disciplina a outra. Nao est4 mais viva que as outras disciplinas, na medida em que nao € mais ela Que diz por que ¢ como seria necessirio estudar a literatura, qual € a pertinéncia, a provocacio atual do estudo literirio, Ora, nada a substituiu nesse papel, aliis, ndio mais se estuda tanto a literatura, voltaré, como tudo, ¢ seus problemas serio redes- cobertos no dia em que Aincia for to grande que s6 produzira tédio.” Phi desde 1980, ao prefa (Teoria do Conjunto] — © outono que se sex pso volume publicado durante dle 1968 € cujo titulo foi extraiclo lers reconheceu posterior- Foucault, Roland Barthes, © todo o grupo de Tel Quel, 0 pice. A teoria ia, entao, de viver. “Desenvolver a teoria~ decretado Lénine, € Louis inar “Teoria” a colecao que vento em pop: para nao se at Althusser invoca dirigia na Mapero, Pierre Macherey publicou ai, e1 1966, ano guia do movimento 1e Théorie de la Ateo -a.€ mesmo polémica ilo inquietante do livro de Boris 1m em 1927, Littérature, Théorie, Critique, Poleémique Polémica], em parte traduzido por dos formalistas russos, in Todoray na sua antologi Théorie de la Littérature (Teoria ¢ ; mbém Fundar uma ciéncia da , escrevia Geinette em 1972, mo € 0 marxismo eram seus dois pilares para justi- a pesquisa dos invariantes ou dos universais da litera- Se essa teoria de caréter ambfguo — ao mesmo tempo marxista e formalista — ja tinha saido da moda em 1980, 0 et hoje? fomos suficientemente atingidos pela igno- € pelo tédio para desejarmos novamente a teoria TEORIA E SENSO COMUM Um balango, um mapa, da teoria literiria se concebivel? Ele que forma? Nao seria esse um projeto ab se, como afirma Paul de Man, “o pritcipal interesse tecrico da teoria literaria consiste na impossibilidade de sua definiga0"? A teoria no poderia, entio, ser apreendida sendo gragas a uma teoria negativa, segundo o modelo desse Deus escon- dido do qual somente uma teologia negativa pode falar. Isso significa situar 0 horizonte alto demais, 6u longe demais as afinidades, alias reais, entre a teoria literdria € o niilismo. A “eoria nao pode se reduzir a uma técnica nem a uma pedagogia — ela vende sua alma nos vade-mécum de capas coloridas 6 expostos nas vitrinas das livrarias do Quartier Latin —, mas isso nao é motivo para fazer dela uma metafisica nem uma mistica. Nao a tratemos como uma religido. A teoria liter nao teria sendo um “interesse te6rico”? Nao, se estou certo a0 sugerir que ela € também, talvez essencialmente, critica, oposi- tiva ou polémica. Porque nao é do lado te6tico ou teolégico, nem do lado pritico ou pedagégico, que a teoria me parece principalmente interessante e auténtica, mas pelo combate feroz.€ vivificante que empreende contra as idéias preconcebidas dos estudos literdrios, ¢ pela resisténcia igualmente determinada que as, idéias preconcebidas Ihe opdem. Esperariamos, talvez, de um balango da teoria literiria, que depois de ter oferecido sua propria definicao de literatura, como definicao contestivel —trata-se, na verdade, do primeiro lugar-comum te6rico: *O que € a literatura?” —, depois de ter prestado uma ripida homenagem as teorias literirias antigas, medievais e classicas, desde Aristételes até Batteux, sem esquecer uma passagem pelas poéticas nao-ocidentais, arrolasse as diferentes escolas que compartilharam a atengio te6rica no século XX: for lismo russo, estruturalismo de Praga, New Criticism americano, alema, psicologia genebresa, marxismo interna~ ismo e pés-estruturalismo franceses, herme- icanilise, neomarxismo, feminismo etc. Inimeros so assim: ocupam os professores e tranqitilizam os estudantes, Mas esclarecem um lado muito acess6rio da teoria. Ou até mesmo a deformam, pervertem-na; porque o que a caracteriza, na verdade, € justamente o contrario do ectetismo, € seu engajamento, sua vis polemica, assim como os impasses a que esta ultima a leva sem que ela se dé conta. Os te6ricos do a impressio, muitas vezes, de fazer criticas muito sensatas contra as posigdes de seus adversarios, mas visto que este confortados por sua boa consciéncia de sempre, nao renunciam, € continuam a matraquear, os te6ricos se poem também el a falar alto, defendem suas propr absurdo, €, as encantados de se verem posiclo adversi a Quando entrei no sexto ano do pequeno liceu Condorcet, nosso velho professor de latim-francés, que era também pre de sua cidadezinha na Bretanha, perguntava-nos a cada texto de nossa antologia: “Como vocés compreendem essa passagem? O que o autor quis dizer? Onde esti a beleza do verso ou da prosa? Em que a visio do autor € original? Que ligio podemos tirar dae" Acreditamos, durante um tempo, que 1 teoria literdria tivesse banido para sempre essas questoes A respostas passam e as perguntas perma- necem, Estas si0 mais ou menos as mesmas. Ha algumas que no cessam de se repetir de geragio em geracio. Colocavam-se antes da teoria, ja se colocavam antes da hist6ria literdria, se colocam ainda depois da teoria, de maneira quase idéntica, tal ponto que nos perguntamos se existe itica literdria, como existe uma igiistica, pontuada de criagdes de conceitos, como 0 cogito 10 complemento. Na critica, os paradigmas niio morrem nea, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou. menos cificamente e jogam indefinidamente com as mesmas nogdes — nogdes que pertencem a linguagem popular. Esse é um «los motivos, talvez o principal motivo, da sensacio de repe- tavelmente, dante de um quadro ico da critica literaria: nada de novo sob o sol. Em teor Ii p (eriria no conseguiu desembaracar-se sobre a literatura, a dos ledores e dos se afasta, as velhas nocdes m “naturais” ou “sensatas' des sobre a lingua e a que quase ninguém de 1970, a teoria era um contradiseu as premissas da critica t clareza, Barthes assim resu € Verdadel, em 1966, ano 1 que punha em questao Objetividade, gosto e ritique et Vérité (Critica dogmas do “suposto substituir por uma 5 premissas do dis- expostas como cons- Em seu comego, tam- evidentes, quando si question: trugdes hist6ricas, como convengdes bém a hist6ria literdria se fundava numa teoria, em nome da qual eliminou do ensino literirio ret6rica, mas essa teoria perdeu-se ou edulcorou-se & medida que a hist6ria raria foi se identificando com a instituicao escolar e universi- tiria. O apelo a teoria é, por definicao, opositive, até mesmo subversivo e insurrecto, mas transformada em método pela recuperada, como diziamos. Vinte anos depois, 0 que sur preende, talvez mais que o conflito violento entre a hist6ria € a teoria literiria, é a semelhanga das perguntas levantadas Por uma € por outra nos seus primGrdios entusiastas, sobre- tudo esta, sempre a mesma: “O que € a literatura?” Permanéncia das perguntas, contradigio e fragilidade das respostas: dai resulta que € sempre pertinente partir das nogdes populares que a teoria quis anular, as mesmas que voltaram quando a teoria se enfraqueceu, a fim de nao s6 rever as respostas opositivas que ela propos, mas também tentar compreender por que essas respostas no resolveram de uma vez. por todas as velhas perguntas. Talvez porque a teoria, & custa de sua luta contra a Hidra de Lerna, tenha levado seus argumentos longe demais e eles tenham se vol- tado contra ela? A cada ano, diante de novos estudantes, é preciso recomecar com as mesmas figuras de bom senso € clichés irreprimiveis, com 0 mesmo pequeno mimero de enigmas ou de lugares comuns que balizam o discurso cor rente sobre a literatura, Examinarei alguns, os mais resis- tentes, porque é em torno deles que se pode construir uma apresentagio simpatica da teoria literéria com todo o vigor TEORIA E PRATICA DA LITERATURA Algumas distingdes preliminares sio indispensiveis. Primei- ramente, quem diz teoria — e sem que seja preciso ser mar- xista — pressupde uma pratica, ou uma praxis, diante da qual cédigo de trinsito: a teoria &, pois, 0 cédigo oposto A direca0 de veiculos, é 0 cbdigo da diregio. Qual € portanto a direcio, ow a pritica, que a teoria da literatura codifica, isto &, organiza a propria literatura (ou a atividade literdria) — a teoria da literatura nao ensina escrever romances como a ret6rica outrora ensinava a falar m piiblico € instrufa na eloqiiéncia —, mas sao os estudos eratios, isto é, a hist6ria literdria € a critica literaria, ou inda a pesquisa literdria. No sentido de cédigo, didatica, ou melhor, deontologia da pesquisa literdria, a teoria da literatura pode parecer 1 disciplina nova, em todo caso ulterior ao nascimento da literaria no’ século XIX, quando da reforma das univer- ias, € posteriormente das americanas, segundo ivamente nova, em si mesma, é relativamente antiga. dizer que Platdo € Arist6teles faziam teoria da lite- iterétios na Reptiblica ica, € 0 modelo de teoria da literatura ainda 6, hoje, Pottica de Arist6teles. Platao e Arist6teles faziam 1¢ se interessavam pelas categorias gerais, ou mesmo constantes literdrias contidas nas obras parti- or exemplo, os géneros, as formas, os mods, o ilustragdes de categorias gerais. Fazer interessar-se pela que era o estudo lite- ratura em si mesma. teratura, tio sua tradigao antiga e cléssica, a teoria da literatura nao é em. Prinefpio, normativa. Descritiva, a teoria da literatura é, pois, moderna: supde a existéncia de estudos literitios, instaurados no século XIX, a partir do romantismo. Tem uma relacio com a filosofia da iteratura como ramo da estética que reflete sobre a natureza e a funcio da arte, a definigio de belo e de valor. Mas a teoria da literatura nao € filosofia da literatura, nao € espe- culativa nem abstrata, mas analitica ou t6pica: seu objeto s40 fos discursos sobre a literatura, a critica e a hist6ria que ela questiona, problematiza, e cujas priticas organiza. A teoria da literatura nao é a policia das letras, mas de certa forma sua epistemologia. Nem nesse sentido € verdadeiramente nova fundador da hist6ria literiria france: XIX para 0 XX, ja dizia de Emest Renan e de Emile Faguet, os criticos literirios que o precederam — embora Faguet fosse seu contemporaneo na Sorbonne, Lanson o julgava ultrapas- sado —, que nao tinham “teoria literdria”? Era uma maneira polida de thes dizer que, a seus olhos, eram impressionistas € impostores, nio sabiam o que faziam, faltava-lhes rigor, espirito cientifico, método. Quanto a Lanson, este pretendia ter uma teoria, 0 que mostra que hist6ria literiria e teoria nao sio incompativeis. © apelo a teoria responde necessariamente a uma intengio polémica, ou opositiva (critica, no sentido etimolégico do termo): a teoria contradiz, poe em diivida a pritica de outros. £ til acrescentar aqui um terceiro termo a teoria € a pritica, conforme 0 uso marxista, mas ndo apenas marxista, dessas nogdes: 0 termo ideologia. Entre a pritica a teoria, estaria ja. Uma teoria diria a verdade de uma prai- tica, enunciaria suas condigdes de possibilidade, enquanto a ideologia nao faria senao legitimar essa pratica com uma men- nularia suas condigdes de possibilidade. Segundo is bem recebido pelos marx gosto, burgueses). A teorit se opde ao senso comum, Mais recentemente, depois de uma volta da espiral, a teoria feratura levantou-se ao mesmo tempo contra po: hist6ria literasia (representado por Lanson) € contra a simpatia na critica literiria (que havia sido representada por Faguet), assim como se levantou contra a associacio freqitente clos dois (primeiro 0 positivismo na hist6ria do texto, depoi humanismo na interpretagao), como ocorre nos austeros fil6lo- 08 que, depois de um estuclo minucioso das fontes do 10 de Prévost, passam sem problemas a julgamentos Manon, como se ela estivesse a nosso lado, uma jovem de Resumamos: a teoria contrasta com a pritica dos estudos s, torn explicitos seus pressupostos, enfim critica-os (cr iscriminar). A teoria seria, pois, numa pri a critica da critica, ou a metacritica (col uma linguagem e a metalinguagem que lelaire e, sobretudo, desde M: Apresentemos logo o exemplo: empreguei Deixemos mais de pe lores no necessaria- julga; procede \¢o OU projecao: seu € uma metamorfose, sua primeira forma € a conversacao, t6ria literdria compre m compensagao, um discurso que insiste nos fatores exteriores & experiencia da leitura, por exemplo, na concep¢ao ou na transmissio das obras, ou em outros elementos que em geral nao interessam a0 ndo-especialista. A hist6ria literaria & a que surgiu a0 longo do século XIX, mais conhecida, (© nome de filologia, Scholarship, Wissenschaft, ou pesquisa. As vezes opdem-se critica e hist6ria literdrias como um procedimento intrinseco e um procedimento extrinseco: a critica lida com o texto, a hist6ria com © contexto. Lanson observava que se faz historia literiria a partir do momento ‘em que se lé 0 nome do autor na capa do livro, em que se da ao texto um minimo de contexto. A critica literaria enuncia ipo “A € mais belo que B”, enquanto a hist6ria ia afirma: *C deriva de D.” Aquela visa a avaliar 0 texto, esta a explicé-lo. sobre os (bons) ‘mente cultos nem profissionai por simpatia (ou antipatia), por iclent lugar ideal é 0 sali, do q\ afirmacdes sejam explicitados. O que vocé chama de literatura? Quais so seus critérios de valor, perguntard ela aos ois tudo vai bem entre leitores que compartilham das mesmas normas e que se entendem por meias palavras, mas, se no € © caso, @ eritica (a conversacio) transforma-se logo em dilogo de surdos. Nao se trata de reconciliar abordagens diferentes, mas de compreender por que clas sio diferentes © que vocé chama de literatura? Que peso vocé atribui a suas propriedades especiais ou a seu valor especial, pergun- tara a teoria aos historiadores. Uma vez reconhecido que os textos literdrios possuem tracos distintivos, vocé os trata como documentos hist6ricos, procurando neles suas causas factuais: vida do autor, quadro social e cultural, intencdes atestadas, fontes. O paradoxo salta aos olhos: vocé explica pelo contexto tum objeto que the interessa precisamente porque escapa a esse contexto © Retrouvé [0 Tempo Redescobertol, pelo menos naquilo que diz respeito 0s estudos liter‘rios: “Uma obra onde Ind teoria € como um objeto no qual se deixa a marca do preco."* A teoria quer saber prego. Nao tem nada de abstrato, faz. perguntas, aquelas perguntas sobre textos particulares com os quais historia- dores € criticos se deparam sem cessar, mas cujas respostas sio dadas de antemao, A teoria lembra que essas perguntas sio problematicas, que podem ser respondidas de diversas maneitas: ela € relativista, ‘TEORIA OU TEORIAS Empreguei, até aqui, a palavra teoria no singular, como se 86 houvesse uma teoria. Ora, todo mundo j4 ouviu falar que hi teorias literirias, a teoria do senhor fulano de tal, a teoria da senhora fulana de tal, Entao, a teoria ou as teorias seriam um pouco como doutrinas ou dogmas criticos, ou ideologias. 4 tantas teorias quanto te6ricos, como nos dominios em que experimentagao € pouco praticivel. A teoria no é como a lgebra ou a geometria: o professor de teoria ensina sua teoria, ‘o que Ihe permite, como a Lanson, pretender que os outros nao m nenhuma, Perguntar-me-do: qual € a sua teoria? Respon- derei: nenhuma. E é isto que dé medo: gostariam de saber ‘minha doutrina, a f€ que é preciso abragar ao longo los, ou ainda mais preocupados. ilo do diabo, ou 0 diabo em pessoa: Forse tu non io loico fossi! Como Dante Ihe faz dizer, “Talvez do pensasses que cu fosse um logico” “Inferno”, canto XXVIL, ‘a doutrina, senaio a da diivida hiper- ‘um ponto de iF os pressupostos de todas as 1m “Que sei eu?” perpéwuo. s, opostas, diver- — a respeito d Ateoria da as palavras que conduzem a TEORIA DA LITERATURA OU TEORIA LITERARIA ei, nos Ultimos Uma outra pequena dist parigrafos, de feoria da literatura, no de teoria literdria, Seria pertinente es por exemplo, 0 modelo pp reveaien teaermuatayy -oreid nalbwrn intese versus a anilise, 0 quadro da literatura em oposi¢ lolégica, como o manual de Histoire de ta Littérature Francaise (Historia da Literatura Francesal, de 1895, frente a Revue d'Histoire Littéraire de la France, fundada em 1894). A Idle Wellek e Warren que lo em inglés, Theory of Literature [Teoria da Litera- literatura, da critica da critica, ou am A teoria literdria € mais opositiva € se apresenta mais como uma critica da ideologia, compreendendo af a critica dla literatura: é ela que afirma que temos sempre uma teoria € que, se pensamos nao té-la, é porque dependemos da te dominante num dado lugar e num dado momento. A teoria literaria se identifica também com formalismo, desde os forma- listas russos do inicio do século XX, marcados, na verdade, pelo marxismo. Como lembrava de Man, a te a existir quando a abordagem dos textos liter fundada em consideragdes nao lingUisticas, consideragdes, por exemplo, hist6ricas ou estéticas; quando o objeto de discussio no € mais 0 sentido ou o valor, mas modalidades de produgio de sentido ou de valor: Essas duas descricdes da teoria lite- riria (critica da ideologia, andlise lingbistica) se fortalecem mutuamente, pois a critica da ideologia € uma dentine Infelizmente, ess: teoria literiria), clara em inglés, por exemplo, foi ot em francés: o livro de Wellek e Warren, Theory of Literature, foi traduzido — tardiamente, como dissemos — com o titulo La Théorie Littéraire, em 1971, enquanto a antologia dos forma- tas russos, de Tzvetan Todorov, foi publicada, alguns anos tes, pelo mesmo editor, com o titulo Théorie de la Littérature (1966). E preciso examinar esse quiasmo para melhor nos situa. Como ji se tera compreendido, utilizo-me das duas tradigoes. a literatura: a reflexio sobre as nogdes gerais, os principios, os critério a critica ao bom senso literirio € a referencia ao formalismo. Nao se trata, pois, de fornecer receitas. A teoria nio € 0 método, a técnica, (© mexerico. Ao contriirio, o objetivo € tornar-se desconfiado de todas as receitas, de desfazer-se delas pela reflexao. Minha intengio nao é, portanto, em absoluto, facilitar as coisas, mas ser vigilante, suspeitoso, cético, em poucas palavras: critico irOnico. A teoria é uma escola de ironia. \¢0 (teoria da literatura versus iterada A LITERATURA REDUZIDA A SEUS ELEMENTOS. jobre que nogdes exercer, agugar nosso espitito critico? A o entre a teoria e 0 senso comum é naturalmente cont psi E, pois, 0 discurso corrente sobre a literatura, desig- clo os alvos da teoria, que permite colocar melhor a teoria todo discurso sobre ra, todo estudo ti sujeito, na sua base, a algumas grandes questoes, um exame de seus pressupostos relativamente a um no ntimero de nogdes fundamentais. Todo discurso issume posicdo — implicitamente o mais das mente — em relagio a estas critica: que hi (© movimento, a evolu sobre o valor, inda: como com- no seu aspecto dint ist6ria) quanto no seu aspecto estitico (0 valor)? fete questoes encabecam tulo do meu literatura, 0 autor, o mundo, 0 leitor,o estilo, a bist6riae , 208 quais dei titulos inspirados no senso comum, eterno combate entre a teoria & o senso comum que ci seu sentido. Quem abre um livro tem essas nocbes ie. Reformulados um pouco mais teoricamente, os primeiros titulos poderiam ser os seguintes: literarie~ representagao, recepgio. Em relagao aos trés , historia, valor 1€ que nao ha motivo dos profissionais: uns (05 recorrem 8s mesmas a cada pergunta, gostaria de mostrar a variedade de ostas possiveis, nZo tanto 0 conjunto daquelas que foram ra hist6ria, mas das que se fazem hoje: 0 projeto nao € ‘© de uma hist6ria da critica, nem 0 de um quadro das doutrinas literirias. A teoria da literatura € uma ligio de relativismo, sio liferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes objetos. Antigo ou moderno, sincrénico ou diacrOnico, intrinseco ou extrinseco: nao € possivel tudo ao mesmo tempo. Na pesquisa a resposta que dou a uma delas restringe as opgdes que se abrem para responder as outras: por exemplo, se acentuo 0 papel do autor, € possivel que nao dé tanta importancia & lingua; se insisto na imizo o papel do leitor; se destaco a determinagao da historia, dliminuo a contribuigao do génio etc. Esse conjunto de escolhas 6 solidario. E por isso que qualquer questo permite uma entrada satisfatoria no sistema, € sugere todas as outras. Uma tnica, a intengao, por exemplo, talvez seja suficiente, para tratar de todas elas. E por isso também que a ordem de anise dessas questoes €,no fundo, indiferente: poder-se-ia tirar uma carta a0 a seguir a pista, Escolhi percorré-las fundamentando-me numa hierarquia que corresponde, também ela, ao senso comum, 0 qual, em relagao a literatura, pensa mais no autor do que no leitor, na matéria mais do que na maneira, Todos os lugares da teoria sero assim visitados, salvo, Ivez, 0 género (trataremos clessa questio brevemente, quando falarmos da recepcao), porque o género nao foi uma cau célebre da teoria literiria dos anos sessenta. O género é uma generalidade, a mediacao mais evidente entre a obra indivi- dual e a literatura. Ora, por um lado, a teoria desconfia das evidencias, por outro, visa aos universais. sta tem qualquer coisa de provocagio, visto que constam, simplesmente, as ovelhas negras da teoria lite- ., moinhos de vento contra os quais ela se esfalfou para F conceitos salutares. Que nao se veja ai, entretanto, nenhuma malicia! Inventariar os inimigos da teoria parece-me ‘© melhor, 0 tinico meio, em todo 0 caso 0 mais econdmi oderna através das convengdes que a negaram. mos levados a concluir que 0 “campo lite- Gm das querelas intermindveis que o obre um conjunto de pressupostos e de 's por todos. Pierre Bourdieu julgava que n “aeBnjonuo ou auduos vise apepiaa e anbiod ‘epee no opm anua ‘umtoD ostas 0 3 E091 e anua eEpHoIe vance e Msisas ap as-tren foupION opmsa © wresaoeyp anb sterey soxopesed sasso ‘sesta0sren saQSIpenuoo sussa ‘Sejauef SUSIE] Sessa sEqUIOME ap as-eesL, StwWonp soste} ap au9s ew ‘weuorside 0 waquies seus ‘omuatiesuad o wesminiss anb ‘epeu no opm 9p sows0) wo ‘SeInjosqe SeaNeuIDNE ‘sIoatuodsuEsut ‘SeRMOUNUE oo sopiqaDuo> > oo!mgjod opessed wn 9p A LITERATURA Os estudos literdrios falam da literatura das mais diferentes maneiras. Concordam, entretanto, num ponto: diante de todo estudo literario, qualquer que seja seu objetivo, a primeira questo a ser colocada, embora pouco tebrica, & a da definigio que ele fornece (ou nao) de seu objeto: o texto literirio. © que torna esse estudo literdrio? Ou como ele define as quali- dades literdrias do texto literdrio? Numa palavra, o que é para ele, explicita ou implicitamente, a literatura? Certamente, essa primeira questio nao é independente das que se seguitio. Indagaremos sobre seis outros termos ou nogdes, ou, mais exatamente, sobre a relacio do texto literirio com seis outras nogdes: a intenclo, a realidade, a recepeao, a lingua, a historia € o valor. Essas seis questoes poderiam, portanto, ser reformuladas, acrescentando-se a cada uma o epiteto literdrio, o que, infelizmente, as complica mais do que as simplifica: © que é intencio literavia? © que é realidade © que € recepcao O que é lingua Ii © que € historia literdria? © que € valor literario? Ora, emprega-se, freqilentemente, o adjetivo literdrio, assim como © substantivo literatura, como se ele nao levantasse problemas, como se se acreditasse haver um consenso sobre © que € literdrio € 0 que nao o €. Aristételes, entretanto, j@ observava, no inicio de sua Poética, a inexisténcia de um termo genérico para designar a0 mesmo tempo os dilogos socraticos, 0s textos em prosa € 0 verso: “A arte que usa apenas a linguagem em prosa ou versos (...1 ainda nao recebeu um, nome até o presente” (1447428-b9). Ha o nome e a coisa que la Poésie?” [O que E Poesia?] Jakobson, 1933-1934), Qu'Est-ce que la Littérature? (O que & Literatura? (Charles Du Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947). A tal ponto que Barthes renunciou uma defini¢io, contentando-se com esta brine: deira: “A literatura é aquilo que se ensina, € ponto final.”! Foi uma bela tautologia. Mas pode-se dizer outra coisa que nao “Literatura é literatura?”, ou seja, “Literatura € © que se chama aqui e agora de literatura?” O fil6sofo Nelson Goodman (1977) propés substituir a pergunta “O que € arte?” (What is art?) pela pergunta “Quando é arte?" (When is art?) Nao seria necessirio fazer 0 mesmo com a literatura? Afinal de contas, existem muitas Iinguas nas quais 0 termo literatura é intradu- zivel, ou ndo existe uma palavra que lhe seja equivalente, Qual € esse campo? Essa categoria, esse objeto? Qual € a sua “diferenca especifica’? Qual é a sua natureza? Qual é a sua fungio? Qual é sua extensao? Qual é sua compreensao? E necessitio definir literatura para definir 0 estudo literirio, ‘mas qualquer defini¢ao de literatura nao se toma o enunciado, de uma norma extraliteriria? Nas livrarias britdnicas encontra-se, de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Ficga de um lado, livros para a escola e, de outro, livros para 0 lazer, como se a Literatura fosse a ficcao entes Ficcao, a literatura divertida. Seria possivel ultrapassar essa cl cago comercial e prati A aporia resulta, pontos de vista possiveis e igualmente legitimos; vista contextual (hist6rico, psicolégico, socials cional) e ponto de vista textual (ingit © estudo literdrio, esté sempre imprensada ¢: dagens irredutiveis: uma abordagem hist6r amplo (o texto como documento), € uma abord: tica (0 texto como fato da Iingua, a literatur linguagem). Nos anos sessenta, uma nova quer € modernos despertou a velha guerra de trinc 30 partiddrios de uma definigo externa e partitirion de ina definigho ¢nverna de liveratu sma arb A EXTENSAO DA LITERATURA No sentido mais amplo, literatura € tudo 0 que (ou mesmo manuscrito), 840 todos os livros que contém (incluindo-se ai o que se chama literatura or vante consignada). Essa acepcio corresponde a nogio de *belas-letras” as quais compreendiam tudo 0 que 3 a poética podiam produzir, no somente a fiegio, mai a historia, a filosofia e a ciéncia, e, ainda, toda a eloqiéncia: Contudo, assim entendida, como equivalente & cultura, no sentido que essa palavra adquiriu desde 0 século XIX, a li ratura perde sua “especificidade”: sua qualidade propriamente literfria the € negada. Entretanto, a filologia do século XIX ambicionava ser, na realidade, o estudo de toda uma cultura, qual a literatura, na acepcao mais restia, era o testemunho mais acessivel. No conjunto orginico assim constituido, segund pela lingua, pela literatura ¢ pela cultu identificada a uma nago, ou a uma raga, no sentido filol6gico, Ado bioldgico do termo, # literatura reinava absoluta, © 6 € © no literério) varia consideravelmente segundo as épocas € as culturas. Separada ou extraida das belas-letras, a litera- com 0 declinio do tradicional sistema de géneros poéticos perpetuado desde Arist6teles. Para ele, a arte poética — a Imente, 0 género épico eo género dramdtico, com exclusto do género lirico, que nao era ficticio nem imitative vez que, nele, 0 poeta se expressava na primeira pessoa > a set, Conseqdentemente, € por muito tempo, julgado, ) genero menor. A epopéia e o drama constituiam ainda os dois grandes géneros da idade classica, isto é, a narragio e a Jo, ou as duas formas maiores da poesia, enten- 10 ou imitago (Genette, 1979; Combe). Até , NO sentido restrito (a arte postica), era o verso, ocamento capital ocorreu ao longo do século XIX: 08 dois grandes géneros, a narracio e o drama, abandonavam cada vez mais o verso para adotar a prosa. Com o nome de poesia, muito em breve nao se conheceu senio, ironia da historia, o género que Aristételes exclufa da poética, ou seja, a poesia lirica a qual, em revanche, tornou-se sindnimo de toda poesia. Desde entao, por literatura compreendeu-se 0 romance, 0 teatro © a poesia, retomando-se 2 triade p aristotélica dos generos épico, dramatico e lirico, m vante, os dois primeiros seriam identificados com a pros terceito apenas com o verso, antes que o verso livre e o em prosa dissolvessem ainda mais o velho sistema de géneros. O sentido moderno de literatura (romance, teatro € poesia) € inseparavel do romantismo, isto 6, da afirmagio da rel dade hist6rica e geogrifica do bom gosto, em oposigio doutrina clissica da eternidade e da univers estético. Restrita & prosa romanesca e dramiti iteratura € concebida, além disso, em suas r com a nagdo € com sua hist6ria. A literatura, ou melhor, fiteraturas sto, antes de tudo, nacionais. 32 critores que melhor rassit-se, assim, de uma escritos por grandes escritores, segundo este corolario ico: tudo o que foi escrito por grandes escritores pertence iteratura, inclusive a correspondéncia e as anot 18 pelas quais os professores se interessam, Nova literatura € tudo 0 que os escritores escrevem. Voltarei, no titimo capitulo, ao valor ou & hierarqui , 40 none como patrimOnio de uma nagio, No momento, mos apenas este paradoxo: 0 cinone é composto de um «le (pelo menos em nacional) do seu contetido; a grande obra reputada ‘intico) amente contraposto A vontade dle unidade nacional. Donde a zombaria irOnica de Barthes: teratura € aquilo que se ensina’, variagio da falsa eti mologia consagrada pelo uso: “Os classicos sao aqueles que lemos em classe.” Evidentemente, identificar a ira com © valor literdrio (os grandes escritores) &, a0 mesmo tempo, negar (de fato € de direito) 0 valor do resto dos romances, dramas e poemas, ¢, de modo mais geral, de outros géneros de verso € de prosa. Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusio. Dizer que um texto é literirio subentende sempre que um outro nao é, O estreitamento institucional da literatura no século XIX ignora que, para aquele que lé, 0 que ele Ié é sempre literatura, seja Proust ou uma foto-novela, € ne; gencia a complexidade dos niveis de literatura (como ha niveis de lingua) numa sociedade. A literatura, no sentido restrito, seria somente a literatura culta, nao a literatura popular (a Fiction das livrarias britinicas). 33 ade, exemplos de redescober Mont, Os fom: turalista em seu aitgo “La Tradition et le 7 A Tradicao e 0 Talento Individual] (1919), um novo escritor altera toda a paisagem da literatura, 0 conjunto do sistema, suas hierarquias € suas filiagdes: (Os monumentos existentes formam entre si uma ordem ideal que € modificada pela introdugio, entre eles, da nova (da vei deiramente nova) obra de arte. A ordem existente € complet antes da chegada da nova obra; para que a ordem depois da intervengio da novidade, 0 c tente deve ser alterado, ainda que ligeiramente; assim as relagbes, as proporcdes, os valores de todas as obras de arte fem Felagao a0 conjunto sio reajustados. A tradigao literdtia € 0 sistema sincrOnico dos textos literd- ros, sistema sempre em movimento, recompondo-se & medida «que surgem novas obras. Cada obra nova provoca um rearranjo da tradicao como totalidade (e modifica, ao mesmo tempo, © sentido € o valor de cada obra pertencente & tradiga0).. Apos o estreitamento que sofreu no século XIX, a literatura reconquistou desse modo, no século XX, uma parte dos terri- t6rios perdidos: ao lado do romance, do drama e da poesia rica, © poema em prosa ganhou seu titulo de nobreza, a autobiografia € 0 relato de viagem foram reabilitados, € assim por diante. Sob a etiqueta de paraliteratura, os livros para criangas, 0 romance policial, a histéria em quadrinhos foram assimilados. As vésperas do século XX1, a literat mente quase to liberal quanto as belas-letras ante: sionalizagio da sociedade. © termo literatura tem, pois, uma extensio mais vasta segundo os autores, dos clissicos escolares ‘em quadrinhos, ¢ € dificil justificar sua ampliagao contempo- 1ea. O critério de valor que inclui tal texto nao é, mesmo, literario nem teéric mas ético, social e id de qualquer forma extraliterdrio, Pode-se, entret COMPREENSAO DA LITERATURA: A FUNCAO undo sua fungao parecem , quer essa fungio seja compreens pbarsis, le purgagio, ou de puri de emogdes or € a piedade (1449b 28). E uma nocao dificil de © prazer de aprender na origem da arte poéti 448b 13) que também Horacio reconheceri na poesia, qu: a de dulce et utile (Ars Poetica [Ante Poétical, v.333 e 343) ‘ssa € a mais corrente definico humanista de literatur: enquanto conhecimento especial, diferente do conhecimento filos6fico ou cientifico. Mas qual é esse conhecimento mento que s6 a literatura da ao homem? Segundo Aristoteles, Horicio © toda a tradigao clissica, t conhecimento tem por objeto o que € geral, provivel ou verossimil, a déxa, as sentencas € maximas que permitem compreender e regular 0 comportamento humano ¢ a vid: respeito sobretudo ao que é individual e singular. A continui- dade permanece, no entanto, profunda: de Paolo e Francesca — que n'A Divina Comédia, descobrem estarem apaixonados endo juntos os romances da Table Ronde— a Dom Quixote — que pde em pritica os romances de cavalaria — e Madame Bovary — intoxicada pelos romances sentimentais que devora Essas obras, claramente parddlicas, Sto prova da functo de aprendizagem atribuida a literatura, Segundo o modelo huma- nista, hd um conhecimento do mundo e dos homens propiciado pela experiéncia literiria (talvez no apenas por ela, mas princi- Palmente por ela), um conhecimento que s6 (ou quase s6) a experiéncia literdria nos proporciona. Seriamos capazes de Paixdo se nunca tivéssemos lido uma histéria de amor, se 35 da subjetividade moderna? O individuo é um leitor sol um intérprete de signos, um cagador ou um adivinho, pode- rfamos dizer com Carlo Ginzburg o qual, por dedugio légico- matemitica, identificou esse outro modelo de conhecimento com a caga (cleciframento dos vestigios do passado) € a adivi nhagio (deciframento dos signos do futuro). “Cada homem traz em sia forma completa da condigio humana”, escreve Montaigne no livro III dos Essais [Ensaios] Sua experiéncia, tal como a interpretamos, parece exemplar quanto ao que chamamos de conhecimento literario. Depoi de ter acreditado na verdade dos livros, em seguida ter duvi- dado dela a ponto de quase negar a individualidade, ele teria, 0 final do seu percurso dialético, voltado a encontrar em si a totalidace do Homem. A subjetividade moderna desenvolveu- se com a ajuda da experiéncia literitia, ¢ 0 leitor é 0 modelo de homem livre. Atravessando 0 outro, ele atinge o universal nna experiéncia do leitor, ‘a barreira do eu individual, na qual ele era um homem como os outros, ruiu” (Proust), “eu € um. outro” (Rimbaud), ou “sou agora impessoal” (Mallarmé). Evidentemente, essa concepeao humanista de conhecimento literdrio foi denunciada, por seu idealismo, como visio de mundo de uma classe particular. Ligada & privatizagio da cena da leitura, depois do nascimento da imprensa, ela estaria ‘comprometida com valores dos quais seria 20 mesmo tempo causa € conseqiiéncia, sendo 0 primeiro deles burgués. Essa é, sobretudo, a critica marxista, literatura e ideologia. A literatura serve para prod senso social; ela acompanha, depois substitu 6pio do povo. Os literatos, principalmente Matthew Arnold, 1a Inglaterra vitoriana, por sua obra fundadora, Culture and Anarchy (Cultura e Anarquial (1869), mas tamb Brunetiére € Lanson, na Franga, adotaram esse ponto dle vista 36 no final do séeulo XIX, julgando que seu tempo chegara depois da cecadencia ck pode-se, jetudo depois da metade do século XIX e da voga 1 maldito, F dificil identificar Baudelaire, itréamont com os ctimplices da ordem estabe- I voltaremos. A literatura precederia também outros saberes € priticas: os grandes escritores (os visiondrios) viram, antes dos demais, particularmente antes dos fil6sofos, para onde caminhava 0 mundo: “O mundo vai acabar” — anunciava Baudelaire em Fusées [Lampejosl, no inicio da idade do pro- gfess0 — e, realmente, 0 mundo nao cessou de acabar. A imagem do visiondrio foi revalorizada no século XX, num sentido politico, atribuindo-se a literatura uma pers politica € social que faltaria a todas as outras priticas. Do ponto de vista da func2o, chega-se também a uma aporia a literatura pode estar de acordo com a sociedad, mas também em desacordo; pode acompanhar 0 movimento, mas também precedé-lo. A pesquisa da literatura por parte leva a um relativismo sécio-histérico herdeiro do roman- tismo. Prosseguindo na dicotomia, examinando agora o lado da forma, das constantes, dos universais, procurando uma definicao formal, depois de uma defini¢ao funcional de lite- ratura, voltamos aos antigos € classicos, passamos também da teoria da literatura a teoria literdria, segundo a distingao que fiz. anteriormente, x = COMPREENSAO DA LITERATURA: pela linguagem. f como tal que ela constitui uma fabula ou uma hist6ria (muthos). Os dois termos (mimesis e muthos) recem desde a primeira pagina da Poética de Arist6teles € luglio de mimesisas vezes 1 mentira, nem verdadeira nem falsa, mas verossim mtir-verdadeiro", como dizia Aragon. “O poeta’, escrevia les, “deve ser poeta de hist6rias mais que de metros, : € em razdo da mimesis que ele € poeta, € 0 que ele a da poética ndo apenas a poesia diditica mas também a poesia lirica, que poe em cena o poeta, € nao preservava senao os géneros pico (natra- ) € trigico (dramatico). Genette fala de uma “poética ialista” ou, ainda, constitutivista “na sua versio temitic: Segundo essa poética, “a maneira mais segura para a poesia escapar do risco de dissolugio, no emprego corrente da nguagem, € se fazer obra de arte & a ficgaio narrativa ou dramatica’.‘ © qualificativo temdtico parece-me que deve ser evitado, pois nao hd temas (contetidos) constitutivamente (eririos: 0 que Arist6teles ¢ Genette visam é ao estatuto onto- logico, ou pragmatico, constitutive dos contetidos i 6, pois, a ficca0 como conceito ou modelo, nao como tema (ou como vazio, niio como pleno); e Genette, além disso, prefere chamé-la flecionalidade. Referindo-me as distingdes do ling Louis Hjelmslev entre substdncta do conteiido (as idéias), forma do contetido (a organizacao dos significados), subs- tdncia da expressdo (os sons) ¢ forma da expressao ( - zagao dos significantes), direi que, para a poética cl: literatura é caracterizada pela fico enquanto forn tetido, isto é, enquanto conceito ou modelo. irios, ica, a do con- 38 ‘ria e suficiente da ‘adamente no Capitulo I, alguma, seja sempre corrente considera globalmente COMPREENSAO DA LITERATURA: ‘A FORMA DA EXPRESSAO A partir da metade do século XVIII, uma outra def teratura se opds cada ve mais a ficclo, acentuando o , concebido dotavante — por exemplo, na Critica da Faculdade do Juézo (1790), de Kant, € na tradigao romantica — como tendo um fim em si mesma. A partir de ento, a arte e-a literatura nao remetem senao a si mesmas, Em oposi¢a0 Jinguagem cotidiana, que € utiitéria e instrumental, afirma-se que a literatura encontra seu fim em si mesma. Segundo © ssouro da Lingua Francesa, herdeiro dessa concep¢ao, @ literatura é simplesmente “o uso estético da linguagem escrita”. A vertente romantica dessa idéia foi, durante muito tempo, ‘a mais valorizada, separando a literatura da vida, conside- rando a literatura uma redencao da vida ou, desde o final do século XIX, a Unica experiéncia auténtica do absoluto € do nada. Essa tradigio pés-romintica e essa concep¢ao de lite- ratura como redencio manifestam-se ainda em Proust, que afirma, em O Tempo Redescoberto, que “a verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, logo a Gnica vida plena- mente vivida, é a literatura"? ou em Sartre, antes da guerra, no final de La Nausée [A Nauseal, quando uma miisica de jazz. salva Roquentin da contingéncia. A forma, a metéfora, “os los necessarios do belo estilo” em Proust, permite escapar deste mundo, aprender “um pouco do tempo em estado puro"? ‘Mas tal idéia tem também um lado formalista, mais familiar hoje, que separa a linguagem literdria da linguagem cotidiana, ou singulariza 0 uso literirio em relagio a linguagem comum, 3 fazer-se esquecer imperceptivel), enquanto a maneiras de aprender essa polaridade. A linguagem cotidiana € mais denotativa, a linguagem literdria € mais conotativa (ambigua, expressiva, perlocut6ria, auto-referencial) |, coerente, densa, complexa). O uso cotidiano da linguagem é referencial, € pragmatico, o uso literirio da lingua € imagindrio e estético. A literatura explora, sem fim pritico, 0 material linguistico. Assim se enuncia a definicao formalista de literatura. Do romantismo a Mallarmé, a literatura, como resumia Foucault, “encerra-se numa intransitividade radical”, ela “se torna pura e simples afirmacao de uma linguagem que s6 tem. como lei afirmar (..] sua firdua existéncia; nao faz mais que se curvar, num etemo retorno, sobre si mesma, como se seu discurso nao pudesse ter como contetido senao sua propria forma’.* Valéry chegava a essa conclusio no seu “Cours de Poétique’[Curso de Poétical: a Literatura 6, ¢ ndo pode ser outra coisa sendo uma espécie de extensao e de aplicacao de certas propriedades da Linguagem.” Bis, portanto, nessa volta 208 antigos contra os modemos, aos clissicos contra os roman- ticos, uma tentativa de definicao universal da literatura, ou como arte verbal. Genette falaria de “uma poética ta na sua versio formal", mas eu diria que se trata, ratura através da ficeio era também formal, mas recaia sobre a forma do contetido. De Arist6teles a Valéry, pasando por Kant € Mallarmé, a definigio de literatura através da ficg@o cedeu, pois, lugar, pelo menos junto aos especialist definicao através da poesia (da dicedo, segundo Genette). A. menos que as duas definicdes nao partilhem o mesmo campo iterario. Os formalistas russos deram ao uso propriamente literirio da lingua, logo & propriedade distintiva do texto literirio, 0 nome de literariedade. Jakobson escrevia em 1919: “O objeto 40 m se encontrar nesse conceito, que também Jico. Os formalistas tentavam, gracas a ele, jo auténomo — sobretudo em relacao mo € ao psicologismo vulgares aplicados & litera- 10 da especificidacle de seu objeto. se opunham abertamente & definicao de literatura como sua definigio através da funcao de repre- os aspectos da obra literiria considerados especificamente literirios e distinguiam, assim, a linguagem literéria da lin- fagem nao literaria ou cotidiana. A linguagem literaria & (e nao arbitréria), autotélica (€ nao linear), auto- referencial (e nao utilitaria). Qual 6, entretanto, essa propriedade — essa esséncia — que toma literrios certos textos? Os formalistas, segundo Viktor Chklovski, em “L’Art comme Procédé” [A Arte como Procedi- mento] (1917), tomavam como critério de Iterariedade a desfa- miliarizacdo, ou estranbamento (ostranénie): a literatura, ou le lingiistica dos leitores através de procedimentos que desarranjam as formas habi a sua percepgio. Jakobson explicara, em seguida, que o efeito de desfami 20 resulta do dominio de certos procedimentos (Jakobson, 1935) que, tomados do conjunto das invariéveis formais ou tragos lingUisticos, carac- terizam a literatura como experimentacio dos *possiveis linguagem”, segundo expresso de Valéry. Mas certos proce- dimentos, ov o dominio de procedimentos, tornam-se também, eles familiares: 0 formalismo desemboca (ver Capitulo VD numa hist6ria da literariedade como renovacio do estranha- mento por meio da redistribuigao dos procedimentos literirios. A esséncia da literatura estaria, assim, fundamentada em estudo literario dos pontos de vista estranhos 2 condigao verbal do texto. Quais so os invariantes que ele explora? Os éner0s, 05 tipos, as figuras, O pressuposto € que un € possiv ividuais das diferengas LITERARIEDADE OU PRECONCEITO. Em busca da “boa” definigio de literatura, procedemos segundo 0 método platénico, pela dicotomia, deixando sempre de lado a via da esquerda (a extensio, a funcao, a represen- aco), para seguir a via da direita (a compreensio, a forma, a desfamiliarizacaio). Tendo chegado a esse ponto, finalmente, alcangamos éxito? Encontramos na literariedade uma condigio, ria e suficiente da literatura? Podemos nos deter aqui? Afastemos, antes de tudo, esta primeira objec: como nao existem elementos lingtifsticos exclusivamente literitios, a literariedade nao pode distinguir um uso literdrio de um uso. nao literirio da linguagem. O mal-entendido vem, em grande Parte, do novo nome que Jakobson, bem mais tarde, no seu célebre artigo (1960), dew uma das seis fungdes que distinguia no ato de comuni ungdes expressiva, poética, conativa, referencial, met jlistica e fatica), como se a literatura (0 texto poético) abo- se as cinco outras funcdes, e deixou fora do jogo os cinco elementos aos quais elas eram geralmente ligadas (0 locutor, © destinatirio, o referente, 0 c6digo € 0 contato), para insistir unicamente na mensagem em si mesma. Tal como em seus artigos mais antigos, “La Nouvelle Poésie Russe” [A Nova Poesia Russa] (1919) ¢ “La Dominante” {A Dominantel (1935), Jakobson esclarecia, entretanto, que, se a funcio poética & dominante no texto lteritio, as outras fungdes nao so, contudo, eliminadas. Mas, desd 1919, Jakobson afirmava 20 mesmo tempo que, em poesia, “a fungio comunicativa [..] € reduzida a0 minimo”, ¢ que “a poesia é a linguagem na sua funcio estética’, como se as outras fungdes puclessem ser esquecidas.”” A literariedade (a desfamiliarizagio) nao resulta da ut de elementos lingiisticos proprios, mas de uma organi diferente (por exemplo, mais densa, mais coerente, plexa) dos mesmos materiais lingtifsticos cotidianos. Em outras Palavras, nao € a metifora em si que faria a literariedade de um a texto, man uma rede metaforiea mais cet que produz o interesse do leitor. mesmo esse critério flexivel moderado de ade € refutavel. Mostrar contra-exemplos € facil. Por (05 textos literarios no se afastam da linguagem, do que a auséneia de marca é, el que © ctimulo da desfamiliarizagao é a fami a (ou 0 cimulo da obscuridade, a insignificadncia), mas ‘dade no sentido restrito, como tragos especificos ou flexiveis, como organizacio especifica, nao é nenos contradit6ria. Por outro lado, mio somente os tragos considerados mais literarios se encontram também na lingua- n nio literdria, mas ainda, as vezes, sto nela mais vi is densos que na linguagem literéria, como € 0 caso da publicidade. A publicidade seria entao o maximo da literatura, © que nao é, entretanto, satisfat6rio. Seria, pois, toda a lite- ura o que a literariedade dos formalistas caracterizou, ou somente um certo tipo de literatura; a literatura por exceléncia, de seu ponto de vista, isto é, a poesia, e ainda nao toda poesia, mas somente a poesia moderna, de vanguarda, obs- cura, dificil, desfamiliarizante? A literariedade definiu o que se chamava outrora licenga poética, nio a literatura. A menos que Jakobson, quando descreveu a fungio poética como énfase na ‘mensagem, tenha pensado nao somente na forma da mensagem, como de um modo geral compreendemos, mas também no seu contetido. O texto de Jakobson sobre “A Dominante” deixava bastante claro, entretanto, que a idéia da desfat a ca séria, que suas implicagdes eram também éticas € p Sem isso, a literariedade parece gratuita, decorativa, Kidica, A literariedade, como toda definigio de literatura, compro- mete-se, na realidade, com uma preferéncia extraliterdria. Uma avaliagao (um valor, uma norma) esta inevitavelmente inclufda em toda definicao de literatura e, conseqtientemente, ‘em todo estudo literati. Os formalistas russos preferiam, B smpre preferéncia (um preconceito) erigiclo em universal (por exemp! a desfamiliarizacao). Mais tarde, 0 estruturalismo em geral, 4 postica e a narratologia, inspirados no formalismo, dev valorizar do mesmo modo 0 desvio e a autoconsciéncia literdtia, em oposicio A convencio ¢ ao realismo. A distingao Proposta por Barthes, em /Z, entre o legivel (realista) € 0 escriptivel (lesfamiliarizante), € também abertamente valo- rativa, mas toda teoria repousa num sistema de preferéncias, consciente ou nao. Mesmo Genette devia finalmente reconhecer que a liter: riedade, segundo a acepeao de Jakobson, nio recobria senaio ‘uma parte dla literatura, seu regime constitutivo, nao seu regime condicional, ¢, além disso, do lado da literatura dita consti- tutiva, somente a dicedo (a poesia), nao a ficedo (narrativa ou dramitica). Dai inferia, renunciando as pretensdes do formalismo e do estruturalismo, que “a literariedade, sendo um fato plural, exige uma teoria pluralist constitutiva — ela prépria heterogénea e justaposta 2 poesi (em nome de um critério relativo & forma da expressao), 3 fiegio (em nome de um critério relativo a forma do contetido) —, nalmente literri histéria, até 0 Cédigo Civil), anexada ow nao a literatura, a0 sabor dos gostos indi- viduais e das modas coletivas. “O mais prudente”, concluia Genette, “6, pois, aparente e provisoriamente, atribuir a cad: ‘um sua parte de verdade, isto é, uma porgao do campo lite- ratio’. Ora, esse provis6rio tem tudo para durar, porque ndo hd esséncia da literatura, ela € uma realidade comple: heterogénea, mutavel. LITERATURA E LITERATURA Ao procurar um critério de literariedade, caimos numa @ que a filosofia da linguagem nos habituou. A defini¢aio de um termo como literatura nao oferecer mais que o conjunto “ za, sem reme- exto de origem, Presume-se iplicagio, sua pertinéncia) nio se enunciagao inicia. uma sociedade discurso sobre esses textos, mas deverd ser aquele c dade 6 atestar, ou contestar, sua incluso na literatura. dle origem nao tem a mesma pertinéncia que para outro: que toda anilise que tem por objeto reconstruir ircunstincias originais da composicao de um texto lite- ‘rio, a situacao hist6rica em que o autor escreveu esse texto recepcao do primeiro pablico pode ser interessante, mas nao pertence ao estudo literirio. O contexto de origem (eratura, revertendo 0 proceso que ivamente independente de seu contexto de origem), Tudo © que se pode dizer de um texto literdrio nao per tence, pois, ao estudo literdrio, O contexto pertinente par © estudo literdrio de um texto literdrio nio € 0 contexto de origem desse texto, mas a sociedade que faz dele um uso iterario, separando-o de seu contexto de origem. Assim, a critica biogrifica ou sociol6gica, ou a que explica a obra pela tradicao literria (Sainte-Beuve, Taine, Bruneti@re), todas elas variantes da critica histérica, podem ser consideradas exteriores 2 literatura, Mas se a contextualizacao histérica nao é pertinente, 0 estudo lingiiistico ou estilistico 0 seria mais? A nogio de estilo pertence linguagem corrente € é preciso primeiro refind-la (ver Capitulo V). Ora, a busca de uma definicao de estilo, tanto quanto de literatura, € inevitavelmente polémica. Ela repousa sempre sobre um invariante da oposi¢ao popular 45 significagao: sua pertinénci literdria. Nenhuma diferenga de citirio € um soneto de Shakespeare, a nao ser a complexi Retenhamos disso tudo o seguinte: a literatura € uma inevi- tavel peticio de principio. Literatura é literatura, aquilo que as autoridades (os professores, os editores) incluem na tura, Seus limites, as vezes se alteram, lentamente, modera- damente (ver Capitulo VII sobre o valor), mas € impossivel passar de sua extensio & sua compreensio, do c4none a esséncia, Nao digamos, entretanto, que nao progredim« porque o prazer da caca, como lembrava Montaigne, nao é a captura, e 0 modelo de leitor, como vimos, € 0 cacador. 0 AUTOR is controvertido dos estudos literdrios € o lugar é \do, tio veemente, que oso de ser abordado (seri também 0 capitulo |. Sob o nome de intengao em geral, é o papel do »s interessa, a relagao entre o texto € seu autor, «le do autor pelo sentido e pela significacao, Ho texto. Po s correntes, a antiga € op6-las e elimind-las, ou conservar ambas, nte A procura de uma conclusdo aporética, A antiga rrente identificava o sentido da obra a intengio do habitualmente no tempo da filologia, do pos icismo. A idéia corrente moderna (¢ ademais os New Critics americanos, 0 estruturalismo francés na. Os New Critics falavam de intentional fallacy, 10 intencional”, de “erro intencional”: 0 recurso & 10 de intengao Ihes parecia ndo apenas indtil, mas preju- 4108 estudos literirios. © conflito se aplica ainda aos ios da explicacao literaria como procura da intencao lor (deve-se procurar no texto o que o autor quis dizer), eptos da interpretacdo literdria como descricao das ces da obra (deve-se procurar no texto o que ele independentemente das intengdes de seu autor). Para 1 dessa alternativa conflituosa € reconciliar os irmaos (0S, uma terceira via, hoje muitas vezes privilegiada, 1.0 leitor como critério da significacao literaria: € uma ‘orrente contemporanea a que voltarei no Capitulo IV, mas arei tanto quanto possivel d de lado. no momento. Uma introducao teoria da literatura pode limitarse a explorar um pequeno nimero de nogdes em torno das quais a humanismo e o indi eliminar dos estudos nbém porque si mitica arrastava consigo todos os outros anticonce teoria literdria. Assim, a importincia atribuida as qu: especiais do texto literario (a literariedade) é inversamente proporcional & aco atribuida a intengao do autor. Os proce- dimentos que insistem nessas qualidades especiais conferem ‘um papel contingente ao autor, como os formalistas russos 08 New Critics americanos, que eliminaram 0 autor para asse- gurar a independéncia dos estudos literirios em relacao A historia e a psicologia. Inversamente, para as abordagens que fazem do autor um ponto de referéncia central, mesmo que variem o grau de consciéncia intencional (de premeditagao) ‘que governa o texto, ¢ a maneira de explicitar essa consciéncia (alienada) — individual para os freudianos, coletiva para os marxistas —, 0 texto nao € mais que um veiculo para chegar-se 40 autor. Falar da intengio do autor ¢ da controvérsia da qual nunca deixou de ser 0 objeto € antecipar em muito as outras nogdes que serio examinadas em seguic: Nao vejo melhor iniciacao a esse delicado debate do que apresentar alguns textos guias. Citarei trés. O prdlogo bem conhecido de Gargantua, no qual Rabelais parece primeiro hos encorajar a procurar o sentido oculto (o “mais alto sen- ido”, altior sensus) de seu livro, segundo a antiga doutrina da alegoria, depois zombar dos que acreditam nese método medieval que permitiu decifrar sentidos cristios em Homero, Virgilio e Ovidio — a menos que Rabelais remeta o leitor & sua pr6pria responsabilidade por suas interpretagdes, even- tualmente subversivas, do livro que tem em maos. Nem sempre houve acordo sobre a intencao desse texto capital sobre a tengo, prova de que a questio é sem saida. Em seguida, © Contre Sainte-Beuve (Contra Sainte-Beuvel, de Proust, porque esse titulo deu seu nome moderno ao problema da intengiio na Franca: nele Proust defende a tese, contra Sainte-Beuve, que a biografia, o “retrato literirio”, ndo explica a obra, que € 0 produto de um outro eu que nao o eu social, de um eu profundo irredutivel a uma intengio consciente. Veremos, no Capitulo IV, sobre o leitor, que as teses dle Proust abalariam 4a textos diferentes, cujos sentidos podem mesmo contextos € as intengdes nao so as mesmas, ot nos estudos literérios tradicionais tinha uma ampla aprovacio. Mas ao afirmar que o autor € indiferente no que se refere a significagio do texto, a teoria nio teria levado demais a légica, e sacrificado a razio pelo prazer de bela antitese? E, sobretudo, nao teria ela se enganado € sempre fazer conjeturas sobre uma intengio humana em ato? A ‘TESE DA MORTE DO AUTOR Partamos de duas teses em presenca, A tese intencionalista € conhecida, A intengdo do autor € 0 critério pedagégico ou académico tradicional para estabelecer-se sentido literitio. Seu resgate é, ou foi por muito tempo, o fim principal, ou mesmo exclusivo, da explicagao de texto. Segundo 0 precon- ceito cortente, 0 sentido de um texto € 0 que o autor desse texto quis dizer. Um preconceito nao € necessariamente despro- vido de verdade, mas a vantagem principal da identificagao lo sentido 2 intengio 6 a de resolver 0 problema da interpre- taco literdria: se sabemos 0 que 0 autor quis dizer, ou se podemos sabé-lo fazendo um esforgo — € se nao o sabemos € porque nio fizemos esforgo suficiente —, nao € preciso interpretar 0 texto. A explicago pela intengao torna, pois, a critica literiria inttil Cera o sonho da historia literria). Além disso, a prépria teoria torna-se supérflua: se 0 sentido € inten- cional, objetivo, histérico, nao ha mais necessidade nem da critica, nem tampouco da critica da critica para separar os criticos. Basta trabalhar mais um pouco e ter-se-A a solucio, A intengio, € mais ainda o proprio autor, ponto de partida habitual da explicagio literdria desde 0 século XIX, consti tuiram o lugar por exceléncia do conflito entre os antigos (a 9 (Orla litera essenta, Foucault pronut 1969, intitulada *Qu’Est-ce qu'un A\ € Barthes havia publicado, em 1968, bistico, “La Mort de L’Auteus” [A Morte do Autor aos olhos de seus partidrios, assim como de seus adver slogan anti-humanista da ciéncia do texto. Tod literdrias tradicionais podem, alias, ser remetidas a nogao de intengao do autor, ou dela se deduzirem. Assim também, todos 0 anticonceitos dla teoria podem partir da morte do autor. Afirmava Barthes: © autor & um personagem moderno, produto, sem divid nossa sociedade, na medida em que, ao sair da Idade Mé& ‘com 0 empirismo ingles, o racionalismo francés, e a f& pesso: se diz mais nobremente, da “pessoa humana’ Esse eta 0 ponto de partida da nova critica: 0 autor no era senao o burgués, a encamagio da quintesséncia da leologia capitalista, Em torno dele se organizam, segundo Barthes, 05 manuais de hist6ria literiria e todo 0 ensino da literatura: “A explicagdo da obra é sempre procurada do lado de quem 2 produziu”,* como se, de uma maneira ou de outra, a obra fosse uma confiss4o, nto podendo representar outra coisa que nao a confidéncia. tura por Mallarmé, Valéry, Proust, pelo surrealismo, e, enfi pela lingtistica, para a qual “o autor nunca é mais que aquele que escteve, assim como ew nao € outro senao o que diz eu’? assim como Mallarmé jf pedia “o desaparecimento elocut6rio do poeta, que cede a iniciativa as palavras’.* Nessa compa- aco entre 0 autor e © pronome da primeira pessoa reconhe- ce-se a reflexio de Emile Benveniste sobre “La Nature des Pronoms” {A Natureza dos Pronomes] (1956), que teve uma grande influéncia sobre a nova critica. O autor cede, pois, o lugar principal 4 escritura, ao texto, ou ainda, ao “escriptor", que nao é jamais sendo um *sujeito” no sentido gramatical ou linguistico, um ser de papel, nao uma “pessoa” no sentido 50 a’, “pintar” 2 sua enunciagao, € que ela, 10 tém origem. Sem origem, “o ": a nogao de intertextualidade la morte do autor. Quanto & explicacio, © autor, pois que nao ha sentido tnico, io, no fundo do texto. Enfim, dltimo elo ma que se deduz inteiramente da morte do autor: of, € nao o autor, € o lugar onde a unidade do texto se no seu destino, nao na sua origem; mas esse leitor mais pessoal que 0 autor recentemente demolido, e ele também a uma fungio: ele € “esse alguém que Jos, num tnico campo, todos os tracos de que 6 constituida a escrita’? Como se vé, tudo se mantém: 0 conjunto da teoria lit le ligar-se a premissa da morte do autor, como a qualquer jutro de seus itens; mas a morte do autor € o primeiro, porque le mesmo se opde 0 primeiro principio da histéria lite- Quanto a Barthes, ele Ihe confere ao mesmo tempo a tonalidade dogmatica: “Sabemos agora que um texto...", € "Agora no somos mais vitimas de...". Como previsto, teoria coincide com uma critica da ideologia: a escritura ou © texto “libera uma atividade que poderfamos chamar de contrateol6gica, propriamente revolucionatia, pois recusar deter 0 sentido é, finalmente, recusar Deus € suas hipéstases, a razao, a ciéncia, a lei’.* Estamos em 1968: a queda do autor, que assinala a passagem do estruturalismo sistematico 20 p6s-estruturalismo desconstrutor, acompanha a rebelio anti- iia da primavera, Com a finalidade de, ¢ antes de exe- cutar 0 autor, foi necessirio, no entanto, identifi viduo burgués, & pessoa psicol6gica, e assim reduzir a questo do autor a da explicagio do texto pela vida e pela biografia, restrigdo que a hist6ria literdria sugeria, sem divida, mas que nao recobre certamente todo problema da intengio, € nie © resolve em absoluto. Em “O que E um Autor?”, o argumento de Foucault parece depender, também ele, da confrontacao conjuntural entre a historia literdria € 0 positivismo, donde the vieram criticas 51 maneira como tratava 8 Homes proprios & Os noMes Les Mots et les Choses \As vagas que a obra de fulano ou b Assim, apoiando-se na literatura moder ouco a pouco o desaparecimento, o enfraquecimento do autor, de Mallarmé — “admitido que 0 volume nao traz nenhum signatério” — a Beckett ¢ a Maurice Blanchot, ele define “fungio autor” como uma construgio hist6rica e ideologica, como a projecdo, em termos mais ou menos psicologizante: do tratamento que se da ao texto. E certo que a morte do , como conseqiiéncia, a polissemia do texto, a pro- mogio do leitor, € uma liberdade de comentirio até entao descomheci de uma verdadeira reflexao sobre a natureza das relagdes de intencao e de interpretagao, nao é | do leitor como substituto do autor de que se es Para que a p6s-teoria nao seja um retorno a pré-teoria, & preciso também sair da especularidade da nova eri histéria literaria que marcaram essa controvérsia, e permi- tiram reduzir o autor a um principio de causalidade e a um testa-de-ferro, antes de climini-lo. Liberado dese confronto magico € um pouco ilusério, parece mais dificil guardar autor numa loja de access6rios. Do outro lado da intencio 1 do autor ha, na verdade, a intencao. Se € possivel que o | autor seja um personagem moderno, no sentido socioldgico, © problema da intengao do autor nao data do ri mo, do empirismo e do capitalismo. Ele é muito antigo, sempre esteve presente, € nao € facilmente solucioniivel. No fopos da morte do autor, confunde-se o autor biogrifico ou so l6gico, significando um lugar no cinone hist6rico, com 0 autor, no sentido hermenéutico de sua intengao, ou intencio- nalidade, como critério da interpretag2o: a “fungao do autor” de Foucault simboliza com perfeigao essa redugao. Depois de termos lembrado como a retérica tratava a inten- lo, veremos que essa questio foi profundamente renovada pela fenomenologia e pela hermenéutica. Se hi uma tal conso- nancia na critica dos anos sessenta sobre o tema da morte do autor, ela nao seria 0 resultado da transposigao do problema hermenéutico da intencio € do sentido, nos termos muito simplificados e mais facilmente negociaveis, da historia literiria? 52 a VOLUNTAS ® ACTIO — sobre 0 autor — € muito antigo, bem anterior aos tempos smo do pensamento da linguagem, losofia ocidental. Na ver- jsta dé um peso ao intencionalismo, mas a ntemporinea de dualismo nem por isso resolve intengo. O mito da invengio da eseritura no latdo afirma que a ese distante da palavra como a palavra (logos) € distante mento (dianoia). Na Poética de Aristételes, a dua contetido e da forma esta no principio da separacio a historia (muthos) e sua expressio (lexis). Enfim, toda Ao ret6rica distingue a inventio (busca das idéias), € clocutio Cemprego das palavras), ¢ as imagens que acentuam, posi so numerosas, como as do corpo e da roupa. isses paralelismos sto mais embaragosos que esclarecedores, is que fazem deslizar a questao da intengao para o estilo. A ret6rica clissica, em razao do quadro judiciério de sua pritica original, nao podia deixar de fazer uma distingao prag- itica entre intenedo e ado, como sugere Kathy Eden na Hermeneutics and the Rhetorical Tradition {A Hermenéutica © a Tradigao Ret6rica] (1997), obra a qual muito devem as istingBes que se seguem. Se tendemos a esquecé-la, é porque ‘onfundimos habitualmente os dois principios hermenéuticos istintos — na teoria, se nao na pritica — sobre os quais se fundamentava a interpretatio scripti, principios que ela ex- twaiu da tradicao ret6rica: um principio juridico e um principio stilistico Segundo Cicero © Quintiliano, os ret6ricos que deviam explicar textos escritos recorriam habitualmente & diferenca juridica entre intentioe actio, ou voluntas e scriptum ho que conceme a essa acao particular que € a escritura (Cicero, Do Orador, I, wu, 244; Quintiliano, Instituigdes Ora- {6rias, VII, x, 2). Mas a fim de resolver essa diferenca de origem juridica, esses mesmos retéricos adotavam habitualmente um método estilistico, € procuravam nos textos ambigiii- dades que thes permitissem passar do scriptum a voluntas. as 3 terpretadas Como seriptum, O autor eng to estilo e 8 vere ¢ disting2o juridica — voluntas e scriptum — ‘uma distingao estilistica — sentido proprio e sentido fig Mas sua coincidéncia na pratica nao deve nos deixar ignorar que se trata de dois principios diferentes em teoria. Santo Agostinho repetira essa diferenga de tipo juridico entre © que querem dizer as palavras que um autor uti Para exprimir uma intencao, isto €, a significaclo seméntica, € 0 que o autor quer dizer utilizando essas palavras, isto €, a intencao dianoética. Na distingio entre o aspecto lingifstico © aspecto psicol6gico da comunicacao, sua preferéncia recai, conforme todos os tratados de ret6rica da Antigtiidade, na intengao, privilegiando assim a voluntas de um autor, por opesigao ao scriptum do texto. Em A Doutrina Crista (1, XII, 12) Agostinho aponta o erro interpretative que consiste em preferir 0 scriptum & voluntas, sendo sua relagao aniloga 2 da alma (animus), ou do espirito (spiritus), e do corpo do qual sto prisioneiros. A decisio de fazer depender herme- neuticamente 0 sentido da intengio nao é, pois, em Santo Agostinho, senilo um caso particular de uma ética subordi- nando 0 corpo € a carne ao espirito ou a alma (se 0 corpo tho deve ser respeitado € amado, nao é por ele mesmo). Agostinho toma o partido da leitura espiritual do texto, contra a leitura carnal ou corporal, ¢ identifica 0 corpo com a letra do texto, a leitura carnal com a da letra. Entretanto, assim como © corpo merece respeito, a letra do texto deve ser preser- vada, nao por si mesma, mas como ponto de partida da inter- Pretagio espiritua A distingao entre a interpretacio segundo a carne e a inter- pretagao segundo 0 espirito nao é propria de Agostinho, que assumiu 0 bindmio paulino da letra e do espirito — a letra mata, mas 0 espirito vivifica —, que é de origem e de natureza no estilisticas, mas juridicas, como na tradligao ret6rica. Sa0 Paulo nao faz sendo substituir o par ret6rico grego rheton e dianoia, equivalente do par latino scriptum e voluntas, pelo Par gramma e pneuma, ou letra ¢ espirito, mais familiar aos judeus aos quais se dirige? Mas a distingao entre a letra e espirito, em Sio Paulo, ou ainda entre a interpretacao corporal © interpretagiio espiritual, em Santo Agostinho, que tendemos 54 espirito sob a letra, e interpretagio figurativa, de tipo es procurando 6 sentido figurado a0 lado do sentido o. Entretanto, mesmo se empiricamente o cruzamento nterpretagio espiritual e da interpretacio figurativa & as vezes realizado em Agostinho, teoricamente, e contra- nés, ele ndo reduz um tipo de interpretacao a0 outro, » identifica nunca a interpretagao espiritual com a inter retacdo figurativa; ndo confunde a distingao juridica entre a letra © 0 espirito — adaptagao crista de seriptum e voluntas, ou actio € imtentio— com a distingao estilistica entre o sentido eral (significatio propria) e o sentido figurado (significatio translata). Somos n6s que, utilizando a expressio sentido Jneral de maneira ambigua, 10 mesmo tempo para designar 0 sentido corporal oposto ao sentido espiritual, e o sentido proprio ;posto ao sentido figurado, confundimos uma distingao juri- Chermenéutica) e uma distingao estilistica (semantic). Agostinho, como Cicero, mantém pois uma firme separagaio entre a distingao legal do espirito € da letra (ou came), € a listingdo estilistica do sentido figurado € do sentido literal (ou préprio), mesmo que sua propria pritica hermenéutica isture com frequéncia os dois principios de interpretagio, A tradigao ret6rica situa as duas principais dificuldades da interpretagio dos textos, por um lado, na distincia entre o texto € a intengo do autor, por outro, na ambigtidade ou ‘obscuridade da expresso, seja ela intencional ou nao. Pode- riamos ainda dizer que o problema da intencao psicolégica (letra versus espirito) refere-se mais particularmente & primeira parte da ret6rica, a inventio, enquanto que o problema da obscuridade semantica (sentido literal versus sentido figurado) refere-se mais particularmente a terceira parte da retorica, a elocutio. 35 ‘Tendo perdido de vi tenclemos, na interpretagao © problema da intenc20 ao do estilo. O' € 0 que chamamos tradicionalmente de alegorie? A interpre- tagio alegorica procura compreender a intengao oculta de um. texto pelo deciframento de suas figuras. Os tratados de ret6- rica, de Cicero a Quintiliano, nao sabiam nunca onde col a alegoria. Ao mesmo tempo figura de pensamento € tropo, mas tropo em muitas palavras (metifora prolongada segundo a definicao habitual), ela € equivoca, como se flutuasse entre a primeira parte da ret6rica, a inventio, remetendo a uma questo de intengao, e a terceira parte, a elocutio, remetendo a um problema de estilo. A alegoria, por intermédio da qual toda a Idade Média pensou a questo da intengio, repousa, na realidade, na superposigio de dois pares (e de dois prin- cipios de interpretacio) teoricamente distintos, um juri outro estilistico. A alegoria, no sentido hermenéutico tradicional, € um método de interpretacao dos textos, a maneira de continuar a explicar um texto, uma vez que esti separado de seu contexto original e que a intencio do seu autor nao é mais reconhecivel, se & que ela ji 0 foi.” Entre os gregos, a alegoria tinha por nome byponoia, considerada como 0 sentido oculto ou subter- raneo, percebido em Homero, a partir do século VI, para uma significacao aceitivel aquilo que se tornara estranho, € para desculpar © comportamento dos deuses, que pareci doravante escandaloso. A alegoria inventa um outro sentido, cosmol6gico, psicomantico, aceitivel sob a letra do texto: el sobrepde uma distingao estilistica a uma distingao juridl Trata-se de um modelo exegético que serve para atualizar um texto do qual estamos distanciados pelo tempo ou pelos costumes (de qualquer forma, pela cultura). N6s nos reapro- priamos dele, emprestando-Ihe um outro sentido, um sentido oculto, espiritual, figurativo, um sentido que nos convém atualmente. A norma da interpreta aleg6rica, que permite separar boas e mas interpretagdes, nao € a intengao original, € 0 decorum, a conveniéncia atu: A alegoria & uma interpretagio anacrénica do passado, uma leitura do antigo, segundo 0 modelo do novo, um ato 56 Média, A alegoria € um instrumento todo poderoso para inferir n sentido nove num texto antigo. nece, entretanto, a inevitivel questao da intencao, iro juridico € do registro esti ‘© que Homero queria dizer? Homero teria em mente idade dos sentidos que as geragdes posteriores deci- n na Iliad Para o Antigo Testamento, © cristianismo, 10 do livro revelado, resolveu a dificuldade pelo dogma inspiragao divina dos textos sagrados. Se Deus guiou a 1o do profeta, entio € legitimo ler na Biblia outra coisa que que seu autor instrumental e humano quis ou pensou er. Mas 0 que dizer dos autores da Antigdidade, aqueles Dante colocou no limbo, no inicio do “Inferno”, porque, mo que nao tenham vivido antes do nascimento do Cristo, ‘obras nao eram incompativeis com o Novo Testamento? esse dilema que Rabelais aborda no prologo de Gargantua, encorajando, primeiro, a interpretar seu livro “no mais alto sentido", conforme a imagem do osso ¢ da medula, do habito que nao faz o monge, ou da feitra de Sécrates, em seguida recomendando, depois de abruptamente mudar de direcio, anter-se perto da letra: “Pensais vés, em vossa fé, que Homero, escrevendo a Ilfada e a Odisséia tenha pensado nas alegorias que Ihe atribuiram Plutarco, Hericlides do Ponto, Eustiquio, Phornute?” Nao, diz.ele, Homero no pensara nisso, nao mais que Ovidio em todas as prefiguragdes do cristianismo que encontramos nas Metamorfoses. Entretanto, Rabelais nao critica aqueles que Iéem um sentido cristio na Ilfada ou nas ‘Metamorfoses, mas somente aqueles que pretendem que Homero ou Ovidio haviam posto esse sentido cristio nas suas obras. Em outras palavras, aqueles que lerem em Gargdntua um sentido escandaloso, como aqueles que encontrarem um sen- tido cristio em Homero ou Ovidio, serao responsaveis por isso, mas no o préprio Rabelais. Assim, para se liberar da 7 ali deixar. Alifs, relendo-se, ele acaba descobrindo s que ele mesmo desconhecia. Mas se Rabelais e Montaigne, como os antigos ret6ricos, entre eles Cicero e Agostinho, desejavam, ainda que cum grano salis, que a intengio fosse distinguida da alegoria, esta ainda viveria belos dias, até 0 momento em que Spinoza, o pai da filologia, pedisse, no Tratado Teoldgico-Polttico (1670) que Biblia fosse lida como um documento hist6rico, isto é, que © sentido do texto fosse determinado exclusivamente pel relacio com o contexto de sua redacio. A compreensio em termos de intencao, como jf era o caso quando Agostinho alertava contra a interpretacao sistemtica pela figura, € funda- mentalmente contextual, ou hist6rica. A questao da intencao ea do contexto se confundem, desde entao, em boa parte. A vit6ria sobre 03 modos de interpretacao cristd € medieval no século XVII, com as Luzes, representa assim uma volta ao pragmatismo jurfdico da ret6rica antiga. O alegorismo ana- cronico parece inteiramente eliminado. Do ponto de vista racional, uma vez que Homero e Ovidio nao eram cristaos, seus textos no podiam ser legitimamente consideraclos como alegorias cristis."" A partir de Spinoza, a filologia aplicada 08 textos sagrados, depois a todos os textos, visa essenc mente prevenir 0 anacronismo exegético, fazer prevalecer a azo contra a autoridacle € a tradigo. Segundo a boa filolos a alegoria crista dos Antigos € ilegitima, o que abre caminho A interpretacdo hist6rica. J que poderiamos pensar que esse debate fora resolvido ha muito, ou que € abstrato, nao seria talvez inutil lembrar que ele ainda esta vivo, e continua a dividir os juristas, em particular 0s constitucionalistas. Na Franca, o regime nao cessou de mudar ha dois séculos, ¢ a Constituicio juntamente com ele, € a Inglaterta nao tem Constituicao escrita; mas nos Estados Unidos, todas as questdes politicas se colocam, num, ‘momento ou noutro, sob a forma de questdes legais, isto 6, de questdes sobre a interpretacao € a aplicaglo da Constituigio. 58 Assim se opdem, quanto a todos os probl dos pais fundadores, ‘ar © sentido obje- lo tinha no momento em Como sempre, as duas posicoes — sta — sao insustentavei: ceitar, numa democracia moderna, que em nome de fidelidade a intencio original, supondo-se que ela seja vel, os direitos dos vivos sejam garantidos pela auto- le dos mortos? Que 0 morto confisque o vivo, como diz velho adagio juridico? Seria necessirio, por exemplo, perpe- F 08 preconceitos raciais do final do século XVII, e ratificar + intengdes escravagistas e discriminat6rias dos redatores Constitui¢do americana? Aos olhos de muitos je, € mesmo de historiadotes, a idéia de que um texto um Gnico sentido objetivo € quimérica. Além disso, artidarios da intencao original raramente estao de acordo entre si, € a compreensio do que a Constituicao queria dizer, a origem, permanece tao indeterminada que, para cada ltemnativa concreta, 0s modemnistas podem invocar sua caucdo nto quanto os conservadores. Finalmente, a interpretacao le uma Constitui¢io, ou mesmo de todo texto, levanta nao somente uma questio histérica, mas também uma questao o sugeria FILOLOGIA E HERMENEUTICA. A hermenéutica, isto &, a arte de interpretar os textos, antiga disciplina auxiliar da teologia, aplicada até entao aos textos sagrados, tornou-se, ao longo do século XIX, seguindo a tritha dos tedlogos protestantes alemaes do século XVIII, € gracas a0 desenvolvimento da consciéncia hist6rica européia, a ciéncia da interpretagio de todos os textos e o préprio fundamento da filologia e dos estudos literirios. Segundo Friedrich 9 Rn il SEhislermtien (1768-1834), que langou as bases da herme- néutica filol6gie: elite 3 Préprio mundo, tornou-se (era 0 mesmo problema que a * de Homero reso de outra maneira), Ele determina, pois, como finalid hermenéutica, restabelecer a significagio primei obra, uma vez que a literatura, como a arte em geral, est Hienada de seu mundo de origem: a obra de arte, escreve ele, “deve uma parte de sua inteligibilidade A sua primeira destinacao”, donde se segue que “a obra de arte, arranc de seu contexto primeiro, perde sua significagto, se esse contexto nao for conservado pela hist6ria”."* Segundo es doutrina romantica e historicista, a verdadeita significagto d uma obra é a que ela possufa em sua origem: compreendé-la € reduzir os anacronismos alegéricos e restituir essa origem. Como escreve Hans-Georg Gadamer: Restabelecer o mundo" a0 qual pertence, rest inal tina“ de tomar com re lo de uma obra de ante © proteyé-ta incompreensio, e de una atvalizaio falsa. [=] © saber hist ade de resitir 0 que cai perdido © de igo, na medida em que el d vida oesstonal € 20 original. Todo esforgo hermentutio co " reencontar 0 “ponte de ancoragem® no espa do aria, Galen melo de tomar plenamente compreensivel 9 signfeagio de uma obra de arte. " 7 a Assim resumido, 0 pensamento de Schleiermacher representa a posigio filolégica (ou antitedrica) mais sélida, ceterminando rigorosamente a significacao de uma obra pelas condigées as quais ela respondeu em sua origem, e sua compreensao Pela reconstrugio de sua producao original. Segundo esse Principio, a historia pode, e deve, reconstituir 0 contexto original; a reconstrugio da intengao do autor & a condigaio necessaria e suficiente da determinago do sentido da obr: Do ponto de vista do fil6logo, um texto nao pode querer dizer, ulteriormente, 0 que nao podia querer dizer original- ‘mente. Segundo o primeiro cnone imposto por Schleiermacher cy part a interpretagho, no seu resumo de 1819: “Tudo © que, univoca a lingua seu primeiro publico, ocupa o centro da |. Mas nem por isso € preciso considerar os sugerir sentidos cristios. Eles colocavam, no entanto, a hipdtese de uma intengio superior & clo autor ou em todo caso, nao supunham que tudo num texto pudesse explicado exclusivamente pelo contexto hist6rico comum tutor € a seus primeiros leitores. Ora, esse principio aleg6- rico € mais podetoso que 0 principio filol6gico que, privile- giando exclusivamente 0 contexto original, chega a negar que ‘um texto signifique o que nele lemos, isto é, 0 que ele signi ficou ao longo da historia. Em nome da hist6ria, e paradoxal- mente, a filologia nega a € a evidéncia de que um texto possa significar 0 que ele significou. essa premissa da filologia — uma norma, uma escolha ética, nto uma proposicao necessariamente deduzida — que © movimento da hermenéutica viria a desmontar pouco a pouco. Como seria possivel, na realidade, a reconstrugio da intengao original? Schleiermacher — era esse seu romantismo —descrevia um método de simpatia, ou de adivinbacao, mais, tarde chamado de circulo hermenéutico (Zirkel im Versteben), segundo o qual, diante de um texto, o intérprete levanta primeiro uma hip6tese sobre seu sentido como um todo, em seguida analisa o detalhe das partes, depois volta a uma compreensiio modificada do todo. Esse método supe que exista uma relagio orginica de interdependéncia entre as partes € 0 todo: nao podemos conhecer o todo sem conhecer as partes, mas no podemos conhecer as partes sem conhecer o todo que determina suas funcdes. Tal hipétese € problemitica (nem todos os textos so coerentes, ¢ os textos modernos 0 sio cada vez menos), mas esse nao € ainda 0 paradoxo mais embaragoso. O método filolgico postula, com efeito, que 0 circulo hermenéutico pode preencher a distancia hist6rica entre 0 presente (0 intérprete) € 0 pasado (0 texto), corrigir, a =" pela confrontago entre ay partes, um ato inieial de empatia mesmo tempo, como como um didlogo do presente com 0 uma s6 vez, simultinea e identicamente, Gracas a0 hermenéutico, a compreensio liga um sujeito a um esse cfrculo, metédico como a davida cartesiana, se desvanece quando 0 sujeito chega 4 compreensio completa do objeto Depois de Schleiermacher, Wilhelm Dilthey (1833-1911) rebai- xara a pretensio filolégica exaustiva, opondo A explicacao, ‘que 6 pode ser atingida pelo método cientifico aplicado aos fendmenos da natureza, a compreensdo, que seria o fim mais modesto da hermenéutica da experiéncia humana, Ui pode ser compreencido, mas nao poderia ser explicado, por ‘exemplo, por uma intengio. A fenomenologia transcendental de Husserl, posterior- mente, a fenomenologia hermenéutica de Heidegger, minaram ainda s essa ambicio filol6gica, e tomaram possivel a eclosio ca que se seguiu. Com Edmund Husserl (1859-1938), a substituicio do cogito cartesiano, enquanto consciéncia reflexiva, presenca a sie disponibilidade ao outro, pela inten- cfonalidade, como ato de consciéncia que € sempre consciéncia de alguma coisa, compromete a empatia do intérprete que era a hipotese do circulo hermenéutico. Em outras palavt © circulo hermenéutico nao € mais “metédico”, mas condiciona 4 compreensio, Se toda compreensio supde uma antecipacao de sentido (a pré-compreensio), quem deseja compreender ‘um texto tem sempre um projeto sobre esse texto, € aco repousa numa pressuposi¢ao. Com Ma (1889-1976), essa intencionalidade fenomenolégica é, além disso, concebida como hist6rica: nossa pré-compreensio, inseparavel de nossa existéncia ou de nosso estar-ai (Dasein), nos impede de escapar A nossa propria situagio hist6rica para compreender 0 outro. A fenomenologia de Heidegger est ainda fundamentada no principio hermenéutico da circu dade e da pré-compreensio, ou da antecipagio do sentido, ‘mas 0 argumento, que faz de nossa condigao hist6rica a pressu- posigio de toda experiéncia, implica que a reconstrugio do passado tornou-se impossivel. “O sentido”, afirma Heidegger, e +6 aquilo sobre © que pressupostos dle a em fungio de ‘bre a projegio estruturada pelos igdes, de intengdes & e Wel de ser entendic npatia posto, ¢ o circulo hermenéutico tornou-se um circulo cioso ou fatal —, pois Heidegger rejeitava expres- -ativos em Etre et Temps [Ser ¢ Tempol ‘culo um circulo vicioso € espreitar os meios de 1 é nao compreender, de ponta a ponta o que € © niler")® —, pelo menos inelutivel e intransponivel, compreensio nio escapa mais ao preconceito rico, © citculo nao se dissolve mais depois que 0 texto foi compreendido; ele nao é mais *hiperbélico”, mas pertence 3 propria estrutura do ato de compreender: “E, a0 contritio, eecreve ainda Heidegger, a expressio da estrutura existencial ia do proprio Dasein."” A fitologia nem por isso deixou de ima quimera, ji que no podemos nunca esperar sair de seu “prio mundo onde estamos encerrados como numa bolha. Nem Husserl nem Heidegger tratam especialmente da inter- ‘40 dos textos literirios, mas depois do seu questiona- to sobre o circulo filolégico, Hans-Georg Gadamer retomou, vz de suas teses, em Vérilé et Méthode (Verdade ¢ Método] (1960), as questdes tradicionais da hermenéutica desde Schleiermacher. Qual é 0 sentido de um texto? Qual é a pert: néncta do sentido de intencio do autor? Podemos compreender textos que nos sio estranhos historicamente ou culturalmente? ‘Toda compreensio depende da nossa situagio histGrica? srornae da al . que fizemos retot iia ‘Uma atividade hermenéutica para a qual a compreensi Significaria restauragio do original nlo seria seno transmlssio de um sentido ent Para uma hermenéutica pés-hegeliana, pois, nao hit mais primado da primeira recepcio, ou do “querer-dizer” do autor, por mais amplo que seja o termo. De qualquer forma, este “querer-dizer” e essa primeira recep¢io nao restituiriam nada do real para nos. 6 = Segundo Gadamer, « signifieagho de um texto no ergo haviam previsto. Toda interpretacdo € contextual, dependente de critérios relativos a0 contexto onde ela ocori seja possivel conhecer nem compreender um texto em mesmo. Depois de Heidegger, extinguiu-se, pois, a herme- néutica, segundo Schleiermacher. Toda interpretacio é entio concebida como um diilogo entre passado e presente, ou uma dialética da questo e da resposta. A distincia temporal entre 0 intéxprete € 0 texto nao precisa ser preenchida, nem para explicar nem para compreender, mas com o nome de el e produtivo da interpretagio: esta, como ato, por um lado, faz o intérprete ter iéias antecipadas, e por outro, preserva © pasado no presente. A resposta que o texto oferece depende fsao de horizontes torna-se um trago inel consciéncia de suas com sua propria histé O livro de Gadamer s6 foi traduzido em francés muito tarde, em 1976, e parcialmente. Tirando as conseqiiéncias da met terpretacao dos textos, ele se fazia contemporineo do debate francés sobre a literatura dos anos sessenta e setenta, tanto mais que terminava relacio- nando a hermenéutica da questio e da resposta a uma con- cepeao da linguagem como meio e interacao, em oposigio & \strumento servindo & expresso de um querer-dizer anterior. Até entio, a hermenéutica fenomeno- l6gica nao havia considerado problemitica a linguagem, sustentava que uma significagao, aquém da linguagem, se exprimia ou se refletia por si mesma. E por isso que a nogio husserliana de “querer- (a significagao). Entretanto, podemos concordar iagio de um poema que se funda numa falsa inter- (0 (sobre um contra-senso), nao € uma avaliacao dese mas de um outro. Existem, por assim dizer, dois mens (ou duas mulheres) em cada leitor: aquele que se comove com a significagio que esse poema tem para ele, © aquele que € curiaso em relagio ao sentido do poema e iquito que seu autor quis dizer ao escrevé-lo. E essas duas libidos aves, ‘0 mesmo que amé-lo , baseado num contra- uma simples projegao de te um poema se ‘nao 0 compreendemos; Jado, é igualmente verda- deiro que nio compreendemos plenamente um poema se nto © texto tem, entio, um sentido original (o que ele quer dizer para um intérprete contemportineo) mas, também, sentidos ulteriores € anacronicos (0 que ele quer dizer para sucessivos intérpretes): ele tem uma significagdo original (ao relacionar ‘seu sentido original com valores contemporineos), mas, também, significagdes ulteriores (relacionando, a todo momento, seu sentido anacronico com valores atuais). O sentido ulterior pode icentificar-se com o sentido original, mas nada impede que dele se afaste, 0 que também ocorre com a significagao ulterior € a significagao original. Quanto 3 intengio do autor, esta no se reduz ao sentido original, mas compreende a signi ficagao original: por exemplo, 0 texto irdnico tem uma signi- ficacao original diferente (contraria) do seu sentido original. ‘A distingao entre sentido e significagao, interpretacio avaliago, segundo Hirsch, suprime a contradicao entre a tese intencionalista e a sobrevivencia das obras. Uma satira que no nos dissesse nada, que no apresentasse nenhuma relagio entre 0 seu contexto de origem e 0 nosso, nao teria mento sobre um aspecto de suas experiéncias. M: obra é inesgotivel, isso nto quer dizer que ela nio sentido original, nem que a intengio do autor critério deste sentido original. © que é inesgotvel é sua signi- ficagao, sua pertinéncia fora do contexto de seu surgimento, A maior parte dos conflitos de interpretagao parece enfatizar a intengao, nogao que the confere uma aura dramftica. Na realidade, sublinha Hirsch, a existéncia do sentido original é muito raramente posta em questao de maneira explicita, mas certos comentaristas (05 fil6logos) acentuam mais o sentido original, e os outros (0s criticos), a significagao atual. Ninguém ou quase ninguém prefere, expressamente, um sentido anacrd- nico a um sentido original, nem rejeita, com conhecimento de uma informagio que esclarecesse o sentido original ‘itamente, todos 03 comentaristas (ou quase todos) admitem a existéncia de um sentido original, mas sem evidar ‘© menor esforco para elucidé-lo. No ensino, a contradigio entre 0 interesse pelo sentido original dos textos e a preocu- pertinéncia para a formacio dos homens de hoje, contradigao entre a educagao e a instrugao, € um dado incontestivel. O professor pode insistir sobre o tempo do autor ou sobre 0 nosso tempo, sobre o outro ou sobre 0 mesmo, partindo do outro para encontrar 0 mesmo ou, inversamente, mas, sem esses dois enfoques, 0 ensino, sem div estaria completo. Na querela entre Barthes ¢ Picard estarfamos, segundo Hirsch, diante de um caso extremo: Barthes negaria qualquer interesse pelo sentido original do texto de Racine, enquanto Picard se recusaria a fazer a menor diferenga, nao somente entre sentido original e significagio atual, como também entre sentido original e significagio original (‘a intengao clara Wcida"). Parece-me, ao contririo, que mesmo esse de surdos, que atesta a divisio dos estudos Partidarios do sentido original ¢ adeptos da significagao atual, confirma que a existéncia de um sentido original permanece como pressuposto muito geral e quase consensual. 88 ee eee eee ee ee eee 1 essa afirmagio ele de Nero a Junie: ignorincia da lingua do século XVII, € corrigir seu erro sobre ‘© sentido da palavra na época: “respirar significa aqui disten- dlerse, relaxar-se [...]. A coloracao pneuménica (como diria Barthes) desaparece inteiramente.”* E Picard aconselha Barthes consultar os léxicos e 0s dlicionstios. Mas Barthes, que citava é — Furetiére seria preferivel —, atacou, por sua vez, ‘essa banalizagao da imagem: “Exige-se que se reconhega nela (na palavra respirar) apenas um cliché de época (nao € preciso sentir nenhuma respfracdo em respirar, uma vez que respirar, «quer dizer, no século XVI, relaxar-se).”® Barthes reconheceu evidentemente, o sentido original (no caso, figurado e sempre utual) de respirar Crelaxar-se"): 0 problema nao é pois o da preferéncia entre um sentido anacronico € um sentido original, mas 0 da persisténcia do sentido proprio, oculto no sentido figurado Ca coloragio pneumdnica”) e, por conseguinte, sua contribuigao a significagio original. O conflito opde, ainda uma vez, duas preferéncias, duas escolhas, éticas ou ideol6- gicas — conforme se queira qualificd-las: a tonica sobre 0 sentido original ou sobre a significagao atual. Barthes nao nega que o texto tenha um sentido original, embora este tiltimo no seja sua preocupagio principal. + A distingao entre sentido e significagdo, ou entre interpre- tacdo € avaliagdo, nao deve, pois, set levada longe demais. Se se acredita nisso, di-se um golpe indefensivel que permite triunfar dos antiintencionalistas: por mais determinados que eles sejam, sempre caem em contradi¢ao, como esses estu- dantes sofisticados que caem na armadilha de um dativo a mais CO autor nos expde..."), ou como esses te6ricos que no resistem a vontade de corrigir os contra-sensos de seus adversirios quanto As suas intengdes, ao replicar-Ihes, por 2 — mo toda oposico ficagio 6, entretanto, elemer Ela simplesmente tem a vantagem de lembrar qu (ou quase ninguém) nega a existéncia de um senti por mais dificil que seja reconhecé-lo, a vantagem de mo: que © argumento do futuro da obra nao elimina a inten lo autor como critério de interpretagao, pois ele no concerne 0 sentido original, mas 4 outra coisa, que podemos chamar, se quisermos, de ago, aplicacio, avaliago ou pertinéncia Grelevance, em inglés); em todo caso, uma outta intencao. INTENCAO NAO E PREMEDITACAO Pode-se igualmente refutar o outro grande argumento contra a intencao? Um autor, dizem, nao poderia querer dizer todas uem aos detalhes de seu texto. Qual é, ento, o estatuto intencional das signifi- cages implicitas de um texto? O New Critic americano, William, Empson (1930) descrevia o texto como uma entidade complexa de significagoes simultaneas (nao sucessivas ou exclusivas). Poderia 0 autor ter tido a intencao de todas essas significagoes € impresses que vemos no texto, mesmo que nao tivesse sido nelas ao escrevé-lo? O argumento parece definitivo. Ble €, de fato, muito frigil, ¢ numerosos sto os filésofos da linguagem que identifi e, intengdo do autor © sentido das palavras. Segundo John Austin (1962), 0 inventor do performativo, toda enunciacio engaja um ato que ele denomina ilocutério, como perguntarou responder, ameacar ou prometeretc., que transforma as relagdes entre os interlocutores. Distingamos, ainda com ele, 0 ato ilocut6rio principal realizado por uma enunciagdo e a significacao complexa do enunciado, resul- tando em implicagdes e associagdes miiltiplas de seus detalhes. Interpretar um texto literirio é, acima de tudo, identificar 0 ato ilocut6rio principal, realizado pelo autor quando escreveu tal texto (por exemplo, seu enquadramento genérico: € uma splica? uma elegia?), Ora, 08 atos ilocut6rios sio intencion: 90 rgio da mulher, ou, € farcel se tomou escritor” icio da interpretacao, Nume- nplicagdes € associacoes de detalhes que nao ‘em a intengio principal, mas cuja complexidade € ular, € que nao sio intencionais no sentido de premeditadas. Entretanto, nao € porque o autor » pensou nisso que isso niio seja o que ele queria dizer (o que tinha, longinquamente, em pensamento). A significacio ada 6, apesar disso, intencional em sua inteireza, um: vez que ela acompanha um ato ilocut6rio que é intencional. nunca sendo 0 A intencao do autor nio se reduz, pois, a um projeto nem ico integralmente consciente (‘a intencao, rae IGicida” de Picard). A arte é uma atividade intencional (no ready-made s6 permanece a intengao de fazer do objeto objeto estético), mas existem numerosas atividades intencionais que ndo sto nem premeditadas nem conscientes. Escrever, se se permite a comparaciio, nao € como jogar xadrez, ividade em que todos 0s movimentos so calculados; 6 mais como jogar ténis, um esporte no qual o detalhe dos movi- mentos é imprevisivel, mas no qual a intencio principal nio menos firme: remeter a bola para o outro lado da rede, de maneira que torne mais dificil para o adversirio, por sua ve7, devolvé-la. A intengio do autor nao implica uma consciéncia de todos os detalhes que a escritura realiza, nem constitui um acontecimento separado que precederia ou acompanharia a performance, conforme a dualidade falaciosa do pensamento € da linguagem. Ter a intengao de fazer alguma coisa — devolver a bola para 0 outro lado da rede, ou compor versos — nao exige consciéncia nem projeto. John Searle comparava a escritura ao caminhar: mover as pernas, levantar os pés, tensionar os miisculos, 0 conjunto dessas ages nao € preme- ditado mas, por outro lado, elas nao se fazem sem intencio: nao temos, pois, a intengio de realizé-las quando andamos; nossa intencao de caminhar contém 0 conjunto de detalhes que 0 caminhar implica. Como Searle, polemizando com Derrida, lembrava: om Em outras palavras, a tese antiintencional numa concepcio simplista da intencio, “Intentar dizer coisa", “querer dizer alguma coisa", “dizer alguma coi intencionalmente” nao € “premeditar dizer alguma cois: “dizer alguma coisa com premeditagao", Os detalhes do poer Ao slo projetados, nido mais que todos os gestos do caminhar, € 0 poeta ao escrever no pensa nas implicagdes das palavras, ‘mas nao resulta dai que esses detalhes em que o poeta nao quisesse certos sentidos associados as palavras em questo. Proust, quando contestava que 0 eu biogrifico e social estivesse no principio da criagao estética, longe de eliminar toda intengao, substitufa a intencio superficial e confirmada pela vida, por uma outra profunda, da qual a obra era melhor testemunho que © curriculum vitae, mas a intengo perma- necia no centro. A intengAo nao se limita aquilo que o autor se propusera escrevet — por exemplo, uma declaragao de intengdes — nem tampouco as motivagdes que o incitaram a escrever, como 0 desejo de conquistar a gléria ou o desejo de ganhar dinheiro nem, enfim, a coeréncia textual de uma obra. A intengio, numa sucessio de palavras escritas por um autor € aquilo que ele queria dizer através das palavras utilizadas. A intengio do autor que escreveu uma obra é logicamente equivalente aquilo que ele queria dizer pelos enunciados que constituem 0 texto. E seus projetos, suas motivacdes, a coe~ réncia do texto para uma dada interpretagao sio, afinal de contas, indicadores dessa intengao. Assim, para muitos fil6sofos contemporiineos, naio cabe dlistinguir intencao do autor e sentido das palavras. O que interpretamos quando lemos um texto é, indiferentemente, tanto o sentido das palavras quanto a intengao do autor. Quando se comega a distingui-los, c: Mas isso nao implica a volta 40 homem & obra, uma vez que @ intengao nao é o objetivo € sim o sentido intentado, i-se na cas oy A PRESUNGAO DE INTENCIONALIDADE, \goes entre sentido e significagdo, entve projeto fece que foram levantados 08 dois obsticulos nutengao da intengao como critério de inter- ‘Ao «le uma obra: a interpretacao tem por objeto o sentido, significagio, a intengo, nao © projeto. A intengio do do é, certamente, a tinica norma possivel para a leitura substituiu a exigéncia de uma significagio atualmente acei- vel) € nao ha leitura literdria que nao atualize também as significagdes de uma obra, que nao se aproprie da obra, que (é mesmo a traia de maneira fecunda (© que & proprio de uma obra literiria € significar fora de seu contexto inicial). Duas delicadas questdes se colocam entio. Deveria 0 estudo, iterdrio tentar tornar as significagdes atuais da obra compa- tiveis com a intengo do autor? Pode esse estudo ter éxito? Do ponto de vista tedrico, 08 adeptos da hermenéutica pos- hegeliana respondem secamente “nao” a segunda questio, 0 que torna a primeira pouco pertinente. Mas, na pritica, e sem triunfalismo, os praticantes do estudo literirio respondem geralmente “sim” a essas duas questdes: julgamos que certas aplicagdes dos textos literarios repousam em contra-sensos resultantes da ignorancia do sentido original, ou da indife- renga pela significacao original (eu nao daria exemplos, mas eles pululam nos manuais escolares, onde saltam aos olhos Jogo que uma ideologia esté fora de moda), € pensamos também. que esses contra-sensos podem ser cortigidos Intencionalismo e antiintencionalismo extremos encontram, impasses. Nossa concepcao do sentido de uma obra criada pelo homem difere de nossa concepgio do sentido de um texto produzido pelo acaso. £ um velho topas sobre o qual Proust, ap6s muitos outros, também pensou: Coloque diante de um piano, durante seis meses, ‘nao conhega Wagner nem Beethoven, ¢ deixe-o tei teclas todas as combinagdes de notas que 0 acaso lhe fornecer, jamais nascerio desses toques o tema da Primavera da Walkyrie ou a frase pré-mendelssohniana, (ou melhor, infinitamente supersmendelssohniana) do XV" quatuor. 93 procu sse de que os signos q intengio. Nos: obra humana compreende a nogao de atividade isto €, a idéia de que as palavras em questio querem d alguma coisa. Numa obra interpretam-se repetig6es e diferent: toda interpretagao repousa no reconhecimento de repeti¢oes ¢ diferencas (diferengas sobre um fundo de repetigdes), como lustra o método das passagens paralelas. Ora, em uma obra resultante do acaso, a repeticio é indiferente (insignificante). Como no jogo do “disparate” (cadavre exquis), tipo de objeto ‘erdrio produzido pelo acaso, o sentido deve ser atribuido .uma intene2o surreal, a uma mio invisivel. Na tradugao grega da Biblia, chamada des Septante, setenta sibios fechados em setenta cubiculos, durante setenta dias, produziram setenta tradugdes idénticas do texto sagrado: sua tradugio era, entio, Wo sagrada Cinspirada) quanto o texto primitivo; a intencao do autor divino foi nela integralmente transposta. © apelo ao texto em oposicao 2 intengao do autor — muitas vezes apresentado como alternativa — freqtientemente volta a invocar um critério de coeréncia e complexidade imanentes que somente a hipétese de uma intencio justifica, Prefere-se uma interpretacao a outra porque ela torna o texto mais coe- rente e mais complexo. Uma interpretaglo € uma hipétese em que se pde a prova a capacidade de perceber-se 0 maximo de elementos do texto, Ora, de que vale o critério de coeréncia € de complexidade, se se supde que o poema é produto do caso? O recurso a coeréncia ou A complexidade, em favor de uma interpretago, s6 tem sentido com referencia a intencao provavel do autor. Em todos os estudos literirios formulamos hipéteses im- plicitas sobre a intencdo do autor, como garantia do sentido. Pelo menos, quando leio “L’Héautontimorouménos” [O Heau- tontimorouménos] de Baudelaire: Eu sou a faca € 0 talho atroz! Eu sou 0 rosto e a bofetada! Eu sou a roda e a mao erispada, Eu sou a vitima e o algoz! (trad. Ivan Jungueiea) admito que © pronome da primeira pessoa se refere ao mesmo, Sujeito nos ts Versos sucessivos, O texto & yor uM macaco, mente empregada. ito de considerar que as diversas partes de um texto lersos, frases etc.) constituem um todo pressupde que o texto jesente uma ago intencional. Interpretar uma obra supde responda a uma intencao, seja o produto de uma Wncia humana, Nao se deduza que estejamos limitados a tengdes da obra, mas que o sentido do texto esteja do 2 intencao do autor, ou mesmo que o sentido do texto seja a intencao do autor. Denominar essa “intencao do texto”, © pretexto de tratar-se de uma intengio em ato € nao de uma intengao preexistente, somente concorre para gerat confusio. Coeréncia € complexidade sio critérios de interpretagio ¢ um texto apenas quando pressupéem uma intengio do itor, Se isso NAO acontece, como nos textos produzik pelo acaso, coeréncia ¢ complexidade nao so critérios de interpretacao. Toda interpretacao € uma assertiva sobre uma intengio. Se a intengio do autor é negada, uma outra intengio toma seu lugar, como no Dom Quixote de Pierre Ménard. xtrair uma obra de seu contexto literirio e hist6rico, € dar-Ihe ma outa intengio (um outro autor: 0 leitor) é fazer dela uma outra obra, € no mais a obra que interpretamos. Em compensagio, quando invocamos as regras linguisticas, 0 contexto hist6rico, assim como a coeréncia € a complexi- dade, para comparar interpretagdes, invocamos a intencio da qual estes tiltimos sao melhores indices do que as dec ragdes de intencao.™ Assim, a presungao de intencionalidade permanece no prinefpio dos estudlos literdrios, mesmo entre os antiintencio- extremados, mas a tese antiintencional, mesmo se ela é iluséria, previne legitimamente contra 0s excessos da contextualizacao hist6rica e biogeifica. A responsabilidade critica, frente ao sentido do autor, principalmente se esse sen- tido no é aquele diante do qual nos inclinamos, depende de um principio ético de respeito a0 outro. Nem as palavras 98 chave «la significagio de uma obra € nenhuma interpretagio satisfa- (ria jamais se limitou a procura do sentido de umas ou de outras. Ainda uma vez, trata-se de satir desta falsa alternativa © texto ou o autor. Por conseguinte, nenhum método exclu- sivo € suficiente. 0 NUNDO 2A mimesis, desde a Poética de is geral e corrente sob 0 qual se ich Auerbach, Mimasis. La Représen- la Littérature Occidentale (Mimese. A e na Literatura Ocidental] (1946), . Auerbach tracava o panorama tura compreendendo muitos milénios, ia Woolf. Mas a mimesis foi questionada que insistiu na autonomia da literatura le, ao referente, a0 mundo, e defendeu forma sobre 0 fundo, da expresso sobre icante sobre o significado, da significacto 10, ou ainda, da sémiosis sobre a mimesis. » do autor, a referéncia seria uma ilusio que ‘slo da literatura como tal. O auge dessa igidlo com © dogma da auto-referencialidade isto é, com a idéia de que “o poema fala do Philippe Sollers denunciava cruamente, ismo [..1, esse preconceito que consiste em acre- juma coisa que nao é a qual a unanimidade 86 pode se dar sobre convengdes prévias, sendo a cao de realidade uma convencio € um conformismo, je de contrato ticito entre o individuo e seu grupo contedido nem fundo. Ler com vistas A reali- mo quando se procura os modelos da duquesa de cs ou de Albertine, € enganar-se sobre a literatura a Mas entio, por que lemos? Pelus referencias da literatura a Ficces de Borge que Foucault comentava na abertura dle As Palavras ¢ as Coisas (41966), e Gilles Deleuze em Différence et Répétition € Repeticao] (1968). 5 desenvolvimentos da teoria literaria, observ: Hamon, levaram o problema da representacao, da referén: ou da mimesisa *juntar-se, numa espécie de purgat6rio critico’ As outras questdes que a teoria bania, como a intengio ou 0 estilo. Essas questoes tabus, como jt disse, renasceram todas de suas cinzas, tio logo a teoria foi retirada, a tal ponto que logo, se prestamos atengiio, ser preciso lembrar que a literatura fala também da literatura, Depois do autor e de sua intencao, dlevemos deter-nos nas relagdes entre a literatura € 0 mundo. Uma série de termos coloca, sem nunca resolvé-lo inteira- mente, o problema da relagio entre o texto € a realidade, ou entre 0 texto e 0 mundo: mimésis, evidentemente, télico traduzido por “imitagio” ou “represent: dle um ou outro é em si uma opgio tebrica), “verossi “ficcao”, “ilusio*, ou mesmo “mentira”, e, € claro, “reali “referente” ou “referéncia”, “descriga0”. Basta enumer: para sugerir a extensio das dificuldades. Ha também os adigios, como 0 célebre ut pictura, poesis, de Horacio (‘como a pintura, «a poesia’, Arte Postica, v.361), ou este outro famoso "a momen- tinea suspensio voluntaria da incredulidade”, que € identifi- cado geralmente ao contrato realista ligando autor ¢ leitor, mesmo que se trate da ilusio poética proporcionada pela imaginagao romantica que Coleridge descrevia nestes termos: willling suspension of disbelief for the moment, which constitutes poetic faith, Enfim, nogdes sivais deverao igualmente ser ‘examinadas, como as de “dialogismo” ou de “intertextualidade”, que substituem a realidade, enquanto referente da literatura, 8 propria literatur ‘Um paradoxo mostra a extensio do problema. Em Platio, na Reptiblica, a mimesis € subversiva, ela poe em perigo a unio social, € os poetas devem ser expulsos da Cidade em razao de sua influéncia nefasta sobre a educacao dos “guar- dides". No outro extremo, para Barthes, a mimesis € repressiva, 98 CONTRA A MIMESIS “A poética da narrativa’, estima Thomas Pavel, “tomou como objeto o discurso literati na sua formalidade ret6r ‘em detrimento de sua forca referencial’.* A essa tendénci xgeral da teoria literdria, beneficiando a forma de um privi Iégio em detrimento da forca, artigo de Jakobson, ji citado, “Lingdistica e Poética” (1960), nao foi indiferente, longe disso, mas, antes dele, os fundadores da lingtistica estratural da semistica, Ferdinand de Saussure € Charles Sanders Peirc haviam estabelecido suas disciplinas voltando as costas 20 “exterior referencial da linguagem”, segundo a expressio de 10 €, muito simplesmente, a0 mundo das coisas. Em Saussure, a idéia do arbitririo do signo implica a auto- icago seja diferencial (resultando da relacdo entre ignos) € nao referencial (resultando da relagao entre as palavras ¢ as coisas). Em Peirce, a ligacio original entre 0 signo € seu objeto foi quebrada, perdida, e a série dos inter- pretantes caminha indefinidamente de signo em signo, sem nunca encontrar a origem, numa somiosis qualificada de ilimitada. Segundo esses dois precursores, pelo menos tal como a teoria literiria os recebeu, o referente nao existe fora da linguagem, mas € produzido pela significacao, depende da interpretagio. O mundo sempre é j interpretado, pois @ relacao lingiistica priméria ocorreu entre representacdes, nao entre a palavra € a coisa, nem entre o texto € 0 mundo. Na cadeia sem fim nem origem das representacdes, 0 mito da referéncia se evapora. 99 seis fatores que definiam a comuni , destinatirio, contexto, cédigo € contato — e deter > seis funcdes lingiisticas distintas. Duas dessas Fungdes so aqui particularmente requisitadas: a fungio referencial, orienta para © contexto da mensagem, isto é, 0 real, € aquela que visa & mensagem enquanto tal, tomada em si mesma, fungao que Jakobson chamava de poética. Jakobson acentuava que “seria dificil encontrar mensagens que preenchessem apenas uma Gnica fungio",’ e ainda, que “toda tentativa de reduzir esfera da fungao poética ou de confinar a poesia a funcio poética, 56 chegaria a uma simplificagio excessiva © enganosa”.° Ele observava, no entanto, que na arte da linguagem, isto €, a literatura, a funcao poética é dominante em relacdo as outras, € que ela prevalece em particular sobre a fungao referencial ou denotativa, Em literatura, a t6nica recairia sobre a mensagem. diato suas fraquezas: em primeiro lugar, a auséncia de definigio de mensagem, ¢, conseqiientemente, a imprecisio sobre a natureza real da funcao poética que acentua a mensagem; tratar-se-fa, no caso, de uma énfase sobre a forma ou sobre 0 conterido da mensagem? (Ruwet, 1989) Jakobson nao esclarece, mas no clima contemporiineo de desconfianca quanto ao seu contetido, desconfianca a qual 0 proprio artigo contribuiu, concluiu-se tacitamente que a funcio poética estava associada exclusivamente (ou quase) 3 forma da mensagem. As precaucoes de Jakobson nao impediram sua fungdo poética de tomar-se determinante para’ concepcio, usual desde entio, dr mensagem poética como subtraida & referencialidade, ou da mensagem oética como sendo para si mesma sua propria referéncia: os ichés de autotelismo € auto-referencialidade estio, assim, no horizonte da fungio poética jakobsoniana. ‘Uma outra fonte da denegacio da realidade operada pela teoria pode ser encontrada no modelo que Lévi-Strauss, no imediato p6s-guerra — em seu artigo-programa, “L’Analyse Structurale en Linguistique et en Anthropologie” {A Andlise 100 —— Hatrutural em Ling tists inspirava em Jakobson — fornes por sua vez segundo 0 modelo do ilégio da narracdo, como elemento da fem consequéncia, ao desenvolvimento da narra a francesa, como anilise das propriedacles estruturais ‘curso literirio, da sintaxe de suas esteuturas narrativas, idade narracao e descriclo, convencionalmente pen- \da como constitutiva da literatura, todo esforgo orientou-se ra um tinico polo, a narracao, € pata sua sintaxe (ndo sua semantica). Para Barthes, por exemplo, na “Introduction & nalyse Structurale des Récits” [Introdugio & Andlise Estru- tural da Narratival (1966), texto chave da narratologia france: smo € a imitagio 86 merecem o titimo pardgrafo dese longo artigo-manifesto, como desencargo de consciéncia, porque é preciso, apesar de tudo, falar desses velhos tempos, mas a a eles € explicitamente considerada acess6ria € contin- gente em literatura: [A fungio da narrativa nao é a de “representar*, mas de consti- tir um esp ve ‘que nao pod *O que se passa", nna narrativa nio é, do ponto de vista referencial (real), a0 pé da Tetra, nada, “o que acontece", € s6 a linguagem inteiramente 56, 4 aventura da linguagem, cyja vinda no deixa nunca de ser festejada.” Barthes cita, em nota, Mallarmé para justificar essa exclusio da referéncia e esse primado da linguagem, porque € exata- mente a linguagem, tornando-se, por sua vez, a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real como se fosse necessério, ainda assim, um real. E, na verdade, salvo se reduzitmos toda a linguagem a onomatopéias, em que sentido ela pode copiar? Tudo 0 que a linguagem pode imitar € a linguagem: isso parece evidente Se 0 encontro de Jakobson com Lévi-Strauss, em Nova York, durante a Segunda Guerra Mundial, foi importante para © 101 fussos quanto para 0 New Criticism ameticano no entreguerras, ou ainda a substituigaio do texto pela obra, caida no es mento, juntamente com 0 autor, enquanto 0 texto s6 pode resultar do jogo das palavras e das virtualidades da linguagem, Para excluir 0 contetido do estudo literirio, a teoria segue o movimento da literatura moderna, de Valéry ¢ Gide, que confiavam do realismo — “a marquesa saiu as cinco horas" —, a André Breton ou Raymond Roussel, de quem Foucault fez o elogio, ou ainda a Raymond Queneau e a0 Oulipo (a literatu) sob coacao), depois dos quais € dificil ir mais longe na sep: raglo entre a literatura € a realidade. A recusa da dimensio expressiva e referencial nao € prdpria & literatura, mas carac- teriza 0 conjunto da estética moderna, que se conceritra no “médium" (como no caso da abstragaio em pintura). A MIMESIS DESNATURALIZADA Se a mimesis, a representacdo, a referéncia figuraram entre as ovelhas negras da teoria literéria, ou se a teoria literdria as baniu € transformou-as num impasse, resta compreender como ela pode ao mesmo tempo reivindicar sua filiaglo pro- funda a Podtica de Aristételes, cuja mimesis é, entretanto, 0 conceito capital para a propria definigao da literatura. Foi a partir daf que se disseminow a idéia corrente, até as teorias do século XX, sobre a arte e a literatura como imitagio da hatureza, Ora, a teoria literdria reivindica a heranga aristoté= lica €, entretanto, exclui essa questio fundamental desde Aristételes. Isso deve ser o resultado de uma mudanga no sentido do termo mimesis, cujo critério é, em Aristoteles, a lhanga em relago ao sentido natural (eikos, 0 pos- enquanto nos poéticos modernos ela se tomou 2 veros- similhanga em relagao ao sentido cultural (doxa, a opiniio), A reinterpretacao de Aristételes era indispensivel para promo- ver uma poética anti-referencial que pudesse apoiar-se na dele. 102 — » esti inteiramente em discurso indireto; 0 mimesis, como na tragédia, quando tudo €0 modo misto, quando a narrativa, A mimésis, segundo Plato, dé a ilusto de que a narrativa é onduzida por um outro que nio 0 autor, como no teatro, nde o termo encontra, aliés, sua origem (mimeisthai). Quando , € para condenar a arte ago, distante dois graus daquilo que ° (696a-597b). Fla faz passar a cOpia por original e afasta a verdade: por isso Platio quer expulsar da Cidade os poetas que nao praticam a didgesis simples. Aristételes, no entanto, na Poética, modifica 0 uso do termo mimesis (Cap. IID): didgesis nao € mais a nogo mais, geral definindo a arte poética, ¢ texto dramatico € texto épico no se opdem mais, no interior da diggesis, como mais mimé- tico € menos mimético, mas a mimesis torna-se, ela mesma, 4 nogio mais geral, no interior da qual drama e epopéia se opdem em termos de modo direto (representagio da hist6ria) ou indireto (exposigio da hist6ria), A mimésis recobre dora- vante nao apenas o drama, mas também aquilo que Platao chamava de diegesis simples, isto é, a narrativa ou a narracio. Segundo a concepgio aceita desde entio, essa extensio aristo- télica da mimesis a0 conjunto da arte poética coincide com uma banalizacao da nogio que passa a designar toda atividade Ia poesia, toda literatura como imitac2o. invocando Arist6teles € negando que a pois, mostrar, através de uma retomada do texto da Poética, que a mimesis, alias, nunca definida por Aristételes, nao tratava, na verdade, em primeiro lugar da imita mas que foi depois de um mal-entendido, ou de um contra-senso, que essa vviu sobrecarregada da reflexdo plurissecular sobre as relagdes entre a literatura € a realidade, segundo o modelo da pintura. Para chegar-se a essa disting2o, basta observar que, na Poética, 103 il Aristételes nto menciona, em lugar nenhum, outros objetos aliis, superior 4 epopéia, segundo Arist6teles — mas sc que cabe a mimesis, tanto na epopé , € a hist6ria, mutbos, como mimesis da aca de nartacdo € nao de descrigao: “A tragé Arist6teles, € mimesis nao do homem, mas da acao” (1450a 16). E essa representacao da historia no é analisada por ele como, imitacao da realidade, mas como producao de um artefato poético. Em outras palavras, a Poética nto acent ‘objeto imitado ou representado, mas o objeto representante, isto é, a técnica da representacio, a estrutura do mutbos. Enfim, colocando tragédia e epopéia, ambas sob a mimesis, Aristoteles demonstra preocupar-se muito pouco com 0 espeticulo, com a representagio no sentido de ence- nagio, ¢ volta-se essencialmente para a obra poética enquanto inguagem, logos, muthos e lexis, enquanto texto escrito € nao realizacio vocal. O que Ihe interessa, no texto poético, é sua composi¢io, sua poiesis, isto é, a sintaxe que organiza os fatos t6ria © em ficcio. Donde 0 esquecimento da poesi \mais mencionada por Aristételes, j que Ihe falta, como & histéria de Herddoto, a ficcao, isto €, a distancia. A exclusio da poesia lirica seria mesmo a prova de que a mimosis aristotélica nao visa ao estudo das relagdes entre a literatui € a tealidade, mas a produgao da ficcdo poética verossimi Resumindo, a mimesis seria a representagio de agdes humanas pela linguagem, ou é a isso que Aristételes a reduz, € 0 que Ihe interessa € 0 arranjo narrativo dos fatos em hist6ria: a poética seria, na verdade, uma narratologia. muito brevemente, como invocar a caucio de Aristételes, — deixando a distincia a questio que nele sempre pareceu central —, para manter uma conformidade entre a Poética ‘0s formalistas russos € seus discipulos parisienses. Esses trés gestos, reduzindo a mimesis As aces humanas, & técnica da representagao, e enfim, a linguagem escrita, sdo levados a termo, por exemplo, na sua introdugao, por Roselyne Dupont-Roc ¢ Jean Lallot, autores dla nova traducio da Poética, na colecao “Poétique”, em 1980, tornando compativeis os dois 104 cempregos do ‘Todorov e a revi (0 referencial. O importante nao € que essa 1 mais verdadeira ou mais falsa que a leitura a realidade — toda época reinterpreta € .xtos fundamentais & sua maneira: compete aos fildlogos minar, decidir se hé contra-senso; o importante € que, contrariar a acep¢ao habitual da mimesis, a realidade Ibolida da teoria: salvou-se Arist6teles do lugar-comum, ndo da literatura uma imitaglo da natureza e, pressupondo gua pudesse copiar o re: se a mimesis do delo pictural, da ut pictura, poesis, deslizou-se da imitacio te, da reali- ismo como f f A representagio, do representado ao represent dade a convengio, a0 codigo, & ilustio, a0 rea feito formal, Assim, passou-se da natureza (eikos) 8 literatura, ou a cultura € ideologia (doxa), como referencia da mimesis. O desloca- mento nao era, alias, inteiramente inédito. Com o nome de mitagao”, a ambigiidade entre mimsis como imitatio naturae € como imitatio antiquorum teinava ha muito tempo. A dou- trina classica levantou a dificuldade, sem resolver o problema, decidindo que, como os Antigos tinham sido os melhores imitadores da natureza, imitar os Antigos era também imitar a natureza, e vice-versa. Mas, diante de uma natureza nova como a que encontraram os viajantes no Oriente ou na América, a partir da Renascenga, os modelos da Antigtidade impediram de perceber a diferenga e reconduziram 0 desconhecido a0 conhecido. O dilema entre natureza e cultura existia desde Arist6teles que escrevia, no inicio do Capitulo IX da Poética: ‘0 papel do poeta é dizer no © que ocorreu realmente, mas ‘0 que poderia ter ocorrido na ordem do verossimil ou do necessirio” (1451a 36). Ora, Arist6teles dizia pouca coisa a respeito do necessirio (anankaion), isto é, natural, mas di muito sobre o verossimil ou sobre 0 provavel (eikos), isto é ‘9 humano. Nés nos situamos, em aparéncia, na ordem dos Fenémenos, mas Aristételes fazia logo passat o verossimil para 6 lado do que era suscetivel de persuadir (pithanon), quando afirmava que “€ preciso preferir 0 que é impossivel mas 105 Cadunata eikota) ao que 6 possivel apithana)" (4608 27), ipithanon dunaton)” (1461b 11). Desse modo, a antonimia de eikos (o veros: tomna-se apithanon (o nito-persuasivo), e a mimsis encon nitidamente reorientada para a ret6rica a daxa, a opini © verossimil, como insistirio os te6ricos, nao é, pois, a que pode ocorrer na ordem clo possivel, mas o que é aceitivel pela opiniio comum, 0 que é endoxal e nao paradoxal, o que corresponde 20 cédigo € as normas do consenso social Essa leitura do ethos da Poética como sinénimo da daxa, como sistema de convencdes ¢ expectativas antropol6gicas € socio- logicas, enfim, como ideologia decidindo sobre o normal e 0 anormal, se ela afasta mais a mimésis da realidade para ver nela um cédigo, ou mesmo uma censura, nao é inteiramente sem fundamento. Afinal de contas, na idade classica, o veros- simil era comprometido com as conveniéncias, como cons- ciéncia coletiva do decorum, ou daquilo que era conveniente, € dependia explicitamente de uma norma social O REALISMO: REFLEXO OU CONVENCAO A teoria literdria — acabamos de constatar, mais uma vez, pela releitura da Poética — € inseparivel de uma critica da ideologia, que teria como propriedade a certeza, isto é, ser 40 passo que, na verdade, € cultural (€ 0 tema de uma boa parte da obra de Barthes). A mimesis faz passar @ convengio por natureza, Pretensa imitacio da realidade, tendendo a ocultar 0 objeto imitante em proveito do objeto imitado, ela esta tradicionalmente associada ao rea ccapitalista. Do Renascimento ao final do século XIX, o realismo identificou-se sempre, cada vex mais, ao ideal de precisio referencial ado no livro de Auerbach, Mimésis. Auerbach esbocava a historia da literatura ocidental a partir do que ele definia como objetivo proprio: a representaclo da realidade. Através das transformacoes 106 des € conflitos opondo o indi- mum, A crise dt mimesis, como a do smo literitio, €, ao final do século nao nos € mais permitida. Essa inocéncia A mimesis era ainda a de Georg Lukacs, que se baseava isar o realismo como lualismo contra o idealismo. Recusar o interesse pelas relagdes entre literatura € reali- las como uma convencio, é, pois, de alguma leoldgica, antiburguesa € anti icada uma ilusio lingiistica: pensar que a linguagem pode copiar real, que a literatura pode representi-lo fielmente, como um espelho ou uma janela sobre o mundo, segundo as imagens convencionais do romance. Foucault, em As Palavrase as Cotsas, atacava assim a metafora da “transparéncia” que atravessa toda a historia do realismo, ¢ empreendia a arqueologia da “grande utopia de uma linguagem perfeitamente transparente em que as proprias coisas seriam nomeadas limpidamente” * Toda a obra de Derrida pode ser compreendida, também ela, como uma desconstrucio do conceito idealista de mimesis, ‘ou como uma critica do mito da linguagem como presenca. Blanchot, antes deles, apofara-se na utopia da adequacio da linguagem para exaltar, por contraste, uma literatura moderna, de Hélderlin a Mallarmé e a Kafka, em busca da intransitividade. Em conflito com a ideologia da mimesis, a teoria literaria concebe, pois, o realismo no como um “reflexo” da realidade, mas como um discurso que tem suas regras € convencoes, como um cédigo nem mais natural nem mais verdadeiro que 68 outros. O discurso realista nao foi menos o objeto de pred legio da teoria literdria, depois que sua caracterizacio formal definitiva foi elaborada por Jakobson, jé em 1921, num artigo lado: “Du Réalisme en Art” [Do Realismo na Arte). Ele propunha entao definir o realismo pela predomindncia da ‘metonimia ¢ da sinédoque, em oposicao ao primado da meta- fora no romantismo e no simbolismo. Jakobson manteve essa istingo em 1956, num outro artigo importante, “Deux Aspects ‘du Langage et Deux Types d'Aphasie” [Dois Aspectos dat Lin- ‘guagem e Dois Tipos de Afasial: “Seguindo a via das relagdes 107 = de contigiidade, 0 autor realist opera digress®es metonimicay da zada, mas também, e mais geralmente, um certo tipo de « que atravessa toda a historia, na base da du metaférica e metor a linguagem. ‘a que caracteriza, segundo Jakol A teoria estruturalista € pés-estruturalista foi radicalmente convencionalista, isto 6, opds-se a toda concepcio referen da ficgao literdria. Seguindo esse convencionalismo extremo, Pavel observa (5 textos literitios nao falam nunca de estados de coisas que Ihes seriam exteriores: tudo 0 que nos parece fazer referencia 2-um fora-do-texto € regido, na verdade, por convengdes rigo- rosas ¢ arbitrdrias, eo fora-do-texto ¢, em conseqiencia, 0 ‘feito enganador de um jogo de ilusdes.” Nao apenas a teoria francesa teve por ideal o equivalente & abstragaio em pintura, mas julgou que toda literatura dissi- mulava sua necessiria condicio abstrata. O realismo foi consi derado, conseqentemente, como um conjunto de convengoes + quase da mesma natureza que as regras da tragédia clissica ou do soneto. Essa exclusio da realidade é declara- damente excessiva: as palavras ¢ as frases nao podem ser assimiladas a cores e formas elementares. Em pintura, as con- vencoes da representacio sio diversas, mas a perspect geomeéttica & mais realista que outras convengdes. Nao se trata, ois, nem de aprovar nem ce refutar essa rejeicdo da referéncia, mas de compreender porque € como ela se expandiu com tanto sucesso, € porque o dialogismo de Mikhail Bakhtine i suficiente para reintroduzir uma dose de realidade humana. ismo, esvaziaclo enquanto contetido, foi pois anali- sado como efeito formal, e nao parece exagero dizer que, em realidade, toda a narratologia francesa mergulhou no estudo do realismo, seja Todorov em Litérature et Signification {Lite- ratura © Significagio] (1967), ¢ também, em sentido inverso ou pelo absurdo, em Introduction a la Littérature Fantastique Uinttodugao 2 Literatura Fantistica] (1970); Genette em “Discours 108 ——— ad du Réeit® [Discurso da Nar estudos sobre a dese que, 4 sua maneira, trabalham no mesmo terreno ¢ tent pensar © realismo como forma. Por ser 0 realismo a ovelha negra da teoria literdria, ela quase 86 falou dek ILUSAO REFERENCIAL E INTERTEXTUALIDADE | Se, como quer a lingiistica saussuriana, da qual depende a teoria literdria, a lingua é forma e nao substincia, sistema nao nomenclatura, se ela no pode copiar o real, o problema torna-se 0 seguinte: nao mais “Como a literatura copia o real”, mas “Como ela nos faz pensar que copia o real?” Por quais dispositivos? Barthes afirmava em 9/Z que no mais realista dos romances, o referente no tem “re ‘que se imagine a desordem provocada pela mais comportada das hharragdes, se suas descrigoes fossem tomadas a0 pé da letra, ‘Convertidas em programas de operagdes, €, muito simplesmente, fexeciviadas. Em suma (J, que se chama de “real” (na teoria do ino € nunca sendo um codigo de repr ‘19): nao é nunca um cédigo dle execuct O texto no 6 executivel como um programa ou um roteiro: isso € suficiente para que Barthes rejeite toda hipdtese refe~ rencial na relagao entre a literatura € 0 mundo, ou mesmo centre a linguagem e o mundo, para expulsar da teoria literaia todas as consideragoes referenciais. O referente € um produto da semiosis, € nao um dado preexistente. A relacao : primaria nao estabelece m: Ou o signo € o referente, o texto eo mundo, mas entre um Signo € um oulto signo, um texto e um outro texto. A iusto referencial resulta de uma manipulagio de signos que a convencio realista camufla, oculta 0 arbitrario do cédigo, © faz crer na naturalizagio do signo. Ela deve, pois, ser reinter- pretada em termos de codigo. 109 = em de Barthes, como um “efeito d tagio volta-se entao para a do verossi cédigo pan repre: como convene: ido pelo autor ¢ pelo leitor. Que se observe 0 locus amoenus da tet6rica antiga nos relatos dos viajantes do. Renascimento no Oriente ou na América, confirmando que nao € nunca o proprio real que € descrito ou visto, mest Quando se trata do Novo Mundo, mas sempre jé , mas sempre jé um texto feito de clichés ¢ de estere6tipos. Barthes encontra o tom do Plato da Repriblica para afastar a literatura do reals © realismo (muito mal nomeado, e dk mmeaclo, © de qualquer forma freqien- temente mal interpretado) consiste nao em copiar o teal, mas em copiar uma copia (pintada) do real [...] E por isso que 0 realismo nao pode ser chamado de “copiador", melhor seria de “pastichador” (por ut 2 asa elisa mio coloca em absoluto a “reaidade* na orig le Seu discurso mas, unicamemte sempre. por ms Tenge que se emont, umn ef euro, um elgo Prospect, 30 longo do qual no apreendemos minca, 4 perder de Vt, seo uma cadeia de ©6y - sens A referéncia nao tem realidade: 0 que se chama de real nao € senio um cédigo. A finalidade da mimesis nio é mais a de produzir uma ilusdo do mundo real, mas uma ilusto do discurso verdadeiro sobre o mundo real. O realismo lusto produzida pela intertextualidade: “O que existe por tris do papel nao € o real, o referente, é a Referéncia, a ‘st imensidao das escrituras’"! , Certamente encontrarfamos a nogio de intertextualidade Por muitos outros caminhos, na rede que liga os elementos da literatura, por exemplo, a partir da leitura, mas, como acabamos de ver em Barthes, para a teoria literiria os outros textos tomam explicitamente o lugar da realidade, e € a intertextualidade no sintaxe do texto literdrio, no momento dintica deveria ser trazida A luz, a intertextua- como uma maneira de abrir o texto, se nao nundo, pelo menos aos livros, a biblioteca, Com ela passa-se fexto fechado ao texto aberto, ou pelo menos do estrutu- 10 a0 que chamamos, as vezes, de pés-estruturalismo. © termo intertexto ou intertextualidade foi composto por ‘eva, pouco depois de sua chegada a Paris, em 1966, riria para a produtividade do texto, até entio apreend dle maneira estitica pelo formalismo frances: “Todo texto se constrdi como mosaico de citagdes, todo texto € absorgio € transformacio de um outro texto." A intertextualidade designa, segundo Bakhtine, o dilogo entre os textos, no sentido ampl conjunto social considerado como um conjunto textual segundo uma expressio de Kristeva. A intertextualidade est pois calcada naquilo que Bakhtine chama de dialogismo, (0 &, as relagdes que todo enunciado mantém com outros enunciados. Em Bakhtine, entretanto, a nocio de dialogismo continha uma abertura superior sobre © mundo, sobre 0 “texto” so Se ha dialogismo por toda parte, isto 6, uma interagao social dos discursos, se 0 dialogismo 6 a condicio do discurso, Bakhtine gue géneros mais ou menos Assim, o romance € 0 género dialégico por exceléncia — afini dade que nos reconduz, alias, & ligagio privilegiada entre 0 ialogismo € 0 realismo — e, no romance (realista), Bakhtine opde ainda a obra monolégica de Tolstoi (menos realista) € obra polifonica de Dostoievski (mais realista), pondo em cena uma multiplicidade de vozes € de consciéncias. Bakhtine encontra nas obras populares € nos ritos carnavalescos medievais, ou ainda em Rabelais, a origem exemplar dessa poligonia do romance modemno. Em geral, ele distingue duas genealogias no romance europeu, uma em que o plurilin- gUismo permanece fora do romance e designa, por contraste, sua unidade estilistica; outra, em que o plurilingtismo, de an Cervantes © até Proust ou Joyce, esti integrado A It ron A obra de Bakhtine, con depois franceses, que fech imanentes, reintroduz a realidade, a historia e Ro texto, visto como uma estrutura complexa de vore: conflito dindimico de linguas ¢ de estilos heterogéneos. A inter. textualidacle calcada no dialogismo bakhtiniano fechow-se, entretanto, sobre 0 texto, aprisionou-o novamente nas lterariedade essencial. Ela se define, segundo Genette, por “uma relagio de co-presenga entre dois ou varios textos €, 0 mais das vezes, pela “presenga efetiva de um texto num outro".” Citagio, plagio, alusio slo suas formas correntes. Desse ponto de vista, mais restrito, negligenciando a produ. lividade sobre a qual Kristeva, depois cle Bakhtine, insistia, a intertextualidade tende as vezes a substituir simplesmente as velhas noses de “fonte” e de “influ€ncia”, caras 3 hist literaria, para designar as relagdes entre os textos. Além disso, juntamente com as “fontes literérias”, a aria reco- nhecia as “fontes vivas’, como um pér-do-sol ou um luto AmoFOSO, 0 que mostra que uma mesma nocio jf recobr relagoes da literatura com 0 mundo ¢ com a literatura, € 0 que lembra, também, que o ponto de vista da historia lite. irla no era unicamente biogrifico. Insistindo nas relagdes Entre 0s textos, a teoria literdria teve como conseqiiénc talvez inevitavel |, © por tertextu; ialogismo restrto. O sistema de Riffaterre €, quanto a isso, exemplar: ele ilustra com perfeig’io como 0 dialogismo de Bakhtine perdeu todo enraizamento no real ao tornar-se intertextualidade, Riffaterre segundo o modelo da “ilu ‘ intentional fallacy dos New Critics americanos © erro, comum, em sua opiniao, que con realidad A sua representacio, em ‘colocar a referencialidade Ro texto, quando ela esté, na verdade, no leitor’."* Vitima da ilusio referencial, o leitor acredita que .o texto se refere a0 mundo, enquanto que os textos literdrios nto falam nunca Seno de estados de coisas que thes sio exteriores, E os ar 0 dialogismo tomou-se logo, muito uz ee ——— = ceriticos fazem, em ge logo que em literatura nao é a iteratura, unidade de sentido nao seria, pois, a palavra, mas o texto nteiro, e as palavras perderiam suas referéncias particulares, ra se relacionarem umas com as outras no contexto e produzir efeito de sentido chamado significancia, Observemos aqui © deslizamento: enquanto, para Jakobson, 0 contexto estava, verdade, fora do texto, isto é, no real, € que referencial estava precisamente ligada a ele, 0 contexto nao , em Riffaterre, sendo texto (Co-texto, se quisermos), € a signi- ficincia literdria se opde 2 significacio nao lite menos como Saussure separava 0 valor (relaglo entre signos) € a significagio (relagdo entre significante € significado) *O intertexto", escreve ainda Riffaterre, “é a percepcio, pelo leitor, de relagdes entre uma obra e outras que a precederam ou se Ihe seguiram’, ¢ essa & a Gnica referéncia que importa nos textos literirios, os quais sto auto-suficientes e nao falam do mundo, mas de si mesmos e de outros textos. “A intertex- lade € [...1 0 mecanismo proprio para a leitura literaria. Somente ela, na verdade, produz.a significdncia, enquanto a leitura linear, comum aos textos literirio € nao literirio, nao produz senao o sentido.” Segue-se que a intertextualidade € a propria literariedade, € que o mundo nio existe mais para ve gem cotidiana ¢ literatura, entre significagio significincia? Voltarei a isso mais adiante, De Bakhtine a Riffaterre, as injuncdes da intertextualidade foram singularmente reduzidas, € a realidade nao faz mais parte dela, Genette, em Palimpsestes (Palimpsestos] (1982), chama de Mranstextualidade todas as relagdes de um texto com outros textos. A intertext idade, limitada & presenca efetiva de um texto em outro, ele acrescenta paratextualidade, metatextualidade, arquitextualidade e ainda hipertextualidade, estabelecendo uma tipologia complexa da “literatura em 3 = . Hscapou pela tangente, le das relagoes intertextuais para € com 0 mundo que esta OS TERMOS DA DISCUSSAO Examinei até aqui as duas teses extremas sobre as relacdes entre literatura e realidade. Relembro-as, cada uma, por uma frase: segundo a tradiga a, humanista, clissica, Naturalista © mesmo marxista, a literatura tem por le representar a realidade, e ela 0 faz com certa conve- nigncia; segundo a tradicao moderna e a teoria literdria, a referéncia é uma ilusdo, e a literatura nao fala de outra coisa ratura, Mallarmé anunciava: “Falar nao diz respeito a realidade das coisas sendo comercialmente: em literatura, contenta-se em fazer-Ihe uma alusio ou em distrair sua quali. dade que alguma idéia incorporard."® Em seguida, Blanchot foi mais longe. Como para a intengo, gostaria agora de tentar sair dessa alternativa traigoeira, ou da maldigao do binarismo ‘que quer forgar-nos a escolher entre duas posicdes to insusten- taveis uma quanto outra, mostrando que o dilema se baseia numa concepgio algo limitada, ou caduca, da referencia, e sugerir varias maneiras de reatar 0 elo entre a literatura ¢ a realidade. Nao se trata de afastar as objegdes contra a mimesis, nem de reabilitar esta, pura e simplesmente em nome do senso comum e da intuigao, mas de observar como foi possivel tefundir 0 conceito de mimesis depois da teoria, Procederei em dois tempos. Primeito, tentarei mostrar a lade, até mesmo a inconsisténcia e a incoeréncia da recusa da referéncia em literatura, Por exemplo, a ct ilusdo referencial, em Barthes e em Riffaterre, apresenta lum € outro se dao como adversaria uma teoria simplista da referencia, ad boc, inadequada ou caricatural da referencia, © que torna mais ficil para eles desvencilhar-se dela e afirmat que a literatura ndo tem referéncia na realidade. Eles pedem, como Blanchot antes deles, 0 impossivel (a comunicagio angélica), para concluir peta impoténcia da linguagem e pelo isolamento da literatura. Decepcionados no seu desejo deslo- cado de certeza, num dominio em que essa preferem um ceticismo ra as ——————— — IVICA DA ‘TESE ANTIMIMETICA Em §/Z, Barthes atacava os fundamentos da mimesis sob pretexto de que o romance, mesmo o mais rea- jo era executiivel, que suas instrugdes seguidas pritica e literalmente.*! O argumento jé era bastante estranho, uma vez. que ele voltava a considerar a literatura como um manual de instrugdes. Basta tentar seguit as ins- trugdes que acompanham qualquer aparelho eletrénico — um gravador ov um computador — para perceber que elas no sao, em geral, menos impraticaveis que um romance de Balzac, sem que, entretanto, Ihes neguemos qualquer relagio com a maquina em questio. Para compreender a descrigio de um gesto, por exemplo, para executar 0s movimentos dletalhados por um manual de gindstica, € preciso, por assim dizer, ja ter feito 0 gesto. Tateamos, procedemos por apro- ximagdes sucessivas (Irial and error), € pouco a pouco o mecanismo funciona, 0 exercicio se revela possivel: chega-se, assim, & realidade do circulo hermenéutico. Para negar 0 realismo do romance em geral, Barthes deve identificar previa mente o real e o “operivel", imediatamente transponivel, por exemplo, para o teatro ou para a tela, Em outras palavras, ele exige demais, pede demais, para constatar, evidentemente, que suas exigéncias nto podem ser satisfeitas, que a litera: tura nao esta a altura, Em “O Bfeito de Real” (1968), artigo de grande influéncia, Barthes se volta para um barémetro que aparece na descricio do salao de Mme Aubain em Un Coeur Simple (Um Coracio simples}, de Flaubert, como uma anotacao intl, um detalhe supérfluo”, incomodo porque absolutamente anédin« nificante, desprovido da menor fungio do ponto de vista d andlise estrutural da narrativa: “Um velho piano suportava, sob um bardmetro, uma pilha de caixas e pastas.” O piano, pensa as caixas sugerem a desordem ele, conota o status burgué da casa, mas “nenhuma final metro”, como diria Gertrude dessa insignificdncia? Os residuos irredutiveis fato de denotar © que se chama habi (pequenos gestos, at analise funcional tém «1 s transit6rias, objetos ins 's redundantes). A *representagao” pura e simples "real", a relagao nua “do que & (ou foi) aparece assim luma resisténcia ao sentido,” © objeto insignificante denota o real, como uma fotografia, tal como Barthes devia definir 0 noema em La Chambre Claire {A Camara Clara] (1980): “Isso-foi.” © bardmetro justifica, dé crédito ao realismo. Mas, antes de tudo, poder-se-ia talvez contestar que o bard- metro seja assim to insignificante em Um Coragao Simples como deseja Barthes, e, logo, uma vez que ele representa segundo Barthes — juntamente com uma pequena porta em cita em outro lugar — o exemplo paradig- matico do detalhe induil, contestar ainda que haja, mesmo no romance mais pretensamente realista, elementos que repugnam @ esse ponto o sentido, e digam pura e simplesmente: “Sou 0 real." O bardmetro poderia bem indicar uma preocupagao com ‘© tempo, nto apenas com o tempo que faz hoje, ‘metro bastaria para isso, mas com o tempo que fari amanha, ¢ uma obsessio, pois, particularmente apropriada na Normandlia, regio conhecida por seu clima instavel e sua chuva", Em todo caso, um ba sentido n: Normandia do que na Provence: talvez ele fosse gratuito em Daudet ou Pagnol, mas provavelmente nao em Flaubert. No Em Busca do Tempo Perdido, o pai do her6i € fartamente carac- terizado, e também ridicularizado, pelo ritual que consiste em consultar muito regularmente 0 barémetro. Esta é a primeira ocorréncia dessa mania em Du Cété de Chez Swann [No Caminho d ava os ombros e examinava o bardmetro, porque meteorologia, enquanto minha mae, evitando fazer 16 il ‘may nio fHxamente slemais, para no deswendar o mistério de suas superioridades." » silo representadas € resumidas por esse barémetro. 0, exige que haja no romance notagdes como se por elas rrompesse no romance. Essa chave é oferecida em entret conclusio ao seu artigo: Semiotieamente, 0 “detalhe conereto" & consid da eum cidade direta de un referemte com ut sig ado €expulso do sign, e, com ee, € caro, apo de desenvolver uma forma do significado |. ve a isso qu ode chamar de dso nférencal Averdade desea llusto €4 Acguttersuprimida semuncag resale ignieato Ge denotagho,o “rea” volta tulo de significado de cono- taplo; pois exatamente no momento em que estes deaihes parecem denotar diretamente 0 real, nto fazem outa co ‘real’ (e no seus contetidos “somos o real”; é a categoria do : contingentes) que € entao significada; em outras palavra: 6 é wveito unicamente do propria caréncia do significado em prov ° referente torna-se o préprio significante do realismor produz-se m efetto de real.® A passage é bastante teatral, mas nao limpida, © bard- metro, longe de representar fielmente a vida de provincia da Normandia, em pleno século XIX, age como um signo conven- ional e arbitrario, uma piscadela conivente, lembrando a0 leitor que ele se encontra diante de uma obra pretensamente realista: 0 bardmetro nao denota nada de importante; ele conota, pois, o realismo enquanto tal, Sem dvida, a posicio de Barthes 6 sempre a mesma: o realismo mio é nunca sendo um cédigo de significaclo que procura fazer-se passar por natural, pontuando a narrativa de elementos que aparente- mente Ihe escapam: insignificantes, eles ocultam a onipre- senca do cédigo, enganam o leitor sobre a autoridade do texto mimético, ou pedem sua cumplicidade para a figurago do mundo. A ilusio teferencial, dissimulando a convengao € 0 arbitrario, € ainda um caso de naturalizagao do signo. Pois 0 assinala, enttetanto, as aporias desse & mimésis. Em primeiro lugar, Barthes nega que a linguagem em geral tenha uma relagao referencial com © mundo. Ma © que ele diz é verdadeiro, se ele pode denunciar a referencial, se pode, pois, enunciar a verdade da ilusio refe- rencial € que, entdo, apesar de tudo, hd uma maneira de falar da realidade ¢ de se referit a alguma coisa que existe, o que significa que nem sempre a linguagem € completamente inade- quada.* Nao € ficil eliminar totalmente a referéncia, pois ela intervém exatamente no momento em que é negada, como a ropria condi¢io dessa negacio. Quem diz ilusio diz rea dade, em nome da qual se denuncia essa ilusio. Nesse jogo gira-se no mesmo lugar. £ por isso que Montaigne, confron. tando-se a0 mesmo problema do ceticismo integral, isto é, a0 da fratura entre a linguagem € o ser, contentava-se com wma questo que interrompia 0 giro mecinico: “O que sei eu?, isto é, eu s6 sei que nao sei verdadeiramente. Mas Barthes queria mais, queria que eu nao soubesse nada, Em suma, a explicacdo de Barthes sobre o funcionamento desses elementos insignificantes é, em si mesma, muito curiosa. Prendergast assinala que a dramatizagio retorica a que se entrega Barthes, recorrendo a metéforas (cumplicidade do signo com o referente, expuitsdo do significado) e a personi- ficagdes (“somos o real") leva o leitor a aceitar uma teoria da referéncia das mais sumatias e exageradas. A personifi- cacao € flagrante: a linguagem € personificada para negar que ela mesma seja linguagem. Gragas a essas figuras, Barthes ilustra uma espécie de prestidigitagio pela qual as palavras desaparecem, dando ao leitor a ilusto de que ele nao esta diante da linguagem, mas da propria realidade (“somos 0 real"). O signo se apaga diante (ou atras) do referente para criar © efeito de real: a ilusio da presenca do objeto. O leitor acredita que esté lidando com as prdprias coisas: vitima da ilusao, ele est como que encantado ow alucinado.” Assim, Barthes, para afirmar que a linguagem nao € refe- © © romance nao é realista, defende uma teoria da ee a pensar que é isso que acontecer com 6 leitor do romance realista, se esse ile que os detalhes egundo essa exigéncia, nenhuma 1as do poder alucinat6rio da literatura, Mas Col © cuidado de distinguir a ilusto poética (willing suspension of disbelief ) da alucinagio (delusion), ¢ qualificava-a de “fe negattva, aquilo que permite simplesmente as imagens apre- sentadas agir por sua propria forga, sem denegacao nem afir- ago de sua existéncia real pelo julgamento"" A seu ver, a ‘suspensio da incredulidade” nao era de modo algum uma fé positiva, e a idéia de uma verdadeira alucinacao, observava, leveria chocar-se com o senticlo que todo espirito bem formado mui A ficgo e A imitagao. A critica de Prendergast pode parecer exagerada, mas nio 0 Gnico lugar, longe disso, em que Barthes recorre a aluci- nagio como modelo da referéncia a fim de desacreditar esta Ultima, Em $/Z, Barthes media o realismo pelo operivel, pela transponibilidade sem interferéncia no real. © romance ver deiramente realista seria aquele que se passasse tal qual numa tela; seria a hipstese generalizada: eu veria como se esti- vesse li, Em A Camara Clara, o célebre punctum também se relaciona com a alucinacao, € Barthes, alids, o compara a experiéncia de Ombredane, quando Negros da Africa, que véem pela primeira vez de suas vidas um pequeno filme, que se propoe ensinar-Ihes a ‘em algum lugar da floresta, ficam fascinados por um de insignificante, “a galinha mindiscula que atravessa um canto da praga do vilarejo",” a ponto de perder o fio da mensagem. A experigncia & qual Barthes mede malogro da linguagem é, em resumo, a da primeira representago, Tal é a historia, cara a Barthes, do bombeiro de Filadélfia, encarregado dla vi do teatro onde, por infelicidade, ele jamais entrara antes de 19 Ve ser all locado: no momento em que 4 heroina & ameuguda Ponta AFM putt este — os bombeiros de Na expe bombeiro da S VezeS 20 teatro, para nio sermos m: 'o, tal como Barthes a descreve com a fina. smascarar a ilusto referencial. Barthes la referencia simplificada e excessiva demais seu malogro. E ficil demais ter como pretexto o le que, quando falamos das coisas, nao as vemos, nio as iginamos, no as alucinamos, para denegar toda funglo nncial 2 linguagem, € idade dos objetos de per- fema semi6tico que os produz. No seu comen- to conhecido sobre o fort-da, em Au-déla du Principe de Plaisir(Além do Principio do Prazerl, Freud mostrava como inca de dezoito meses, cuja mac se afastara, dominava éncia brincando com um carretel que ela fazia cesapa- recer ¢ voltar a sua vontade, por cima da borda do seu bere, indo sons semelhantes a fort (‘sumiu") e da Cvoltou”), indo assim uma experiencia precoce do signo come lo que ocupa o lugar da coisa em sua auséncia, e, de Xlo algum como fantasma da coisa.” £, entretanto, 2’ um io anterior ao fort-da, retomado por Lacan para definir © acesso a0 simbélico, que Barthes gostaria de reconduzir-nos \guagem e a literatura tenham qualquer A ilusdo referencial, tal como Riffaterte a define, escapa ? paracloxo mais gritante do efeito de real segundo Barthes, ' Barthes, na verdade, € toda a linguagem que nao ¢ tele. encial. Riffaterre, em compensagio, tem o cuidado de distinguir uso comum da lingua de seu uso poético: as palavras parecem ligadas vertical. : alidade que pretende represents, cada la seu contetido como uma etiqueta sobre um frasco, mando cada uma delas uma unidade semantica distin eratura a unidade de significagao € 0 proprio texto, ee 7 1. manter a referéncia na linguagem, ura, Riffaterre remete, também pré-saussuriana ou ad hoe, fazendo da linguagem de etiquetas sobre frascos, ou uma nomenclatui \guagem do Pére Castor, nome desses que indmeras criangas aprenderam a ler € onde, abaixo do desenho de um ferro de pasar roupa, estio escritas as palavras “ferro de passar roupa”; mas nao € segundo esse modelo que a funcionam, Entretanto, essa divertida iquetas sobre frascos — nem mesmo dessa ver, € a da propria a lingua e a refer®i teoria da referéncia — dlimina a dificuldade, pois a apor literariedade: com efeito, como tica, dotada de significan: pois nao ha outro critério de oposigAo entre linguagem coti diana ¢ linguagem poética senio, precisamente, 0 postulado da no-referencialidade da literatura. A linguagem poética € significante porque a literatura nao é referencial e vice-versa. Donde a conclusao um tanto dogmatica e circular a que chega Riffaterre: “A referencialidade efetiva nao € nunca pertinente A significancia poética.”® Circular, porque a significincia poética foi, ela mesma, definida por seu antagonismo com a referencialidade. E, entretanto, gracas a esse raciocinio que Riffaterre pode pretender que a mimesis ndo é nunca senao a ilusio produzida pela significdncia: *O texto poético € auto- suficiente: se ha referéncia externa, nao é a0 real ~ muito 10 contririo, $6 ha referéncia externa a outros textos.” Como para Barthes, © mundo dos livros se substitui inteiramente 30 livro do mundo, mas por um fiat O ARBITRARIO DA LINGUA. Je referencial da literatura, em francesa em geral, deve-se & ica, a de Saussure e de Jakobson, A denegagio da facul Barthes € na teoria literar influéncia de uma certa lingti 121 = de uma sintaxe do que de uma semntica da literatura, enquanto Saussure € Jakobson nao eram, nem um nem outro, sintati cistas; € a influéncia de Saussure € de Jakobson levou a teori 4 ignorar os trabalhos maiores da sintaxe contemporaine: sobretudo os da gramitica gerativa de Noam Chomsky, a0 mesmo tempo em que ela se decidia pela consti sintaxe da literatura, A insisténcia na funcio poética da linguagem, em detri- mento de sua funcao referencial, resulta de uma | tiva de Jakobson, enquanto a afirmagio do convencionalismo dos cédigos literirios, segundo 0 modelo da lingua — tido como arbitritio, obrigatério e inconsciente — é originario d teoria do signo lingiiistico de Saussure. Entretanto, nem a exclusio da fungio referencial era fiel a Jakobson, que nao pensava em termos de exclustio nem, de alternativa, mas de coexisténcia de dominante, nem a afirmagio da arbitrarie- dade da lingua, no sentido de secundariedade ou mesmo de impossibilidade da referencia, era exatamente conforme 0 texto de Saussure, Em outros termos, 0 Cours de Linguistique Générale (Curso de Lingtiistica Geral] nao justifica a premissa segundo a qual a linguagem nao fala do mundo. £ importante relembrar isso para reatar os elos enite a literatura © 0 rea Segundo Saussure, em realidade, no é a lingua que é arbi triria, mas, mais exatamente e topicamente, a ligacao do aspecto fonético € do aspecto semantico do signo, do significante do significado, no sentido de obrigat6rio e inconsciente. Nao iinguistico, lugar-comum da filosofia da linguagem desde Arist6teles, mesmo quando Saussure coloca o arbitrario preci- samente entre 0 som € 0 conceito, € no mais, como se fazia tradicionalmente, entre 0 signo e a coisa. Por outro lado, Saussure fazia um relacionamento, que também nao era verda- deiramente original, mas herdado do romantismo, e, entre- tanto, fundamental para a teoria estrutural e pés-estrutural, 12 ——" - lingual € projetada sobre o universo que ela organiza segundo um esquema lingliistico @ priori" Ha af uma infe- réncia nao necessiria e que pode ser refutada: o arbitririo do signo nao implica, segundo toda légica, a nao-referencialidade irremediavel da lingua Desse ponto de vista, 0 capftulo essencial do Curso de Lingiiistica Geral 0 que trata do valor (I, IV). Enquanto significacdo, diz Saussure, € a relagao do significante ¢ do significado, 0 valor resulta da relagio dos signos entre si, ow “da situago recfproca das pecas da lingua”. Nomear é isolar num continuum: 0 recorte em signos discretos de uma matéria continua é arbitrdrio, no sentido de que uma outra divisio poderia ser produzida numa outra lingua, mas isso nao quer dizer que esse recorte no fale do continuum, Linguas dife- rentes nuangam diferentemente as cores, mas € sempre © mesmo arco-iris que todas recortam. Ora, para compreender © destino do valor na teoria literéria, basta lembrar como Barthes resumia essa nogio em seus “Eléments de Sémiologie” [Elementos de Semiologial, em 1964. Ele lembrava, em primeiro lugar, a analogia proposta por Saussure entre a lingua e uma folha de papel: recortando-a, obtém-se diversos pedacos tendo cada um deles um reverso e um verso (é a significagao), € cada lum apresenta um certo recorte em relagio a seus vizinhos (€ 6 valor), Essa imagem, continua Barthes, leva a conceber @ “produgio do sentido”, isto é, a palavra, 0 discurso, a enun- ciagao, e nao mais a lingua, como um ato de recorte simul Ges reins twats, como di to Tetoe que mu orgem Ceoris) do seo, a5 Hs © o8 2 eae stn; 0 sede fntercm quando s 04 Parihenm tempo, de uns 9 Ye, esas duns i A orlgem saussuriana da Hingis, ainda que inteiramente te6rica, teve, ilo mito dit origem € e1 Hencia considerivel ra em sua relagao com 0 real, 0 de relagio com o real. Evidentemente, 5: Wra fosse arbitratia mente passa de um convencionalismo restrto, relacio. com a natureza arbitritia do signo linguistico, para um nvencionalismo generalizado, relacionado com o irre. ingua e mesmo da palavra, um convencionalismo hsoluto que as nogdes de adequacao e dle verdade perdem Pertinéncia, Em resumo, uma vez que todos os ¢édigos Convengdes, 0s discursos no sio nem mais nem menos ‘mas todos igualmente a ndo arbitrariamente, ao mesmo tempo, o significante ificado, constitui uma visio de mundo, isto é, um 'e dlo qual somos irremediavelmente prisioneitos. Barthes sobre 0 Curso de Saussure a hipétese de Sapir-Whort 1e dos antropélogos Edward Sapir e Benjamin Lee Whort) @ linguagem, segundo a qual os quadros lingifstieos tuem a visto ce mundo dos locutores, © que tem como conseqtiéncia dltima tornar as teorias cientificas incomenst. is, intraduziveis © todas igualmente vilidas. Recaimos, Por esse caminho, na hermenéutica pés-heideggeriana, com qual concorda essa concepeio da linguagem: a linguagem 6 sem sada para 0 outro, logo, para o real, assim como nossa situagao histérica que limita nosso horizonte. Ora, hi um salto imenso, segundo qual a premissa “Nao hé Pensamento sem linguagem" leva ao arbitrario do discurso, niio mais no sentido do convencionalismo do signo, mas de despotismo de todo eédigo, como se da rentincia a dualidade lo pensamento e da linguagem resultasse infalivelmente a mio-referencialidade da palavra. Mas no é porque as linguas nao enxergam igualmente as cores do arco-iris que elas nao falam do mesmo arco-itis. O peso das palavras certamente con. fou nesse deslizamento abusivo para o sentido de arbit clo imotivado e necessirio entre significante significado, 124 ' = ~ tal como Benveniste, em "Nature du Signe Linguistique® [Nature do Signo Lingiiistico) (1939), afirmava ser preciso entend nico do eédigo. idade entre a teoria te jenante sobre a ead, masa lingus no pode se pur- simplesmente assimilada 2 ideologia, porque € el também que permite desmascarar o atbitririo. Valor, represen- /igo sao igualmente termos ambfguos, conduzindo a pela imotivacao do signo estendida 2 is adequacdo € concebi ‘The Prison-House of Language [0 Circere da Linguagem) (1972), ou a linguagem como pristo. Nessa directo, Barthes v da lingu: de France, proposigdes chocantes sobre o “fascismo" ingua 0 su cio, Nao pere- te nos esquecemos que Denon oer ue hn Ing, org nos eaeceoe toda lingua € uma cl re que toda classifcagio € pres] Fala, e com muito mals ao, dscomer, no € comunicsr, como s¢afima to feqentemente, € suet ‘A linguagem & uma legi © jogo sofistico de palavras entre eddigo ¢ legislagdo € aqui flagrante, conduzindo a assimilagio da pa va i siva 0 a de mundo, em seguida a uma ideologia repress mimesis coercitiva. A época nao era mais a das Mythologies nem da semiologia: distanciando-se da comunicacio e da signi- ficagao (“comunicar”), Barthes parece doravante colocar em primetro plano wma feng da inguagem que lembra sua fora ilocut6ria C'sujeitar"), ou 0s atos de linguagem analisados pela xagmatica, mas com uma inflexdo ditatorial. Nesse sentido, falar concerne ao real, ao outo, mas mesmo assim a lingua & profundamente nio re: P ‘Trata-se menos de refutar essa visto trigica da lingua, que ¢ observar que passamos, com a teoria literiria — ou melhor: ager —, ausénein de prblemaizato da Ing er oe : fing € transparent ou a lingua € des nte boa ou ela € inteiramente ma. “As coi tals ov menos, elas signa ono signa va Barthes na época de Sobre Racine,” co na ne trage Saal © possivel nto € nunca outa coisa sero 0 conto’ = alista nao é mais realista r que o romance pastoral, no diferentes perspectivas, em pintura, por serem Xm convengdes, no sto mais ou menos naturals, sempre reinou nessa discussio, “ 20, pelo menos desde 0 sual de Jakobson, “Do Relisno em Are” (1920), certa confusio entre a referéncia na lingua ¢ a escola em literatura, identificada ao romance burgués, mio € Possivel ignorar 0 contexto ssivel ignorar 0 contexto hist6rico no qual a tese da anbitea- sair da Igica intiva, onde se fecham os literntos — ou ali lo mundo, ov entao a literatura fala da Hteratuta =e woh regime do mais ou menos, da ponderagao, do apsoxinn imente: 0 fato de a literatura falar da literatura na inn que ela fale também do mundo. Afinal de contas, se 6 = bumano desenolve suas aeldades de lnguagem, & par le coisas que nao sao da ordem da linguagem, ‘A MIMESIS COMO RECONHECIMENTO Os partidirios da mimesis, apoiando- na Poética de Arist6teles, eens , diziam que a literatura imitava 0 126 mundo; os adversirios da mimesis Com geral ox te6ricos técnica modemos da poesia), vendo, sobretudo na Poética de representagao, retruc > da mimesis, empreendida nas duas por uma terceira leitura da Poética. Voltaremos 10 questionamento, efetuado pelos tedricos modernos da poesia, do modelo ntes mesmo de Arist6teles, pela utilizacio platOnica da Wea que permaneceu implicita apesar da inclusio aristo- {clica da didgesis na mimesis. Em compensacao, observaremos que, diferentemente de Plato, que af via uma c6pia da c6pia, logo, uma degradagio da verdade, a mimésis nao era passiva, mas ativa. Segundo a definigio do inicio do Capitulo IV da Poética, a mimesis constitu‘a uma aprendizagem: ! Desde a inffincia, os homens tém, inscrita em sua natureza, [-luma tendéncia & mimeistbaé limitar ou representarl — € © Thomem se distingue dos outros animais porque € naturalmente inclinado 2 mimeistbas limitae ou representar] e recorre & minis fem seus primeiros aprendizados (1448b 6). [A mimesis 6, pois, conhecimento, ¢ nao cépia ou réplica idén- ticas: designa um conhecimento préprio ao homem, a maneira pela qual ele constréi, habita o mundo. Reavaliar a mim apesar do oprébio que a teoria literdria langou sobre ela, ‘exige primeiro que se acentue seu compromisso com 0 conhe- cimento, ¢ dat com o mundo e a realidade. Dois autores desenvolveram particularmente esse argumento, Northrop Frye, em sua Anatomie de la Critique (Anatomia da Critica] (1957), jé insistia em trés nocdes da Poética, freqiientemente negligenciadas, para liberar a mimesis do modelo visual da copia: muthos (a hist6ria ou a intriga), dianoia (0 pensamento, a intengio ou 0 tema), € anagndrisis (© reconhecimento). Arist6teles definia 0 mutbos como *o sistema dos fatos” ou “o agenciamento dos fatos em sistema” (1450a 4 € 15). © muthos € a composicio dos aconteciment« uma intriga linear ou numa seqiiéncia temporal. Frye dire: hava a poética para uma antropologia, inferindo que a final dade da mim@sis nao era, em absoluto, copiar, mas estabelecer relagdes entre fatos que, sem esse agenciamento, surgiriam

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