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SE JOSE MIGUEL WISNIK = Lid | q | Lid | ec = bale 0 Minuto e o Milénio ou Por Favor, Professor, Uma Década de Cada Vez co Continua em vigor na miisica comercial-popular brasileira a convivén- cia entre dois modos de produsio diferentes, tensos mas interpene- trantes dentro dela: 0 industrial, que se agigantou nos chamados anos 70, com o crescimento das gravadoras e das empresas que conttolam os canais de ridio e'TV, € 0 artesanal, que compreende os poctas-misicos ctiadores de uma obra marcadamente individualizada, em que a subje- tividade se express litica, sattica,épica e parodicamente.! Especialistas europeus e erft 7 0s da chamada “cultura de massas” afirmam que a implancagéo da indistria culeural i prime nos “produ- tos de arte” a marca da repeticio ¢ da estandardizagéo, suprime a margem de operacio estética pessoal, 20 mesmo tempo que programa ‘mercadologicamente a imagem individual do artista. Mas & primeira vista jé da para saber que existe uma espécie de “aztesio canoro” (como jé se disse com intengSes pejorativas) que con- sinua a desenvolver uma poética carnavalizante, na qual entram aqueles clementos de liismo, de critica e de humor: a tradisio do camaval, a festa, o nonsense, a malandragem, a embriaguez da danca e a sibita consagraca'do momento fugidio que brota das histbrias do desejo que todas as cang6es no chegam para contat. ( segundo capfnulo do tema do “vazio culeural” na miisica dos anos 70, € que acompanha o da indistria cultural, chama-se “censura’. Esta se vestiu a rigor ao longo desses tempos; no momento usa traje exporte, No centanto, sustenta 0 critico Gilberto Vasconcellos, em seu livre De Olbo na Fret} que a tradigéo da malandragem na misica popular, especialmente 1 Os quatro primeiros pardgrafos do texto podem sr lidos, ese quise, como um “noticiério” extco, do qual eles parodiam levementeo tom, 2 Gilberto Vasoncles, Misa Ppa de Olona Free (Ride Jani: Ga 197). 169 MOsiCA aquela que através hidtdria do samba, instrumenta para contrapor’& orem sepressiva um contradiscutso, mesmo qué ciffado. E exempliica a autocoriscincta desse,processo coma msica "Festa Imodesta’ feta por ‘Caetano Veloso para. disco Sina! Fechado{r974], de Chico Buarque. Fii- ¢grantandoa sua apologia imodesta do compositor popiilar com citasBes de Assis Valente e de Noe! Rota, letra canta!“Tado.aquila/ que o malandro pronuncia! que‘ otéro silencia passa pla fiesta da cesta crestaa vid Salve prazet¢ salve-se-o'compositor popular ele passa um recado, vie no & propriamente urna ordef, nem simplesmenite uma palavra, nem uma paléyra de ordem, mias uma. pulsagio.que\inclui um jogo de ‘intura, uma cultura de resistéacia.que sucumbiria se vivesse's6 de sig- nificados, ¢ que, porisso:mesino, erabalha simultaneamente'sobre os it- ‘mos do corpo, da misica ¢ da Kinguagem ‘O-conto.“O Recado do Morro", de-Guimaries Ross, apresenta‘um ‘miro que além de bonito, ofereoe um modelo figueado que serve para in, terpretar melhor iss que estou falando agora: ali; hd um “recada” ouvido ‘por umcremitarecado que vem do fundo da tetra de “debaixo do barr do chio",c que paisa de bisca.em boca de forma ininceligivel porsete per- sonagens marginais (visionétios, ciangas, débeis mentais) 0 sétimo:dos aquais he dé a forma acabada'de uma tancio~ & 0 cantor popula: Gracas a progiessiva transmissio do recado, que passa dos estigios de fragmen- tirias intensidades dionisfacas até sua apolinea forma final, o herd coma consciéncia de.que-estd sendo vitimade uma clada, e se salva da morte: Nao conheso.desctigdo; melhorA-misica popular & uma.rede de reeados, em que o conceitual é apenas um dos seus movimentos: 0 da subida.A superficie, A base & uma s6,¢ std enraizada na culeura popu- lar: a simpatia anfmica,-a-adesio profunda 2s pulsagées teliricas, cor Porais,-sociais que'vo'se tornando linguagem. J wo O MINUTO E 0 MILENIO seni Na conjuntura de repressio-dos anos 79; musica: popular desses poctas portadores do reeadé-compreendeu talvez. mais do'que nunca a -espécificidadedassua forca; e ela vein-do prater, diz'a."Fesed Imodesta’, ide Caetano, ¢ da forca indomdvely-diz “O Que Sera’ (“A Elor.da Pele"/ "A Flor da Terra’), de Chico Buaique (essa misica ¢ talver.a forma mais completa do técado: da’ mtisica. popula como captacio das forgas eidtico-politicassdionisiaco-apolineas) : 3) ‘ -Ospedacos do-ecado que procuram. maior expiciasio politica ficam ‘embargados'navalfindega da censura/ou logiam passar com-ums ironia ‘camalebnica ‘pelo sew bics :estreito. E/o:caso de“Corrente”, samiba de Chico Buarque} verdadeiro exercicio da chamada “dialética da malan- dragem” aplicada 20 confronto com a ordém proibidora da censura: Nessa iisica, cle faz aparentemente um “samba pra frente” em que finge um ‘mea culpa pelo seu famoso e-censurailo “Apesar dé Voce", aderindo ironi- camente & “cortente pia frente” que era um slogan do. “milagre brisileio” (j@labalado'a aleurd do langamento do disco Meus Caros Amigos f1976)) ‘Mas a (Falsa) palinddia'é subvertida pelo drible de-corpo,.c a'letra.é can- tada-de trés pra frente, com deslocerriento'do ritmo ¢ da melodia quie al- tera.a énfase,-¢ daf a'sintaxe’e 6-gentido das frases, “Talvez precise-até ‘tomar na cara/ pra ver que o samba estd bem melhorado”, “talvez precise si tomar ia Gra pra Gonlessar que anil stimbando exrad (onde a en- toacao a principio sugeria que @ poeta se.compenettaya da melhora da es- tado geral de coisas'a énfase revela de repente os constraigimeias da fotga edo atblerio). A conera-corrente’€ contra-ideologia passada de ino em mao-No final dessa miisica, 0 verso“Isso me deixa triste ¢ cabisbaixo” pork pra dias ditepoes umd melahcblicae out aut-itOnica: “iad Wee a multidgo sambar contence", mas, “fazer um samba bem pra frente". Q humor exitico deixa o poeta cansado do elaboraido:malabarismo necessério m MGSICA para dar teinsico 4 ambigua mensagem, trinsito este que permanece ciffado ¢ duvidoso. Cangio acabada, obra aberta, corrente fechada. No seu livro, Gilberto Vasconcellos centra a atengio na dupla Chico Caetano, ¢ é realmente nesses dois artistas que a tensio poética em jogo atinge a sua parada mais alta. As correspondencias, afinidades diferengas entre Chico Buarque ¢ Caetano Veloso precisam ser acom- panhadas de perro, porque elas contém as correlagées mais significati- vas, Nao €2 toa que freqlentemente um é jogado contra o outro: sabe- se que so realmente duas forgas. No encanto, temas a mania maldiea de sé enfrentar a complexidade da cultura brasileira na base da exclu, de Enmilinha ou Marlene a Mério de Andrade ou Oswald de Andrade, e dat Chico Buarque ou Caetano Veloso. Por Mais Distante Que Posa Aparecer ‘Uma década ¢ isto: o planeta girando dez vezes Terra. Sempre foi, mas desta vez ficou mais visivel. Tudo de novo ao redor do Sol. Pela TV. Ver a Tetra da Lua e estar le estar aqui. Mas como? ‘A viagem pra fora da Terra alterou a nossa conscincia, como se ‘uma parte desta se desprendesse do planeta e nos visse ao longe, e ou- 3°A Tera distante me faz lembar das primeitas imagens do homem na Lua, © mo- ‘mento histrio presenciad pela TV Or asonautasslkavam como cangurus¢jo- sgavam golfe. Pareciam flies, encantados. Toda a teatalizagio dos locusotester- ‘estes, flando do maior feito da Humanidade, da Ciénca eda tecnologia, todo 0 palavreado nfo conseguia desviar minha atengio do que eu smplesmente via ~ os sstronautas brincando num playground fantstico, Mas quando a cimera most: «face da Lua contra o firmamento escuro, 0 que eu vi fo inexquecivele incom- preensivel. Ali estava a Tera, do out lado do video, numa outra dimensio de ea lidede. Como era concebivel que eu etivese ali, estando eu aqui", “Meditaio Dante de Uma Foto Dez Anos Vela, ¢ Ferra’, de Paulo Neves, em: Picolegia Abual Ano 1,49. eiura das canges 2 desprende nacutalmente dest texto im 0 MINUTO EO MILENIO visse no espago 0 nosso eco ecolégico. Caetano cantou em cima do lance: “Quem esteve na Lua viu/ quem esteve na rua também viul quanto a0 mais € isso ¢ aquilo/ ¢ eu estou muito trangiilo/ pousado no meio do planeta! girando ao redor do Sol” (“A Voz do Vivo", 1969). Em- bora nfo o diga nesse momento, ssa miisica foi feita depois de Caetano ter se encontrado “preso na cela de uma cadeia’, em fins de 68 e comego de 69, de onde ele vé “as tais fotografias/em que apareces intra! [..] ‘Terral Terral por mais distante/ o errante navegante/quem jam: queceria” (como ele dria dez anos mais tarde, no disco Muito, 1978). tees: ‘As duas musica esto ligadas por um arco, ¢ entre 0 oculto dbvio do firm dos anos 60 ¢0 Sbvio oculto do fim dos 70 esto dez volas de histéra ‘Mas 66 quem entende que o tempo se faz de cruzamento de tempos que pode compreender este simbolo: um homem encerrado numa prisio descobre a Terra como uma mulher, estando dentro dela, exces- sivamente dentro, esté de fora e a vé inteira. Estando preso esté desgar- rado, numa espécie de lugar nenhum que € 0 chiio de todas as utopias smuitas ves sonhadas de dentro das cade chao concreto: éa carne em que viajamos todos (no nada: ponto de fuga do espago-tempo), a carne do planeta e a nossa. O desgarramento da “Terra, langado por uma ficsio-cientifca real, é acompanhado de um novo cnraizamento nela (uma nova necessidade de dar-the carinho), um desprenderse que é acompanhado de uma pregnincia, palavra que tam- bbém quer dizer gravider: a Terra € um ovo, ¢ vem a ser fecundada de novo porestaviagem. Um ovo que se eleva na palima da mio, como uma cama, (A gente vai levando.) Chioo e Caetano: Terra’ e “Cio da Terr’ Tudo isto € algo mais do que uma histria individual. Sao simbolos ppara os quais “contribuem” acontecimentos de varias ordens: 0 Al-s, a tecnologia espacial, o vértice aflorante da consciéncia ecolégica. Se 0 que se redescobre este ™ Misia ‘Als que leva o;cantora cadcia €0 acdntecimento intestine que vai via- bilizar a férrea politica de: “desenvolvimento .e seguranga” dos:anos seguintes; efiquanto iso'a Ciencia dos ceriteos desenvolvidos:chega 20 seu miomento:dé devancio; eit espécie de passeio mo espago, ssa aven- cura que; éntre cara gratuita; nos coloca eara.a cara com 6 enorme e 6 {nfimo, e a consciéncia écolégica, que ird:passar pela via da contracul- ura e da negagio da ideologia désenvolvimentista, prepara.o desdobra- ‘mento (morte: ¢:renastimento)-de: seus sonhes. A-percepsio pottica trabalha.com a multiplicidade dos tempos, 2'saa riqueza vem dat Por'maisdistantes que possam parecer) na misica “Terra? cruzam-sea Bahia ea fndiayo minutoreo mito; détadsommiléniore a hora do Brasil! Sociologia do: Ouvido Tocadd de\Ouvido (D). [Nao € po'stvel:infalando em. cango: comercial popular como se ela ‘ivesse: um usoi pufamenitestéticd-contemplitivo, como se ela fosse tum objcto.dé-arteexposto num musetiou exectitado sobriamente nuima sala de conéerto, Uma das dificuldades de se falar sobre ela-é levar'em consideragéo,a:fnubtiplicidade dos seus usos; que corresponde &-multi> Blicidade dos médos como ela escutadai Acrescenta-se a essa dificul- dadeo fato-de quea miisica nio'é suporte de verdades a seremditas pela letra, como wid tela passiva onde se projetasse uma imagem figurativa; talver scja mais freqicinte, até, o.caso contrérioyem que.a letra aparece ‘comio-um-vefculo-que carrega a misica, 4 "Taspinigio lier dizer tsar edaddsarmente enerégue a proto de vim misin ost coptra-aqueles que falam em kermos de década e esquecem, 9, minyco e 0 1ilénio”,dizia © Manifesto do Movimento Jia (1975) “A d&ada ea eterna, © secu €6 ments 9 mints e a hist, dis 6 Manifesto do’ Movimetito Qualquer Coist; do mesmo ano.(ow seats, ou'minuto, ou hors), oo y 0 MINUTO EO MiLENIO » Que tipo de consumo se produz?,é pergunta que farcmos diante da massa sonora que transborda por todos os lados com o-avango da in-

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