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PULA 10 Batistella. C. Abordagens contemporanzas do conceito de saude. In: Fonseca, AF. (org.). O territério e o processa satide-doenga. Rio de Janeiro EPSJV, FIOCRUZ, 2007b, p. 51-86. Abordagens Contempordnev_ de Satde Carlos Batistello Introdugéo Terminada (porém nunca concluida) a nossa jornada pela historia dos mooelos explicativos de saiide e doenca, realizada no primeira artigo, creio ser apropriado um retorno ao esforgo de sua conceituago. Por envolver diferentes dimensoe’s e aspectos constitutivos, torna-se bastante dificil uma Jefinicao de satide. Ao contrério da doenca, cuja explicagao _pouca atengao de filéscfos e cientistas. Lembrando que a dificuldade de definir a sade ¢ reconhecida desde a Grécia antiga (Coelho & Almeida Filho, 2003), ¢ tendo como principios epistemologicos a complexidade e a incerteza do conhe- inento (Morin, 2001), nao temos a pretenséo de encontrar uma acepcao tini ca, mas sim de opresentar e confrontar diferentes olhares que se propoem a dificil tarefa de compreensao desse fenmeno. Para tanto, este artigo esta dividido em trés segdes: na primeira, sequin: do as indicagdes metodolégicas de Caponi (2003) e de Coelho e Almeida “ilho (2003), discutiremos trés formulacdes gue tem servido de referéncie no debate desta quest a saide | doenga; b) a satide como bem- i nn rr 40, apresentaremos alg.mas vertentes conceituais que propdem a articulazao dos determinantes e condicior.antes a explicagao dos fendmenos de saude-do- enga. Ao final, busceremos uma aproximagae ao problema da operacionalizcao de um corceito amplo de saiide. A Saude como Auséncia de Doenca A visao da satide entendida como auséncia de doenca ¢ iargamente di- fundida no senso comum, mas néo esté restrita a esta dimensdo do conhec: mento. Pelo contréno, essa idéia nao sé é afirmada pela medica, como tem st (© TERRITORIO E O PROCESSO SAUDE-DOENCA orientado a grande maioria das pesquisas ¢ da produgao tecnolégica em saude, especialmente aquelas referentes aos avangos na érea de diagnostico. Pera compreender as raz6es dessa prevaléncia, € preciso buscar sua génese na fun- dagdo do paradigma biomédico. As profundas transformagées socia's e cientifices iniciadas no século XVIt com 0 advento da Modernidade irao presencia’ um intenso debate entre empiristas e racionalistas quanto & produgac e validade do conhecimento. Os primeiras, afumando a necessidade de partir da experiéncia para a construgao posterior de modelos teéricoy capazes de explicara realidade. Os racionalistas, por sua vez, reivindicando a existancia de saberes a pric que iluminam & busca. de evide empi estiuturar @ método cieniifico e a teoria moderna sobre a doenga. De acordo com Foucault (19828, 1982b), a formagae da medicina cient: nei .as.E nesse contexto de afwmagao da eiéncia que se irao fica moderna! se dé a partir de sua subordinagao ao desenve Jinento capitals to, quo gerou profundas transtormagées socials na plano da sociedede e fez ‘ergir uma nogao moderna de Estado e de intervengéo social ‘Até meados do século XVIII, a doenga era vista como una antidade que ‘subsistia no ambiente como qualquer outro elemento da natureza. Esse carater ontolégico da doenga esta presente na transfarmagao_ da medicina em ‘medici na das espéeios’, Por influéncia de outros campos discinlinares, como a botant sificatore fundado nos ca, as doengas foram agrupadas em um)sistema cl sintornas. A organizagae dessa taxonemia, embora tena proporcionado bases racioneis para a escolha terapéutica, no logrou estruturar um modelo capaz de dar respostas as epidamias cada vez mais frequentes nas cidades mocernas, que viviam 0 industtialisima 0 capitalism emergente, ‘A ruptura desse sistema :6rico sera realizada com 0 advento da clinica madera. O hospital, anteriorm=nte concebido come lugar de exclusdo dos do- entes ¢ miseraveis do meio social e de éxercicio de caridade, transiorma-se, ¢radativamente, em local de cura. A substituigao do poder veligioso pelo dos medicos na organizagéo do hospital, 0 esquadrinhamento @ a divisdo de seu "Sobre © suiginente da medicina centr’ ver Lima, texto “Bases histonea-conceitvars para a compreaneso do trabalho em side", ne livro © Processo Historco “6 Trabalho crm Saude, nesta eolagio (N. ©) Sobre a formagae do Estade Nacional Moderna, ve policas sociais no captajsma", na ivra Sociacace. € (NE). hates e Perera, texto "O Estado @ 2s so @ Drea 4 Sauce, nesta colegeo |ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE apace interno ~ permitinds a separacao de doentes classificados de acordo am 0s sintomas ~ € 0 registro sistemético e permanente das informagaes dos pacientes, deat outros fatores foram fundamentals pare.essa mudanga, ‘medida que as doengas passam a ser acompanhedas estatisticamen te.o hospital também transforma-se em espago de produgao de con*ecimento ede ensino para os médicos-aprendizes, A clinica passa @ buscar uma lingu> gem objetiva, capaz de deserever 0 ‘signo original’ de forma menos abctrate possivel. O sintoma passa a representar a linguagem primitiva do corpo Com 0 aprofundamento dos estudos anatémicos, as disseogoes deca: déveres passam a procurare doenca no corpo (e no fora dele) a partirde seus sinais, €0 desenvolvimento da anatomia patolégica torna-se um dos principals + alicerces da medicina moderna. Mais a frente, @ unidade de analise deixa de ser'0 6rg80 & passa ser 0s tecidos. Q ‘othar munido’ (nao so:de instuumentos & idéncias técnicas, mas, principalmente, de teoria) parte em busca de cempiricas, € 0 exame tisieo mostra a mudanga na estrutura dos tecidos: a cada sintoma coresponde uma lesao anatcmopetolégica. A doenga. entao, trans: forma-se em patologia. Se até meados do século XI a doenca epidémica era relacionada a0 tuto © 20 olfato ~ devido a associagdo da lepra com 0 contato/contagio © da icas — com o nescimente de clinica a visBo (Foucault, nsagoes mais indilerecciades peste com as alteragoes atmosfér passa a sero prifcipal sentido reahitizado na compreensae da do: 1980: Machado, 1981): “Apresentanca-se come s edesvontituas, olfato e tato nao se prestam a memorizecéo ou a traduraa em imagens ¢ em linguagem. Ja a visao é um senticlo mets proximo da linquagem ©. portanto da razéo” (Czeresnia, 1997: 89) No &mbito da mudanga ne estrutura perceptive que sustentard o pensa- merta médico cientifico emergente, estao os valores da “localizago’. ‘especificidade’ e ‘interyengao". Os fenémenos sao explicados pela vova ‘racionali de a partir do estudo, baseado na observagao ena experiéncia, das mudangas.morfolégicas, organicas e estruturais. Por conseguinte.a saude passa ‘a ser entendida como séu oposte légico: a inexisténcia de patologia. ou sea. a [propria fisiologia. Essa profunda transformacao na forma de conceber a doen: a iré assentar as bases do sistema tedrico do modelo’ biomédico, cua forge explicativa é responsével pela sua presenga até os dias de hoje 33 (© TERRITORIO E © PROCESSO SAUDE-DOENtA -Caracterizado pela énfase nos aspectos biolégicos, individuais. epela abordagem mecanicista, esse modelo passa a fragmentar 0 corpo em siste- ‘mas, 6rga0s, tecidos e oblulas, estruturando um conhecimento cada vez mais especializado sobre cada fungao e disfungao organica, Os extraordina ri0s avangos da medicina nos ultimos cinquenta anos atestam sua capacidade indubitavel de andlise e de produgao de tecnologias. i Anetie ‘que todos os esforcos de invastigago concentravam:se na anélise da doenga, 6 conceito de saide era negligenciado, sndto de ore 9, Ou, na melhor das less, era secundarizado, uma vez que seu entendimento esteve sempre implicito cemo a ‘ndio-doenga’, ou, nas palavras de Lerich (apud Canguilhem, 2006: 57), como “a vida no siléncio dos érgaos". Uma das tentativas de enfrentar o desafio de conceituar a saide - ainda . marcos do modelo biomédico ~ partiu do filésofo americano Cristopher }oorse. Com base em uma epistemologia naturalista, Boorse elabora um con- ceito negative da saide,? porcebendo-a também como auséncia de doenga: "A janismo ce no desempenho da fungae natural de cada ‘Perte” (Boorse apud Almeida Filho & Jucd, 2002: 881). Para o autor da teoria broestatistca do saide, Seria preciso evitar qualquer dimensdo valorativa para — satide. Seu conhecimento se dé com base em uma concepgao do normal lefinido estatistica e funcionalmente (Almeida Filho ida Filho & Jucd, Invi Fi _xJho & Andrade, 2003). Rana ae ‘Ao defender que a classificagaa de estados hurnanos como saudavels ou loentes deva ser realizada somente com base em dados objetivas — a’ serem extraidos dos fatos bialégicos da natureza sem) ne: ara sue definigSo (Almeida Filho & Jucd, 2002). Em seus artigos, Boorse'nao apenas desenvalve os arqumentas em favor de sua teoria como justifica seu afastamento de uma concepgéo positiva de "satide, argumentando que tal abordagem apresentaria sérias incompatibilida- t x z r ste ore seca ee pari i tematicas de formulegao teérca de conceito de savde si 70 Partindo de uma teons biomédica ‘maaive de anise Crate Sette maremn ate eee ere ee 34 ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE des com teorias biolégicas de doenga. Em primeiro lugar qualquer concep¢ao positiva substantivaria a saide e, mais ainda, 2 elevaria ao plano do ideal. Em segundo lugar, estariaa dificuldade em determinar um ponto no sentido do qual a saide deveria ser promovida: “ndo s6 no ha qualquer meta fixa de perfeita satide para se alcangor, mas também néo ha uma inica diregdo para se avan- gor” (Boorse apud Almeida Filho & Andrade, 2003: 98). ‘Avangando em relagao A concepgao biomédica, autores ligados a tra digao da antropologia aplicada (Kleinman; Eisenberg & Good apud Almeida Filho & Andrade, 2003) procuram fazer uma distingdo entre patologia & enfermidade. Afirmam que a patologia refere:se a alteragdes ou a disfungio de processos biolégicos ¢/ou psicolégicos, definides de acordo com a con- cepcao biomédica. A enfermidade, por outra lado, incorpora @ experiéncia e ‘a percepgao individual, dizendo respeito aos processes de signilicagao da doenca, A transformagdo da patologia em experiéncia humana @ em objeto da atenc8o médica ocorre através de um processo de atribuigdo de sentido. {A fronteira entre normal-patolégico e sadde-doenga seria astabelecida pe las experiéncias de enfermidade em cada cultura — suas narrativas @ rituais docura Fica mais fécil perceber por que, diante da forga e da hegemonia do modelo biomédico, para a'maiorie da populagao, sade é nao estar dente, Sabemos, porém, que esta & uma dafinigao mvito limitada, Nem sempre a cial. Enteetanto, muitos auséncia de sinais # sintomas indicam a condigi s se consideram normais, ainda que portadores de um No dabate contempordneo, diversos autores tém enticado a doi co negativa de saide. Para Almeida Filho e Andrade (2003: 101), “em uma perspectiva rigorosamente clinica (..) a Gadde aio 6 0 oposto légico da -doenga e, por isso, ndo podera de modo algum ser definida como ‘auséncia de doonga’. (:) 08 estados individuals de saiide ndo sao excludentes vis & vis a ocorréncia de doenga". ‘A teoria boorseara também 6 combatida sob a alagagdo de que tan somensurdveis (Laad apud Almoida determinada doenga, to a saiide camo a doenga seriam inci Fitho & Jucé, 2002) & que © conceito de doenga porta componentes do » nao-biolégicos, como vem afirmando a antropologia fisicos, nao-quimico: médica contemporinea, a psicanalise @ a epistemologia médica de Canguilhem. Nestas abordagens, a idéia da sade come auséneia de doen 55 (© TERRITORIO E © PROCESSO SAUDE-DOENCA ga foi ampliada pela perspectiva da ‘saiide com possibilidade de adoecimento’ (Canguithem, 2006; Coetho & Almeida Filho, 2003) Para as pesquisas antropolégicas, a auséncia de enfermidade nao implica necessariamente a satide. Individuos considerados doentes sob o pontode vista clinico e laboratorial, que resistem e afirmam estarem bem, s30 considerados saudavels em seu meio (Susser apud Almeida Filho & Jucd, 2002; Kleir Eisenberg & Good apud Almeida Filho & Jucé, 2002). No ambito da psicandlise, tem sido questionado 0 antagonismo que ® medicina atribui entre o normal e 0 patolégico: Toda pessoa se apraxima do neurético @ do psicétice num lugar ou nou: tro, em maior ou menor extensSo. A vida dos nermais também encontra- ‘se marcada por sintomas e tragos neurdticos (...) Assim tanto 0s fendme: ‘nas normais quanto os patolégicos #80 produzidos pelos mesmos meca nfamos mentais. (Freud epud Coelho & Almeida Filho, 2003: 102) Canguithem, por sua vez ama que saide implica poder adaecer e sair do estado patolégico, Em outras patavras, a sauide ¢ entendida por referéncia 4 possibilidade de enfrentar situagdes novas, pela “margem de tolerdncia ou de seguranca que cada um possui para enfrentar e superar as infidelidades do meio” (Canguilherm, 2006: 148), ou ainda “um guia regulador das possibilidades de reagao” (p. 149). A ameaga da doenga 6, portanto, um dos elementos constitutivos da saide. (Coelho & Alineida Filho, 2003). 0 estado patoligico no ¢ apenas uma variacso quantitativa (alts ou exc0580) do estado isiolégico. Contestande 9 coeréncia Logica do princio enun ciado por Claude Bernard," que define @ atenvagio ou a exagerayao de um mecanismo normal como estado patoldgico, Canguilhem (2006: 74 grifos do auton) alerta: “é em relagio a uma norma que se pode falar de muis ou de man, :nenos, no campo das fungbes e das necessidades fsiolégicas”. Para chegar a esse entendimento, 0 autor investiga as relegées entre norma e saide ‘Adoenga no ¢ apenas o desaparecimento de uma ordem fisilégica, mins ‘aparecimento de uma nova erdem vital (.)-O patol6gica implica pathos, um sentimento dirato'e concreta de zofrimento e de impoténcio, sent ‘mento de vida contrariada (..).(Canguilhem, 2006: 145, 96) * Médico @ fisilagista francés do século XIX. aonsklerado wn dos prineipaisinckdores da linha experimental hiptetico-dedutva. Fliado a compreunsdo dindmica da deorga, afrmova 4 identidade real e a continsdade entre os fendmores patologicos e fisiclégiccs. Para Claude Barnard, 0 estudo dos processcs patalinicas cove pari do contecimeato do estado rermal do Inceidvo. 36 ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE A saiide, por sua vez, envolve muito mais que a possibilidade de viver em conformidade com o meio externo, implica a capacidade ce instituir novas nor- ‘mas. Canguilhem critica 0 reducionismo da concepgao biemédica mecanicista: “& compreensivel que a medicina necessite de uma patologia objetiva, mes uma pesquisa que faz desaparecer seu objeto nao 6 objetiva. (..) Aclinica coloca 0 _médico em Contato com individuos completos e concretos, e néo com seus ér- "gos ou fungdes" (Canguilhem, 2006: 53-55). As tentativas de definir objetivamente a sa.ide por meio de constantes funcionais e médias estatisticas produzem o apagamente do corpo subjetivo assinalado por Canguithem. Dor, sofrimento, prazer ~ referéncias inevitéveis quando falamas de sade - indicam a necessidade de falar na primeira pessoa ali onde 0 discurso médico insiste em fatar na terceira pessoa (Capon, 1997), Em iltima andlise, é possivel afirmar que ha uma parte do corpo humana vivo que @ inacessivel aos outros, que 6, pura € exclusivamente, acessivel a seu titular. Radicafizando essa perspestiva, o autor rf sustentar a tese de que a satide no & um conceito cientifico, e sim um conceito vulgar e ima questo filoséfica. Vulgar nao no sentido de trivial, mas simples mente comum, ao alcan: ce de todos, isto é, capaz de ser enunciado por qualquer ser humano vivo (Canguithem, 2005) Sudde e Bem-Esiar © estorgo te Cooperagéo Internacional estabolecide entre diversos pai ses no final da Segunda Guerra Mundial deu origem a criagdo, em 1948, da Organizagio Mundial da Saide (OMS), agéncia subordinada 4 Organizacao das Nagées Unidas. Em seu documento de constituigao, a satide fei enunciada como “um completo estado de bem-estar fisico, mental e social, ¢ nao apenas .nuséncia de doonga ou enfermidada". ‘Ao reagrupar as diferentes dimensdes am que se insere a vida humana (Lutz, 2006), e584 perspectiva evidencia uma tentativa de superar a visio nega tiva da satide propagada peias instituigoes médicas. Apesar do avango, virias criticas incidiram sobre este conceito, Por um lado, foi apontado 0 seu carater utdpico, inaleangavel. A expres 380 ‘completo estado’, além de indicar uma concepga pouce dindmica do pro- cesso ~ uma vez que as pessoas néo permanecem constantemente em estado 87 © TERRITORIO E O PROCESSO SAUDE-DOENCA E possivel destacar, como uma das mais relevantes contribuigoes de Foucault para nossa reflexao, 0 modo como foi-se constituindo, a partir des sociedades industriais, um grande esforco de disciplinarizagéo e de normaliza- ‘go do social, “um dispositive de selegdo entre os normais ¢ os ‘anormais™ (Foucault, 1982c: 150). Os mecanismos de controle ajustamento se dao tanto de forma sutil, por meio da propagacao de modelos e da prescrico de compor- tamentos desejéveis, quanto de forma mais rigorosa, por meio de regulamenta- ges, controles e exclusdo dos 'degenerados'. As implicagdes da associagao entre norma e saude sob esta perspectiva podem ser percebidas de diferentes formas. De um lado, o sucesso de progra- mas de imunizegao e a obrigatoriedade na notificagao para auxiliar 0 controle de doencas, por exemplo, tém corroborado a importéncia de intervengoes esta- tais. De outro, o estabelecimento de normas e padrées de condutas saudéveis a serem observadas para evitar as doencas tende a colocer exclusivamente ‘sobre os individuos a responsabilidade pelo seu adoecimento, Ora, ao descontextualizar os fendmenos de saiide e doenga do de- senvolvimento historico e cultural da sociedade, isenta-se 0 poder publice e culpabiliza-se a vitima. Entre outras conseqiéncias, essa concepgao tem sustentado a tese do focalismo em saude que, diante de um cenario de recursos limitados, preconiza a definicao de prioridades para a oferta de servicos de saide, em detrimento da oferta universal, defendida como di- reito inalienavel do cidadao e dever do Estado. Diversos autores (Campos, 2003; Carvalho, 2005; Lefevre & Lefevre, 2004) alertam para os riscos da penalizagao dos individuos mediante 0 estabe- lecimento de critérios discutiveis de homogeneizagao de comportamentos. Esse dispositive configuraria uma agudizacdo do autoritarismo sanitério, diminuindo ‘amargem de autonomia das pessoas, dos grupos humanos e das coletividades. Localizando esses tragos no discurso € nas praticas de abordagens reducionistas da promogdo da saide, estes autores questionam o alcance de uma de suas estratégias - desestimular comportamentos e estilos de vida nao- saudaveis: é preciso que se saliente que as acbes de promogio de saide a0 intenta- rem modificar estlos e comportamentos de vida deve evitar, a0 méx: mo, @ intruséo nos assuntos das familias, desrespeitando posicoes minortérias ou divergentes daquelas hegeménicas na sociedade (..) AS: 60 ‘ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE si paid. nbd 0 tiaras kopoaklcida Watigfenspasdons shits: mae erm nome de beveticos pore ees, benetciee hgedo segundo ue 6tica externa (...). (Lefévre & Lefévre, 2004: 154) Obviamente nao se trata aqui de questionar o beneficio de adogdo de determinadas condutas e agdes, como receber as vacinas, lavar as maos, mentar-se com uma diets equilibrada, praticar esportes, nem de ignorar prAti cas nocivas é sadde. Interroga-se sobretudo sobre os limites da regulago soci al sobre os individuos e, principalmente, oalcance de suas recomendagies dian- te de condigdes de vida restritivas: Essa colcagies ns remelem a questoramertos como: soma rea tcocho-oe on rapepahvest bot sea soba Saas ado ob remponatvale pot sau eatlo de ide nto seule tenis po Smo tiveram condigdes de exercer sua autonomia para poderem se conservar saudaveis? (Lefévre & Lefévre, 2004; 154) A responsabilizagéo das pessoas por estilos de vida ‘ndo-saudaveis’ ten. deria a desviar a discussao de fatores sociais, ambientais, econdmicos € sobre ‘as condigées de trabalho que influem fortemente no pracesso saide-doenca. Carvalho (2005), diferencia as versées da promogo da saide quanto ao seu potencial efetivo de mudangas. Identifica dentre aquelas que apontam para a manutengao do status quoa “promo¢éo da saide behaviorista”, cuja estratégia de intervengéo sobre estilos de vida é criticada como justificativa para 0 ndo-enfrentamento das cau- ‘sas da iniqdidade na distribuigdo de recursos e de poder na sociedade: ‘ortnts dons wéaprcoho eo cana feicosclig bi pide mobs plnace mais profida don protlrnss soc. E igus na cesndrio ndoger sobre o cote da nogse de hibios de va seuds tui ooedo Cpl oongyase puget comm acute ale aim é catilo de vida saudével?” ‘quais S60 as cousas que est8o na origem do estilo de vida nao saudavel?’ (...) A promogao da satide behaviorista tra- Calta com ume concep redacerata do auto, defrindoe como un porque esulaprodorsranmerts de dlermiroges de natvece Doe. ca ou comportamental. (Carve, 2008: 150) Nesse mesmo caminho, porém buscando indicar algumas diretrizes ‘operacionais para a reorganizago do modelo de atenco, Campos (2003: 116) chama a atengao: hpi et opin Sut va bia andere tale coletve, como quende ola planta sine exo de wde, val fando a dmensdo quortidade. ganhar-se onos de db, om detrimento ‘alorosreloconeeb quakdede e hteratia cage a ve supers Sao domes Secure memataie's tore Sopwbla ev sonora ;nalisando as correntes contempordneas da sade coletiva, “1 © TERRITORIO E © PROCESSO SAUDE-DOENCA de bem-estar -, revela uma idealizago do conceito que, tornado inatingivel, ‘ndo pode ser usado como meta pelos servigos de sade. Por outro lado, afirma- se a sua caréncia de objetividade: fundado em uma nogdo subjetiva de “bem- estar’, implicaria a impossibilidade de medir o nivel de sade de uma populagéo. Sobre este ttimo aspecto, porém, Caponi (1997) faz uma adverténcia: embora o conceita de sade da OMS comporte critica, esta ndo deveria incidir sobre seu cardter subjetivo, posto que a subjetividade 6 um elemento inerente 8 definigao de satide-doenga e, por ser dela inseparével, estaré presente seja em uma concepedo restrita, seja em uma perspectiva ampliada de saude. Na visao da autora, mais do que impraticdvel, porque ut6pico e subjetivo, ‘2 maior objeglo ao conceito da OMS reside no fato de que sua adogao pode servir para justificar praticas arbitrérias de controle @ exclusdo de tudo aquilo ue for considerado indesejavel ou perigoso. A simples tentativa de definir 0 estado de bem-estar mental e social poderé supor uma existéncia sem an- Gistias ou conflitos, sabidamente inerentes a propria histéria de cada ser humano e de cada sociedade. Assim, 0 discurso médico pode converter-se em discurso juridico, e tudo aquilo que ¢ considerado perigoso ou desviante se torna objeto de uma intervengao ~ medicalizagso, Fundamentada nas reflexes de Canguilhem e Foucault, Caponi (1997: 300-301) contrapde-se ao conceito enunciado pela OMS: ‘© que chamamos de bem-ostar se identifica com tudo aquilo que em uma sociedade e em um momento histérico preciso @ valoreado como ‘nor mal’ (..) Para Canguithem, as infidelidades do meio, 0s fracassos, os erros e 0 mal-estar formam parte constitutiva de nossa histéria e desde o momento em que nosso mundo & um mundo de acidentes possiveis, a SAREE ApS emer: Saude e Norma ou a Dimensao Normativa da Saude ‘Nessa jomada exploratéria em toro das concepgées de saiide e doenga, € recomenddvel que se faga uma breve pausa com 0 intuito de observar mais detidamente as relagoes entre norma e saude. Analisaremos aqui dois dos principais enfoques que tratam da dimen: 840 normativa da sade. O primeiro, desenvolvido a partir das investiga Goes de Michel Foucault, diz respeito ao estabelecimento de normas sociais |ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE associadas ao surgimento, da medicina social na Alemanha, Franca e Ingla terra, no final do século XVIII. © segundo parte dos questionamentos epistemologicos de Canguilhem acerca da relagao entre os conceitos de norma e média, normal e patolégico. De acordo com Foucault (1982a),0 surgimento do Estado Moderno colo- = Conseqiléncia dessa perspectiva, a medicina do século XIX se mod) fica, introduzindo 0 controle dos corpos através da normatizagao dos espagos, dos processos e dos individuos, necessarios para a sustentago do capitalismo emergente. A nova ordem econémica, fundamentada na industrializagao e complexiticagao do trabalho, tornou necessario 0 estabelecimento de novas rnormas e padrées de comportamento (Coelho & Almeide Filho, 2003). O.corpo, investido politica e socialmente como forga estatal e como forca, de trabalho, passa a ser monitorado por meio das estatisticas vitais e de morbidade. A instituigao da quarentena como forma de deter o progresso das epidemias estava baseada no esquadrinhamento da populagao urbana e na implementagao de regulamentos de urgéncia. A pratica da vigilncia era reeli zada por chefes de distrito e inspetores de bairro, com registro centralizado das ‘ocorréncias (Foucault, 1982a). Na Franga, 0 surgimento da medicina urbana introduz 0 controle da circulagao das coisas e elementos, como o ar ea égua. A reforma urbana promove a remogao de amontoamentos de casas sobre as pontes, de cemi térios e matadouros localizados no centro de Paris ¢ a abertura de avenidas amplas e arejadas. Na Inglaterra, a medicina social caracterizou-se como medicina dos po- bres, da forga de trabalho e dos operdrios, conjugando um sistema de assistén: cia e de controle médico. A medida que os pobres eram beneficiados pelo trata- mento gratuito ou de baixo custo, deveriam submeterse a varios controles médicos. A imposigao de um cord8o sanitério no interior das cidades, separan- do 05 ricos dos pobres, garantia, indiretamente, 2 protegao dos segmentos mais abastados com o fim da heterogeneidade de vizinhangas e a diminuigao da {émicos entre os pobres. Ao final do século XIX a ‘lei dos pobres' ¢ acrescida pelas acdes de controle da vacinacao, de interven possibilidade de fenémenos epi a0 em locais insalubres e do registro de doengas (Foucault, 1982a) © TERRITORIO E © PROCESSO SAUDE-DOENCA de conhecimentos técnicos sobre risco com valores de uso existentes em distintos grupos de sociedade. _-serporgi dos conceitos de aide enormakidode,destaandoo duplorot do do conceito de ‘normal’. De um lado, refere-se a nogéo de médias e constan- tes estatisticas. De outro, apresenta-se como um conceito valorativo, aludindo quilo que é considerado como desejével em um determinado momento e em uma determinada sociedade. Ei sentido geal considerado normal’ tudo aquilo que & esperado Para um organise, 0 que¢compatelcama vide Assim, osoncato de norma esté indissolvelmente vinculado com a média estatistica ou tipo. UeAige de (Caponi, 1997). Canguithem, no entanto, questiona a suposta identificagao entre norma médi, segundo a qual os valores considerados como médias estatisticas nos dariam as medidas certas daquilo que deve ser considerado como normal para tum organismo. Para 0 autor, a0 contrério do que se supée, ndo é a média que estabelece o normal: as constantes funcionais expressam normas de vida que 1780 so 0 resultado de habitos individuals, mas de valores sociais e biolégicos. Assim, devemos considerar as médias (constantes) fisiolégicas como expresso de normas coletivas de vida histérica e socialmefite mutantes. Ser normal, portanto, nessa perspectiva, indica a prépria capacidade do individuo de, em um cendrio de restrigbes ou adversidades, instaurar uma nova norma, ser ‘normativo’: "Uma pessoa pode ser normal em um determinado meio e no sé-lo diante de qualquer variacdo ou infracdo do mesmo. Recorde- mos que saudével é nesta perspectiva, aquele que tolera e enfrenta as infra gees" (Caponi, 1997: 297), Esse aspecto serd especialmente relevante mais & frente, quando anali sarmos a perspectiva da autonomia contida em um dos campos centrais de ‘ago da promogdo da saude, o empowerment (empoderamento) ~ tratado em sua dimenséo social. Abertura de novos horizontes terapéuticos, originados com os recentes: avangos da biologia molecular, parece reacender o otimisme e a confianca na a, experimentadas tanto na chamada ‘era bacteriolégica' do final do sécu ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE lo XIX quando foi comprovada a relagao entre os microorganismos e as doen- gas e foram desenvolvidas as primeiras vacinas ~ quanto no periodo apés a Segunda Guerra, quando 0 advento dos antibiéticos pareceu inaugurar uma renga na cura de todas as enfermidades. ‘Ao mesmo tempo em que a descoberta do genoma humano coloca a possibilidade de intervengo no cédigo genético a fim de evitar o surgimento de determinadas enomalias, a profuséo de estudos bicestatisticos de fatores de risco aponta pera um controle cada vez maior das circunstncias que predis- dem o individuo ao adoecimento, indicando os comportamentos e os modos de vida considerados saudéveis. Nesta perspectiva, fica patente a associagéo dos conceitos de sade e normalidade com as freqiéncias estatisticas. Embora seja esta a definigao mais corriqueira e mais utilizada pelos profissionais da area de satide (Caponi, 2003), diversos autores tém questionado seus pressupostos (Canguilhem, 2006; Almeicia Filho & Juca, 2002; Caponi, 2003), afirmando a impossibilidade de se identificar ‘anomalia com patologia e, conseqdentemente, normalidade e sadde. Para Caponi (2003: 56), “se nos referirmos ao cédigo genético ‘normal’, ‘veremos que existem inimeros exemplos de variagées e desvios, de ‘anomalias” ue ndo podem ser, em absoluto, consideradas como de valor negativo ou pato légicas”. Por outro lado, a comparagao entre os organismos, a fim de obter intervalos estatisticos por onde a normalidade fisiolégica seria estabelecida, também resultaria em um artificialismo que no contempla a diversidade da vida. Segundo Canguilhem (2006), 0 ser vivo nao pode ser considerado normal se for considerado em separado de seu meio. Saude como Direito: © conceito ampliado de saude Analisemos agora o conceito de satide formutado na histérica Vill Conte réncia Nacional de Saude (Vill CNS), realizada em Brasilia, no ano de 1986, Também conhecido como ‘conceito ampliado’ de saiide, foi fruto de intensa mobilizacao, que se estabeleceu em diversos paises da América Latina durante as décadas de 1970 e 1980, como resposta aos regimes autoritérios @ a crise dos sistemas publicos de saiide. © amadurecimento desse debate se deu em pleno processo de redemocratizagao do pais, no émbito do movimento da Reforma Sanitaria bra- 63 © TERRITORIO E O PROCESSO SAUDE-DOENCA sileira e representou uma conquista social sem precedentes ao transformar-se ‘em texto constitucional em 1988.* Recordemos seu enunciado: tide e da doenga nas coleti- baseada na primazia do co- ‘nhecimento anatomopatokigico @ na abordagem mecanicista do corpo, cujo modelo assistencial esta centrado no individuo, na doenga, no hospital e no médico, 0 texto defende como principios e diretrizes para um novo e nico sistema de saide a universalidade, a integralidade, a eqiidade, a descentralizacso, a regionalizago e a participagao social. Alinha-se a uma corrente de pensa- ‘mento critico que tem expressao em diversos autores na América Latina Para Laurell (1997; 86), a saude ¢ vista como ‘necessidade humana’ cuja Satisfagao “associa-se imediatamente a um conjunto de condigées, bens e ser: vigos que permite o desenvolvimento individual e coletivo de capacidades e potencialidades, conformes ao nivel de recursos sociais existentes e aos pa- dr6es culturais de cada contexto especifico” A satide, no texto da Constituicao de 1988, reflete o ambiente politico de redemoeratizacao do pais e, principalmente, a forge do movimento sanitario na luta pela ampliagao dos direitos sociais: "A sade é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante politicas sociais e econdmicas que visem a redugio do risco de doenca e de outros agravos a0 acesso universal igualitério as goes @ servigos para sua promogao, protecéo e recuperagao” (Brasil, 1988. 37). 0 grande mérito desta concepcao reside justamente na explicitagso dos determinantes sociais da sadde e da doenga, muitas vezes negligenciados nas cconcepgdes que privilegiam a abordagem individual e subindividual.® * Sobre a conquists da saude como dipito no Brasil, ver Baptists, texto “Histora des poiicas de sade no Brasit: a trator do dieito sade’, no wre Politeas de Saude, orgarcagio & ‘peraeionaliragso do Sistema Unico de Soide, nesta colegso (NE) "De acordo com Almeida Filho (2003), 0 objeto saide-donea, enquanto objeto complexo. deve ser apreeneido 2 party de suas diferentes dmensdes (a elassificagso e hierarquzagso dessa dimensdes serd trotada mas a fronte). A dimensao subiicividva refere-se aos orgies ¢ sistemas de um determinado indviduo onde se expressam diferentes processus fisopataiopicos 6a i i | ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE ‘Sem desmeracer sua importancia histérica, alguns criticos fazem regal. vvas a este conceito. Para Nascimento (apud Caponi, 1997::302), esta concepgdo situa a saide e enfermidade como fenémenos Superestruturais que reproduzom, como uma resuitante ou coma um eo +0, uma unica dimensao considerada como delerminante absolita: a gs sécio-econémica, Assim, aquela ae se propde como a forma maig ne ‘gressista# inovadora de concetvar sade pode acabor por resultr Pre ‘camente pouco operative ou simplesmente inbidora de acbes efetiyer De acordo com esta andlise, o conceito ampliado esvaziaria a rata, réncia as especificidades biolégica © psiquica da enfermidede. De forms semelhante a0 conceito da OMS, dada a sua amplitude e extens8o de sig atuagao, correria 0 risco de ver medicalizados todos os dmbitos da exigygn, cia (trabalho, alimentagao, tempo livre, transporte etc). Esta perspectiva encontra eco em meio a autores que mais recente, mente tém estabelecido uma critica a0 movimento da promocao €2 sade Reconhecida como uma das mais instigantes propostas para operacionaljzay © conceito positive da saide ~ desde de sua reconfiguracéo a partir uo “Informe Lalonde”, no Canads, até os dias de hoje ~ a promocao 48 sae vem ganhando espago tanto nos debates académicos (Buss, 2003: C2erenig 4 Freitas, 2003; Lefévre & Lefévre, 2004; Teixeira, Paim & Villasb6as, 299) quento nas politicas publicas mais amplas (Brasil, 2006). A reorientacao dos sistemas de satde, um dos campos centrais qa ado desta perspectiva de acordo com a Carta de Otawa, se expressa atc, ves da formacao dos profissionais e, principalmente, pela atuacso intersetorial. Para Lefevre e Lefévre (2004) @ Carvalho (2005), no entgnae {80 definir como instancia privilegioda a intersetorialidade, a politica de «x de deixaria de ter um objetivo setorial especifico e diluir-seia come Pseudomandataria de todas as demais politicas, Para Lefévre © Letavee (2004), 20 afirmar que a sade & responsabilidade de todos os setores (y. bitagao, emprego, renda, meio ambiente etc), a perspectiva gq intersetorialidade esvaziaria a ago especifica do setor saiide om detrinen. to de agées politicas globais com alto grau de generalidade. 0 risco do uso equivocado do conceito de ‘politicas piblicas sayqs. eis" jd ficou demonstrado pelo caréter abusive com que se procuroU rave, tir politicas clientelistas em anos eleitorais, representando desvio de page las significativas do recurso destinado ao setor saude. 65 crm y 6 Pes SH DONS Contudo, submetendo 0 conceito ampliado da Vill CNS as teorizagoes de Canguilhem, Caponi reconhece que, ao estabelecer 0 entendimento da satde como uma ‘margem de seguranga para suportar as infidelidades do meio’, 0 autor concede uma certa primazia 4 dimensao individual do fené- meno de saude-doenga, excluindo de suas preocupagées os determinantes sociais: “Poderia-se argumentar que ao falar da necessidade de integrar esas infidelidades do meio como um elemento indispensavel para tematizar a sade, se corre o risco de legitima-las em lugar de combaté-las” (Caponi, 1997: 304) E importante diferenciar a inevitabilidade do adoecimento, quando falamos de doengas e agravos cuja compreensao sobre seus determinantes ea capacidade de intervengao ainda sao limitadas — 0 caso de muitas viro- ses, por exemplo -, da perigosa naturalizagao de condigoes de vida adver- sas que, sabidamente, conferem maior vulnerabilidade a diferentes grupos © extratos sociais. Avangando de forma dialética em diregao 4 superacao das dualidades individuo/coletivo e sujeito/estrutura, Caponi propée a extensao do conceito canguilhemiano a esfera social. Saude, nesse sentido, estaria referida a capa- cidade de individuos e coletivos de tolerdncia com as infidelidades do'meio. Exemplificando, no caso da tuberculose, podemos observar que os organismos menos saudéveis sio aqueles que possuem menor capacidade (falta de ali- mentagao, de moradia adequada, de educagao, incapacidade de autocuidado etc.) para tolerar e enfrentar esta ‘infidelidade’ (neste caso, 0 bacilo de Koch) que seu meio apresenta. Em sintese. isto significa que Diversos trabalhos tém sido desenvolvidos no intuito de formular uma conceituagéo positiva de saude. A principal caracteristica dessas abordagens & a busca de uma integragao dos aspectos sociais e econémicos na explicagao do processo satide-doenga. 66 AOR XN CT Phe Dow mm DD O enfoque ecossistémico da saude jo como uma das alternativas tedrico-metodolégicas surgidas na déca- da de 1970 para fazer frente ao conceito negativo e restnito de saude, 0 enfoque ecossistémico busca rever a perspectiva rica de dominagao dos es. pagos ambientais, ‘co carter predader ton sido responsavel pela destruigao _ dos projetos humanos de vida saudével (Minayo, 2002). A despeito de nao intencionar, a0 menos explicitamente, a criagao de um novo conceito de saiide, acreditamos ser importante enfatizar algumas dimen ses destacadas por seus pressupostos. Aabordagem ecossistémica coloca em xeque 0 uso instrumental do con- ceito de ‘desenvolvimento como crescimento econdmico’, ligado apenas ao di- namismo econdmico, produgéo de riquezas e aumento da produtividade. Ao questionar o contetido do crescimento, procura Ihe conferir outro sentido, ode desenvolvimento humano. Outro conceito fundamental passa a ser o de ‘quali- dade de vida’. Entendida para além das tentativas de sua apreensdo objetiva através de indicadores quantitativos, sua definigao 6 eminentemente qualitati- va, e junta © sentimento de bem-estar, a viséo da finitude dos meios para alcangé-lo © 2 disposigao para, solidariamente, ampliar as possibilidades presentes ¢ futuras. Portanto, da mesma forma que a nocao de saide, a qualidade de vida, dentro do enfoque ecossistémico, ¢ como um guarda-chuva onde estdo a0 abrigo nossos desejos de felicidade; nossos parémetros de direitos humanos; nosso empenho em amplar as fronteiras dos direitos sociais e das condicaes de ser saudavel e de promover a satide, (Minayo, 2002: 174) O estreitamento das relagdes entre saiide e ambiente provocado neste enfoque representa um significativo avanco no questionamento do uso desme- dido dos recursos naturais e de seus impactos ambientais e sociais. Sob esse Ponto de vista, a sate e a doenca decorrem tanto das chamadas ‘situagdes de risco tradicionais’ ~ como a contaminagao das aguas e dos alimentos, a ausén cia de saneamento, a maior exposicao aos vetores, as condigées precarias de moradia ~ quanto de riscos "modernos’ - como 0 cultivo intensivo de alimentos € monoculturas, a poluicao do ar e as mudangas climéticas globais, o manejo inadequado de fontes energéticas, entre outros. Compreendendo a saiide-doenga como um processo coletivo, tal enfoque indica a necessidade de recuperar 0 sentido do 67 (© TERRITORIO E 0 PROCESSO SAUDE-DOENCA lugar” como 0 espago organizado para a andlise e intervencéo, buscando \dentificar, em cada situagao especifica, as rolagdes entre as condigbes de saiide © seus determinantes culturais, sociais e ambientais, dentro de ecossistemas modificados pelo trabalho e pela intervengdo humana. (Minayo, 2002: 181-182) (© Modelo conceitual dos determinantes sociais da sadde ‘Sabe-se que alguns grupos da populagao sio mais saudéveis que outros. Se deixarmos de lado as desigualdades de adoecimento de acordo com a faixa etéria @ as diferengas ocasionadas pelas doencas especificas de cada sexo, € voltarmos nossa atengéo ao cruzamento e relacionamento de informagbes, evi denciam-se as desigualdades decorrentes das condigdes sociais em que as pes- soas vivem e trabalham. Ao contrario das outras, tais desigualdades so injus- tas e inaceitaveis, e por isso $40 denominadas iniquidades (Brasil, 2006). Exemplo de iniqiiidade é a probabilidade cinco vezes maior de uma crian- a morrer antes de alcangar o primeiro ano de vida pelo fato de ter nascido no Nordeste e nao no Sudeste. O outro exemplo é a chance trés vezes maior de uma crianga morrer antes de chegar aos cinco anos de idade pelo fato de sua mae ter quatro anos de estudo e nao oito. As relagées entre os determinantes e aquilo que determinam 6 mais com plexa e mediada do que as relagbes de causa e efeito. Dai a denominagéo ‘determinantes sociais da saide’ © ndo ‘causas sociais da saide’. Por ‘exemplo, o bacilo de Koch causa a tuberculose, mas s40 0s determinantes sociais que explicam porque determinados grupos da populacao sao mais susceptiveis do que outros para contrair a tuberculose. (Brasil, 2006: 1) Os determinantes sociais da saiide incluem as condigdes mais gera . culturais @: | de uma sociedade, e se relacio- nam com as condigdes ee de seus membros, como habita- 40, saneamento, ambiente de trabalho, servigos de saude e educacao, incluindo também a trama de redes sociais e comunitarias. Dentre os varios modelos propostos para a sua compreensao (Solar & Irwin, 2005), destaca-se um esquema que permite visualizar as relagdes hierar: quicas entres os diversos determinantes da satide (Figura 1). Nessa perspectiva, 0 conceito de ‘lugar’ remete 20 terntério da Sree de atuacdo das equipes do Programa de Saiide da Famila (PSF) 68 | ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE Figura 1 - Modelo de Dahlgren e Whitehead: influéncia em camadas *. tng , pga! “n Fonte: Whitehead & Dahlgren apud Brasil, 2006. Se quisermos combater as iniqiidades de sade, devemos conhecer melhor as condig6es de vida e trabalho dos diversos grupos da populagao. Pre- cisamos, ainda, saber estabelecer as relagdes dessas condigoes de vida e traba: tho, por um lado, com determinantes mais gerais da sociedade e. por outro, com determinantes mais especificos proprios dos individuos que compéem es. ses grupos.* Devemos também definir, mas que pretendam interferir nessas determinacdes ~ 0 Programa de Saude da Familia (PSF), sem divida alguma, ¢ uma das mais importantes estratégias nessa direcdo. Por fim, devemos fazer com que a sociedade se conscientize do grave problema que as iniquidades de saude representam, nao somente para os ‘mais destavorecidos, como também para 0 conjunto social, buscando, com isso, obter 0 apoio politico necessario a implementacdo de intervengdes A partir dos anos 90, 0 crescente consenso em relagio ac pape! dos determinantes sociais no fendmeno do adoecimento humano tem motivado di- implementar e avaliar politicas e progra: 0 reconhecimento das condigbes de vide @ da situagio de saide atraves de um diagndstico s6cio-sanitano seré desenvolvida no texto “Terntério e dlagnéstico sécio-sanitano no Progra: ma Saude da Familia”, no presente lwo A concepcie teorico:metodologeca de abordagem do terrtério proposta por Monken (2003) © Monken e Barcelles (2005) mosira.se apropriada ara 2 compreensio da complexidade das relagoes que se estabelecem no espace cotidiano 69 © TERRITORIO E © PROCESSO SAUDE-DOENGA sistema, organismo, grupo, populagéo, ambiente. A uma das vertentes dessa ordem ‘biodemografica’ - organismo, grupo, populagéo, ambiente - corresponde uma ordem ‘sociocultural’ - sujeito, familia, sociedade, cultura. + Microestrutural - molecular ou celular; ‘+ Microsistémica - metabolismo ou tecido: + Subindividual (6rgao ou sistema) - processes fisiopatol6gicos: * Clinica individual - casos; + Epidemiolégica — populagao sob risco; '* Interfaces ambientais — ecossistemas; + Simbélica - semiolégica e cultural. Evitando a linearidade na interpretacdo das relagdes, os autores apon- tam as conexées interativas entre essas dimensées e Componentes. Mais do que a simples determinagéio em cadeia, cada subespago contém componentes. dos outros subespagos, em uma evolugao dindmica do sistema, de tal maneira que a projegao de um sobre o outro nao permite distinguir os efeitos individuais dos fatores de cada subconjunto. A interagao em rede eo sinergismo nos seus efeitos caracterizama ‘fractalidade"® desse modelo, no qual a ‘borrosidade’ das fronteiras entre os componentes da satide e da doenga representam a comple- xidade e a dindmica do processo (Almeida Filho & Andrade, 2003). Em perspectiva semelhante, Sabroza (2001) considera a satide como um sistema complexo,em que se articulam diferentes dimensoes. Tais dimensdes (biolégica, psicolégica, econémica, social, cultural, individual, coletiva etc) pre- cisam ser analisadas em diferentes niveis de organizagao da vida: 0 molecular. 0 * Fractal 6 um objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais seme- Ihante 20 objeto onginal, Diz-se que os fractais tém infnitos detalhes, sao geralmente auto. similares e independem de escala, Em muitos casos, um fractal pode ser gerado por um padréo repetido, tipicamente um processo recorrente ou interativo. A frectelidade ¢ tida como uma das caracteristicas dos sistemas complexos. Um sistoma caracterizado pela frectalidade cons. titui-se de partes interdependentes entre si, que interagem e tranformam-se mutuamente, desse modo o sistema néo sera definivel pola soma de suas partes, mes por ume propriedade ‘que emerge deste sev funcionamento, © estude em separado de cada parte do sistema néo levaré a0 entendimento do todo. Nesta perspectiva, 0 todo é mais do que a soma das partes. Da organizagéo de um sistema nascem propriedades emergentes que podem retroagir sobre as partes. Por outro lado, 0 todo € também menos que a soma das partes, uma vez que teis propriedades emergentes possam também inibir doterminadas qualidades das partes 72 ’ ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE celular, 0 individual, do grupo social, da sociedade e global. internamente, as categorias e varidveis de cada nivel so mediadas por relagdes de determinagéo eespecificagao."” processo satide-doenga, reconhecido a partir da posigao do observa- dor, aparece como alteragao celular, sofrimento ou problema de satide. No nivel individual, a expressao do processo pode ser, simultaneamente, alteragao fisiopatolégica, sofrimento e representagao (mediada por valores culturais). No nivel coletivo, © proceso saide-doenga possui uma expresséo populacional (demogréfica, ecologica), cultural (conjunto de regras) e espacial (organizagao e disposigéo). Nas sociedades, esse mesmo proceso aparece como problemas de saade publica, na interface com o Estado, entre particular e piblico e entre o individual e 0 coletivo. Estar, assim, sempre na intersegso de duas légicas: a da reprodugao da vida e a da légica da produgao econémica (Sabroza, 2001). Figura 2 - Niveis de organizagao e processos saide-doenga 1 Mateclar 2 Cetar 1 fagivaha 4 Grupo seca 5. Sectedate Der erage paokipica Repeeseiayo Fonte: Sabroza, 2001 "© Na andlise estatistica da relagdo entre varidvels, a especificagao é a prética de venficar se Luma dada relagao permanece @ mesma em diferentes segmentos de uma populacéo. Isso & Conhecide também como ‘relagées condicionais’ (Jenhson, 1997) A especificagao designa um pracesso de selegao baseado na singularizagio. 73 cRETmMUE PR SH DAN. versos paises a reformularem seus objetivos estratégicos na rea da sade. As metas de redugo das taxas de morbidade e mortalidade passam a ser acompa- nhadas pela busca de criag3o de condigdes sociais que assegurem uma boa saide para toda a populacao. As preocupagées com as iniquidades em sate levam a organizagao, no interior da OMS, de uma Divisdo para tratar dessa tematica (WHO Equity Iniciative). A eqidade em saide, entao, passa a ser definida em relacao & posigo dos individuos na hierarquia social e, consequentemente, aos gradien- tes de poder social, econémico e politico acumulados. Na 57" Assembieia Geral da OMS, realizada em maio de 2004, foi anun- ciada a intengdo de criar uma Comissao Global sobre os Determinantes Sociais da Satide (CDSH), para fazer a agenda pré-eqiidade avancar e para aumentar © apoio da Organizagao aos Estados-membros na implementagao de aborda- gens abrangentes dos problemas de sadde, incluindo suas raizes sociais e ambientais. Com base nestas preocupagées, em margo de 2006 foi criada no Brasil, no Ambito do Ministério da Satide, a Comisso Nacional sobre Determinantes Sociais da Saide (CNDSS), que tem como principais objetivos: * Produzir conhecimentos e informagées sobre as relacdes entre os determinantes sociais e a situagao de sade, particularmente as iniqii: dades de saude; * Promover e avaliar politicas, programas @ intervengdes governamen- tais e ndo-governamentais realizadas em nivel local, regional e nacional, relacionadas aos determinantes sociais da satide; * Atuar junto a diversos setores da sociedade civil para promover uma tomada de consciéncia sobre a importdncia das relacoes entre saiide e condigGes de vida e sobre as possibilidades de atuagao para di das iniquidades de saude. () Complexidade e proceso sadde-doenga Outras abordagens, porém, ao integrarem os determinantes sociais nas explicagées do processo saide-doenga, o fazem com o cuidade necessario para que nao se recaia em determinismos que enfraqueceriam novamente a andlise em questao. 70 ALOR 6G ASG TE PUA ZA DL COMCATE Ob GA. 3E Partindo do pressuposto de que os fenémenos de saiide-doenga nao po: dem ser definidos apenas a partir do espago subindividual, Almeida Filho e Andrade (2003) reivindicam o estabelecimento de uma abordagem totalizadora que respeite a complexidade dos fenémenos da vida. saiide, doenga, sofrimento e morte. Para os autores, as disciplinas que compéem 0 campo da saude tém definido de forma inadequada seu objeto de conhecimento. Cada campo disci plinar reduz os outros campos ao seu proprio objeto, apresentando-se como a nica ciéncia capaz de explicar e produzir conhecimento valido. Essa disputa pela hegemonia do nivel de ancoragem definidor do conceito de saiide-doenca termina por esterilizar a compreensao do fendmeno, produzindo um grave reducionismo analitico: A biologia molecular toma 0 genoma e 0 proteoma como inico tema valido de pesquisa, argumentando que todos os outros niveis de proces: sos patolégicos derivam desses sistemas basicos de reprodugao molecular e bioquimica. A histopatologia ¢ a imunopatologia reivindicam a centralidade do nivel tissular ou intrasistémico na causalidade da pato- logia (... A fisiopatologia explicitamente instituida como a ciéncia de base da clinica prefere invocar modelos de mecanismos regulatérios ou desequilibrios patolégicos para explicar a causalidade das doengas (...) (Almeida Filho & Andrade, 2003: 108) Na busea de um olhar menos fragmentado e ‘com mais consciéncia epistemolégica’, os autores indicam a necessidade de um tratamento teérico: metodolégico transdisciplinar tendo como base a perspectiva da complexidade. \Valendo-se das contribuigdes do epistemdlogo argentino Juan Samaja. procu: ram conceber 0 conceito de sauide como um objeto com distintas faces hierar quicas e pianos de emergéncia. Tomada como “base para uma proposta de sistematizagao de uma Teoria Geral da saide-doenga”, a designacao ‘holopatogénese’ refere-se ao “conjunto de processos de determinagao (génesis) de doengas e condigées relacionadas (pathos) tomadas como um todo integral (holos), compreendendo todas as facetas, manifestagées e express6es de tal objeto complexo de conhecimento” (Almeida Filho & Andrade, 2003: 109) O esbogo dessa teoria parte de uma reflexdo sobre as ordens hierarqui- cas de complexidade. Uma ordem hierarquica é constituida de um conjunto de conceitos construidos no Ambito de cada campo disciplinar. Na biologia, por exemplo, observam-se as seguintes derivagoes: molécula, célula, tecido, orgao, nm (© TERRITORIO E 0 PROCESSO SAUDE-DOENGA | Sabemos que as ‘infidelidades do meio’ referidas por Canguilhem tem ‘uma distribuigéo desigual na sociedade, qualquer que seja 0 plano de andlise escolhido: desde as assimetrias geradas pelas politicas econémicas competiti- vas adotadas pelos paises centrais em relagdo aos paises periféricos até as profundas diferencas intra-urbanas de acesso a bens e servigos; a vulnerabilidade de determinados extratos sociais é acentuadamente maior do que de outros, dadas as precérias condigbes de vida em que se encontram, Assim, se por um lado podemos perceber como normal o acometimento de algumas enfermidades; por outro, nao deveria ser considerada normal a impossibilidade de acesso a meios adequados para lidar com esse adoecimento. Concordamos com Caponi (1997: 306) quando afirma que “a sadde entendida como margem de seguranga exige que integremos aqueles elementos relativos 4s condigées de vida que foram enunciadas na definigao da VIll Conferénci Embora a saiide tenha sido promulgada na Constituicao Brasileira como “direito de todos e dever do Estado” (Brasil, 1988), ¢ seu texto seja considera- do até hoje uma das maiores conquistas dos mavimentos sociais no periodo da redemocratizagao do pais, a norma esta bastante distante de sua expressdo real, e a organizacdo dos servicos de saiide ndo parece estar preparada politica e tecnicamente a repensar suas praticas. Pensar saude como acesso & educagao, trabalho, transporte, lazer, ali- mentagao etc implica a superagdo do modelo biomédico e a adogao de outros principios norteadores capazes de auxiliar na necesséria reorganizagao do mo: delo de atengao a satide, ainda voltado as acdes curativas e assistenciais. O conceito e as praticas de promogao da sade tém representado uma possibilidade concreta de ruptura desse paradigma ao proporem uma nova for- ma de conceber e intervir no campo da satide. Desde que o termo foi formulado pela primeira vez, seu desenvolvimento transitou de uma concepgao restrita a um nivel de atengo da medicina preventiva (Leavell & Clark, 1976) para um enfoque politico e técnico do processo saiide-doenga-cuidado (Buss, 2003). Esse movimento de renovagao observado nos ultimos 30 anos, principalmente no Canada, tem como marcos o “Informe Lalonde", de 1974, e a | Conferéncia Internacional sobre a Promocdo da Saude, de 1986. A Carta de Ottawa, principal produto desta reuniao, definiu a pro: mogao da sade como “o proceso de capacitagao da comunidade para atu ar na melhoria da sua qualidade de vida e satide, incluindo uma maior parti 76 ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE cipagao no controle deste proceso” (Buss, 2003). Os cinco campos cen- trais de agao propostos foram: + Elaboragao e implementacao de ‘politicas piblicas saudaveis'; * Criagao de ‘ambientes favoraveis 4 sade’: * Reforgo da ‘aco comunitéria’ * Desenvolvimento de ‘habilidades pessoais'; * 'Reorientagao dos servigos de saiide'. Pela relevancia que assumem na organizagéo das priticas dos agentes comunitérios de sade (ACS), ¢ recomendavel que sejam comentados alguns desses campos de ago. ‘A ‘criagao de ambientes favordveis @ saide’ diz respeito no apenas & conservagio dos recursos naturais, mas também daqueles ambientes construidos pelo homem. implica sobretudo “o reconhecimento da complexidade das nossas sociedades e das relagées de interdependéncia entre os diversos setores” (Buss, 2003: 27), ‘reforgo da agao comunitéria’, também chamado de empowerment ‘comunitério, refere-se ao “incremento do poder das comunidades na fixagao de prioridades, na tomada de decis6es ¢ na definigo e implementagao de estraté- gias para alcangar um melhor nivel de satide (...) ou seja, & aquisigao de poder técnico e consciéncia politica para atuar em prol de sua sade” (Buss, 2003: 27 ~ grifos do autor). Esse processo, entre outras ages, depende substanciaimen: te da garantia de acesso da populacdo a informacao, as oportunidades de apren dizagem e ao planejamento das ages J40 ‘desenvolvimento de habilidades pessoais’ tem sido um dos campos de agao mais polémicos dessa proposta. Boa parte das criticas a promogao da satide incidem sobre este aspecto. Se, por um lado, 6 imprescindivel a divulga ‘gdo de informagdes sobre diferentes aspectos relativos a satide ~ de modo que «@ populagao tenha como orientar suas condutas ~; por outro, quando essa pers: pectiva 6 adotada como 0 préprio conceito de promogao, opera-se um reducionismo que empobrece a potencialidade de seu alcance. Os problemas da promogao da satide ficam mais evidentes quando ana- lisamos 0 desenvolvimento da autonomia: em uma vertente behaviorista, re- duz-se a autonomia no nivel dos individuos, traduzindo-a como desresponsabilizagio do Estado consequente fortalecimento das propostas de modelagem de comportamentos saudaveis como forma de os individuos toma: 7 TRR 2 CSU AE A ‘As transtormagoes observadas nos processos de produgao e na organi- zago social implicam, necessariamente ~ ainda que nao simultaneamente — modificagdes nas demais dimensoes, através de processos interativos de estruturagao que relacionam modo de produgao, organizacao espacial, proble- mas de sade, concepgoes de saude, respostas institucionais aos problemas & praticas assistenciais prevalentes. De acorde com Sabroza (200: entre aqueles tidos como imprecisos: 20 contrario de conceitos bem estabelecidos, demarcados pelos limites: ‘que explicitam as suas condigdes, os conceitos imprecisos séo definidos a partir de questoes centrais ou atratores, e de suas interagdes com outros, conceitos com os quais se relacionam, sempre a partir de perspectivas definidas em determinado periodo histérico. ), © conceito de satide deve ser incluido Embora fazendo parte de uma realidade objetiva, a construgao do con ceito $6 se dé a partir da sua elaboragao por atores sociais concretos. Discutindo as transformagées na organizacao do modo de produgae nas diferentes formagoes sociais ao longo da histéria para analisar suas implicages na sade das populagdes, Sabroza detém-se na transigéo dos diferentes esta gios do capitalismo, De um capitalismo molecular, baseado no consumo intensi- vo de mao-de-obra (manufaturas), pasando pelo capitalismo monopolista de estado, cuja produgao estava centrada no consumo intensivo de energia, che g2-se ao estgio do capitalismo técnico-cientifico, caracterizado pelo consumo intensivo de informacao, pela desconcentragae territorial da produgao informatizagao acelerada, flexibilizagdo das relagdes de trabalho, reducao dos postos de trabalho, fortalecimento das corporagées transnacionais, fomento produtividade e competitividade, diminuigao do poder regulador dos estados, entre outros fendmenos associados. Considerando os determinantes sociais @ espaciais relacionados com as transformagoes no processo de produgo, 0 autor destaca a busca pela manu: tengdo e mesmo ampliagao da capacidade de consumo das imensas populagdes urbanas diante do desemprego e da redugdo dos investimentos piblicos em politicas sociais: As estratégias tém sido a fragmentacao do territério, assequrando maior controle social através de poderes politicos locais, e a segmentagao soci al, com a emergéncia de um novo componente, o circuita inferior urbano, integrado e dindmico. Este circuito espacial de produgao, descrito ora como economia informal, ora como estratégia de sobrevivencia popular 74 ARM MR A OD Cwm D 5p > se caracteriza por sua produtividade e relativa autonomia. Ele representa custos sociais minimos para o capital e para o Estado, e ainda gera renda ‘que garante a reprodugao, 0 consumo ampliado e transferéncia importan: te de recursos para o circuito principal. (Sabroza, 2001: 23), Apoiado nas formulagdes do gedgrafo Milton Santos, Sabroza refe re-se 2 uma nova estratificagdo social surgida nas diferentes formagoes sociais capitalistas: os incluidos (porém vulnerdveis) ¢ os excluidos. Repre- sentando nao mais uma disfungao do sistema, o que antes era visto como ‘patologia social’ passa a ser compreendido como caracteristica inerente do capitalismo, ou seja, um recurso estratégico de reprodugao de seu dina. mismo econdmico e, conseqiientemente, de reprodugao das desigualdades sociais e espaciais. Do ponto de vista da andlise social, indica o surgimento de uma nova pobreza, caracterizada néo somente pela diferenga de renda, mas também pelo baixo grau de incorporagao de inovagoes técnico-cientificas e pela ausén. cia da seguridade social. Diferentes daqueles considerados vulneréveis —dada a sua insergao no circuito inferior, embora integrados ao circuito principal -, os ‘excluidos nao conseguem mais trabalho ou outra fonte de renda. Nota-se que nestas duas abordagens é recorrente a preocupacao em apontar a hierarquia de determinagao e a complexidade das relagdes entre 08 diferentes niveis de expressao do processo sauide-doenca. Diferente do que ocorria no modelo multicausal, os fatores ndo sao mais alinhados como varidveis de peso igual. Ha uma nitida valorizagao dos aspectos sociveconémicos na produgao da satide e da doenga, no entanto, nao sao deixados de lado os aspectos relativos ao nivel individual. Esse movimento, a0 passo que permite integrar no mesmo modelo aspectos tao aparente- mente diversos, como desemprego, stress, hipertensao e reagdes bioquimi cas, fornece elementos importantes para a mudanca das praticas de saude € para a formagao ético-politica dos trabalhadores da saide. A Operacionalizagao de um Conceito Amplo Uma vez analisado 0 conceito ampliado de satide, outro dilema aflige os trabalhadores da saiide, em especial aqueles que lidam diretamente com a populagao: como operacionalizé-lo? Como fazer com que suas premissas ga nhem concretude e expressao nas praticas cotidianas dos servigos? 75 S10 FOS A ee, Ss, Pe rem conta de si mesmos. Em outra diregao, para a vertente critica, a autono- mwa decorre da conquista social do controle dos determinantes e condicionantes da saude, invertendo 0 foco do modelo de éntase curativa, assistencial, medicalizante para ode um modelo em que se estruturam politicas intersetoriais visando a qualidade de vida. E nessa segunda via que residem as potencialidades de operacionalizagao de um canceito amplo de sadde. A discussao acerca dos modelos de atengao no Brasil tem indicado a necessidade de reorganizagéo tecnolégica do trabalho em satide, incorporando ‘ferramentas’ bastante negligenciadas" no cotidiano dos servigos de saude. Esse esforco exige o repensar dos objetos, dos sujeitos, dos meios de trabalho e das formas de organizaco das praticas"? (Teixeira; Paim e Villasbéas, 2002). Dessa forma, em uma outra perspectiva de modelo de atencao, 0 ‘obje- to das praticas de saide’ se expande para além da doenca, dos doentes, dos modos de transmissdo e dos fatores de risco, passando a englobar as necessi- dades e os determinantes (condicdes de vida e de trabalho); os sujeitos da atengao 4 ndo podem ser considerados apenas os médicos, os sanitaristas e seus auxiliares, mas as equipes de saiide (de todos os niveis), trabalhadores de outros setores e a propria populacao; os ‘meios de trabalho’ incorporam, para além das consagradas tecnologias médicas e sanitarias, a contribuigao de ou- tros conhecimentos e instrumentos fundamentais para uma agdo mais ampla, capaz de produzir impactos na esfera dos determinantes e condicionantes de modo nao espontaneista, como os contetidos de outros campos disciplinares, como a educacao, a comunicagao, a geogratia, o planejamento estratégico situacional etc: e. por fim, as ‘formas de organizagao do trabalho em saude’ seriam reorientadas para além da oferta tradicional de servicos de sauide (rede bésica e hospitalar), campanhas sanitdrias, programas especiais e de vigilan sanitéria e epidemiolégica, buscando 0 desenvolvimento de operagées sobre os principais problemas e necessidades sociais de saiide, através de agdes intersetoriais e de politicas publicas saudaveis. Sobre essa discussio, 9 leitura das formulagoas de Emerson Mehry (2002), referindo-se as Vvalises' teenolégicas das praticas em sauda, destacando a importincia des tecnologies dures leve-duras e leves tom contribuido bastante no atual debate sobre 0 cuidado, " Paya discussao sabre tecnologia no trabalho em sade. ver tambem Abrahio, texto “Tecnologia coneeita e relagoes com o trabalho om sadde", no kre O Proceso Historica de Trabalho em Saude, neste colegao (NE) EO Fh” Re IN IE RE eg ee Oe Esse movimento de reorganizagao tecnolégica do trabalho em satide im- plica também o reconhecimento do territério de atuagao dos profissionais de saude. A compreensao de como se dao as complexas relagdes entre homem e seu espago/territério de vida e trabalho é fundamental para a identificagao de suas caracteristicas histéricas, econdmicas, culturais, epidemiologicas e so- ciais, bem como de seus problemas (vulnerabilidades) e potencialidades. A realizagao de um diagnéstico das condigdes de vida e da situago de sade da populagao 6, sem duvida, um passo fundamental nessa reorientagao do modelo de atengao, e requer o dominio de conceitos e instrumentos advindos de outros campos de conhecimento distintos daqueles habitualmente ofereci dos na capacitagao das equipes e, particularmente, dos ACS. Sua adogéo como recurso metodolégico e como tecnologia do trabalho em saide permite a supe- ragao do reducionismo dos problemas de sade & sua dimensao biolégica e incorpora as diferentes dimensées da reprodugdo social (Samaja, 2000). Antes de tudo, é preciso que se defina com clareza um referencial critico de aborda gem dos fendmenos a serem analisados, sob 0 risco de serem percebidos na sua superficialidade, 0 que, no mais das vezes, conduz a conclusées desesperangadas de culpabilizagao da populagae (no microcontexto) ou do Es: tado (no macrocontexto), gerando imobilismo e, no maximo, voluntarismo assistencialista. Se, por um lado, & possivel perceber a importdncia de buscar uma com preensao dos determinantes e condicionantes sociais do processo saiide-doen a, evitando a individualizagao e a fragmentacao b ologicista; por outro, é preci 50 estar atento para que esse movimento nao seja tomado como justificativa para a normatizacao dos corpos, em uma espécie de biossociabilidade bastante perigosa, em que a prescrigao de estilos de vida e de comportamentos sauda- veis concebe a sociedade como homogénea e indiferenciada. Como ja vimos, amparados na epistemologia médica de Canguilhem, a capacidade de dizer se 0 corpo esta saudavel ou doente pertence ao titular, mediante suas normas cultu rais e particulares. ‘Assim, a saiide deve ser compreendida em. nunca sera redutivel a qualquer de: ceed ptan «a, individual ou coletiva, objetiva ou — requer instru mental tedrico de nova ordem, ndo mais re raivencia 4 epistemologia positivista, analitica, e sim a partir de uma perspectiva transdisciplinar, totalzante. 19 © TERRITORIO E © PROCESSO SAUDE-DOENGA moradores mais antigos as origens, as caracteristicas que mudaram e as que permaneceram no territério. Com os artistas, a linguagem, os desejos © 08 significados culturais; com os professores, a realidade das escolas ‘com os moradores, 0 grau de satisfagao com os servigos @ as percepgoes diferenciadas sobre os problemas; com os epidemidlogos, as informagoes sobre as tendéncias e o perfil de saude e doenga; com os ACS, as singul ridades e capacidades da populagao. Dependendo do problema identificado, novos olhares séo requisitados, e assim podem-se encontrar formas de viabilizar aquilo que todo ano, passivamente, repete-se como mera queixa sem comprometimento algum com a mudanga. ‘A andlise da viabilidade pode interpor a necessidade de estabelecer objetivos estratégicos, solugdes parciais e incremento de recursos. As ope- rages podem ser atingidas somente a médio e longo prazo, porém terao seguramente um impacto mais amplo e formativo na sociedade do que a persisténcia unica e exclusiva nas reformas: da atengao setorial. ‘Aimplementagao e a avaliagao continua dos processos e dos resulta- dos sero sempre conseqiéncia da capacidade mobilizadora dos atores so- ciais envolvidos, sejam profissionais de saiide, de outros setores, ou a pré: pria comunidade. Consideragées Finais A satide 6 um constructo que possui as marcas de seu tempo. Reflete a conjuntura econémica, social ¢ cultural de uma época e lugar. Reconhecer sua historicidade significa compreender que sua definigao e o estabelecimento de praticas dependem do grau de conhecimento disponivel em cada sociedade. 0 fato de o conceito de saide ser impreciso, dinamico e abrangente nao impede que seja possivel toma-lo como eixo para a reorientacdo das praticas de saide. Pelo contrdrio: sua importancia ¢ fundamental para a superagdo de um modelo de atengao biologicista, medicalizante e preseritivo. Se tomarmos a sade como um sistema complexo (Sabroza, 2001)e pensarmos que a crise da saide publica nos convoca a superar a simples atencao das demandas, procurando a eliminagao de problemas que se en- contram tanto na esfera dos determinantes sociais da saide quanto no Ambito da resolutividade das préticas médicas, entdo estaremos, de fato, 82 ABORDAGENS CONTEMPORANEAS DO CONCEITO DE SAUDE nos posicionando em defesa de uma ética que valorize a vida humana, bus- ‘cando colaborar efetivamente para a construgao de ambientes e de uma sociedade mais justa e saudével. A proposigao de diagnésticos participativos e interdisciplinares das con- digdes de vida e da situagao de saiide de territérios especiticos apresenta-se ‘como importante ferramenta para a organizagao de praticas que favoregam o ‘encontro de horizontes’ entre a populagao e os servigos de Diante da vida e das circunstncias (nao deixé-las de lado), elabors mos € executamos nossas praticas de saide. Os profissionais de satide precisam desenvolver a percepcao de como a populagéo compreende suas préticas de saide. E nesse encontro de sujeitos que se faz a construgao conjunta - da qual 0s conceitos sdo formas mediadoras. Nao devemos nos apressar em construir 0 objeto da intervengdo: € 0 encontro que diz quais so os objetos (Ayres, 2003, 2004). Assim, refletindo sobre a pratica dos ACS, caberia perguntar: em que medida s80 retomados os diagnésticos realizados no momento inicial do cadastramento? Ao privilegiar as fichas de acompanhamento de deter. minadas morbidades nao estariamos reproduzindo o modelo biomédico? Referéncias ALMEIDA FILHO, N. de. O conceito de sadde: ponto cego da epidemiologia? Revista Brasileira de Epidemiologia, 3(1-3): 4-20, 2000. ALMEIDA FILHO, N, de. & JUCA, V. Sade como auséncia de doenga: critica a teoria funcionalista de Christopher Boorse. Ciéncia e Satide Coletiva, 7(4) 879-889, 2002. ALMEIDA FILHO. N. de. & ANDRADE, R. FS. Holopatogénese: esbogo de uma teoria geral de satide-doenca como base para a promogao da satide. In: CZERESNIA, D. & FREITAS, C. M. de. (Orgs.) Promogao da Satide: conceitos, reflexes e tendéncias. Rio de Janeiro:Editora Fiocruz, 2003. AYRES, J. R. de C. M. Norma e formacao. Horizontes filos6ficos para as pratt cas de avaliagao no contexto da promogao da saiide. Ciéncia e Satide Coletiva, 9(3): 583-592, jul.-set, 2004. AYRES, J. R. de C. M. et al. 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Aconformacao de sujeitos histéricos, capazes de reconhecer o nivel de de- terminacéo das estruturas, capacitando-se técnica ¢ politicamente para atuar na sua transformagao, & chave na dialética necesséria para construgdo de novas relagdes sociais, possibilidades de um mundo movido por outra uto pia — menos destrutiva que a do capital. O reconhecimento dos determinantes histéricos ~ econémicos, sociais e culturais - envolvidos na conformagao de contextos especificos de caréncia pas sa, necessariamente, pela atuago de trabalhadores da sade capazes de rea- lizar diagnésticos participativos sobre as condigdes de vida e situagao de saade de uma determinada populacao. A investigagao histérica da ocupagao, das ca- racteristicas fisicas, econdmicas, sociais e culturais do territério, da disposigéo © qualidade dos equipamentos e servigos piblicos, do perfil epidemiolégico e dos principals problemas da comunidade é um passo fundamental para a busca de solugées. Somente uma leitura interdisciplinar da realidade & capaz de pro- ‘Mover uma maior compreensao da realidade de saude-doenga-cuidado de uma populacao. A complexidade de determinantes, condicionantes e fatores envalvi dos sugere a identificagao de problemas mais amplos, que tradicionalmente nao figuram entre os problemas médicos ou epidemiolagicos, nem na linha de agao dos profissionais da sadde. Q planejamento de agdes para o enfrentamento dos problemas passa pela mobilizagao da capacidade normativa"* da comunidade, tragando metas, organizando operagées de enfrentamento continuo e buscando a atuagao intersetorial sobre os problemas identificados. De acordo com 0 sentide que Cangullhem (2006) Ihe atnibu, © ‘normal’ refere-se nfo a0 fesperado, 4 média, mas a uma vida em meio om que flutuacdes © novos acontecimentos $80 possiveis. A capacidade normativa, portanto, rafere-se & capacidade de instituir nocmas dife- leo em condigées diferentes. de responder as exigéncias do meso. Ainda que Canguilhers tenho utiizado esse termo am relagao ao individuo, sua extrapolacio semantica nos parece: adequada para analisar 0 grav de mobilizagao de um determinado grupo social na busea de atendimento 83 suas necessidades. 80 AOR AON x Pee cON TT DS D A mudanga paradigmatica envolve mais atores na operacionalizagao da promocao da salide. Mais do que médicos, enfermeiros, técnicos, agentes @ demais trabalhadores da satide, sero incorporados ambientalistas, engenhei: ros, advogados, antropélogos, artistas, jornalistas, garis, e a propria populagao envolvida direta ou indiretamente na produgao e/ou na solugae do problema. Q objeto da acao, qualificando 0 tradicional cuidado preventivo-curativo em relagao as doengas infecciosas e nao-infecciosas, expande-se para a com- preensao de danos, riscos, necessidades e determinantes das condigoes de vida, satide ¢ trabalho. Os problemas identificados muitas vezes nao so doengas ou agravos, objetos tipicos da aco no setor saiide, mas problemas ambientais, como a auséncia de saneamento: sociais, como a deficiéncia da escola, a violéncia entre os jovens, a falta de emprego e alternativa de renda, a indisponibilidade de éreas de lazer e de acesso a cultura, o transporte insuficiente, as condigdes inadequadas de moradia; ou um contexto econémico-cultural de ‘vulnerabilidade, como 0 consumo excessivo de carboidratos e gorduras. Diversos e complexos problemas podem ser considerados determinantes ou condicionantes de varia das doencas e agravos. ‘As préticas, por sua vez, passam a contar com uma dimensao comunica- tiva mais forte, buscando estabelecer vinculos sociais com a comunidade e suas formas culturais - visando a troca de saberes populares e cientificos, 0 fortale- cimento técnico @ 0 amadurecimento politico a partir do reconhecimento da historia, dos problemas e das préprias potencialidades do territério. O planejamento participative é ferramenta fundamental para a viabilida de do encontro de saberes, interesses e visdes sobre a realidade. Desde a identificagao e definicdo de prioridades até a construcao de propostas de inter- vengao so necessdrias varias etapas e uma significativa capacidade de mobilizagao. A formacao dessa capacidade normativa (Canguilhem, 2006) poe em evidéncia outra importante dimensao de uma nova prética: a agao educativa Procurando afastar-se de uma viséo prescritivista, aliada insepardvel de uma perspectiva autoritaria da ciéneia, a acdo pedagégica deve procurar esta- belecer uma relacao de aprendizado compartilhado, de mitua busca do saber entre aqueles atores envolvidos. Nao se trata de buscar a modelagem de com- portamentos tidos como nao saudaveis ou de risco, mas sim de identificar ¢ Compreender as razdes das vulnerabilidades coletivas. Todos aprendem com os 1 TERRITORIO £ O PROCESSO SAUDE-DOENCA TEIXEIRA, C.F, PAIM, J. S. & VILLASBOAS, A. L. (Orgs.) Promogdo e Vigi lancia da Saude. Salvador: SC, 2002. TEIXEIRA, C.F: PINTO. LL. & VILLASBOAS, A. L. O Processo de Trabalho da Vigilancia em Saiide. Rio de Janeiro: EPSJV, 2004 v5. (Série Material Didati 0 do Proformar) 86 TreeRr os Fe EA BRASIL. Comissao Nacional dos Determinantes Sociais da Saide - CNDSS. 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