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ae Maurice Godelier O enigma do dom DAS COISAS QUE Se DEVEM DAR, DAS COISAS QUE SE DEVEM VENDER ‘ DAQUELAS QUE NAO SE DEVENE DAR NEM VENDER, MAS GUARDAR ender uma nova anise do dom, de Pe que este veo? Porque empre sca papel na produ e repro do go socal, de seu gare de wha ispottneia motives nas dverss formas de sociedade que coe atom nos dias de hoje a superficie desta nossa era ov gv 8 SUG ‘lesan no decoree do tempo? Porque © dom existe em todo Tuga ‘bors nso sao mesmio.em tala parte, Mas o parentesco também “nite ea codo Tuga, assim como a eligi a pobtea Eno, por que ‘dom? Porque este sto? Tle aanceu do enconto, da pressfo convergent de dois comex- os, un sociolégico, uma ailieefsve da sociedade cidental gual pereenco,e um outro que me & pessoal de outta mania, aguele do Uric que outorsesclhi exercer na vida, um contextoprofsional tana situasio dos problems teéricosdehaidos hoje em da pelos an- ‘uoploges entre os gues me incl, ‘O contextosecioligico io me &pedpio, Fleets presente sob os cos de todos, ao redor de cada wre, como muitos, so partlho, iio ‘enclli De que se tata? Eo context de uma sociedad ocidenal na (alse muliplicam os exelutdos, de um sistema econdmico que, para petmanecer dinimico «competitive, deve “enxagat” as empress, €- tlurit o eustos,umentara produividade do trabalho , por iso, di ininuir o ndmero daquees que tabalham, jogos macicamente 0 “esernprego um desemprego que s espera provisrio © que, Para ‘muitos, acaba por se mostrar permanente. 8 porta de um mercado tidade, Apelogenerosidade para utr com mais forgae para ciunfar sda umde mais pido sobre «Aids, sobre o chncer. Apelo pela viimas da guerra em Sarajevo et. Em sna, epelos em favor de odasasvtimas da doe ‘gov dos conflitos de interests entre os homens. Deslguma manta, ‘0Ocidents et presente permanentemente em todasas ents do mal ‘A todos a mia expse 0 espeticulo de rodas as exelusées, a dos indie ‘iduos es das ages devastadas pela miséria, pela pobreza, pela guer- ‘4 civil Em suma, nfo € mais apenas 0 sofimento dos praximos, & todo 0 sofrimento do mundo que solicits nossa dédivas, nossa gene rosidade £Ecclaro que, ness condges, fo & mais questo de dara alguém aque se conhecee mens anda de espera algo mais que wm reconhesi- ‘mento que nunca ser eccbido pesonlmente, © dom toenou-se um 2t0 {que liga sujetorsbsratos, um doador que ama a humanidade © um preender oentusasmo em mim suscitado poral vgilincia cia, al vivacidade de pensanento, tis perspective isionivas sobre o dom, 4s tren, o inconsciene ea origem da sciedade Depois dessa primeira Ieture do "Essai sur le don" tommeme an- tropélogo e pase: muitos anos no tabalbo de campo na Melansia, uma repito do mundo que tia fornecido a Mauss alguns de seus tateriais mais ricos, mas expressivos, através das obras de Seligman, de Tharnwalde muits outros, especialmente Malinowski, que avis ttabalhado na Nova Guiné, nas thas Trbriand. Em seg, ett mes- so tablet por veins anos em um vale dasterrsaltas do interior da [Nova Gniné, ene os barayas. i depaei com formas nfo-ocidentis de dom, contextonoro para mime que melevariaaretomaro dossié do dom ea reavaliar olegado de Mas, assim como ode Lévi Strauss, sobre esta questo ealguas ‘ora, Es haviaparido pare o trabalho de campo com duss iis na ‘aboga,Primmeirament, a de que, se © dom pode ser encontrado em tod pare, cle nfo é apenas uma mancia de partihar 0 que se tem, ‘mas também uma mancira de combate com o ques tem era ids = que ev atbuia a Maus — de gue a Igica dos dons contadons calina com 0 postarch"- ‘A segunda ida, insirada em Lévi-Strauss, era.ade que a sovieda- de funda-se sobre a toca e 6 existe através da combinacio de todos ‘ostipos de trocas— de mulheres (parentesco), de bens economia) de representages ede plavras (cultura exc). Eestaa ambém sob am Autacia de wma tercvta convicgso, provenieneigualmente de Lévi- Strauss: «do primado do sinllico sobre o imaginirio e sobre algo Teanga oa de wa ing dos tact aercns: Dom decir ud gr son pee cbs am lio dt peer reneoude Th ‘nomeado por um termo indecis, o “real. Poi, pars LEV-Strauss 0 seabolo era, final, mais eal do que a“realdade” que sigaificava A desintegrago desss evidéncas comecou logo, desenvalvendo- +e, porém, lentamente. No trabalho de campo entre os baruyas, pude ‘observara pritica de dom edo contradom na toca de mlhere, mas ‘nada de potlatch. Ao contrtio, toda a gic d sociedade exclu que se pudesse adquirr poder aeavés de dons econtradons de riquczes. poder nfo ia para as méos de Big Mer, que acumulavam mulheres © riquezas, mas para as mlos de Grandes Homens detentores de pode- es herdados, prevntes nos objtossagrados e nos sberessecrtos dads seus ancestras por pottncias ndo-himanas, oS, o¥ espitios dl floresta et Em suma, com esses objets, éramos confomtados a «ois que os baruyas,ndo podiam vender ou dar, e que deviam guar at, Ora, os hanya siamo que era vender, if que produzimn uma esc de *moeda’. Analisi tudo isso em La Production des Grands -Hommas', pois volei-me param dosinio desta vex mais teeo: a Anise dos ssemas relages de parentesco. Ora, outa vez, poco a ‘pouco,parecia-me que hipétese de que estes sistema se explicavarm através das diversas maneirs que os homens tém de trocar malberes, era demasiado redutora, deixavana sombre muitos fatos, mutlava a realdade, Foi eno que aconrecevoencontro entre as dois contents, scio- logieo edrico,e ostaloadecszo de eserover um ivr sobre. dom, veio da leitura, em 1994, do livra de Anaette Weiner, Inaienable Possessions: The Paradox of Keping-hile- Giving? -Eutinha lid as pbliagtes anteriores da ator, mas aqui asides tinham sido levadas mais adianne. Especial das Tobrand, endo rea. lizado com Malinowski uma pesquita sobre os mesmos fatos a pritca "Marie Gai, padi da Grd Hommes Pi asd 1982. Nov bit 195, "Annee Wines Ilse Nos The Buds of Kei Sg, skies of Cllr Pre 1982, do bul, Annette Weiner haviadescobero tos novos que eclreciam problemas deixados sem eesposta por Malinowski e por Mauss, Ela ‘mostava, sobremo, como sepia conserva um abjeto € 40 mesmo ‘empo dito. Era uma parce do enigma do dom que era asim reslv- da. Alm disso, onteresse de Annete Weiner pelos objetos que nio se podem dar, a8 coisas sgradas, unas a0 meu, Foientio que se prodic iu oestalo eeu decid realmente retomarodessé do doa un desse favo fundamental de que existem cosas que no se dever da, «que tanbémn nko se devem vende. Fo dese ingulo qe reli Mas, Livi Straus evios outros auto ‘res F foi entio que me pareceu evidete a seguinte hipeese no hé sociedad, no hi idenidade que atravesse tempo esrvade hase tanto ptt: ndividuoe quanto para os grupos que comers uma socieda dese nto existirem ponte fos, realidades subcratdas (provisria mas ‘daravelmente) 3s e048 de dons ou As wocas mercantis. Qi sho e- tasreldades? Tatas somente dos ober grades prescrtesem todas as eligies? Nao havera uma relagio geal entre 0 poder potivo © algo que €chamado de sara isto até mesmo nas socsedades ica, ‘nde o poder nao emana dos deuses, ms dos peSpeios homens que as fandaram, dando-The uma Consttuigio? Maso que hi em um objeco emo “dea? Estan tineriso qe nos perms {ara estat cosas recalesda, cio recaleament alvexseja para todos acondigio de uma exnénca socal. A viagem fifo, Comecero, portant, por Maus tenzemes aaliar se legado. cwiruo _O legado de Mauss ‘0 BRIO DE UMA GRANDE OBRA E SUAS SOMBRAS 4 razdosimples de uma veputagdo: wna visto global e poderosa slo dom como um encadeamento de tris obrigacoes Fm que termos, de que éngulo Mauss se colocoa a questio do dom? Pdemosresumir son abocdagem na seguinte femulat 0 gue fa com que eo textos tio diferente cs inlviduon eta bade no omen a ‘har ou, quando algo les dad, reser, we também obras, quando recur, estitur 0 que hes fo do eras, ea tema cosa ou seu esualenehy sea alg de mal ou de melo? Foi para responder a esta questio que ele reuniu todos aqules esta questo, tans de um novo sentido. O que mais me impressonars, como maiora dos leitoresdo“Essi sr le don”, fora vet Maus apon rocas prestagées, de uma mesa ase, dseanes masencadeadas, eg atria presents no livo que estes, sob o imps tinkam comegadeo ‘ existénca, no seio das mais diversas formas de 8 ensarnando-¢ em tes ob- 1 preciniava as pessoas ens ‘om um movimento que, cedo ou tarde, trszia as cosa de vola 3s pes ‘eas efi coined © pont de chegads de todos estes dons econ- tradons com sou ponto de pata sta fore, Mauss descrevia posindo ao mesmo tempo a pessoas «ascoisas, iso no wei de socieddes,éclaro, em que nenhura bareira lola pareia se ener entre umas eourese, portant, no poderia separa radialmente, As cota prolongavam a pessoas, ¢ as pessoas se idenificavam com as cotas que possi ¢ que trocavam. Mause eserevia mundos em que “tudo vai ever, como se houvese toa per rmanente de uma matéra espriil sompreendendo coisas © homers, entre osclisosindivius, reparidos entre as categoria, oF Sex08 638 erases". Descobrtamos qe “o vincuo através das ois €um vine alm, poisa pedpria coisa tern uma alm, € dn alma. Escrito ‘mos compreender por qe, uma vez dada, a cis leva com ela algo das pesoase se esforga” pare retomar, ced ou tarde para squea que, pla Primera vez 2 ita cedido. Todo parecia claro com acondizio de que ‘leit partihase ele também este ipo de cena, chegando mesmo & ido c, portant, encintra-se até cert ponto sob soa dependéncia, 20 menos até o momento em que conseguir “estituie”o que Ie foi dado. ‘Dar parece insaarar assim oma dferenga e uma éesigualdade de statusentredoador e doastiie desigualdade queem certas circunstin- ‘as ples rasfrmar em hieraquia: sees exis entre ces antes th dom, cle viia expres elegitit-la ao mesmo tempo. Porat, {ois movimento opososstariam contides em um ico € meso ato. ‘0 dom agnoxima os protagonstas porque é para & os afta scial= ‘mente porque transforma um dels em devedor do onto, Poe se div- sro formidive eno de manobras ede strays posses contd ‘vetaalmente na prtica do dom ea gem de intereses apostos que cle pode serie. O dom em sua pedpri esstci, una prticaambivaente {que une ou pode nit paadeseforgae cords. Ble pode ser, 0 mes- tno tempo oa sucessvamente, ato de genersidade ouaro de violencia, ‘mas nese caso de uma vclncia difargnda de pesto desnteresado, pois se exese por meio e sob a forma de uma porta. © dom pode se opor violas dirt, & smbordinagSo fica, ma terial social, mas também serum seu substtuto. Es ras que abun lanes oe exemplos de sociedades em que 0s individuos incapazes de hhonrar suas vids, se véem obrigados ase colocar ou a colocar seus fithos, como esraves,acabando por se sansformar na propriedaée, ra “coisa” dagucles que les tsham concedido seus dons. Dal fica cl ro que dos dois elementos a pariha ea divide, dos dois movimentos ‘onto ecominade na prtica do dom, ¢o segundo (a oloeagio a sintincs) que correo rico deter mais efeitos na vida social, jé que ‘exc lkima 6 organizada em torno de diversas formas de competgio pata 0 acesso3 rguera, ao poder, 20s sberes 0 205 ios “Torna igualmene fi comprecnder que 0 dom, por ua prépria Auaidadeeambivalnca, noontr ancondighesideaisparaseuenerctio ‘esea desenvolvimento no seio das sociedades co funcionarentorepou- sa anes derudo na producto e manurengio das relages pessoas ene ‘os individuos centre os grupos que a compdem,relagbes de partes, de produgio, de poder et. Da prspectiva de uma socologia compara dapode-e esperar que eras condigbes dominem nas sociedadesem que ‘io exit nem casas, nem classes hieraguizadas, em Estado para overnite, A prdica do dom se exerce eto entre protgoniss ejo ats vocal ates do doo, épotencal on realmente equivalent. Eas ‘que pressupomos na “cao ipo” que acsbumos dean ‘Em compensa, sas sciedades onganizadas em categoray, em ‘casas oem clases, 0 dom, também muito praticado, se revestene- ‘esaramente de formas e sigificages dhferenes se € praticado entre esas da mesma categoria ou da mesma condi (iso nos remete 20 ‘as precedente) centre pessoas de sats radcalmence desig. Neste ‘iim cas, o dom nio teria 0 mesmo sentido se um inferior ds um “superior ose for o inves, Salientemos aqui, mas voltremos a iso, ‘que dara superioresnio implica necesariamente que els seam seres Fumanos, Fm tod as sociedades —sefam ou no dividdas em catego ‘as, casts ou clasts — vemos os manos oferecendo donsa seres que ‘les consderam seus superiors: potdaciasdivinas, os espinitos da nate twsa 09 0$ epticos dos mortos. A cles dirigem preces,oferendas¢ 38, eves 6 “socrifican” bens ov mesmo wma vida. E a famosa “quanta ‘igag30” coostinaiva dodom que Mauss mencionou sem deseavalver “Cnmpletamente e que, em gra foi esquecida por seus eomentarisas. 'Ni-etanto ea ali que earealavam sea “Essai sur le don” (1929) © se sa sur a nate el fonction du sacrifice (1895), obra redigida€ ‘mblicada com Henri Huber. Estas nota nos permite afar que a lie de un dom, qualver qu sia ele, exge sempre que se lve emt ‘omsideragio a regio ene aquele que di eaquele que recebe antes ‘© primeiro tena feito um dom a0 segundo Mas pensesis um pouco mis sobre ofaro de que um dom é ura aw peso”, Epor esta rszio que, qualquer que seit tipo de socieda “econsiderada,hierarguizada ou no, o dom est presente em todos 08 ‘ampos da vid social ms quai ela;despessons continua a desem- ‘war am papel dominants.O carter “pessoal” do dom nfo desapare~ ‘necesariamente mesmo quando ens aguele que di eageele que ‘cee no exit nena rela pesoa deta enum conbecimento tito e mesmo quando hincervenio de intermediirios, Assim, neste fim de século XX, a bandeira da caidade,outeora carregada plas inst rues dis divers ges exists, cateliase protestants, foi retomada tr Ocident pela orgnizagGes nio-governamentaise, 3s vezey até ‘mesmo pelos estado. Camnpanhasmaconss so lngadas para angarar ts fandos necesirios para Tatar coneao cine ou contra Aids, ot pra enviar um comboio de vverese medicamentos para a Bosnia, “A catidade laiizowsec, partir do momento em que comegou a usar a mia ransformou seem parte ew un jogo televisionado fe- hndmeno gue imprime & colts de dons algumas dis caractersticas do potlatch, Do patatch, com efit, reencuntramos 0 apc a dar exda vex mais, uma cidade mais que a outa, uma emprest mais que uma ‘tra, eo dese de que o total de donatves super a cada ano aguele {ve for ating no ano precedente. Como no potath, procama-se ‘igualmente onome das pessoas, sca, das empresas que se mos- ‘saram mais generosas. Assim, mesmo nas sciedades em que af relaghes entre os indie ‘duos sio cada vex menos pessons, os dons conserva ainda bem freqienremente um carter “pessoal”, mesmo que este tenba se rorna- do abstrtos crite que nfo ese igado apenas Squeles que sto doado- 1es;mas também aquelesa quem os dons so destinados. Pos no paleo da televisiotemos sempre inividuos que representam vitualmence todos aguces que vio se benefice dos don: eiangasafetadas por uma doensagendtica, vitimas da Aids questo entrevistadase que susstam ‘2 compaixio eo desejo de ajuda, de dar. E20 lado deles esto 0s - presentames das insticugbes que assim fazem apelo&generosidade populacto. Fests pessoas se compeometem a gir em nome dos tiplos doadores de alguma maneira como seus subsiuts. Hoje, poreanto, no seio mesmo dasimensassocedades industiais « estatais que compdem o coragto do mundo — no qual se afrmou {ncesantemente o valor pessoal de indivduo, mas onde, contadtora- -mente, se exprimem ambém sem cess osensimentoe oremorsa que ‘osinividuos experimencam por teem se submerdo a elagbesimpes- soais que os dominam em toda aparte—, o dom nfo perdeu nem sea

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