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RICARDO PIGLIA Formas breves mi centio comegar a decifrar de fato a escrita, Trancou-se em sua casa e tabalhou por duas semanas, doze horas por da, sem ver ninguém. © 14 de margo de 1822 terminara. Nessa noite, foi ao Instituto e se apresentou no escrtorio de Kirche. "Nao hé mais segeedos disse The, ndo voltou falar. linghista mudo. Quan- do superou a crise, abandonou a egiptologa eo estado das lin {gus antiga. Foi viver em Nova York eabriu um negocio de com pra evenda de méveis. QuiNTA-FEIRA Em La Prensa, em abril de 1871, em plena febre amare, ppublicou-se este andincio: “Tabelito nacional. © subseritor desta ‘oferece-se a0 piblico para fazer testamentas esteja ou nao enter ‘mo da epidemiao testador e encontra-sedisposigao do solic tantea qualquer hora do dia ou da noite rua Chacabuco, 296" ‘Teses sobre 0 conto ‘Num de seus cadernos de notas,Tehekhow registra esta ane ‘dota:"Um homer em Montecalo vai ao cassino, gana um mi Thao, volta para cas, suicida-eA forma ckssca do conto est condensada no nicleo dese rato fturo e ndo escrito, ‘Contra o previsvele convencional(jogar-perder-sucidar: se), intrga se oferece como um paradoxo. A anedota tende a desvinculara histéra do jogo e a historia do sucidio. Essa cisio {a chave pata definiro carter duplo da forma do conto Primeia tse: um coato sempre conta duashistrias. © conto eléssco (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a historia (o relato do jogo) e consti em segredo a histria2 (0 relato do sucidio). A arte do contistacansise em saber cifrar a % historia 2 nos intersticios da hist6ra 1. Ur relat visivelesconde tum relato secreto,narrada de um modo eliptico fragmentivi. © cfeto de surpresa se produ quando o final da histévia secreta aparece na superficie ‘Cada uma das das histrias € contada de modo distino, Trabalhar com duas historias quer dizer trabalhar com dois ss: temas diferentes de causalidade. Os mestos acontecimentos ‘entram simultaneamente em duas lgicas natrativas antagoni ‘as. Os elementos estencais de um conto tém dupla fungio € ‘do empregados de maneita diferente em cada uma das dias historias. Os pontos de intersegio so fundamento da cons trust. Em “A morte ea bisola Jogo no comego, um lojsta deci de publiar um livro, sso livro est al porque ¢ imprescindivel sna armacao da histéra sereta, Como fazer para que um gangs ter como Red Scharlach esteja a par das complexas traigoes jndaicas e ja capaz de armar para Lonnrot uma cilada mistica € filosfica? Borges Ihe arranja esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo, usa a hstéria I para dissimalar essa fungie: 0 livro parece estar ali por contighidade com o assassinato de Yar- rmolinsky e responde 2 uma causilidade ionica. “Urn deste lo- sists que descobriram que as pessoas se resignam a comprar ° ‘qualquer livco publicou uma edigio popular da Hiséria screta dos Hassidim” © que & supérluo numa historia 6 basico na ‘out Olio do ljista € um exemplo (como o volume das Mil © tna noitesem “O sul como a ccatriz em “A forma da espa- a) da materia ambigua que poe em funcionamento 4 micros c6pica méquina narrativa que € um conto, ‘© conto é um relato que encerra um relato seceto, Nao se trata de um sentido ocalto que depends de interpretagto: enig- 'ma ndo ¢ outea coisa sendo uma historia contada de umn modo enigmitico, A estratégia do relato & post a servign desa narea ‘0 cifrada, Como conta uma histria enquant se conta outrat ssa perguntasintetiza os problemas téenicos do conto. ‘Segunda tse: histriasecreta€a chave da forma do conto ‘ede suas variates. A versio moderna do conto, que vem de Tehekhoy, Kathe- rine Mansfield, Sherwood Anderson e do Joyce de Dublinense, bandana o final surpreendente ea estratura fechada; trabalha 2 tensfo entre as duas histrias sem nunca reslvé-la. A hists- ria secreta € contada de um modo cada vez mais elusivo. © conto clissico Poe contava uma historia anunciando que havia 13; 6 eonto moderne conta duas historias como se fossem uma s6 A teoria do iceberg de lemingway &a primeira sintesedesse processo de transformasio: 0 mais importante nunca se conta. A histria construida com 0 nio-dito, com o subentendido e @ also, "0 grande rio dos dois coragbes, uma das narraivas funda. smentais de Hemingway, ciffa a tal ponto a histria 2 (os efeitos dda guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrgio trivial ‘deuma pescara, Hemingway poe toda a sua pericia na narragio hermetica da historia secreta, Usa com tal maestea a artedaelip- se que logra fazer com que se note a auséncia do outro relate, Que teria feito Hemingway com a ancdota de Tehekhov? [Narear com detahes precsos a partda, o ambiente onde se de- senrolao jogo, a téniea que usa o jogador para apostar eo tipo de bebida que toma. Nao dizer nunca que este homtem vai se si- ‘dar, mas escrever 0 conto como so kitor jd soubesse, Kafka conta com clareza esimplicidade a histriasereta, narra sigilsamente a histriavisive, até convert-la em algo eri tico e obscuro. sa inversdo funda 0 “kafkiana”, A istria do suicdio na anedota de Tehekhov seria narra da por Ketka em primeiro plano e com toda a naturalidade, O terrivel estara centrado na partida, narrada de modo eliptico & ameagador. Para Borges, histria 1 é um género ea historia 2 & sem. pre a mesma, Para atenuar ou disimular a essencial monotonia desi histria secreta, ele recorre as varantes narativas que Ihe oferecem os géneros. Todos os contos de Borges sio construdos| com base esse procedimento, A histriavisivel 0 jogo na anedota de Tehekhor, seria con- tada por Borges segundo os esteestipos (levemente parodindos) cde uma tradigao ou de um género, Uma partda num armaxée, na planicie entrerrana, contada por um velho soldado da cava- Tara de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. O relato do suicidio seria uma historia construida com a duplicidade e a condensa- «io da vida de um homem numa cena ou ato tnico que define seu destino, A variante fundamental que Borges introdusiw a histria, ‘do conto consstu em fazer da construso cifads da histra 20 tema do reat, Borges narraas manobras de alguém que constroi perver ‘mente uma trama secreta com os materiais de uma historia Vis vel-Em ‘A morte ea buissols’ a historia 26 uma construgio deli berada de Scharlach. © mesmo sucede com Azevedo Bandeira em "0 morto’ com Nolan em “Tema do teaidor edo herd com Emma Zain, Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em anc- dota 0s problemas da forma de narra. % © comto é constrnido para revelar atificialmente algo que cstava oculto, Reprod a busca sempre renovada de uma expe- riéncia nica que nos permite ver, sob a superficie paca da vida, tuma verdade secreta. “A vist instantinea que nos faz descobrit 0 desconhecido, nao numa remota terra incognita, mas no pré prio coragio do imediato’, dia Rimbaud, ssa iluminago profana converteu-sena forma do conto Novas teses sobre 0 conto as ess so na ealidade um pequeno catélogo de fesbes sobre o final, sobre a conclusio eo desfecho de um conto, e fo ram inspiradas desde o principio em Borges © em sua maneira particular de rematar suas historias: sempre com ambiguidade, ‘mas também sempre com um eficazefeito de clausura e de ine- Vitivel suepres, Borges, sabemos i tos como tendo sido o seu primeiro «isso quer dizer, talvez, que ‘os comegos slo sempre difces,inceros, que teve varias patidas 1s vezesapontou diversos de seus con- falsas como nas corrdas de cavalo realizadas no campo, como na conhecid diatribe de fosé Hernéndez contra seu amigo Esta lao del Campa (“parece que sem dar largada cansaram-se em part parece, mas é premeditadoc fatal 4 uim jogo entre a vaclagio do comego ea certeza do fim {ue fo muito bem definido por Kafka numa nota de seu Didi, Escreve Kala em 19 de derembro de 1914: “No primeira momento, o comego de todo conto € ridicule 0 fim, por sua ver, & sempre involuntério ou assim. Parcce impossivel que ese novo corpo, inutlmentesensve como ‘que mutiladoe sem forma, possa manter-o viv, Cada ver que se ‘comeya,esquece-s de que conto, se sua exsténca ¢ justificad, ji tra em si ua forma pereta, e que 6 cabe esperar vislambrar nesse comegoindecisoo seu visivel mas, talve,inevtével fina’ Essa nogio de espera ede tensio rumo a0 final secreto (etn <0) de um relato breve hi de ser © ponto de partda desis nots. Talo Calvino conta uma historia em Seis propostas para o priximo milénio que pode ser vista como uma sintsefantistica da conclusio de uma obra Entre muita virtudes, Chuang-Tsétinhs & de ser hibil no lesen. O ri The pedi que desenhasse um caranguejo, Chuang. ‘sé respondeu que precisnva de cinco anos © uma casa com doze tindos. Passaramse cinco anos, ¢ @ desenho ainda nso estava comegado,"Precso de outros cinco anos, disse Chuang-Tsé, O rei os concedeu, Passidos dez anos, Chuang-Tsé tomou do pin ‘ele, num instante, com um tinico geste, desenhow um caran- ‘gue, 0 caranguejo mais perfeto que jamais se tina visto, Antes de tudo, essa € uma histria sobre graga, sobre in tantinco e também sobre a duragao. Ha um vazio, tudo fica em -suspenso, ¢ relato se pergunta sea espera (que dura anos) faz ‘ou no parte da obra Como o relato trata de um artista, seu nucleo bisico € 0 tempo ¢as condigdes materiais de trabalho: ness sentido, o con- to € um tratado sobre a economia da arte Fem to entre o pintor eo rei: difculdade reside, rcordemos Marx, em medic o tempo de trabalho necessrio numa obra de arte, © portanto a dificuldade de defini (socislmente) seu valor. ” [Arte € uma atividade impossivel do ponto de vista social, porque seu tempo 6 outro, sempre se demora muito (ow muito ppouco) para “fazer” uma obra Quanto tempo, afnal, Chuang- Tot emprega para desenhar co quadro? Decididamente, 0 conto que Calvino conta é uma fibula (moral) sobre forma (uma fibula sobre a moral da forma), ou seja, uma parabola sobre o finale sobre o remate (uma pardbola sobre o desfcho e sobre que dé forma a uma obra) Para comesan o relato de Chuang. termina as avesss. Hi uma expecttiva (nao pode pintar) © uma solugio que € 0

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