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Dados tnternacionais de Catalogaeo na Publicagio (CHP) (Cara Brasileira do Livro, SP, Beall) Pera: andes econo centr basa / avenge Dornier lr paras ~ Pa sawasrasez019 1 frre basins Cite tpeeito 2 aes Iva Hie cers 3. emoager poral ‘es, euro Dan Alu, ex. ors eopeaoe Tndies para catilogs sstemaco, 1 Resonagens tonne Hit ec OOH IRACEMA, 0 CORACAO INDOMITO DE PINDORAMA Silorano Santiago ‘Para Marlene de Castro Correia (Cane da protagonista e titulo do livro ~ Iracema ~ é vorabulo in- ventado na lingua portuguesa por José de Alencar (1829-1877). Bem antes de Mério de Andrade e de Guimaraes Rosa, Alencar foi o prosador que mais contribuiu para o enriquecimento do dicionério brasileiro da lingua portuguesa. O também autor dos romances O guarani (1855) Uhirajara (1872) acreditava que “o conhecimento da lingua indfgena 6 0 melhor critério para a nacionalidade da literatura” e, por isso, aconse- Ihava a si e aos pares: “E nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro; é dela que deve sair 0 verdadeiro poema nacional, tal como cu o imagi- no”. Nos seus livros indianistas, Alencar seguitt A risca 0 preceito que enunciou no posficio a Iracema (1865), ensaio conhecido sob o titulo de “Carta ao Dr. Jaguaribe”. Para chegar ao objetivo, ele partiu de uma anélise da produgéo literéria indianista que precede seus livros. A con- cluséo a que chega indica que a solidéo seré a sua companheira. Os li- vros analisados eram censuraveis por dois excessos opostos: "Jou de Atenas Iacema (Rio de Janis: Melhoramentos sl) 9. 148. 4 PERSONAE ~ GRANDES PERSONAGENS DA LITERATURA BRASILEIRA Muitas (obras} pecavam pelo abuso dos termos indigenas acumula- ds uns sobre os outros, © que nto 6 quebrava a harmonia da Kngua portuguesa, como perturbava a inteligéneia do texto. Outras eram primorosas no estilo e ricas de belas imagens; porém faltalval-Ihes carta rude: ingémua de pensamento e expressio, que devia ser lin. sguagem dos indgenas? Depois de analisar 0 resultado final do projeto literétio de Alencar, o erftico Araripe Jtinior afirmava que “os assuntos pouco inte- ressavam a sua musa fértil; a linguagem era tudo”. Anos mais tarde, M. Cavalcanti Proenga concordava com o jufzo de Araripe; acentuava no entanto que o interesse de Alencar pela linguagem denotava, entre nés, rara personalidade artistica, cuja consciéncia critica se fez pelo “dominio do seu instrumento de trabalho”. Proenga concluia: “Fantasia, ele a ti- raha, ¢ vertiginosa por vezes, mas sob suas leves nuvens havia chlo sslido de preparo, de leitura e de exercfcio, em que firmava pé para os saltos, vvO0s e até cabriolas que executou”.? Na série de notas que acompanham Iracema, todas de auto- ria de José de Alencar, encontramos uma em que 0 ficcionista diz 20 leitor que, para compor 0 vocébulo Iracema, aglutinou duas palavras guaranis ¢ aportuguesou o resultado. Combinou ira, que significa mel, ¢ tembe, que significa labios. Na composig&o de palavras, adverte ele, tembe aparece muitas vezes sob a forma de cembe, dai a opcio. Ira-cembe = Iracema. Na tradue%o para o portugués, Iracema significa “labios de mel”, Ao dar nome & filha do pajé e sacerdotisa de Tup’, o vocdbulo tem o seu significado etimolégico ampliado, para conter também o de virgem das selvas de Pindorama. A virgem dos Isbios de mel pertence & tribo dos indios, tabajaras, habitantes primitivos da regio onde os colonos portugueses fundaram, no inicio do século XVI, mais precisamente em 1611, o que José de Alenca, “Cares 20 De Jguarbs mt Inacom cityp. 148 2M. CavaleandProeng, ago do comendvio de hacen (Ru Jani: Jeoé Ohm, 1965). 1920. TRACEMA, 0 CORAGKO INDBUITO BE PINDORAMA, 8 sera nos nossos dias o estado do Ceard. A sacerdotisa se apaixona até o auto-sactificio por um conquistador branco, Martim Soares Moreno, ¢ & em parte correspondida. Atormentado pelas saudades da pétria e dos seus ¢ tomado por nobres ambigSes, Martim serd, ao lado da dedicacao exclusiva que Ihe dedica a fndia tabajara, amante voldvel. Das ntipcias hasce o primeiro cearense, Moacir, mameluco que sobrevive & mae indf- gena e cresce sob a protegsio do pai portugués. A breve vida da herofna e mértir indfgena tanto encantou e fascinou os leitores brasileiros do século XIX, que seu nome passou a transitar fora do livro ~na pia batismal das igrejas cat6licas esparrama- das pelo Brasil. Fora do livro, sob as bengSes do péroco, o nome proprio feminino nao perdia o contexto politico e social que tinha sido respons4- vel pela sua gestaco. Gragas literatura nacionalista de Alencar, o grito do Ipiranga transforma-se num ato pablico cujos ecos se fazem ouvir na vida privada dos brasileiros. Com vistas ao sacramento do batismo, o nome proprio dos ‘ascituros, tanto o macho quanto a fémea, é escolhido pelos pais catéli- 08 no calendétio religioso. A tradigéo aconselha que a escolha recaia sobre o nome do santo cuja vida se comemora no dia do nascimento da crianga. Na sua prosa indianista, Alencar quis escapar 8 prética catélica, européia e branca, Assim como o romancista deu nome inédito & prota- gonista, embrenhando-se pelo cipoal da lingua e dos costumes nfo-ctu- Topeus, assim também pais brasileiros passaram a dar na pia batismal o nome da heroina de Alencar as filhas recém-nascidas. O nome préprio guarani e liter4rio passou a fazer concorréncia ao nome de santas da igreja catélica, Nao chega a ser nome to comum quanto Maria ou Tere- sa, mas deve empatar com Luzia ¢ vencer Eullia. Na segunda década do século XX, quando da eclosio do modernismo em Séo Paulo, Iracema volta a ser admirado por intelectuais ¢ leitores voltados para as ideologias de cunho nacionalista. Séo esqueci- dasas inteng6es de caréter lingtiftico, que esto na origem da criacéo do nome da protagonista e do titulo, Outras sao levantadas pela letura dos 16 PERSONA - GRANDES PERSONAGENS OA LITERATURA BRASILEIRA pésteros, Nao é apenas a imagem da virgem dos bios de mel, insubmissa, roméintica e arrebatada mortalmente pelo amor, que 6 admirada; é tam- bém Louvada sua imagem como simbolo do Brasil, das Américas, cuja pureza ¢ grandezas originais tinham sido destrogadas pela colonizacio européia, Aftanio Peixoto, em NogGes de histéria da literatura brasileia (1931), confessa: “Nao foi, pois, sem emogao, que descobri, nessa Irace- ma, 0 anagrama de América, simbolo secreto do romance de Alencar que, repito, & 0 pocma épico, definidor de nossas origens, histérica, étni- cae sociologicamente”.* Em prefiicio a uma nova edigao de Iracema, escrito em 1941, num “angustioso momento do mundo”, o poeta Guilherme de Almeida actescenta: “Desde o seu proprio nome — anagrama de América — Irace- ma é, de fato, a América toda: a {ndia filha e dona de verdes e grandes livres ¢ boas terras, nelas solta, que ‘guarda o segredo da jurema ¢ 0 mistério do sono’, e que © guerreito branco vem descobrir e amar € possuit e fecundar [...]" Gilberto Freire, em ensaio sobre o romancista, arremata: “Alencar no foi colonialmente portugués nem subeuropeu, “foi um legitimo lusotropical’, por isso ‘ndo precisou repucliar sistemati- camente na heranga lusitana do Brasil senfo o que essa heranca Ihe pareceu importar de imposicao aos brasileiros”.* ‘Qual a razio para a popularidade crescente do personagem de José de Alencar? Se os pais, a0 escolher nome para o filho ou filha, estio Ihe desenhando um provavel destino, de que magica literéria se valeu Alencar para conquistar a simpatia ¢ a confianga dos conterrineos em momento to solene? No jogo de forgas populares que consagrou nome de Iracema, pesou mais o culto a0s ideas romAnticos da protago- nista (a bela virgem apaixonada), ou a entrega & ideologia nacionalista pelo romaneista (a india indémita e generosa), ou ainda a originalidade 4 Afeinio Paseo, Nog dhe da Beans Bee (Ro de Jana: Fasc Alves, 1931) ps 163. > Guilherme de Almeida, "Preis" xa asa (Sto Palo: Baio Livraia Maris, 1941), 0.8 © Gilsrto Freire, Reterntano Jas de lence (Ro de Janeleo: MEC, 1955), pp. 3-4 IRACEMA, 0 CORAGAO INOBUITO DE PINDORANA 7 dda miscigenagéo como modelo cultural para o Novo Mundo (a esposa de uerreiro portugués e mie do primeiro mameluco)? Por que, a cada novo perfodo da histéria do Brasil, Iracema reganha forgas ¢ novos significa- dos? Como uma lenda, que viseva a dramatizar a fundaco da futura provincia do Ceard, metamorfoseou-se em poema em prosa das origens brasileiras e transformou-se depois em simbolo da independéncia do pats, para finalmente se apresentar ao leitor contemporaneo nosso como at- quétipo da brasilidade hibrida? Para tentar responder a essas e outras perguntas, conhegamos a biografia do personagem. Se a biografia pode esclarecer alguns mistérios. que cercam a protagonista e © livro de José de Alencay, ela vai também. levantar outros enigmas para o leitor. Um grande personagem, como € 0 caso de Iracema, néo vive 56 de certezas, sobrevive nas questGes que con- seguiré despertar nos leitores de hoje e de amanh. José de Alencar nao classifica Iracema como um romance historico; identifica-o como “lenda”, uma lenda do Cearé. Iracema, Martim e Moacir slo os principais personagens da lenda sobre a funda- ‘sf0 da provincia do Cears, que lhe foi contada quando crianga. A histé- tia, segundo ele, nao é necessariamente a (nica fonte da verdade. Como fundamento dela, existe a “tradigao oral”. Esta € que é “uma fonte im- portante da hist6ria, e as vezes a mais pura e verdadeira”. O personagem Tracema nasce do confronto entre fonte oral e fonte escrita. E a recria- 0 pelo artista, na idade madura, da histéria que the chegava pela vo2 do povo, quando era crianga. A recriagdo literéria acolhe os dados que foram fornecidos ao menino pela tradigo oral e os contrasta com os dados adquiridos pelo estudioso das pesquisas histéricas sobre o Brasil colonial. Ao miscurar os ingredientes diversos, Alencar salpica aqui e ali, conforme adiantamos, pitadas do seu conhecimento tanto do léxico quan- to da sintaxe da lingua indigena. O solo ambiguo que alicerga a recriagéo da lenda possibilita a0 romancista se entregar tanto aos vos da imaginagdo romantica quanto a corregao dos equivocos cometidos pelos historiadores apressados. Permi- PERSONA ~ GRANDES PERSONAGENS DA LITERATURA BRASILEIRA te-lhe ainda estabelecer o canone nacional de uma esctita ficcional primi- tiva ¢ profundamente poética, distante tanto das obras com excesso de cenxertos indigenas, quanto da norma do romance hist6tico europeu, tal como praticado pelos que buscavam inspiracéo na Idade Média, Sobre o chao contrastado pelas fontes oral ¢ escrita, José de Alencar imagina os primérdios do Cearé, transformando personagens ¢ acontecimentos hist6- ricos em simbolo da fundagio do Brasil e, por ricochete, das Américas. Iracema é a sacerdotisa que descerra a cortina do passado para nos mostrar © modelo da fundagao das futuras comunidades imagindrias do Novo Mundo. Pretende ser a pedra fundamental do edificio da brasilidade. Na nova escrita nacionalista, os dislogos entre os persona- -gens so ao mesmo tempo castigos (eles se tuteiam), docemente falsos (as constantes comparagées dos seus atos com o comportamento de di- ferentes animais e vegetais na selva),” quando néo so mera transctigao para o portugués de construgo abonada pela sintaxe indigena.® A for- ma vulgar, deturpada e pop, desse padrio nobre de escrita literéria se encontra hoje no que, a partir de gibis e filmes, passou a ser para as ctiangas do mundo a fala de Tarzan, Iracemanasce na serra de Ibiapaba e pertence tribo dos tabajaras, {ndios habitantes do interior. Seu pai é Araquém,o pajé. Seus préximos e mais ferozes inimigos sio os pitiguaras, que habitam o litoral, na regiéo compreendi- da entre os rios Pamatba e Jaguaribe (conhecido como rio Grande). Ela & apresentada ao leitor no segundo capitulo do livro. A desctigso fsica de Trace- ma obedece a um designio superior do criador. Cabelos,talhe, sortiso, hélitoe ligeireza so comparados a plantas e animais, flores e produtos da selva. O prosador empresta-lhe caracteristicas préprias do ser humano que, na intimi- dade, comunga com a natureza. Corpo humano, corpo animal, corpo vegetal 2 sca fala de um puerer, por exemple: "0 gro pica not ares, Quando o nambu levanca ele ea das nuvens ¢ rx as enranhas da vita. O guertelco taba, iho da see, € como o giv" Jost de Alencas, "Cap, V", en acema, city p26) * oreo: tabsjaay informa Alencar, a saudagfo usual da hospalidade era eta; “Er ob — nu viestel Pet uv, in, Nese o diflogo entre Artquém ¢ Marin no cepitulo I IRACEMA, © CORAGAO INDGINTO DE PINCORAMA, 19 « conpo geogréfico se confundem no universo pantefsta de Alencar. Homens, animais, plantas ¢ terra so selvagens, purcs ¢ virgens, Na confuséo, plaina a alegorizagéo. Iracema é a representagéo mais complexa de Pindorama, assim como os tabajaras s8o a representago mais cabal, diz o texto, dos aristocrat cos “senthores das aldeias”, Os cabelos de Iracema sio mais negros que a asa da gratina, mais longos que seu talhe de palmeira. © favo da jati nfo era doce como seu sorriso. A baunilha nfo rescendia no bosque como seu hélito perfumado. Era mais répida que a ema selvagem na cortida pelo serio e matas. As sucessivas comparagdes servem também para idealizar a pro- tagonista. Em todas elas [racema é dada como superior ao ser comparada (por exemplo, seus cabelos so mais negros que a asa da graiina e mais longos que seu talhe de palmeira). Essas e tantas outras comparacées das figuras e das agées dos personagens com elementos da fauna e da flora, tipicos da terra virgem, agradam a pensadores como Gilberto Freire. Ele vé na abundancia das comparagées® a diferenga entre a escrita de Alencar e a de John Fenimore Cooper, autor de O tiltimo dos mohicanos. Gilberto afirma que “os {ndios [de Alencar séo] quase vegetais na sua natureza’.!? Jé o processo de ‘dealizagdo do(s) personagem (ns) indianista(s), com vistas d alegorizago da trama, desagrada a muitos leitores de Alencar. José Lins do Rego, em Conferéncias no Prata, 6 contundente no julgamento: “Alencar nos dera tuma alegoria imensa, e nés precisivamos de pesquisadores da alma hu- mana”. Néo é diferente a conclusio a que chega a historiadora Lticia Miguel-Pereira em Prosa de ficgdo (de 1870 a 1920): “[..] 0 cardter sim- Ao ter livre depois de concluo, Alencar € impedoso consigo prprir “noo algum exces de compaagtes, epecigdes de cetas imagens, deslinho no exslo doe us eaptuls”(*Cart a9 De Jaquaibe’, cit. p. 159). % Nese mesmo ensalo de homenagem 2 Aleneay, Gilhero Fee apoveita « ocasito pact desanear Machado de Asis. Esereve ole, contrartando os dois romancsts “Ned de pisger, naa de co, nada de devore, nada desl denro de case—a casa, geralente, sande, sabado geralmente, nove ~aue Machado, nos seus romances, procu a rengardar des crus roa eda vita também env ds mors plebeus” (pct, pe 89). 20 PERSONAE ~ GRANDES PERSONAGENS OA LITERATURA BRASILEIRA bélico emprestado aos herdis — aos dos livros indianistas, os mais impor- tantes — como que os desumanizam”. Nos romances indianistas, José de Alencar no é Machado de Assis. Nao se deve procurar, na caracterizagéo de Iracema, sua alma ou o fino tratamento psicol6gico de um personagem feminino, Tem certa “rudez ingénua”. Desde o prélogo de Ressurreigdo (1872), Machado diz que seu principal interesse nesse romance ¢ 0 de “contrastar dois caracteres”. NEO existe, na prosa de Alencar, um interior da protagonista a ser descrito pelo romancista e a ser desvendado pelo leitor. Iracema néo € um caréter, no sentido machadiano do termo; & sim, um coragdo indémito. O corago indémito de Pindorama. Iracema é pura aparéncia, dato jogo das compa- rages coma fauna ea flora selvagens para se aprender a sua beleza origi- nal. Seus sentimentos sdo simples e nitidos; seu desejo € exclusivo; € um ersonagem tio inteirigo e tio pouco maledvel quanto uma chapa de aco. $6 na floresta, Iracema é despertada da sesta por um rufdo suspeito. Ergue os olhos e, diante do posstvel guerreiro inimigo, arma arco e flecha para se defender. Dispara. Fere no rosto o rapaz europeu, de olhos azuis ¢ tristes, vestido com tecidos desconhecidos e armas mais desconhecidas. O guerreiro branco quer revidar, Refteia o instinto vin- gativo. Com a mie aprendera que, na religiéo de Maria, “a mulher & simbolo de ternura ¢ amor” e, por isso, sofre “mais d’alma que da ferida”. Iracema se arrepende do gesto precipitado. Os bons sentimentos se cor- respondem, embora em clave religiosa distinta, Traduzem o bem, como é comum em textos cujo fim é 0 proselitismo. Iracema quebra a flecha homicida, Dé a haste ao desconhecido e guarda para si a parte farpada. Com o gesto, segundo a tradigao, cla scla a paz entre agressores. E arma © paleo para que se encene a paixo amorosa que nutriré por Martim Soares Moreno. Amor & primeira vista, coup de foudre, como nos bons folhetins oitocentistas. Ao quebrar a flecha, Iracema se transforma na méquina termodinamica que impulsionaré a trama ficcional amorosa. Amplia-se 0 nécleo central dos representantes do bem. Os tabajaras sdo gente de boa indole, hospitaleiros e polfgamos. Conduzido IRACEMA, 0 CORAGAO INDBMITO DE PINDORANA 21 pela moga, Martim € bem recebido por Araquém, que lhe oferece boa acolhida e muitas mulheres. Instrutiva € a conversa que 0 pajé mantém como guerreiro branco, pois dela decorre um dos principais dilemas que Tracema vai enfrentar. Iracema estd seduzida pelo melhor amigo branco dos seus inimigos. Martim € amigo dos pitiguaras,"' que, por sua vez, vem a ser os piores inimigos dos tabajaras. ‘Ao dilema de Iracema corresponde uma primeira nuvem negra na caracterizagéo de Martim: como um jover de sentimentos to delicados pode ser amiigo dos inimigos pitiguaras? De hé muito Martimé fntimo do pajé Jacatina e de Poti. Bis o primeiro trago que marca a dubie- dade de Martim, Para resolvé-la dramaticamente, Alencar desenha para ele 0 acesso a sentimentos diferentes ¢ complementares, Encontrou a amizade entre os pitiguaras e entre os tabajaras descobre o amor fulmi- nante. Para cumprit a misséo a ele delegada ~a de fundar uma sesmaria naquela regio do Brasil serentrional — vai eleger a nagéo da amizade ou ado amor? Ou, homem da paz, vai tentar coneiliar as duas? Iracema vivencia seu dilema: como amar 0 amigo dos inimi- gos e, a0 mesmo tempo, ser leal aos seus e conservar a condigdo de sacer- dotisa de Tupa? Seus passos furtivos pela aldeia dos tabajaras estardo sempre a traindo. A noite, ao guiar até a cabana do héspede as mulheres que Ihe serviriam de companhia noturna, Iracema escuta a declaracdo apaixonada de Martim. Nao as quer. Deseja unicamente a companhia de Tracema. Nao se sabe ainda se a elege tinica parceira porque a ama, ou Porque professa f€ monogamica. Iracema confia-lhe que néo pode cortesponder ao seu desejo carnal. E sacerdotisa de Tupé: guarda o se gredo do licor da jurema e 0 mistério do sonho. E quem fabrica e entrega a bebida de Tupa ao pajé. Este a distribui a tribo por ocasitio das cerimd- nias religiosas. Deve permanecer virgem. 4 No io grafarse de dois moxos o nome dessa eo: pliguara«potguars. Alencar justice: eles e chamavam asi mesos pitigiaras,senhores ds ales; mas 08 tbsiarae, seus inimigos, presen O8 pelidavam potiguarss, comedores de eamero", Opes por grlar apenas pias 22 PERSONE ~ GRANDES PERSONAGENS DA LITERATURA BRASILEIRA Comega-se a desenhar, sobre o fundo dos personagens do bem, outros que representam o mal. Armam-se as opgdes maniquefstas. Nessa mesma noite, reaparece entre os tabajaras o sanguinario Irapua.!? Ble nfo ostenta 0 espfrito hospitaleico de Araquém. Quer levantar os tabajaras para a guerra contra os pitiguaras por serem eles amigos dos invasores emboabas (os portugueses). Pela ética de Irapuéi os pitiguaras io duplamente inimigos, pois so eles que também “deixam vir pelo mar raga branca dos guerreios de fogo, inimigos de Tupa”. Pergunta [rapua: “Faremos nés, senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em seuniniho, quando a serpente enrosca pelos galhos?”. A situagéo de Martim se complica entre os anfitri6es. Pela sua presenca na taba, desenha-se, também, o drama paralelo da conquista do Brasil pelos portugueses. Irapud representa a pureza da religifio primitiva que se quer preservar sem 0 contégio destrutivo dos brancos. Ao contrério de Iracema e Martim, no é"pomba’, Ao contrério do ficcionista, nfo é conciliador. Seré por isso que Alencar, arauto do hibridismo lingdifstico, o representa com as cores nnegras do ddio e da vinganca e, posteriormente, do citime? Nao estard af ‘0 germe do hibridismo religioso, de que dois batismas sucessivos e com- plementares sero 0 melhor exemplo na trama de Iracema? Martim quer distanciar-se da tribo que o acolhe. Pressentindo © petigo que ronda o amado, Iracema promete a Martim pedir ao irméo Caubi que o leve até os amigos pitiguaras. A iminéncia da morte traigoeira como que acentua a tristeza de Martim. E tomado pela saudade dos entes queridos e da pétria. Iracema se compadece. Tudo faré para mitigar as saudades que ele sente de Portugel e da noiva, Alencar se vale de um velho fildo da literatura em lingua portuguesa que, desde a Idade Média, associa a saudade a0 povo de navegadores. No universo romAntico, que Alencar representa, ela é como que chamariz a fisgar a sentimentalidade da protagonista. Ao amor se soma o que vinha sendo anunciado~a prote- Cofmeenternente,o nome de Trp incorora parte do nome de Tracema Informa Alencar que € compoto de ira, mel, ¢apub edondo,eaerescent:“€o nome dado uma sbelha visdenta e brava Jno nome © gueteto tse « mares do mal IRACEMA, 0 CORAGAO INDBMITO DE PINDORAMA 23 40. O carsiter inteirigo de Iracema, diante dos titubeios de Martim, trans- forma-a em figura paterna. Para consolar o guerreito, Iracema arquiteta a primeira — e serfio muitas— das rebeldias contra o juramento que prestou a Tupa. Leva- © a0 bosque sagrado de Jurema. Traz-lhe “numa folha gotas de verde ¢ estranho licor vazadas da igacaba [pote de barro], que ela tirara do seio da terra”. O licor da jurema'® tem duplo efeito sobre Martim. Primeiro, ali- via-lhe as dores, levando-o de volta terra natal, reaproximando-o dos entes mais queridos e da noiva; em seguida, acentua-lhe o sensualismo, trazendo-o de volta para a terra do sol e do fogo, onde vive o seu novo amor. Esté em jogo a teoria da obnubilagdo brasflicalt de que fala Araripe Jénior. Ao palmilhar em sonho as terras do serto brasileiro, o guerreiro suspira o doce nome de Iracema. Iracema escuta seu nome. Embriagado pelo licor, busca-a como que em sonho e a estreita na realidade contra 0 peito. Iracema cede, Aceita o beijo de Martim, Pela primeira ver, transgri- dealei de Tupa. Iracema se revela uma auténtica protagonista roméntica e, no contexto da lenda, digna do édio de Irapua. $6 existe transgressio quando hé lei. Ao oposto da teoria da obnubilagio, diga-se que a mera presenga do branco no Nove Mundo constréi o arcabougo para a trans- _gresstio aos valores autéctones que, no caso, serd referida como o desejo de o primitive comungar sentimentos nobres vis-d-vis do colonizador.' ‘Ao amar Martim, Iracema dé adeus nao s6 aos seus, mas também ¢ so- Em nocs, Alencar aclara que se rata de uma bebida que tins efit do hasne presucta somos to Vivo tensor, que apetioa entia com delice como ae fnsens elidde mw slcinarGeseradvels a ancaria excieada pelo nario” (Laem, cit p 159), Explica Atinio Coutinhos “A fags dlerencndora da presi enerog ito €, do meto fico ~ elo, page, oa, lima sobre as forgr ments homtendeu lige eo fendmene que Araipe designs ‘como obnubilago brasfica:& adaptapo dos clones a0 novo eo, por um process de mimeo, esquecendo as hibitos da mae-pia em A trad afta (Ria de Jancit Jo Clyro, 1968), p13. Obnubiagto do porugués crangresio dondigena soo pester emplemencates que sustencam 9 ‘spiio concliatério na ands da colonizao lus. 24 PERSONE - GRANDES PERSONAGENS OA LITERATURA BRASILEIRA bretudo a Tupa. Como esté anunciado no Sermo da Sexagésima, do padre Anténio Vieira, que retoma os conselhos dados a El-Rei por Pedro Alvares Cabral, Iracema se transforma na boa sementeira onde poderé germinar a palavra de Deus. “Semen est verbum Dei”: a semente é a pala- vra de Deus. Sabito, Iracema pega arco ¢ flecha. Um ruido a assusta. Ti- niham sido seguidos por Irapua, no fundo, 0 Gnico e verdadeiro defensor de Tupa. Ao saber da chegada do estrangeico a taba, o guerreiro tabajara fora dominado pelo cidime. Como um tigre, o seluagem chega farejando a presa. Quer beber o sangue do estrangeiro, confessa elea Iracema. Quando o tiver todo sorvido, talvez Iracema o ame, Iracema néo corresponde a0 impeto amoroso do guerreiro. Como poderia ela, pergunta-the, dar o sew seio “ao guerreiro mais vil dos guerreiros tabojaras”? Quem ofender héspede, acrescenta ela, ofende o pajé. Sem dar ouvidos a sacerdotisa, Irapud investe contra o casal. Bla toma do arco e flecha e promete maté- Jo se der mais um passo. Irapud é definitivo no seu desprezo ao estrangei- 10 adormecido pelo licor da jurema: “Vil é 0 guerreiro, que se deixa proteger por uma mulher”. Alencar deixa aflorar uma interessante subconversa!® no texto. O licor da jurema em corpo branco enfraquece e retira a temperanca mascula. Como pode um guerreiro em cuja religiéo a mulher é sfmbolo de ternura e amor aceitar a mulher como protetora? Irapua esté a dizer a Tracema que ela est invertendo os papéis do géne- ro: o amado € que est sendo simbolo de amor e ternura. Quando Martim revé Iracema na manha seguinte, a virgem, em contraste com as cores alegres do amanhecer, esté cabisbaixa, pélida € fremente. A tristeza tem motivo. Ela conhece a maldi¢ao que pesa sobre o amado e a vé como ameaga iminente: “O guerreiro que possutsse a virgem de Tupa morreria”, diz o texto. O mel dos labios de Iracema é veneno para Martim. Af esté o segundo dilema de Iracema, que sera "© Brcamoe nos valendodconeeitode “sous-convematio csado gos Nathalie Saraute, Hésubconvese ‘quando hum dilege sem fala. € 0 cato da eubconveres enti o aol eax planras, do maesto © 08 inisicos, et. Para smb Satraue rou a agen globaeance do “cropismo" IRACEMA, © CORAGAO INDOMITO DE PINDORAMA 25 Posteriormente reiterado pela voz da pajé e de Tupa: se se entregar a0 guerreiro branco, estar decretando a morte dele. Ao ceder 0 corpo a0 amado estaré assassinando-o, Como salvar a cle? Como deixar que a ame sem responsabilizé-lo pela transgressio a lei de Tupa? Iracema deve se deixar possuir, na verdade possuindo-o. Invertidos os papéis de géne- ro, a trama também o deverd ser. Por seu curno, Martim no tem coragem de desgracar a jo- vem sacerdotisa: “nao deixaré o rastro da desgraga na cabana hospedei- ra”. Como amé-la sem maculé-la? pergunta ele No duplo impasse, eis que aparece Caubi, irmao de Iracema, com uma solugdo pela tangente. Ele retoma da caca. A pedido da irmé, conduziré sozinho o héspede branco ao territério dos pitiguaras. Martim leva consigo um presente de Iracema ~a rede de dormir. Trapua, a frente de cem guerreiros, arma emboscada para os dois e corrige a solugdo pela tangente armada pelo acaso. Em lugar de distanciar a sacerdotisa do estrangeiro, ele acaba por reaproximé-los, pro Piciandoa vivéncia do dilema sexual em toda a sua extensfio. Caubi defen- de oestrangeiro, até a chegada da iem, que pressentira a chacina iminente. Caubi e Iracema conseguem se desvencilhar de Irapud e, por medida de seguranga, levam Martim de volta & cabana de Araquém, De novo, o grande guerreiro se deixa proteger por uma mulher. Irapua acusa Martim de ter ofendido Tups, roubando a sua virgem. O pajé, secundado pela vor de ‘Tupa, reitera a maldigéo que pesa sobre aquele que deflorar a virgem. Mal pode adivinhar o pajé que no é o homem que quer deflorar a virgem. Ao encaminhar o amado pelas aléias do bosque sagrado, as aléias da posse, o coragio indémito de Pindorama arquiteta o seu préprio desaparecimento. Extaria Alencar consciente de que a coabitagao dos ind{genas e portugue- Ses nos trOpicos, proposto pela sua visto conciliatéria, acarretaria a autodestruico dos primeiros? Surge uma segunda possibilidade de Mertim voltar para a taba dos seus amigos. Apreensivo com o desaparecimento do amigo branco, Poti veioao sew encalgo. Seria por demais arriscado para Martimencontré- 26 PERSON ~ GRANDES PERSONAGENS DA LITERATURA BRASILEIRA lo em territério tabajara. Iracema é enviada como mensageira. E mais se- guro, diz ela a Poti, que o guerreiro branco permanega sob a protecdo de Araquém. De volta do inusitado encontro, Iracema tranqtiliza Martim. Palavras indies. Ele quer deixar definitivamente a cabana de Araquém. Martim confessa-lhe o principal motivo que o leva a bater em retirada: quer deixar os tabajaras no porque tenha medo de Irapud e seus guerrei- 10s, “tem medo dos olhos da virgem de Tupa”. Néo hé por que temé-los; eles j4 the foram entregues pela dona. Caubi volta & cabana em que Martim esté hospedado para avisar que os guerreiros, embriagados pelo cauim, querem trucidar 0 es- trangeiro. Uma vez mais, Iracema vai salvé-lo da féria dos seus, escon- dendo-o numa caverna, Uma vez mais, ela elabora um plano para levar ‘© amado e Poti até os pitiguaras. £ tempo de festa entre os tabajaras. Os guerreiros passarao a noite no bosque sagrado e recebero do pajé.o licor da jurema, que os deixaré sonhadores e alegres. Quando todos estiverem, adormecidos ¢ felizes, Martim e Poti deixargo as terras tabajaras. Em agradecimento, 0 apaixonado abraga a virgem dos lébios de mel, mas ogo a repele ao recordar 2 maldiggo que pesa sobre aquele que profanar © seu corpo imaculado. Nessa noite, duas imagens invadem e tomam conta da ima- ginago de Martim: a da virgem loura dos castos afetos, 1é em Portugal, a da virgem morena dos ardentes amores, a seu lado. A segunda ima- gem domina a primeira: “todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, ele sente correr-lhe pelas veias uma onda de ardente chama’’. Para pdr fim ao seu tormento, pede a Iracema que, uma vez ‘mais, Ihe ministre 0 licor da jurema, A transgresséo a lei de Tupa serd consumada pelo avesso. Martim deseja um sono alegre e feliz. Tera so- ho mais alegre e mais feliz. Apesar das boas intengSes que levam Ira- cema a ministrar o licor de Tupd a Martim, ela acaba por administrar o seu destino de esposa do guerreiro branco, inocentando Martim de toda e qualquer culpa de violagdo. Martim possui a virgem sem se dar conta de que a esté violentando. Ama sem macular. Martim continua acredi- |RACEMA, © CORAGRO INDOMITO DE PINDORAMA 27 tando que os beijos de Iracema so doces apenas no sonho; na vida, amargam ¢ docm como o espinho da jurema, Quem com jurema so- tha, em espinhos de jurema nao espeta a consciéncia, Com a chegada da lua nova, a ceriménia religiosa na tribo dos tabajaras chega ao seu apogeu. O texto da lenda torna-se pouco plausivel, ou Iracema nao é to inteiriga quanto acreditévamos que fos- se. Apesar de ter sido possuida carnalmente por Martim, nessa noite Iracema se comporta como sacerdotisa. E perversamente falso o com- portamento dibio da protagonista. Ou se se pensar na teoria do homo duplex, desenvolvida por Victor Hugo no “Prefiicio de Cromwell”, é per- versamente roméntico o comportamento diibio de Iracema. f ela quem acende os fogos da alegria para os seus. Traz a igagaba cheia do licor verde. O pajé distribui as pogdes por entre os guerteiros. A dubiedade religiosa se soma a esperteza de uma estrategista, Iracema est pondo em prdtica também o plano de fuga dos trés, Ela guia os dois amigos para fora do territério tabajara. Serve de“senhora docaminho”,!” para se valer de uma expressii cara a Alencar, até o momento em que Poti, percebendo que ela “demora a marcha dos guerreiros”, sugere a Martim que se despeca dela. Iracema reage contra a cordem dada por Poti. Pede para acompanhé-los até onde acabam os cam- pos dos tabajaras. Chegado ao local aprazado, Poti decreta que é tam- bem chegada a hora da despedida. Iracema diz que agora deve ser franca com os dois, Nao pode mais, diz ela, separar-se do estrangeito. Confessa a0 assustado Martim que jé é esposa dele. Néo hi tempo para maiores conversas. Os trés séo obrigados a correr, pois esto sendo perseguidos pelos tabajaras, No momento em que os tabajaras esto alcangando os tres fugitivos, do lado oposto surgem os pitiguaras (guiados pelo fiel cdo de Quando ox pertonagens andam pea forest, Alencar recusa-te a usar 0 vocdbulo pie par designar ‘aquele que condus bando, Toma de empréatinoo voctbula pigura, Eexplica:O caminho no estado selragem no existe; ko € cols de saber. is por ccasto ds marcha através da loesta cu do campo, ‘em cet diego; aquele que o tem eo da, € realmente renhor do caninho” (acer, cit, p15), ~~ 28 PERSONA ~ GRANDES PERSONAGENS DA LITERATURA BRAGILEIRA Poti). Trava-se a luta, Caubi quer vingar a irm3, matando o cristo. Em. defesa deste ena qualidade de sua guardif, Iracema diz a Martim que se alguém tem de matar Caubi seré ela, a irma, Pela segunda ves, ela salva Martim da morte anunciada. O dilema que Iracema vivenciou junto aos seus se encaminha para um final vergonhoso. O sentimento do amor sobrepuja o sentimento de lealdade aos irmios. Vencem os pitiguaras. Em passagem de grande beleza, o ficcionista se detém nas imagens que os olhos de Iracema refletem, Perto, o cho juncado dos cadéveres dos irmfos e, longe, 0 bando confuso dos guerreiros tabajaras, que foge em rnuvem negra de pé. O sangue brioso que enrubesce a terra de Pindorama € ‘omesmo que arde nas faces da india envergonhada, Iracema chora. Levan- do a esposa do lado do coragio ¢ © amigo do lado da forga, Martim regenha finalmente a seguranca fisica proporcionada pela estima dos pitiguaras. Entre os inimigos da sua tribo, a tristeza de Iracema no tem limites. Vé os cr&nios dos irmaos espetados na caigara; escuta 0 canto de ‘morte dos irméos cativos; toca as armas tintas de sangue dos guerreiros. Em sinal de carinho, Martim decide levar a esposa para longe dos pitiguaras. Acompanha-os Poti. Seguem os trés sua marcha por entre ‘montanhas e rios, até chegarem & beira-mar. So acolhidos por outro bando de pitiguaras que, em jangada, os levam para mais distantes ter- ras. Chegama um “alto morro de areia que tinha a alvura da espuma do ‘mat”. O morro € chamado de Mocoripe.!* O cristo se cansa de cami- har sem destino e de mover os passos 20 acaso. $6 tinha a intengéo de afastar-se da taba dos amigos pitiguaras para arrancar a tristeza do cora- fo de Iracema. Por isso, agora busca e encontra um lugar de pouso. Com a ajuda de Poti, constréi uma cabana. A alegria volta a morar na alma de Iracema. Ali encontra 0 ninho do amor, “nova patria para seu coragao”. Esté grévida e 0 diz a Martim, Germina na sementeira aduba- da uma segunda semente, a do sémen de Martim. . "Moro de eeia na enseada de mesma nome, us gun de Force TRACE, © CORAGAO INDOMITO DE PINDORAMA 29 Numa passagem de rara singeleza, em perfeita sintonia com os valores pregados pelo sistema patriarcal brasileiro, Poti expressa possi- velmente a filosofia de vida do romancista: A felicidade do mancebo é a esposa e o amigo; a primeira da alegria, ‘0 segundo dé fora, O guerreiro sem a esposa, & como a firvore sem fothas nem flores: nunca ela verd o fruto. O guerreino sem amigo, é como a frvore solitéria que o vento acouta no meio do campo: 0 fruto dela nunca amadurece, A felicidade do vario € a prole, que nasce dele e faz seu orgulho |... Amado de Tapa, € o guerreiro que tem uma esposa, um amigo € muitos filhos; cle nada mais deseja seniio « matte glotiosa."” Como observa Gilberto Freire em fina anilise do universo ficcional de Alencar: “Tudo no individuo nascido e crescido em meio patriarcal e escravocrata, € marcado ou afetado pela sua situagio de fi- Iho ou de homem de familia”? Nao € fic precisar o teor das idéias sociais de José de Alencar, Sabemos que foi conservador, catélico, escravocrata, antifeminista e ini- migo declarado do imperador Pedro II. No entanto, morreu cedo. Aos 48 anos, no dia 12 de dezembto de 1877. Machado de Assis, dez anos mais novo do que o seu companheiro de letras, s6 foi morrer em 1908, 31 anos depois. Devido & morte prematura nfo pudemos saber como o ve- Tho conservador teria reagido & Lei Aurea, assinada pela princesa Isabel, 8 Proclamacdo da Repiblica, de inspiragio positivista, ¢ ao exilio da fa- mia real. Alencar perdeu a ocasido de fazer valer as suas idéias, opinises € atuagdo politica nos momentos mais importantes da vida brasileira na sua época. A tuberculose que o vitimou (encoberta no laudo médico como “hepatoenterite”) talvez nao Ihe tenha sido téo traigoeira quanto © s€culo. Foi este que acabou pregando a maior pega no arauto do nacio- nalismo literério, no polemista acérrimo das Cartas de Erasmo e no con- José de Alencar, Ian cit, pp 105-106 ® Gilberto rete op. city p 8. PERSONA ~ GRANDES PERSONAGENS DA LITERATURA BRASILEIRA servador que nao escondia suas simpatias por uma visto feudal do passa- do brasileiro. As mudangas demoram a acontecer no nosso pats. Se se morte cedo, perde-se o melhor da festa. ‘Ao ouvir as sébias palavras de Poti, Martim abdica da patria de origem ¢ adota a pétria de seu futuro filho e de seu coragao. ‘Tendo assumido a patria da esposa e do amigo, falta ao cristo passat pela ceri- ‘ménia de batismo, segundo o cerimonial indigena. Ele se abrasileira pelo contato com os indigenas, como no final do século o Firmo de O cortico se abrasileiraré pelo contato com os afto-brasileiros. Durante o rito de passagem, deve ter 0 compo coberto com as cores da nagio pitiguara. A tabajara Iracema incumbe-se das tintas e da pintura. Pelo corpo do espo- so traca riscos vermelhos e pretos. Pinta na fronte uma flecha. No braco, uum gavilio. No pé esquerdo, a raiz da coqueiro. No pé diteito, uma asa, Pinta por fim uma abelha sobre folha de étvore. Ao final do tito, Martim recebe novo nome, agora na lingua de sua nova nagao. E Coatiabo - 0 que sofre a agao da pintura. Batismo epidérmico, estamos vendo, bem diferente do cristéo, onde a aspersio com Agua benta significa um renas- cet espiritual, com purificagio de culpas e pecados. AAfelicidade dos trés€ curta. Logo & perturbada por duas vezes. Retoma a questéio da opefo colonial dos indigenas pelos portugueses, Martim vé desenhar-se no horizonte uma caravela dos franceses, Sto eles aliados dos tupinambas,* que, por sua ver, sfo inimigos dos portugueses e dos pitiguaras. Poti é chamado de volta por Janatiba. Esto ameacados pelos tabajaras, ago- 12 aliados a0s tapuitingas (nome que os pitiguaras davam aos franceses) Martim no pode abandonar o amigo em momento tio delicado. Parte com Poti as escondidas. Nao se despede de Iracema, para no ter 0 coragfo amo- lecido. Deixa-Ihe, no entanto, sinais de sua partida, Iracema esté triste e s6. Ao lugar do abandono e da espera deram o nome de Mecejana, que em lingua portuguesa significa a abando- 5 No conseguindo expular os portuguese da Baia, os tupinambés emigam para o Meranhio, onde slianga com os fancese, que eto infestans agulasparagens IRACEMA, © CORAGAO INDOMITO DE PINDORAMA a nada.}* Volta-Ihe, no entanto, antiga companhia. A jandaia.”? Do alto da palmeira, ela gritao seu nome: “Iracema! Iracema!”, trazendo-lhe de volta © sortiso. Tinha esquecido do passaro no tempo da felicidade e ela, no entanto, reaparece para a consolar no tempo da desventura. Os dois amigos retornam vitoriosos do campo de batalha. Martim volta @ amar Iracema, como nos primeiros dias. Mas a presenca diuturna do mar desvia a atengio do emboaba. Passa os dias a escutar o solugar das ondas. A companhia da esposa e do amigo jé no Ihe basta; rnutre “grandes desejos e nobres ambigdes”. Sobe a um alto monte e la fica a cismar, Quer voltar & pétria e A companhia dos seus. Quer estar s6 para se entregar aos pensamentos. Poti afasta-se dele e também Iracema. Ela esti ressabiada e desconsolada. Contessa ao esposo: “Teu corpo esté aqui ‘mas tua alma voa A terra de teus pais e busca a virgem branca, que te espera”. Néo se trata disso, responde Martim, € a ansia de combater os tupinambés (¢ 0s invasores franceses) que me angustia. De novo, aparece uma caravela no horizonte. Estaode volta, os franceses, agora querem fazer alianga com os tabajaras, para a grande guerra da vinganga. O pacto entre os inimigos dos pitiguaras é retoma- do: tabajaras, tupinambés e franceses. Por seu turno, Martim e Poti arregimentam novos aliados para Jacatina. Partem para outro e distante combate. Saem vitoriosos. Enquanto pelejam no campo de batalha, “o primeiro filho que o sangue da raca branca gerou nessa terra de liberda- de via a luz nos campos da Porangaba {hoje Arronches]”. A ex-sacerdotisa de Tupi € mée. Depois de parto dolorido, talvezteflexo do excesso de culpa que carrega, batiza ofilho: “Ta és Moa cir filho de meu softimento”. O filho de Iracema ¢ Martim é, no dizer de Afrénio Peixoto, “simbolo desses primeiros brasileiros, os mamelucos, Logon evils ads Isguns da futur capital da provincia do Cea ® Dis raligto orl informa Alencar, que Cea iia na lingua ingena canto da jana Cearé nome composto de cemo cantar Forte ~ earn ~ peu aara ou periquca, "Nome pxéprio também invertado poe Alenct lniorma ele de moacy, dos er, desinénca, ue gn fea = sada de. Said da dor, asco da don 32 PERSONE ~ GRANDES PERSONKGENS DA LITERATURA BRASILEIRA mirtires da civilizagdo, que atraigoaram a raga autéctona, da qual jé ndo eram, para serem maltratados pela raca invasora, a qual ainda néo per tenciam.”5 A jovem mae se sente “vitva e solitéria em meio da cabana”. Eis que, num verdadleiro coup de théatre, assoma & porta o irmao Caubi. Tracema pensa que veio para vingar o ato de traigio aos seus e & Tupa. Engano. Caubi é figura do bem. Diz-The que foi a vontade de ver Iracema que o fez caminhar até o litoral. Depois de mostrar-lhe 0 recém-nascido, pede noticias da tribo. Araquém nfio € 0 mesmo desde que Iracema aban- donara a cabana paterna. Iracema pede ao irmao para dizer ao pai que tinha mortido. Quem sabe se assim ele nao se consola da dor de té-la perdido para o guerreito branco e para a tribo inimiga. Depois de alguns dias, Caubi despede-se da irma. Tem de voltar. £ ele quem sustém o corpo vergado pelos anos e guia o passo trémulo do anciao. Moacir esta faminto. Iracema tem leite escasso. Faz de tudo para nutri © filho. Nada resolve. Encontra um bando de tenros cachor- rinhos que tinham sido abandonados pela mae. Escolhe primeiro 0 que Ihe parece mais manso. Unge os seios com mel de abelha. Deixa depois que, um a um, os cachorrinhos famintos suguem os peitos avaros de lei- te. Curte a dor, mas os seios vao-se intumescendo. “[...] eo leite, ainda rubro de sangue de que se formou, esguicha”. Bla se desvencilha dos cachorrinhos “e cheia de jdbilo mata a fome ao filho. Ele é agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também nutrido”. Japi, 0 co fiel de Martim, reaparece no horizonte. Volta a esperanga ao corpo debilitado pelo parto e pela amamentacSo. Iracema cai desfalecida na rede. Regressam 0s guerreiros, novamente vitoriosos. O latido de Japi é de alegria, j4 0 canto da jandaia € de tristeza. [racema esté enfraquecida. Mal tem forgas para levantar o filho nos bragos ¢ apresenté-lo ao pai omisso. Nunca mais Iracema reerguer4 0 corpo da Aftnio Peo, Nope de nid eratura Brae, ty 63, IRACEMA, © CORAGKO INDBIITO DE PINCORAMA 33 rede. Faz um dltimo pedido: que o marido enterre seu corpo ao pé do coqueiro. Quando o vento soprar as folhas pensaré que 6. fala de Martim que 8¢ expressa por entre seus cabelos. Tracema morre. Pedra fundamencal, sobre o seu ttimulo seré erguida a provincia do Ceard: “E foi assim que um dia veio a chamar-se Ceard o rio onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeja o rio” 26A vida de Moacir comega pelo auto-sacrificio da mae. O primeiro cearense, ainda no bergo, emigrava da terra pécria com o pai. Pergunta 0 roman- cista: “Havia afa predestinagio de uma raga?”, No século XX, Graciliano Ramos responder & pergunta no romance Vidas secas, Ao regressar finalmente & terra onde a esposa est enterra- da, Martim ali funda 2 primeira mairi [cidade dos brancos, em oposi¢go a taba]. Traz sacerdote para dizer a palavra de Deus, No sistema de trocas simbélicas, aparentemente harmonioso mas raras vezes equilibrado no universo alencarino, agora chega a vez de Poti passat pela ceriménia do batismo. Ele é 0 primeiro a se ajoethar diante do padre: “recebeu como batismo o nome do santo, cujo era o dia; e 0 do rei, a quem ia servir, e sobre os dous o seu, na lingua dos novos irméos”. Poti veste a méscara de Antnio Filipe Camargo, que se tornaré um bravo guerreiro durante a expulsio dos holandeses, A lenda de Iracema — sua vida breve e sofridla, sua dedicagio atormentada ao estrangeito, sua morte prematura em virtue das seqtielas do parto— acaba por dramatizar alegoricamente o modo como foi implan- tada no Brasil a lingua, areligido e os costumes europeus. Lingua hibrida e religido sincrética espelham uma nacao de mamelucos e mulatos, Joxt de Alencar, recema, ct, p 142. (a

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