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A cultura portuguesa hoje Seretemos 0 célebre critério de Ortega y Gasset, concedendo a cada geragao um prazo de quinze anos, convivem em mim cinco geragdes, quer dizer, cinco tempos ndoapenas vitais, mas culturais diferentes. E um handicap sem remissio para quem foiconvidado g/j4, para falar da “cultura portuguesa contemporanea”. Ha muito que estou fora da contemporaneidade propria da minha geragdo, quer dizer, da unica em que se pode falar “desde dentro”, como dizia o mesme Ortega. Das outras contemporaneidades, sobretudo das mais contiguas minha, posso ainda falar como espectador mais ou meros ctimplice das mudangas ou metamorfoses queas defini- ram ¢ que sem me dar conta estavam nao apenas envelhecendo 0 meu proprio tempo cultural, mas recsiando-o numa perspectiva cada vez mais imprevista einsdlita.Atéquechega um momento em que s6 a titulo de historiadora forga a nossa relagio com o presen= & te se toma nao apenas ficcional, coma o é sempre, mas realmente, _impossivel ou, com mais propriedade,irreal. Estas consideragées intempestivas nao fazem parte denenhu- ma estratégia tortuosa destinadaa recusar in liminea possibilidade A 3) joo de trataro tema da cultura portuguesa hoje,masa definiro estay on j» todesse hoje para quem jé nao é contemporaneo daquilo que nele Live ‘© _sejoga,irrompe, explode, com aquela intensidade efulguranciady anf" é nai call éyutuep™ que é novo e constitui asubstancia do presente, Antes de mai a. novo econstitui asu presente. mais, esse hhoje” nio é 0 meu e é mais do que paradoxal imaginar que pode. ria ter algum interesse descrevé-lo, sup6-lo ou imaginé-lo de uma perspectiva que neste ano do centendrio de Chateaubriand s6 pode designar-se, quase & letra, como de “além-timulo”, No tempo do autor de René, esse espaco péstumo podia passar como sendo ode , uma imaginaria eternidade favordvel ao julgamento desvinculado das contingéncias humanas que atribuimos a Deus. E.s6 um dens da literatura, que era entao mais divina do que a religido, ou a sua mascara aces el, podia revestir-se de uma palavra péstuma capaz de recuperar, nas suas cadéncias suntuosas ou em imagens de fogo, {4 Pascal, esséncia da hist6ria como tempo perdido e resgatado. Para quem se sente herdeiro dessa longa tradicao de melanco- j_ _,\ lia épica, natural acompanhamento do interminavel creptisculo de “lpi *)" ‘um deus suposto a que chamamos modernidade, um minimo de js modernidade urn mini eam oper 0 “hoje” a que deveria , le _ Nireservarassuas consideracdes como o proprio espaco, nao do indi. aoyast WBS zivel, como foi sempreo da cultura humana que s6 existe pornos x _dizer algo, mas do inacessivel. Do lugar donde falo e onde estou, entende-se. E essa situagao que nada tem de contingente nao € determinada por qualquer coisa de par cularmente opaco carac~ teristico desse momento da cultura portuguesa. O*hoje” a que me _tefiro, esse presente a que nao tenho acesso como meu senao sob 0 _modo do que nnele é recusado como cultura que me era acessivel € _virtualmente inteligive, €0 “hoje” desse tempo tinico finissecular pparao Ocidente,onde aculturaeraconcebida como wato por exce- _Tencia da humanidade, sujeito de sentido e conferidor d do sua marcha para si mesma. ce Nio foi por acaso— e sempre reiterando implicitamente essa idéia de que cultura e Ocidente sto a mesma coisa e de que os des- tinos de uma estao ligados ao outro, o que nao é falso — que exte- nuagao ou implosio de todas as praticas tebricas, estéticas, éticas, (| ideolégicas e politicas consideradas paradigmaticas da moderni- dade sucedeu onao-conceito, porincapacidadedeopensaremter- 4; mos de positividade, da também ja extenuada pés-modernidade. ,,! jaw?) Na verdade, essa extenuacao sem mais conseqiiéncias doqueacon- \ tinua reciclagem da heranga da modermidade fragmentada ouas ‘© simbioses liidicas interculturais é mais aparente do que real. 0 exercicio da poética que caracteriza a pbs-modernidade— etique- tacultural sem inteligibilidade forado paradigma ocidental,deque €a consciente ou inconsciente desconstru¢ao — pela primeira vez na nossa tradigao cultural funciona sem aquele minimo de negati- vidade que, segundo Hegel, é constitutivo do process historico. J Vive de uma negatividade de si mesmainconsciente, Pela primeira yf vez desde o nascimento da modernidade — quer o religuemos | critica filol6gica do Renascimento, quer & emergéncia do expirito. "= cientifico—,acultura do Ocidente vive com indiferengaasuarela 7 sha, Ao com o tempo. Quer dizer, deixou — nao sei se de vez—deser x “oy uma cultura da angtistia, em suma, uma cultura fascinada, hipno- (> wove tizada ou perturbada pela morte. A esséncia do “hoje’,a do nosso ‘ou a do mundo inteiro, é jé a da morte entre parénteses. Nos Esta- dos Unidos, que nunca viram a morte—nem a propria nem ados outros —aInternet tema disposigao dos cidadaosacessiveiscemi- térios virtuais com garantia de conservacio eterna. Por enquanto perpetuam a mesma retorica romantico-espirita do século XX 0 ‘mesmo imaginério de uma cultura que ha muito nio existe: Mas estoucerto de que se aperfeisoarao. 4 . ° je existe como matriztinica omossoimaginsriogsa an “abet Que exit one aaa ee toatual éa cultura da cultura, aabsoluta eacasoirreversivel 5 - alk zagio do ato oudo objeto cultural. Barespostaditimafasedades ; sacralizagao do cultural que caracterizou a modernid, menosa cue vai de Duchamp a Andy Warhol ou Joseph B sacralizagao aliés ambigua, como ésabido. Em prin exultar-com essa culturizacao sem precedentes das noss, lade, pelo s deviamos aS Socieda. nO um efej to ousubproduto da mais universal democratizacao de vida publ r des neste iltimo quarto de século, que pode ser vista co: ©@ © a0 mesmo tempo, como expressa0 do fluxo comunicacional em escala planetaria, Seria absurdo ofuscarmo-nos nao s6 pelo acesso do maior nimeroa fruigao cultural, durante séculos privis légio de raros ou apetén a de connaisseurs, como também pela natural banalizagao de uma oferta que parece mais condicionada Pelo “readimento” dela, nos termos dbvios da economia, do que Por qualquer utopia schilleriana de“educacao estética da humani- dade” Que a cultura nao possa escapar, como Malraux dizia do cinema, a esfera do econémico, uma vez que é condensagao nao s6 de trabalho mas de seducio potencialmente privatizével, é inevité- vel, € sem grandes conseqiiéncias para o destino da cultura, na medida em que o seu papel, sua finalidade ouasua essénciade ato evalor indefiniveis sao inapropriaveis. A mais idolatrica atividade em relagao a cultura — se em diltima an ise isso nao fosse uma contradisao nos termos — nao pode afeti-la naquilo mesmo que ela €. A adoracao cria o deus, como pensava Kierkegaard. A verd: -deira ameacacontidanaatualapoteose do c de ou man‘festa na mais ou menos sutil sub a0 politico, nao no sentido de tradicao mi pelo totalitarismo modemno, mas no sentido soft democratico, da gestio evivéncia do cultural como méscara, apenas disfarcada da mais trivial vontade de poderi gn. sabe até que ponto o criador ou 0 ator cultural — salvo raras exce- [oes — fol sempre sensivel, se ndo a0 apelo, pelo menosa solicita. ao do podera seu respeito. | Uys. deg Sem escapar a esse contexto ocidental que condiciona, de maneiradireta ou invia, todaa pritica cultural, situagaodacultu- ra portuguesa atual — tanto quanto é acessivel a alguémjé fora da sua pulsio inovante ou especifica—apresenta uma textura singu- lar. Ela évisivel de fora para quem conhecia um pouco a nossa pai- sagem cultural antes da sua metamorfose nos diltimos quinze anos. Mas também ¢ sensivel a quem a conhecia de dentro, mio apenas a titulo histérico ouem fungao de uma mitologia reiterativa, que nao faziam dela propriamente um deserto (coisa que nunca foi), mas um tempo cultural delicioso e monotonamente provinciano, de intermitentes sucessos ou clamores — quase s6 na dre literaria — logo sepultados numa espécie de frustragao feliz. De resto, a glosa dessa frastracao, atribuida a nossa marginalidade européia, agra- vada pe'o pouco culturalista entusiasmo dos anos de paz domésti- casalazarista—eaté por Salazar lamentado, nao sei se com refina- daironia—,foi um poucoo melancélicoalimentodanossacultura nessa época, jé de si predisposta para melancolias. Por raz6es que nao cram apenas de ordem geografica ou ideol6gica, comunicava- ‘mos ou dialogivamos menos com aquele interlocutor — sempre um pouco idealizado e inacessivel—queerahé muito paranéspri- vilegiado: a cultura francesa. Apesar de tudo, tanto as linhas mes tras da cultura oficial como as da oposicionista — quer dizer, 0 marxismo— provinham de l4. Tanto como da nossa tradigao mais voluntariosamente castica, Mas & parte o fendmeno caseiro, entaio ainda de mero consumo doméstico, da redescoberta de Pessoa, em ‘meados dosanos 40, do surrealismo, em finsda mesmaépoca, nada nosdavaasensacao de partilharativamenteda culturauniversal ou mesmo s6 européia, de novo em marcha apés a Segunda Guerra Mundial. Existiamos e sobretudo viviamo-nos culturalmente em todos os dominios, ao ralenti ou passivamente. Embora caricatu- ral,éaimagem da nossa cultura que transmitiam os visitantes dessa €poca, pouco benevolentes para com a situagao portuguesa, como Simone de Beauvoir ou Roger Vaillant. Claro esté que nessa época, simbolicamente cinzenca, com uma cultura, em sentido préprio.g figurado, vigiada,a nossa leitura dela nao era exaltante nem exalta- da, salve para fins oficiais ou termos de meméria de outros tempos _ mais dignos dela como os do nosso século de ouro ou osda geracag, de 70 do passado século, Em suma, hibernavamos. Mas no Oci- iva, a dinamica cultural era também, subdeterminada, salvo raras excegdes, pelos automatismos ideolé- gicos daguerra fria. A nossa cultura estava mobilizada em sentidos ‘opostosem fungao desse esquema, que era, salvo nos pafses anglo- saxdes, planetario. dente, em geral, bem mais Assim vivemos, sobrevivemos, criamos, durante mais de trés décadas sobre o duplo registro de dois exilios ou isolamento: interiore o europeu. Isso nao significa que a nossa cultura nao tenha existido, ndo se tenha vivido no horizonte de uma mitologia caseira de que o nosso modernismo era o centro —comPessoa, S&- Carneiro ¢ Almada Negreiros—, mas um centro sem circunferén- cia, seo absurdo daimagem é permitido. Nessa época viviam ainda, eviverao longo tempo, Aquilino Ribeiro, José Régio, Miguel Torga, mais conhecidos entdo do que Pessoa, Lopes Graga e Freitas Branco, figuras do mundo musical, Guilhermina Suggia, pensado- res como Antonio Sérgio, Delfim Santos, Vieira de Almeida, Joaquim de Carvalho, Silvio de Lima, representantes entre nés do ctiticismo neokantiano, do existencialismo de conotacio heideg- geriana, do positivismol6gico ou da fenomenologia, Mas nenhum destes expoentes da nossa reflexao, exceto Ant6nio Sé:gio, grandeinfluéncia fora do campo universitério, da universidade de massas. Na realidade, tinha que nao eraaindao a tonalidade da cultura portuguesa entre os anos 40 e os fins dos anos 60 era subdetermi- nada pelo dialogo nunca explicitado entre um, discurso de enraiza- mento tradicional querdizer catdlico,eum discurso marxista, que pouco a pouco reordenava segundo 0 seu c6digo o.as tasleituras 4 todas as manifestagdes mais vivas da cultura portuguesa. Foi a jdade deouro do que se chamou o neo-realismo, o de uma cultura de repensamento critico do passado oudo presente em funcaio do seu idedrio, com militantismo literdrio, sociol6gico, artistico, his toriografico, dominando quase sem oposicao, representado por autores como Bento de Jesus Caraca, Ant6nio José Saraiva, Oscar Lopes, Mario Dionisio, que conferiram a prépria idéia de cultura ‘uma coeréncia e uma eficécia ideolégicas nunca conhecidas entre nds e cujos ecos estado longe de se extinguirem, quando parecem sem ressonancia naquelas éreas culturais donde nos tin’am chega~ do, Embora proxima da sua problematica, destaca-se dela pela sua amplitude e autonomiaa obra de Vitorino Magalhaes Godinho. De todos os tempos culturais passados, esse que também 0 € nesse presente que nos devia interessar é ainda o mais tivo, embo- ra sob formas menos dogmiticas e até irnicas em relagao a si mesmo. Mas, enquanto durou, o “tempo neo-realista’, salvo raris- simas excecoes, obrigou.a cultura portuguesa no seu conjunto, em todos osdominios — desde os propriamente politicose filosficos aos ficcionais,artisticos eltidicos—,a entrarem didlogo com o dis- curso-ctenga que o estruturou duradouramente. Sem grande sur- presa, esse hegemonismo cultural —apds um breve espaco em que pareceutransformar-se ou confundir-se com 0 de umanova cultu- 12 oficial de tendéncia marxista— nae sobreviveu a Revolugio de Abril, que recebeu da cultura neo-realista disseminada na pratica ounas utopias sociais e estéticas da nossa sociedade, aparentemen- te“globalizada’, a sua inspiracao ideolégica e o seu idedrio. Que chegaram tarde a prova de fogo de umahistéria que, desde Maio de 68, 0 fin da Guerra do Vietna, a invasao da Tchecoslovaquia e 0 cisma maofsta, no se recitava como 0 evangelho incontornavel do século, Pelo menos na Europa, e nés soubemos entao, na pratica e em traducdo portuguesa, que estévamos na Europa eque éramos Europa. Na politica, como no resto. 1s Podia cret-se, como é sempre natural, privilegiaado o pal dligma do politico, que acontemporaneidade de Portugal, em pal Hcular na sua expressao cultural, a sua atualidade owas ratzes dey comesaram precisamente com a Revolugao de Abril. A queda do regime, corroido do interior desde a década de 60, abriu um. ‘espa- §0 para qualquer coisa de novo em termos de pratica politica — ue mais nao fosse, pos termo a meio século de culture vigiada ou tutelada—,mas nao se abriu,sendo lentamenteee, de alum modo, apesar oucontraa pulsaoideol6gica que fora matriz.da revolucio— mas nao mais que o obsticulo infranquedvel da guerra colonial —, ao futuro presente da nossa cultura. Numa primeira fase, parcaem obras de grande relevancia, foi nesmo em nome da cultura, como expressao irredutivel e indomavel da liberdade em todos os domi nios, que o antigo contexto, maniqueistamente dilacerado por opgoes ideolégicas conflitivas mas interconexas pelo primado do ideolgico, se alterou, E,com cle, a paisagem cultural portuguesa, No paroxismo da sua ideologizacio—eimporta pouco saberseera mais voluntarista do que real essa ideia de um “Portugal-Cuba’ da Europa—,alongacurvaeo espago fantasmatico que durante meio século tinham feito da nossa vivéncia e realidade ctltural um campo debatalha —a ideologia que alimentava todo. sex imagind= rio (embora nunca tematizado como tal, muito a nossa moda) — evaporavam-se. E depois de um perfodo de neutralizacao armada € de deflagao ut6pica, a nossa cultura entraria num espaco, a pri- meira vista caético, no sentido positive e negativo de priticas cul- turais sem pretens6es militantes, na antiga acepcao, Em suma, num modo de criagao, de difusao, de consumo, que poderiamos desig nar como pragmatico. Nao sabemos para onde vamos, também nao importa. Endo por acaso, mas isso Sem 0 termos feito expres- samente, encontramo-nos, sem verdadeiramente sairmos de casa, com 0 sentimento de se-mos simbolicamente ubiquos.e onirica- ‘mente universais. Comose © modelo-Pessoa tardiamente seencar- 16 i nasse entre nds em sintonia com a pratica cultural planetiria, tor- nada entretanto, mas em fun¢ao de uma pulsdo mundializante, naturalmente liidica, filha e criadora deuma poética do espeticu- lo e da légica imprevisivel e incontrolivel do desejo, com uma nova sensibilidade cultural e, para além dela, com um novo corpo cultural Nao era,em si, umaiirrupgao sem rafzes, nao s6 no nosso pas- sado recente — incluindo nele 0 da época salazarista como no do Ocicente a que, afinal, chegamos enos olhou com faseinado sucesso, Essa cultura de componente lidica e onfrica, embora minoritéria, fazia parte da heranga surrealista, do ludismo formal da abstracao no campo das artes, do mecanno ficcional do novo romance, por mais paradoxal que pareca, ou de um neobarroquis- mo nunca extinto entrends,a que podemosassociar as obrasdiver- samente proféticas de Agustina Bessa Luisa nosanos 50, coma sua indiferenga & sedugao hegeménica do neo-realismo, como a de Ruben A. ou as da tradieao provocatoria de Luis Pacheco ou de Alberto Pimenta. Essa consciéncia de ruptura no interior do cédi- go hegeménico caracteristico dos anos 60 ¢ 70 vai abso-ver a pul do autodestrutivamente épica do imaginario americano em vias de se tornar — através da miisica, do cinema, da postica da verti- gem e da assumida exaltagao ou mesmo osmose com o imemorial e visceral — o paradigma de uma nova maneira de viver e habitar © munéo como que sem historia, Eo nomadismo aproblematico deumacivilizagaoa caminho dadomesticagao definitivadahuma- nidade, sufocada de bens e comodidades. Dessa visio quea cultt- ra rocktornara canonica, filha de James Dean ede Miles Davis,juve~ nilmente pulsional, nenhuma obra a tepresentou tio bem, num tempo ainda nao repetitivo, como ado autor de Rumor branco, Almeida Faria, Mas ficou na paisagem dos anos 60 com uma pal meira no deserto. Todavia, nao sera por acaso que encontraremos © mesmo autor exatamente na charneira entre o tempo cultural a vy que pouco enigmaticamentea revolugao pord termo eonovo espa. 0 cultural que a sua faléncia— em termos de utopia—abritia, A cle se devem os retratos,quase documentais, dessa época oscilando ainda entre o ideolégico e o andmico que caracteriza 0 cédigo implicito da nova cultura portuguesa. Emquemomento preciso seabre essa pratica simbélica de per- file contetido dificeis dedescrever ou até deassinalar—tala intrin- seca indiferenca a qualquer vontade de dar forma a contetidos de alcance supostamente universais — nao ¢ facil de precisar. Sem ‘manifestos, como era quase fatal, desde Hugo ao surrealismo —e, entre nos, da geragao de 70 a0 Orfeu e ao surrealismo —, ou sem doutrina ou visio-crenga ce pretensio universal, ela exprime a0 mesmo tempo uma versio da implosao ocidental de todos os c6di gos de comportamento e emergéncia de uma vontade de poderio simbélico e quase guerrsiro de uma nova geracao inscrita no hori- zontedeum apocalipse a vividono plano ético em Buchenwald,em, Hiroshima, no gulag. S6 que, para ela, esse apocalipse é mera hist6- ria, Geragao pela primeira vez sem outro passado humano que um passado de nenhum modo exemplar, ¢ obrigada a refazer o mundo ‘no mero plano do fantasma, fora de qualquer temporalidade gera- dora deangastia ou raiva, como o forasuperlativamenteada minha Beragio.e que obras como as de Vergilio Ferreira, Jorge de Sena ou Nuno dz Bragancailustraram. Em suma,uma geragao nem obceca- da, nematetada, mesmoa titulo demelancolia, pelo sentido dahis- t6ria e que vai refazer, por sua conta, como quem joga, todo o /passa~ do como se fosse presente. Esse €0 nico médulo com futuro e do futuro, como no filme profético 2001: uma odissia no Kubrick. Geracao de gente tao diversa como Matio de Cary Graga Moura, Luis Castro Mendes, ou maisjove spaco, de ‘lho, Vasco ‘mainda,como José , . como José Rigo Direitinho e Jacinto Lucas Pires. Por habito f eumesmo 0 tentei — continuamos a descrever uma implausive miologia da 8 cultura portuguesa em fungao do imaginério literério, No sentido mais vasto, englobaria, além da poesia — rélo desse pélo-—,ahis- t6ria,a filosofia, as ciéncias sociais,a critica em geral, o mundo da comunicagao. Mas a nova cultura portuguesa — aquela que toma essa configuragao nos anos 80 —, se continua aconsiderarcomo os seus referentes nobres a poesia e a ficgao,reclamando para elas, a esse titulo, um prémio Nobel que a objetive e a institucionalize como {cone universal, é, nesse “hoje” que aqui descrevo de fora, uma cultura em estrela, multiforme, desierarquizada, como, de resto, acontece no mundo inteiro e pelas mesmas razoes, Em ter- mos de consumo, mas igualmente de impregnagao do nosso ima- ginario, pelo menos em termos de ubiqiiidade cultural, nenhuma criago pede comparar-se a da miisica, sea world music ow a sua reapropriagao e recriagao em chave nacional. A julgar pelaquanti- dade e variedade de expresses musicais, de espetaculos, de inter- vengies dessa ordem, como se nelas uma parte dajuventuce inves- tisse 0 essencial dos seus gostos, dos seus fantasmas, dos seus prazeres, a julgar sobretudo pelo eco critico-publicitirio que acompanha tais manifestagGes em miltiplos eextraordineriamen- te informados suplementos e crOnicas nos prineipais jomais do pais, terei de concluir que essa € hoje a cultura de base da geracao entre os quinze ¢ os trinta anos. Com uma autonomia ao nivel da produgao e do consumo, mas também com uma valorarao que ainda ha uns vinte anos era 0 apandgio da poesia e da ficsa0, em sentido clissico, A miisica, dividida secularmente entre, por um. lado, a vertente popular ritualizada e estética e, por outro lado, a vertente da “grande musica” cultivada pelas classes cultas, nunca foi, entre nés, uma componente particulermente significativa em termos deimaginario cultural. E 0 seu pagel foi sempre mais omna~ mental oucultual do que expressio vital simbolicamente transcen- dente. Neturalmente, no passado ou num tempo que vai do romantismo a meados deste século, a musica foi cultivada e im= 9 pregnou a atmosfera da cultura portuguesa, mas nao a ponto de nos pensarmos e vivermos como um povo de miisicos, por analg. giacomactiqueta de povo de poetas que nos outorgamos, Pela pri. meira vez, « mtisica, na sua generalidade, tornou-se, entre ngs, como em ottras reas culturais e em didlogo com elas, uma paixag publica. E claro que seria longo examinar que isso significa para a topogratia do nosso imaginério atual. Limitemo-nos a assinalar que a expressao musical da nossa cultura tem hoje um impacto dantes desconhecido entre n6s, sem que isso exemplifique aquele tipo de visibilidade eaceitaysiv que é hoje a marca propriada musi. ca rock, popou rap de matrz anglo-saxénica. Extrapolando com alguma dose demitologia duvidosa, pode- ‘mos dizer que, tal como sucedeu no campo musical, outras prati- cas simbéllicas que tinham entre nés uma expres 0 nao $6 elitista ‘mas confidencial adquiriram um estatuto, uma visibilidade e um significado culturais realmente novos. Penso na danga, nas artes plasticas, na pintura,naarquitetura, embora estas tiltimas possuis- sem jé, por tradicao, credenciais nobres, como as do teatro e, claro ‘est, da criagdo literéria, Ilusio ou realidade, tudo se passa neste momento — com um tempo geracional especifico — como sea cultura portuguesa tivesse adquirido um estatuto de banalidade, de atividade com expressio e dimensio coletivas, comparavel na nossa escala a daqueles espacos culturais que durante séculos con- sideramos paradigmiticos. O mais paradoxal nesse sentimento de termos ascendido a uma espécie de maioridade cultural ¢ que isso acontece quando o estatuto da cultura sofreu, e sofre ainda, uma. metamorfose e mesmo uma perda de dignidade pelo proprio fato ide uma culturizagao planetiria que poe termo— ao menos em relagao ao consumo demassa— a propria funcao da cultura como supremo critério de distingao (paralembrar Bourdieu), cue foi ali- nal o seu pelo menos desde o Renascimento ‘i Como se tivéssemos acedido a outrora inacessivel “primeira classe” da civilizagao e da cultura — quando toda a gente se insta- java também na mesma carruagem. Talvez se devaa esse fendrneno _ que nada tem de particular —0 fato de que,neste momento pre- ciso, o mecanismo inconsciente da cultura portuguesa se traduz, simultaneamente, tanto num imaginério donde parece ter desapa- recido, enfim, um antigo reflexo ressentido na sua relagao consigo e com 05 outros como na tentacao de se confinar a exploragio €& slosa, até aos limites do autismo, de uma especificidade de uma distingao indiferentes ao contetido e ao valor das obsessées que 0 alimentam. Nenhum perigo ameaga hoje mais a cultura portugue- sa, consciente de estar vivendo em moldes novos ¢ dinamicos uma pritica simbdlica multifacetada nas suas manifestagoes — da miisica ao cinema —, do que a fixagdo sobre o seu proprio sucesso desvinculado de qualquer utopia cultural que nao tenha o culto de Portugal como motor ¢ centro. Que nesse reflexo possamos ver ‘uma defesa instintiva contra a chamada “mundializagao cultural” que,naverdade,é0 estimulo mais evidente dessa nova cultura por- tuguesa, compreende-se. Mas nao a ponto de nos dissolverrnos no ‘mel de umalitania fundamentalista destinada a converter anossa velha e aberta casa lusitana numa ilha hipoteticamente imaginada com as dimensoes do mundo. Sem didlogo nem confronto com as ithas que sempre nos cercaram—a comecarpela mais préxima—, 6 nosso paraiso cultural new look nao é mais do que a versio falsa- mente universalista e cosmopolita daquele tempo portugués que, durante séculos, nos separou de nés mesmes por nos ter separado do mundo em que comegaramos a estar primeiro que outros euro- peus, A cultura — mesmo a mais excitante— nao é um fir em si ‘mesma. Precisamos de um deménio criticoe irénico para nos aju= dar a viver com menos delirio e euforia (em parte justificada, mas também muito artificial) a nossa cultura, nesse momento t20 enig> maticamente suspenso entre o esplendor visivel da nossa condigao a ontolegico, da anguistia, da desesperacio, do grito— que, senda ém si sem nome, acabou por entrar no catélogo des performan, Ces artisticas como uma aberracdo, agora catalogada, quer dizer, classica, “Expresso”, que parecia por natureza rejeitar forma e bat. mo, recebeu, precisamente, o nome de “expressionism” Foi para ‘uma certa manifestagao de uma pintura essencialmente pulsional, alheia ou hostil poética sublimante do simbolismo ou euforizan. tedo impressionismo que surgiu mais um “ismo” que, em seguida, serviria para designar toda uma concepgao e sensibilidade criado- ta-destruidora. No seu livro sobre A nova arte demente, F. Lahel Consagra equivocamente a nova categoria estética escrevendo, na linha de Max Nordau, a propésito de Nolde, de Kokoschka, de Rouault, curiosamente, também de Matisse, tao luminoso, que entre essesartistas eosalienadoshé apenasaespessurade um cabe- lo. O livro pertence ac, por muitos motivos, ano miraculoso de 1913. Que realidade irrompe ese estrutura, apesar dasua ingénita vocag2o para o informe e, sobretudo, para o disforme, nessa nova sensibilidade, queatorna tio poucoafim—ou atéincompativel — com aquela que, por geral consenso, consideramos disposicao caracteristica da nossa cultura? Nao deixa de tero seu interesse sabé-lo, que mais nao seja para que acontrarionos apercebamos melhor dos motivos pelos quais 0 “expressionismo’, em todos os seus matizes, tal como floriu na pri- meira década deste século na Europa e fora dela, teria de ser, em Portugal, qualquer coisa de mais estranho ainda do que jéé na sua original manifestagao. Uma questao andlogase me pusera quando, nao hé muito, foi abordada, entre nos, a temética do fantastico, admirando-me jé entao que acerca dela e numa perspectiva signi. ficante para a historia eprocesso da cultura portuguesa houvesse maneira de a tomara sério e em primeiro grau, Nao aludo a0 caso por mera analogia exterior Parece-me que as raZ6estitimas pela IE quais 0 “fantastico”, no sentido anglo-saxdnico do termo, nos € pouco natural ou até estranho, sio do mesmo tipo e entaizam no mesmo “himus” cultural que explica a auséncia significativa de obras que, entre n6s, reflitam o tenebroso subsolo onde proliferam “os esgares e 05 assomos” que no carnaval da alma do expressioni mo encontram 0 seu palco visivel. Sem chegaraser“expressionista” nosentido norte-europeu, uma tinica geracao literdria——eem par- ticular o seu mais notavel expoente — teorizou a expresso como a ica. Num ensaio datado de 1940, sem duvida um dos pontos mais altos da nossa reflexao 1 século, José Régio, a um fenomendlogo, as diversas espécies de expressiio. O'seu objeti- vo confesso é 0 de apreender aquela quemerece o nomede“artisti- ca’ Nao & minha intengdo retomaraargumentagio do autor de Em torno da expressao artistica, Para o meu propésito bastard lembrar que José Régio distingue “trés” formas de expressio capitais: aque- la que, mera manifestagao do pulsional, do instintivo ou doespon- taneo, est aquém da arte; aquela que por sublimagao e transcen- sio dessa esfera pulsional est para ld da arte, como a expressio mistica;e, enfim, aquela que oscila entre as duas, forma mediada, se nao mediadora, da express4o, a que merece o nome de artistica. © poeta simbolista-expressionista de Os poemas de Deus e do Diabo, o dramaturgo obcecado por bobos-anjos € anjos-bobos de expressionistico recorte, como projecao da sua interioridade dra- mética que em tiltima anilise sao, enquanto ensaista parece ter sempre desejado conciliar em si a ligio pré-freudiana de Dos- toievski a licdo racionalista de AntOnio Sérgio. A sua notavel dis- criminagao das trés formas de expressdo é, paradoxalmente, embora nao fosse esse o seu propésito,a teorizagaio mesma doan- Uiexpressionismo. E nisso que ela me parece nao sé interessante, mas paradigmética de um comportamento estético —a palavra € ‘madequada por fraca— caracteristico da nossa sensibilidade eria- éncia da criagao art ica neste sua maneira sinuosa, discrimina, quase como dora, tanto como da longa tradicao classica que durante séculosa alimenton e quendo éoutra senaoaaristotélica,corrigi¢apelapoe. tica do remantismo. Se escolhi o exemplo de José Régio ¢ porque ninguém, que saiba, quer no plano da criacdo, quer no da critica literdria, est mais proximo da experiencia, da vivencia ou Si immungdo expres- sionismo, quer dizer, de uma criagao tao vinculada ao inexpresso da subjerividade como fonte de emogao artistica. A esséncia — ideal e histrica — do chamado “expressionismo” é de configura- 40 vitalista, mas de um vitalismo paradoxal, pois é a da vida con- cebida na sua tensao intrinsecamente dolorosa com aquilo que se 0, quer dizer, a morte. Embora pertencendo a mesma estrutura cultural que gerou o simbolismo, e sendo de algum modo o seu prolongamen- The ope assim a constitui por essa mesma opo: to, expressionismo é também a sua espetacular inversdo trans- gressiva. Um e outro se inscrevem no circulo obsessivo da morte, mas de maneira oposta. A realidade simbolista é a nao-vida, a de ‘um espaso em que a morte mesma parece ausente, dissolvida na mera sombra, universo de “espectros’, como o seu grande drama- turgo, Ibsen, os evocou. A realidade “expressionista” éa de um excesso de vida, da pura vida, na sua opacidade e energia cegas, & Schopenhauer, sem outra inscrigao além da da morte, ao fim e 20 cabo a tinica realidade, aquela que desrealiza todo 0 universo, sobretudo 0 nosso, interior, convertendo a existéncia numa per- manente mascarada, maneira de Ensor. Mas, anterior mascara, expressdo consciente dela mesma, existe 0 grito — = 0 silencioso a-morte, tal como Edward Munch o repre- infinito eco de uma sentard,-esumindo nele, por antecipasio, todo oexpressionismoe a sua propria poética. Ora José Regio nao s6 nao ignorava, como admirava certos artistas representativosdo“expressionismo” ouaparentadosao seu Ibsen, que tanto influencion o seu teatro espirito,como o prépris 26 ou Grosz, de quem citaa Fealdade alema, sem falar de Geya edos seus Caprichos, exemplos de expressionismo intemporal. Donde provém asua, sem duivida inconsciente, assimilacao da expressao artistica ¢quela forma em que é detectavel o que ele designa de “imitagac da vida” antes de Ihe chamar “expressdo transfiguradora dda mera expressao vital”? A resposta importa-nos menos do que o fato de através dessa idéia da “imitagao de vida’, ou mesmo de“ex- pressdo transfiguradora da mera expressio vital’, arealidade espe- cifica da “arte expressionista” nao ser suscetivel deleitura, ou entao apenas de uma leitura que devolve para océdigo que essa arte pre- cisamente transgride. Paradoxalmente, se 0 “expressionismo” tem um sentico, é em fungao da subversdo do cédigo regiano —alids classico — nao s6 da arte como mimesisou como representacao, mas da idéia mesma da arte como expressao. Na poética consubstancial ao “expressionismo”,ou melhor, no expressionismo como pottica, ndo éaarte que éexpressiodequal- quer realidade interior (como o panico, « angtistia, o desespero, a exultagdo vital) que exija passagem ao ato, mas a expressto que é arte na sua raiz. Ei realidade humana nao expressa, e mesmo nao exprimivel,ando ser naquelas formas em queaartedita expressio- nista” as manifesta, que a expresso deve a sua existéncia. £ a exis- téncia como expressao, e ndo a expressio da existéncia, que 0 -xpressicnismo” encarna, o expressionismo hist6rico e o expres sionismo em geral, naturalmente co-essenciala propria manifesta~ <0 da realidade humana, Ha qualquer coisa ao mesmo tempo de pleonéstico e de contraditério no pathos que se encarma no que se chama “expressionismo” (na medida em que releva ainda da “arte”),a menos que seja, como de fato é,a primeira grande tenta- tiva de desterritorializagdo desse dominio, na verdade sem locus Préprio, que continuamosa designar como “arte”. Que jogofora de €starao e, acaso, fora de todas as estagdes,o imaginario se ofereces em desespero de causa e de cultura, sob 0 excesso sem masears do a “expressionismo”? O de um fim que nunca teve comecoouodeum comece que nunca ters fim? O que chamavamos“arte” era a tentativa de conter nos limites do apropridvel, do familiar até, aquilo que na fugaz realidade do que somos, sonhamose fazemos é do dominio do informe edo inex. primivel. Cada forma de arte contém em sia sua prépria morte. A do“expressionismo” éapenas maisincompreensivel, pois vive jé do que, expresso, a esvazia da sua justificagao. Manifestagao sensivel de uma angistia historicamente enraizada, ou exorcismo de algo mais fundo e intemporal, o fendmeno expressionista, como todas as outras proposicdes criadoras significativas de uma época, rees- trutura todo o passado artistico ao mesmo tempo que desestrutu- tao proprio conceito de arte. O seu cardter pulsional, a sua violén- cia psiquica ingénita, o mal-estar que provocou (que acaso ainda provoca, apesar da sua banalizagao ulterior) nao sao sequer da ordem dos escandalos que periodicamenteassinalama dialética da ruptura imanentea modernidade. Aexposigdo de Munch em Berlim, no ano de 1892, nao foium escindalo dessa ordem, como 0 nio fora, ao contrario da lenda, 0 da pintura de Van Gogh, péstumo como a sua gléria, A expresso comoarte € uma abertura ou uma vista para o abismo cujo tinico contetido inexpresso — 0 expresso jé era insuportavel — 6 perce- pido como incontrolavel, como exterior ao circulo onde a existén- cia doshomens se contemplava como uma imagem de Deus, Devia apavorar se tivesse sido apercebida para além da banda desenhada dos nossos pavores ou dos nossos delitios sem nomeagao, A cate- goria,no fundo securizante, da aberracio ou da loucura subtraiu- ‘ao seu estado realmente subversivo. Quer er, ao da primeira manifestagao de uma arte sem imagem, ndo no sentido futuro da abstrecaopura—e,aessetitulo,in6cua—,masda suaperda nema desfiguragao sem limites. A“incompreensio” de Regio nada tem {que ver com a sua informagio e agudeza Pessoais, que cram poco 28 comuns em Portugal. Se o escolhi, foi justamente por ver nele um cexemplo privilegiado do contencioso (mesmo apenaspassivo) eda natural incompatibilidade da pulsio que o expressionismo tradu- zie aquela que parece adequar-se anossa muito particular sensi bilidade e cultura. Dedicado unicamente a sua expressdo pictural —aquela que, pleonasticamente, lheassegurow a suavisibilidadee ressonancia, embora a perspectiva possa e deva estender-se a outros campos, aos da miisica, da poesia, do teatro, da danea, do cinema ou da ficcao —, 0 conhecidolivro de Michel Ragon consa- grado ao expressionismo nao refere um tinico artistaportugueés. A sua quase totalidade € nérdica (norueguesa, sueca, germanica, belga-flamenga, excepcionalmente francesa ou sufga|.A latinidade pareceria excluida do fenémeno se Michel Ragon niio incluisse no seu breve diciondrio expressionista gente de raiz hispanica, de Gaucia Picasso, de Orozco a Siqueitos. Registremos essa aproximagao, sob a rubrica “expressionis- mo’, entre duas culturas que, a primeira vista, nada levaria aapro- ximar. Registremos, sobretudo, corao dizendo respeito a0 nosso assunto, essa nossa auséncia desse panorama. Desta vez nao creio que se trate da consabida ignorancia acerca das “nossas: coisas”. Ea presenca espanhola que merece reflexdo, nao a nossarasura.O que poderd justificar que artistas de culzura espanhola possam legit mamente emparceirar (mesmo s6 por analogia) com os grandes representantes do expressionismo nordico e que stja, 01 Paresa> em tiltima andlise, natural e altamente significativo que 0 mesmo. nao acontega conosco? i Na realidade, e dado o contextoda_ produgio artistica do sécu- lo xx, com o seu cosmopolitismo potencial ou obrigatorio, nada haveria de estranho que artistas nossos figurassem no dicionario do expressionismo europeu ou mundial. Na verdade, embora expressao tardia e nao muito signifcativa dela, uma boa parte da nossa pintura dos anos 20 ¢ 30 pode inscrever-se na linhagem 9 expressionista: Alvarez, Eloy, entre outros, pertencem a essa cons. _ telagao pstuma. Mas aqui nao nos interessa 0 expressionismo como uma moda entre outras, reconhecivel nas suas marcas exte: riores, mas o espirito, a esséncia mesma dessa manifestagao, tal como tentei apercebé-la em rapida sintese: expressio como arte, desconstrugao do seu sentido, aventura global do imaginério euro- peu, ou deumapartedele,em territ6rios sulfurosos, interditos, que vao de Strindberg a Van Gogh, Nolte e Munch, de Freud a Kafka, a Gottfried Benn e Brecht. E claro que a associacao de Picasso a esse elenco é problematica, como problematica é a de outros hispani- os. E por demais claro queo expressionismo foi a forma mais exa- cerbada da crise da imagem do homem— e nao so da sua imagem exterior — caracteristica éa idade moderna, quer dizer, essencial- mente, protestante. Na constelacao expressionista s6 figuramartis- tas de uma cultura sem imager no sentido catolico do termo: pro- testantes e judeus. Talvezisso ajude um pouco a compreender a “nossa” auséncia tao pronunciada do universo expressionista, Sem imagem quer dizer, antes de tudo, sem imaginério quese reporte 2 “figura” de Deus, sua imagem, arquétipo da nossa, mas mais decisivamente que uma coisa seja conseqiténcia da outra. A auséncia de imaginério ede imagem do homem reporta-se a sua culpabilidade intrinseca compensada, seassim pode dizer-se, pela “certeza” da sua incerta justific: a¢a0. Com acrise do protestantismo liberal do século xx, a antiga angistia fundadora de Lutero eo sett remédio da justificagao gratuita perderam a sua coeréncia ea sua potencia prsuasivas.Os hers de sen ou de Strindbergocllam » entre um positivismo B0 reino do que, mais *ssionismo nérdico cha- *© Siléncio, Em suma, 0 rossivel, Silencio de Deus como, mais perto de nds, os de Bergman, agressivo e a anguistia pura. Comeca o lo; tarde, o herdeiro contemporaneo do expr mar, ilustrando-o num filme sublime reverso do Grito original sem escuta p. silencio humano, éa mesma coisa. Foi de dentro des, sa cultura con- 30 frontada com o siléncio incomunicante que surgiram os quadros de Munch ou 0 teatro de Strindberg, seu amigo, Os gestos suscita. dlospor ess silencio ou paraele remetendo,violentos vidos, paté- ticos, mais tarde “clownescos”, como no Ensor das Mascaras e da morte (1897), da Entrada de Cristo em Bruxelas ou no Roucult de Dura lex sed lex, compdem a tapecaria mérbida e fascinante do expressionismo. Por que razio,senao de mero mimetismo cultural sem autén- tico fundamento, gente de pafs solar, sem interioridade, nosentido protestante, educada dentro de uma culturaem quea transcendén- cia faz parte da familia, herdeira de uma tradicao lirica e sentimen- tal, mediada por uma natureza humanizada, benevolente,se devia atrelar a esse mundo de espectros, a essa constelagao de fantasmas? No passade, em nivel simbélico, que 60 seu nivel real,a culturapor- tuguesa é uma organicidade, de um aproblematismo raro, uma cultura vocacionada para a felicidade. Se o que construimos de mais original sao as nossas igrejas barrocas, é dificil conceber uma intimidademais completa com a visio sensivel do paraiso do quea que podia gozar-se nos seus muros forrados de ouro e iluminados por ctimplices sorrisos angélicos. A sétira queirosiana da nossa antiga devogao barroca é s6 a versdo, as avessas, da mesma dogura, a mesma vivéncia, com boa dose de nostalgia, de uma cultura a quem repugna, organicamente,a visio trégica domundo eda vida, expressao do basco-castelhano Unamuno, nao nossa. Claro, ha excegdes, mas s6 na época realmente moderna — a partir de Camilo e de Antero — é que podemos imaginar um tipo de sensi- bilidade e expressio artisticas que, ao menos na aparéncia, Poss prender-seao mundo dilacerado, de quasepalpavel incomunicabi= lidade, de calturas que inventaram para sefalar,com silenciosaafi= nidade, os quadros de Munch eas fabulas de Katka. Deixo para o fim o mistério espanhol. O “expres cultura espanhola nao tem a mesma estrutura do nico que mere sssionismo” da ce esse nome,mas ha entre ambos uma certa analogia exteriog os pode aproximare distinguirden6s.A Espanha,naaparénci, encerrada como Portugal no castelo interior do seu bitroquismy teve sempre uma vida cultural nao s6 maisintensa, como mais i dentemente conflitual. Na sua discussao polémica secular com g Europa que a discute, os espanhéis a si mesmos se discutiram, parte 0 milagre camoniano — ainda assim, relative —, nés nag fomosinterpelados pela nossa realidade hist6rica como Cervantes, Quevedo ou Grician o foram pela da Espanha. Ficamos’margem dessa violencia espanhcla — violencia de conquistadores, por conta prépria, da terra e do céu—, violéncia que se exteriorizou40 que nao econteceu no mundo protestante, sem jamais deixar de pedir e exigir para si mesmo o seu tributo de sangue. Hana cultura espanhola uma componente de provocagao que nao existe na hossa. Os Grecos, os Quevedos, os Goya, so-nos desconhecidos, Uns e out:os sao parentesde Gaudi, de Picasso, de Buftuel, de Dalf, deArrabal, do expressionismo bruto e brutal de Tapiés, Nao éacul- tura espanhola uma cultura sem imagem como a que insufla a0 imaginario nérdico a sua. dimensao fantastica. Mas é uma cultura que hipertrofia a imagem, a idolatra, a desloca, virando a estrutu- ral violencia que a habita contra si mesma. Onosso “expressionismo’, na fraca medida em que existiu— ©86 a partir de Fialho podemos detectar a sua presenga —, € um “expressionismo” mais de ressentimento do que de afirmagao, todo penetrado da poética da Dor com maitiscula, ou do protesto humilde a Raul Brandao, autor, por antonomésia, dos Pobres. No fundo, taiver o grande segredo do sucesso e do fascinio de Fer- nando Pessoa — que foi “expressionista’ em segundo grat, por- fantoo contrario de um expressionista—tenha consistidoem con- verter o expressionismo dolorista,magoado,de Raul Brandao numa espécie de jogo, quase numa festa semantica em quea tristeza mesin €enigmftica mAfenAlda Iria. Para desesp ero de algun 2 as vezes, dele—e para consolagdo de n6s todos, expressionistas inocentes,sem expressao. ‘Apenas escrita, essa denegagao das nossas afinidades com a sensibilidede “expressionista’, caracterisii impoe um ligeiro corre Fialho, o mesmo Raul Brandao, Manuel Laranjeira, o proprio Régio, todos para-expressionistas. E sobretudo a lembcanea da obra espectral de Raul Brandao que se insurge contra ssa oposigao tao radical entre a sensibilidade nérdica e a nossa. Sem a negar, 0 seu caso — como o de Régio, de Branquinho da Fonseca, de Ro- drigues Miguéis e, mais proximo de nés, os de Vergilio Ferreira ede Carlos de Oliveira, seus leitores e grandesadmiradores—-obrigaa modelar esse contraste ou, pelo menos, a tentar recuperi-lo noutra perspectiva. Com efeito, o singular “expressionismo” da obra de Raul Brandao releva, ao mesmo tempo — via Dostoievski—, da glosa nérdica da angistia, do pesadelo e éa morte, e da sua transfi- guracao cristica, antinietzschiana, com a sua piedade quase horri- vel por tudo quanto existe circunscrito pela morte e gritando mais alto do que a propria morte pela loucura suprema dea abolir. Jao expressionismo, na sua versao mais irredutivel, o de Munch, de Nolde ou Strindberg, é, em si, um ingente combate para exigir 4 noite uma resposta — mais do que mera complacéneia por ela quando ela comegavaa ser 0 espago equivoco de todos os fascinios. Acontece apenas que em Raul Brandao — como em ecoa Antero — coexistem duas visdes numa amalgama irredutivel, num tinico movimento de escrita que do interior continuamenteassuspende, Pois nao visa mais do que glosar a presenga substancial da morte, mar que nos banha e onde tudo banha, sonhando-a, mastigando- a, cansando-a, até que a sua sombra, de uma maneira incompreen= sivel, se dilua e nos conceda.a ilusdo de sermos imortais nela € por causa dela. aul Passou um minuto ou um século? Sobre o granito salitroso assenig oat-acamada denegrida,eashoras caem sobrea vida como gotas¢g_ gua de uma clepsidra. De tanto ver as pedras j4 nao reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos pés. Todos os dias os leva, todos 0 dias tocaa finados. O nada d esperae a D. Procépiaa abrira boca com sono como se nao tivesse diante dela a eternidade para dormir. ‘Tudo isto se passa como se nao tivesse importancia nenhuma, tudo isto se passa como se tudo isto nao fosse um drama e todos os dra- mas, um minuto e todos os minutos. Sem as reticéncias, poderiamos imaginar que estévamos endo aigumas passagens do Livro do desassossego. Hiimus, na ver- dade, visto de hoje, tem visos de Livro do desassossego do pobre. A menos que seja 0 Livrodo desassossego que seja 0 Hrirnus do rico... Ou que ambos — com Unamuno de permeio — facam parte da_| mesmaconstelacao daalma, mas nao da escrita,o queé capital para (© nosso caso, pois o Livro do desassossego, nessa pers>ectiva, nada tem deexpressionista, embora o seu fundo desolado o coloque nas paragens do desesperc nu do expressionismo nérdicc. Na verdade, ao conirario de Pessoa, Raul Brandao nao se exprime a partir de qualquer visao do muado mai ‘ou menos l6gica, ou de uma plura- lidade incompativel celas. Raul Brandao fala apenas da interior- exterior imersdo num acabrunhante tempo nulo, matriz de uma espécie de auséncia fisica que nao permite aos momentos soma- rem-sea outros momentos para constituir 0 que chamamos uma vida, Todavia, malgrado essa imersio,e por mais profiunda que seja asua vivéncia desse tempo nulo, qualquer coisaneleseinsurgecon- tra uma tao devastadora insignificancia de tudo e todos, ‘Chegado aqui, o autor de Hiimus filho também de um tempo europeu do “Deus morto”, exige aquela felicidade ontol6gica de antiga alma portuguesa, da velha alma dos bons tempos batr0¢0s, dos sermpes inflamados sobre a beatitude eterna, sensivel, transtigurando assim o antigo siléncio de uma cultura certa da sua salvacio, e arqui repleta de sentido, em siléncio que grita.Grita, sem grit, natural- mente, “A portuguesa”, Longe da violencia desesperada da alma solitaria de Munch e Strindberg, grito mais proximo da dogura do Jouco, com uma quixotesca e dostoievskiana sede de imortalidade, capaz de reabsorver nela a sua sensagao 0 seu sentimento, a sua obsessio mérbida da vida como puro absurdo. Detalde Ihe aconselha calma, 0 Gabiru... Entrevejo na morte um sofrimento atroz. O inferno é uma palavea va. um desespero sem consciéncia nem gritos. A vida ndo é sendo uma trégua, um ah — logo um mergulho nesse inferno de dor. Na dor extrema. Eisoqueé a morte: dor extrema, a dor emudecida. Atentemos nessa frase queem si mesma se enrola:éatradugio ideal da esséncia do expressionismo como impossibilidade pura da propria expressii, A“contradigao” formal deixa o campolivre para combate, mesmo perdido, contra contradigao inclusa na viven- cia do insuportavel absurdo coessencial a vida, E a partir dessa vivencia sentida do “nao ser” que a carne, na sua silenciosa lingua gem, dizo quealingua‘cala: Oterrorinstintivo da morte é uma adverténcia. Nao quero morrer= vou ressuscité-los! Viver sempre! Amar sempre! Sonar sempre Queespléndido sonho!A vida é quasenada. Tudoo quecustoutanto desespero, tudo sumido num buraco para sempre, Ourest Para todo o sempre. De que serviram os geitos,as kigrimas, subit trepar che= garao topo do calvirio? Para todo osempre! Bem sei-aquilos que ‘meapego ¢ impalpavel: éa mulher que passou assomando-the 0 focinho uma expressao de ternura,e que nunca mais tornards 2 thamos juntos encontrar; é aquela manha de chuva em que nos molhamos) 5 60 minuto que nos (¢ cinda me sinto molhado) e se nao repete; € 0m iauto q\ escorre des mios como fio de gua mas dourou-0 0 sol, e 6 esse ‘mesmo minuto translicide que quero tornar a viver sem a sombrq damorteameu lado. essa ninharia que éa vida que deito as magg com desespero, A vida é nada —-€ esta cor, esta tinta, esta desgraca, Esaudadee ternura. tudo. £ os meus mortos€ os meus vives, Leva pena de tudo, até da fealdace. Agarro-mea tudo, tudo me pr: \de,o sonho que nao existe, as ho:as inteiras,o possivel, o impossive, Expressionismo a portuguesa, ndo se resume na opacidade do “siléncio”. Fala dentro e acime da morte, saudosamente. Portugal como cultura’ futuro éa aurora do pessado. T.de Pascoae, Verbo escuro ‘cul- Osilencioso ou silenciado daquiloa que hoje chamamos uura portuguesa”, por ser expressio vital e simbélica do pove por- tugués, é 0 magma obscuro de herangase ritosmilenares onde,sem ermos consciéncia disso, enraizam as manifestagdes visiveis ecla- ras dessa cultura, Mitificado como ibero, celta, ou matizado por acidentais coloragdes fenicias, gregas, antes que Roma lhe iimpo- aha a marca das suas instituigdes e a decisiva da sua lingua, sbesse undo silencioso explica que na ponta extrema da peninsula Ibérica e aquém da manta de retalhos que todas as culturas si0, 2 cultura portuguesa tenha adquirido e conservado uma figura pro= ria entreas sues congéneres celtas, latinas e mediterranicas.Aesse Artigo publicado em Arquivos do Centro Cultural Portugués vo. SeP rae “undacio Calouste Gulbenkian, Lisboa—Paris, 1992. fando,recobrindo-0,a ponto de tornar invisivel, se acrescentarg, durante séculos de didlogo e intercambio com as outras culturag oulonginquas,e depois da Africa, o Oriente eg ‘e tornar povo de des. européias, vizinha: ‘América do Sul, quando o povo portugu cobridores, aquela dimensio ecuménica que desde o século xv 95 portugueses reivindicam como seu bem prOprio e sua imagem de ‘exceléncia, Na verdade, e enquanto cultura européia moderna, rnalidades da nossa cultura foi a de ter sido, entre o5 uma das ori séculosxv e Xvil, expressao singular e multiforme do “olhar euro- peu’ sobre outras culturas, eo que nao é menos importante, refle- xo do olhar do outro sobre a Europa. 0 poema nacional dos portu- gueses, Os lustadas, ¢ a Peregrinacao de Mendes Pinto podem ser considerados os polos desse duplo movimento solar da nossa cul- tura pertuguesa enquanto cultura inscrita fora do seu circulo ori- ginal. Mas é na origer, ao mesmo tempo real e inacessivel, dessa cultura que reside o segredo, o mistério e,em todo 0 caso,a fonte de tudo quanto o ar do largo tornara, por fora, mais visivel para os ‘outrose mais espetacular para nés mesmos. Da nossa mitologia cultural — mas igualmente da opiniao daqueles que nos estudaram — faz parte a idéia de que a pulsdo centrale, mesmo obsessiva, da cultura portuguesa éa sua vocacio lirica. Com esse grau de generalidade, alvez a observacdo nd0 tenha grande alcance. Nao ha povo que se nao considere, em sua esséncia,“lirico’, se vemos nalitica a expressio natural do poético, : pottico. Mas o que se quer significar com aquelainsisténcia na vos 20 lin cada cultura portuguesa Easuahegemoniahistries ngs co cat nao s6 sobre com sib eBBAGaO de todas as ensibi mete Portuguesa por essa a N€ como 51 . dante da beleza do mundo ou nostlgicgday- expresibes, a nossa cultura, naquilo que tem ge, fando,ndo seria maisdoqueamodulacag gar P28 constante € Se sen ‘ sode fusto.comomundo,oumelhor.coma nayyn MER" inten- 2a, acompa nha- as outtas formas da nossa poe: expresses e maneiras de ser da s yor, a mais proxima do que o hi eito extasiado ‘mM todas as suas ddo de nao menos intensa conscineia da sua precariedade,alegria na tristeza, tristeza na alegria. Em suma, uma modulacae daquela particular maneira de sentira vida que os portuguesesresumem na palavra-mito da sua cultura,a saudade. Com ela, o enigrca nao se esclarece, enuncia-se. Quem fala nela? De que vivéncia humana numa paisagem particular, numa tradigao, ¢a melodia eoeco, mil vezes repetido ao longo dos séculos, e de que tudo quantosaiu das nossas maos ou do nosso espirito— arquitetura, pintura, misica, teatro, romance — traz 0 reflexo? Melancolia cética, adocada pelo sol do Sul? Monélogo de povo a beira-mar, dividido entreorumor das vagas ¢ o seu siléncio? Se a origem permanece indecifrada, as suas manifestagdes s4o patentes e, embora nao sejam as tinicas que constituem a trama da cultura portuguesa, s40 aquelas quelhe dao as suas letras de nobreza. Da poesia dos cancioneiros medievaisaté a Ode maritima, essa aura de melancolie que desrealiza o mundo por excesso de amor banha todas as obras onde o sentimento das coisas, tal como os portugueses o entendem, se exprime com mais perfeita naturalidade: lirica camoniana, devaneio de Bernardim Ribeiro, drama de Garrett, romance de Camilo, soneto de Antero de Quentel, poema em verso ou prosa de Pascoaes, de Nobre, de Cesério ou de Raul Brando, Mesmo a nossa tradigao maistealista, irdnica ov festiva, de Gil Vicente a Ega de Queirés ou Alexandre O'Neill, destila esse fio de melancolia que nao é apenasaquela que acompanha todas as grandes criagdes do espirito, mas uma vers20 specifica dela,a de uma melancolia temperada ou paradoxalmen= teexacerbada por“um gosto absurdo de softer”: Naose imaginesno entanto, que Portugal e a sua cultura relevem do espirito do trig co. Portugal pode merecer, para quem 0 conheceapenas na sua face lirica, com a complacéncia de que se acompanha como expressio de fundo do seu sentimento diante da vida, o nome de*pats das lagrimas”, Mas a nossa “velha dor”, como a intuiram Garrett ¢ Alexandre O'Neill, é uma “dor mansa, & portuguest bao dSSer=> hada, expressionisticamente trégica, como as de Goya, Dos. toievski ou Munch. FE natural pensar que esse sentimento doloroso da existéncia, impregnado de dogura e de resignagao, que parece caracterizar q cultura portuguesa, se deva dinfluéncia ea onipresenga do cristia fegar essa influéncia, ou antes, essa quase consubstancia- mo dentro do qual evoluiue nismo. } 40 da nossa cultura com o cristiat se definiu, seria absurdo, Se ha pais na Europa, tiranco talveza Polnia, onde a Igreja exerceu o seu magistério intelectual, espiri- tual, pastoral e, mesmo, temporal, em todaa plenitude, ébem Por tugal. Sendo é, como aFranga, le filsainé de ’Eglise, é, pelo menos, ‘seu neto querido,aquela nagao que,maistarde,no tempo dos epi tetos berrocos, sera designada por “fidelissima”. A nossa hist6ria,a historia da Igreja em Portugal ea da Igreja universal esto intrinse~ cae complexamente inteligadas, bem antes da elevagao de Portue gal a reino independente, até aos dias que correm. De um certo Wvezfosse até mais clarividente do que o de uma pers- pectiva profana, de ord modo, que tal lem historicista ou sociolégica, a cultura Portuguesa podia ser descrita no seu funcionamento cimbdlico Patience iste oulativoentreasexigéacias OTR caracteristicas de uma sociedade anterior ao crit . ‘ cristiani ismo, eas exi ligioso, ético e espiri- atos da existéncia.O as culturas do, Mas,contrariamente 20 que sucedeu em gi Wversas 6 dade, antes oudepoisea Reforma,acaltur ae portugues ceu, nos termos em quealItlia,a Franca gaye, pee MO Cohe- ‘i @Espanha acc ram, qualquer coisa que posa ser descrigy geen @eomhece- ia e, ainda menos, “triunfo do espn géncias de um modelode comportamento rel tual que, em prineipio,subdetermina todos os mesmo poder dizer-se das divers Ocidente cristo. autonor 01 : Mo emergéncia, © laico” no seio de ume sociedade idealmente modelada pelo * imperatives ¢ le o religiosa e estruturada da vie visa uma otal com nO 0 catoli- *° conheceu Bocca. laedo mung, cismoa representou. A cultura portuguesa , 4 cios, nem Marsflios de Pédua, nem Erasmos e, muito men 2 105, Maquiavéis ou Lourengos Vallas “laicizadores” da literatura, da politica, dareligido ou da ética, Em sentido proprio, naohhouveem Portugal o fendmeno de “paganiza¢ao” voluntaria a que chama- mos Renascimento. Isso nao significa que Portugal tivess fcado inteiramente & margem das diversas “revoluges” ou mudangas culturais européias,ou que nao fizesse outres por sua propriaconta e da mesma Europa, como a que os descebrimentos maritimes representam. Quer dizer apenas que dessas mudaneas, enquanto alteravam o estatuto privilegiado da Igreja como referéncia cultu- ral por exceléncia, ou horizonte incontornavel do imaginario reli- gioso, como também literario e artistico, so que podia coneiliar- se com a or:odoxia tinha entre nés direito de cidade. Nao foi a famigerada Inquisigao a cortina de fogo que salva- guardou 0 quadro e as referéncias da visio catdlica que condicio- narama cultura portuguesaatéao século xts,foiaespontaneadefe- sa da ortodoxia que tornou possivel a Inquisigao. A Reforms, com a sua laicizagao imanente, ndo penetrou na fortaleza portuguesa, estruturalmente ortodoxa. As audécias, a emergéneia de compor- tamentos ou idéias pouco conformes com os imperativos de uma ortodoxia em estado de legitima defesa, tal como o discursoreligio- soa concebeu entre nés depois da Reforma, nao saem do quadro dessa ortodoxia senao na cabeca dos nossos autores do sétl0 XI quando a cultura portuguesa evolui na movéneia da culturaeuro- Péia dominante. Durante séculos, no seu conjunto, com aplicagao e jibilo, a nossa cultura foi, determinadamente, uma ‘cultura mili- tante.Julgé-la por outras que o foram menos, ou de outramaneleas é exclu clericalismo” do maior :maturgo Gil Vicente; aencepio acgené es do adveato da cultura, militan~ la de toda a compreensio. O “anti génio que a cultura portuguesa criou, o dia como o“paganismo” de Camoes —talvez atinic rico funcionamento da cultura portuguesa ant modernidade—, s6 tém sentido no quadro desst 4 tena Europa e missionéria fora dela, no Oriente, na Africa ou no, Brasil. Pode lamentar-se esse desfasamento, essa espécie de auto. marginalizacao em relacdo ao movimento das idéias, das crencag ou das ciéncias que a Europa além-Pireneus cultivava. J4 muito se Jamentou, mas isso em nada altera o fato da especificidade da vida cultural portuguesa, em particular do século xvite na primeira metade do século xviu. Sem aplicagao concreta, o “militantismo” ritualiza-se — exceto no seu aspecto missionario — e a cultura portuguesa, embora se profanize nas suas manifestagdes mais espetaculares — poesia, misica, teatro —, 6a de um imenso con- vento com regras ascéticas c6té cour e religiosa libertinagem cété jardin. As duas 4guas nao se misturavam, mas isso anunciava que a nossa cultura, como cultura organica, sem conflito expresso e signi ficativo entre espirito profano e religioso, tinha os seus dias conta- dos. $6 com a “europeizacao” do marqués de Pombal o profano, subordina o religioso, mas tal era (¢ talvez seja ainda) a forca de uma cultura de crenga de que, por sua vez, 0 profano se diviniza como lugar de um poder sem réplica. Na aparéncia, o triunfo do liberalismo, ja bem adiantado o século xix, associou oritmo eo des- tino da nossa cultura ao das outras nagoes européias de tradigao anéloga, embora menos organica do que a da sociedade portugue- sa.A revolugao que teve lugar no dominio politico, juridico, econd- mico € social, de inspiracao laica, tinha de abalar nos seus funda- mentes 0 quadro e 0 contexto seculares que condicionavam a expressao cultural da vida portuguesa. E, na realidade, abalaram- na cor tanto maior vigor quanto maior era o obstaculo visivel — e sobretudo invisivel — representado pelo mundo antigo. Mas a vida profunda de uma cultura nao se move pelas leisque alteram 0 estatuto politico e mesmo econémico e social de uma sociedade.O romantismo portugués, a cultura portuguesa até aos nossos dias, sao 0 lugar de um combate ao mesmo tempo luminoso e obscuro a ara inventar uma nova figura para uma sociedade ent continua metamorfose,aspirada pelo futuro, Um futuro que nos interpola, en porassim dizer, “de fora’, para recclar,conscienteouinconsciente- mente, um passado de tradicao organica onde fulguramn, parado xalmente, cada vez.com mais intensidade,as estrelas fixasdo nosso imaginirio cultural, Ferndo Lopes, Bernardim Ribeiro, Cambes Nuno Gongalves, Vieira eo mesmo Garrett, que iniciou essa revs tacao dos mortos que nao morrem. E com ela uma quétemais mis- teriosa ainda, a da origem, a do inconsciente de uma lingua ede uma cultura a que esses Ulisses caseiros deram forma e figura. £ nela que estao empenhados os que serio, seo talento e os deuses strelas fixas” do presente e do futuro. quiserem, as Anau de {caro ovo fim da emigracao Lesensbrilleau fond du risque, Michel de Certeau, L’étranger ou!'union dans la différence No Museu Real de Bruxelas pode ver-se um quadro de Peter Breughel, o Velho, A queda de caro. Apesar do carter tragico da fabula, essa pintura exprime um sentimento de paz, quase de sere nidade. O simbolo da ambigao humana mergulha no marno meio da indiferenca de tudo o que o envolve, homens concentrados no seu trabalho, baia serena com algumasbarcas, natureza adormeci- Baoan cenoduescabariamelnorde qaca dees eae "Oi desaparece nas nponente carr, _ is anca pintad flamenga caracteristica do grande pints vrs Sn . quepodemosyer noalto dos mastros duas bang, direita do quadro, niolongedo ponto onde ohe ‘Aguas calmas, sobressai um: mint r Taléa minticia ra * 'Scom as armas eM Memori de Portugal, 0 escudo com as “quinas’ ia gas de Cristo. as cinco cha- 4 Pode-se, sem forgara imaginarao, acreditar qe estamos em Antuérpia ouem qualquer outro portoda Flandres nos anos 60do século XVI, Portugal esté entdo no auge da sua gl6-a maritima e mercante. Asta presenga no coragio da Europa no escapa a umm dosseus pintores mais riginais,porquehaj muito tempo que la nao espanta ninguém. Seré preciso quase meio milénio para que, de novo, apés um longo desvio por todas as praias do globo, do Brasil a Timor e ao Japao, a nau portuguesa regresse, comoao seu: porto de origem, a esta Europa que depois de nds, ou conosco, se perdeu no mundo. Para acabar como fearo no mei¢ da indiferen- ¢a dos deuses e dos homens, punido por ter cumprido, em seu nome € em nome dos outros, um sonho para além das suas possi- bilidades? Como esse barco, ancorado para sempre na tela de Breughel, mensageiro de um “lugar” que a Europa do século xvi descobria conosco, fomos, durante quase um século, um pove que navegava a0 largo do Atlantico, afastando-se de um mundo que ficava no cais. Pouco a pouco, essa navegacio tateante, tornada voragao € sinal de uma mudanga de civilizacao, iria arrastar toda a Buropana sua esteira. Depois de Lisboa, também Sevilha, Londres, Dieppe, Hamburgo, Amsterda se tornaram os pélos de um colossal fend meno de expatriacao. Simbolicamente, esse empreendimento de carater planetdrio receberé os belosnomes de“expansio’,de"con- quista’, de “colonizagao”. Na realidade, essas saidas fora da Europa dos velhos parapeitos eram a conseqiténcia natural da extensio do capitalismo mercantil do Ocidenteao mundo inteito. Em sentido préprio, essas partidas e essas expatriagoes Para regides longinquas ou continentes 2ovos nao eram ainda emigre 0es.A emigracao supde que alguna coisa demelhordo queo guess sdarmos de esta~ pia sem rote nova especie. deixa nos espera para nos dar a oportunidade de mu do ou de fungdes. A primeira vaga da navegagio eure) fora da Europa assemelha-sea uma migragao de uma

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