You are on page 1of 48
A MEGERA DOMADA SINOPSE, Cristévdo Sly, funileiro, certa vez, se embriaga e, com- pletamente adormecido pelo efeito da bebida, é encontrado por um fidalgo, amante de pregar pecas aos outros. Nido perde a ocasido. Manda levar o funileiro para seu castelo, coloca-o no melhor cémodo ¢ ainda the arranja uma bela esposa, na realidade um jovem pajem em trajes femininos Quando Sly acorda, ainda meio tonto da bebida, acredita perfeitamente ser um nobre que estivera louco durante quinze anos. Para diverti-lo, evitando uma nova volta do mal, resolvem encenar uma peca tendo por titulo A Megera Domada, Eis a hist6ria: Batista Minola, rico mercador de Pédua, ossui duas lindas fithas. Uma se chama Catarina e possui um ‘genio terrivel, enquanto a segunda, Bianca, é 0 oposto da irmd, de tal modo tem a indole mansa e cordata. Como era de esperar-se, Bianca possui muitos candidatos, mas Batista, velando pelos interesses das filhas, decide que ndo se casaré, ‘enquanto a mais velha nao encontrar, também, um noivo. Lucéncio, jovem estudante pisano, que ama Bianca, troca de roupas com seu empregado Trinio e consegue o lugar de professor de linguas das filhas de Batista. Horténsio, tam- ‘bém, apaixonado por Bianca, sente-se muito encorajado quan- do seu amigo Petruchio de Verona chega a cidade para en- contrar uma rica esposa e, apesar de tudo 0 que ouvira a respeito de Catarina, declara que fard a corte e se casard com a1 qualquer megera desde que possua um bom dote. Quando Prrracho clo pal €eonhecido de Batt, se apresenta como cenit 2 mo de Caterina em sua companhia vem Hor tent dfarado em professor de mises. Bata o contata pra ensnar ay fitas, Petruchio espera para comesar ot relat man Honénto aparece par dicr que Catarina nu sees de frie acabara de quebraro ade em sua cabefe ics com Pemuchio. ela procede da manera mais antpatica josiveh na entamo, com toda calma cle a elope, final ent, declare ebrupamente que se cxard com ele No 6 Timo domingo. Enquant isso se pasave, 0 novo profesor de lingua Lucénelo, procure conquisar Blanca tendo como pretexa ima ligdo te latim, Enreranto, Hortesio nao consegue Pro- rains tides de alae, Trino, vestido com as roupas Te Lctncion conegue vencer um tecero apazonado, Gré- wn, Batt, eeredtando trararse de Lucéncio, resolve ue Tie se star com Blanca, pois Trdni, em nome do patrd, ‘ometora maior dove do que Gremio. Huma condi, en (eta: Lucent deverd bier Beeps pata Trin ae TCherturba por tio pouco. Contrata ui pedagoro para fngt er Vicenie de Plt pa de seu amo. Tudo el de vento em le ‘No domingo em que deveria casar-se, Petruchio chega a igeja mato erased: para maior hunilhagto de Carin, usr que a cerimonia coninue,apesar dor tojes que esti Mic. Sua autude durante a cerimdnia a mais esranka Vonvele resolve no fear para a fetta das boda, levando esos para uma ea de campo imediiamente. Durante 0 *cinho, as com que os cavalo fujars, caindo Catarina na tsiada lamacenta “to chegarem « casa, fingindo grande cuidado pela ex posa, ara t comida no’ chao antes que Catarina pudesse Mroviéla durante not, nao a detxa dormir com sua ma fia exttavapante de proceder. Mas, repentinamente resolve Vottar para Pedwa, fim de vistar Batista manda buscor 3m ricos vestidos para Catarina. Ao chegarem estes, declara, entretanto, que a esposa prefere usar os antigos. Exausta pela falta de sono e de alimento, Catarina consente do desde ‘que 0 marido se acalme. Durante a viagem, enconiram wm velho viajante e Petruchio diz ser wma Jovem, no que encon- tra pleno assentimento da esposa. Quando ele discorda, ela declara, como o esposo, tratar-se de um velho enrugado, Acontece que o viajante & 0 rico Vicéncio de Pisa, que fica ‘muito irritado ao saber que dois impostores estdo na casa de Lucéncio e resolve pér a policia no caso, quando Ihe surge 0 verdadeiro Lucéncio vestido de Tranio para Ihe pedir per- ‘missdo para se casar com Bianca com quem acaba de fugin. Horténsio se consola casando-se com uma vitiva. Hé uma alegre festa de casamento para os trés casas. Petruchio aposta cem coroas para provar que, das trés esposas, Catarina é a ‘mais obediente. Um a um os dois outros maridos mandam ‘chamar as mulheres, que se recusam a vir, mas quando Pe- truchio manda chamar Catarina, ndo s6 ela vers promtamente, ‘bem como traz as duas ouiras e dé-lhes uma ligdo de obe- diéncia devida pela esposa ao marido. DADOS HISTORICOS Comédia adaptada de antiga pera tendo por titulo 4 Taming of a Shrew, de autor desconhecido, e publicada em 1594. Esta pega teve outro colaborador além de Shakespeare, acreditando alguns eriticos ser Marlowe a outra mio que Tetocou a Megera. O Prologo foi tirado diretamente da comé- dia original e & inspirado em histria similar das Mil e Uma Noites, O tema principal se encontra no poema A Merry Jest of a Shrewd and Curst Wife Lapped in Morel’s Skin jor her Good Behaviour, aparecido em 1575, enquanto 0 nome do herd, foi buscé-lo Shakespeare em Notte Piacevoli, de Stra- parolo. © tema secundario, ou seja, o de Bianca e os candidatos disfarcados, aparece nos Supposes, de George 373 Gascoigne, adaptagio de I Suppositi, de Atiosto. Até hoje io se conhece 0 ano exato em que apareceu A Me- ‘gera Domada, mas 0 certo € que Shakespeare a refez entre. 1596-1597. 314 DRAMATIS PERSONAE Um Lorde Cristovio Sty, funileito | pe. onagens Hoteleira, Pajem, do Prélogo ‘Comediantes, Cacadores « Servidores Batista, rico fidalgo de Padua Vicéncio, velho fidalgo de Pisa Lueéncio, filho de Vieéneio, apaixonado por Bianca Petruchio, fidalgo de Verona, pretendente de Catarina Grémio | | Pretendentes Montnio | de Bianca Teno | Ciiadoy de Montene} Lace erin ar Conte” } Fetnchio Um Pedagogo imitando Vicéncio Cann megere | Eas de Bianea Batista Uma Viva Allfaiate, Mascate © Criados de Batista e de Petruchio Cena: Padua ¢ a casa de campo de Petruchio 395 PROLOGO CENA I: Diante de uma cervejaria numa cherneca Eniram a Hoteleira ¢ Sly. Sly — Juro que vou dar-vos uma surra Hoteleira — Estis precisando de um tronco, vagebundo! Sly — Sois uma sem-vergonha: os Sly nfo slo vaga- bundos. Othai nas erénicas; chegamos com Ricardo, © Con- quistador. Logo paucas pallabris,’ deixai o mundo rodar: Cessal? Hoteleira — Nao quereis pagar os copos que quebrastes? Sly — Nao, nem um centavo Por Sio JerSnimo, sai daqui; vai para tua cama gelada e aquece-te lét Hoteleira — Conhego 0 remédio. Vou buscar um guat= da. (Sai.) ‘Sly — Podes ir buscar um, dois, trés que eu Ihes res: ponderei com a lei na méo;4 néo arredarei uma polegada; " Corruptela do espanhel pocas palabras, frase cortente em Lon Ares nagueles tempos, +"Palavra de origem duvidoss, tanto podendo ser do italiano essa como do francts cestez S"Denier no texto: era uma moeda antiga francesa, significando gui coisa de valor minimo. Quanto a JerOnimo ou go. by, Jero: rim, € uma frase popular da Tragédia Espanhola, de Kyd, onde hom Hieronimo. 4°Em inglés, Thirdboroush, policial de quarteiréo, dai a resposta ‘em trocaditho intraduzivel em portugués, na qual Sly responde ‘que Third, or fourth, or fifth borough, I'l answer him by law. a7 que venha © com delicadeza! (Deitase no chdo e dorme. Soam as trompas de caga. Entra um Lorde, vindo da aca, seguido por Cacadores e Criados.) Lorde — Cacador, encarrego-te de cuidar bem de meus ces, principalmente de Buligoso; © pobre animal esté muito inchado! Prende o Nebuloso com a cadela de latido profundo. ‘Nilo viste, rapaz, como 0 Prateado se portou bem no canto da sebe quando © rasto foi de todo perdido? Nio quero per- der este cio nem por vinte libras. Primeiro Cagador — Ora, o Cartihao é tio bom quanto cle, milorde; latiu & menor perda da caga e hoje, por duas vezes, encontrou a pista mais dificil. Acreditai-me, € o me- Ihor cio. Lorde — Es um imbecil. Se Eco fosse mais um pouco ripido, eu acho que valeria doze iguais a Carrilhio, Mas providencia para que comam bem e cuida deles todos. Quero cagar amanha de novo. Primeiro Cagador — Esté bem, milorde. Lorde — Que € isso? Esté morto ou embriagado? Vé, esté respirando? Segundo Cagador — Esté respirando, milorde. Se no estivesse esquentado pela cerveja, seria uma cama bem fria para dormir tio profundamente. Lorde — Que monstruoso animal! Parece um porco dormindo! © morte sinistra, como & vergonhosa e repulsiva ‘tua imagem!... Meus amigos, quero divertir-me com esse bébado. Que achais? Se fosse transportado para um leito, envolvido em Iengéis macios e se acordasse com anéis nos dedos, um deliciosissimo banquete ao lado da cama, e perto dele solicitos servidores ao seu redor quando despertar, no esquecia 0 mendigo sua propria condi¢io? Primeiro Cagador — Certamente, milorde, creio que ele nfo pode escolher. Segundo Cagader — Ficari espantadissimo quando acordar. 378 Lorde — Como de um sonho enganoso ou de uma vi fantasia... Levantai-o, pois, combinaremos bem a brin- cadeira, Transportai-o cuidadosamente para meu mais belo ‘quarto enfeitai-o com meus quadros mais licenciosos. Per- fumai-the a asquerosa cabega com célidas guas perfumadas, fe queimai madeiras odoriferas para perfumar 0 aposento. Procurai-me misicos que, quando ele despertar, deixem ouvir uma melodia doce e celeste. Se por acaso falar, estai dispostos ‘a cumprir-Ihe as ordens e respondei fazendo uma respeitosa ‘Que deseja Vossa Exceléncia?" Um de vés se apresentari com uma bacia de prata cheia de gua de rosas e juncada de flores. Outro trard um jarro; um terceiro, uma toalha adamascada e diré: “Vossa Senhoria deseja reftescar tas mis?” Um outro j Ihe esteja & disposi¢ao com um rico ‘guarda-roupa e Ihe pergunte com que traje ele deseja vestr~ se, Fale-Ihe outro dos cies e cavalos e da exposa que se cencontra desolada vendo-o doente. Persuadi-o de que esteve lunatico® e se afirma ser o que é, respondei-Ihe que ele sonha, porque € nada menos do que um poderoso senhor. Fazei assim, amiveis senhores, ¢ fazei-o com jeito. Sera a brines deita mais engragado do mundo, se vos conduzirdes com dis- crigio. Primeiro Cagador — Milorde, garanto-vos que repre- sentaremos tio bem nosso papel, que nosso leal zelo 0 fard acreditar aquilo que the dissermos. Lorde — Levai-o cuidadosamente e colocai-o na cama; ‘e quando acordar, cada um deverd estar a postos. (Saem Ser- vidores levando ‘Sly. Soa wma trombeta) Rapaz, vai ver que trombeta é esta que esta tocando. (Sai um’ Criado.) Sem divida, algum nobre gentil-homem, que, viajando 5 Lundticas eram as pessoas perturbadas pela influéncia da tua, sendo uma loucura intermitente sujeita as fases do satélite terreno. e Naqueles tempos, os artistas ambulantes se anunclavam 40 som de trompas, trombetas ou clarins. 379 por etapas, deseja aqui descansar. (Volta o Criado.) En tio? Quem é? a Criado — Com a permissio de Vossa Exceléncia, sto comediantes que estio oferecendo servigo a Vossa Se- shoria, Lorde — Dize-Ihes que entrem. (Entram os Comedian- tes.) Entéo, camaradas? Sede bem-vindos! Comediantes — Estamos muito agradecidos a Vossa Exceléncia, Lorde — Pretendeis passar noite comigo? Um Comediante — Se Vossa Senhoria quiser aceitar nossos servigos. - Lorde — Com todo meu coragdo. Lembro-me desse rapaz desde uma vez que o vi representa o papel de primo- génito de um fazendeiro, Era uma pega em que fazieis admi- ravelmente bem a corte a uma nobre dama, Nao me lembro de vosso nome, mas sem divida o papel foi habilmente mar- cado e naturalmente representado. Um Comediante — Creio que Vossa Senhoria queira roferirse a Soto? Lorde — E isso mesmo, estavas excelente. Bem, che- ais na hora certa, Tanto mais a propésito porque estou pre- parando uma brincadeira na qual podeis prestar-me um gran- de servigo, Hé aqui um lorde que vos vera representar esta noite; mas tenho dividas de vossa atitude; temo que, notan- do-lhe a atitude estranha (porque Sua Exceléncia nunca assistiu a uma pega), sereis tomados de algum acesso de ale ria, e que ele se sinta assim ofendido. Porque, posso dizer vos senhores, se notar que estais rindo, ficard zangado, ‘Um Comediante — Nao temais, milorde; saberemos conter-nos, ainda que fosse ele a pessoa mais ridicula do ‘mundo. Nos Filios ¢ no Quarto vem “Sincklo”, nome de um ator da companhia de Shakespeare. "Soto" era um personagem de Wo: men Pleased, de Beaumont € Fletcher 380 Lorde — Vamos, rapaz, leva-os para a copa e dé a cada um deles uma cordial boe-vinda. Que nada thes falte de {quanto minha casa possa fornecer. (Sai um Criado com os Comediances.) E tu, vai procurar meu pajem Bartolomeu, © dize-Ihe que se vista dos pés& cabeca como uma dama’ Feito isto, eva-o para 0 quarto do bébado, chama-o de “senhora” e testemunha-the a maior obedigncia. Dizesthe de minhe parte que, se quiser conquistar minha amizade, tome nobres ait des como ji terd tido ocasiéo de observar nas grandes damas te dos maridos. Que se mostre respeitoso com o bébado; fale-the recatadamente, em voz baixa, com humilde cortsia e the diga: “Que se digna Vossa Exceléncia ordenar?” "Em que pode vossa dama, vossa humilde esposa, mostrar seus deveres e testemunhar Seu amor?" E em seguida, cam ternos abbragos e beijs tentadores, inclinando a cabega sobre o pita dele, deixe correrligrimas de alegria vendo seu pobre senhor restabelecido, pois durante sete anos no se julgou sempre ‘melhor do que um miserivel e imundo mendigo. E se o rapaz no tiver © dom das mulheres, de deixar cair & vontade um dilivio de légrimas, uma cebola conseguira perfeitamente imité-la, a qual, cuidadosamente escondida num guardanapo, dar-Ihe-i, mesmo que no queira, um olhar lacrimejante. Que tudo isto seja feito com a maior rapidez que puderes. Daqui a pouco te darei mais instrugSes. (Sai um Criado,) Estou certo de que o rapaz usurpard perfeitamente a graga, a vor, 0 porte eo andar de uma dama de qualidade. Estou ansioso para ouvi-lo chamar 0 bébado de esposo e para ver como meus servidores conterio o riso quando prestarem homena- igem a esse simples rstco. Vou dar-ihes conselhos. Feizmen- te, minha presenga bastard. para conter 0 excessivo bom hhumor que, de outro modo, passaria dos limites aconselhaves (Saem.) No tempo de Shakespeare, as mulheres nio subiam ao pale. Logo, todos 0% papéis femininos eram feitos por homens. 381 CENA Ik: Quarto em casa do Lorde? Entra Sly, na parte superior, com servidores; unt trazem ricos trajes, outros, uma bacia, um jarro e varios objetos de toucador. Entra 0 Lorde Sly — Pelo amor de Deus, uma caneca de cerveja fraca Primeiro Servidor — Vossa Senhoria no deseja beber um elice de xerez? Segundo Servidor — Vossa Exceléncia nfo deseja pro- var estas conservas? Terceire Servidor — Que roupa Vossa Exceléncia de- seja hoje vestir? Sly — Sou Cristévéo Sly! Néo me chameis nem de Exceléncia nem de Senhoria, Jamais bebi xerez em minha vida, ¢, se quiserdes dar-me conservas, dai-me conservas de carne de boi. Nao me pergunteis jamais qual a roupa que desejo vestir, pois no tenho mais gibées do que costas, mais meias do que pernas, mais sapatos do que pés. As vezes, ‘mesmo, tenho mais pés do que sapatos, ou tenho sapatos que deixam ver meus dedos pelos buracos da géspea. Lorde — Que o céu livre Vossa Exceléncia desse humor fantistico! Oh! € possivel que um homem tio poderoso, de tio alto berso, gozando de uma tal fortuna e de uma tao alta consideracio, esteja possuido por um espirito téo indigno? ‘Sly — Como! Quereis tornar-me louco? Nio sou Cris- ‘t6vlo Sly, filho do velho Sly de Burton-heath, mascate de nascimento, cartonageiro por educagio, guarda de ursos por transmutagdo, e agora, por profissio, funileiro? Perguntai a Mariana Hacket, a gorda cervejeira de Wincot,!° se no me conhece. Se ela indo disser que Ihe devo quatorze pence de cerveja pura, considerai-me como o velhaco mais mentiroso da cristandade, Como! Nao estou delirando, Aqui esti. * Cena representada na primeira galeria no fundo da cena, de conde Sly ir assistir 8 comédia representada em sua honra "e'Povoado do condado de Warwick, perto de Stratford 382, ‘Terceiro Servidor — Oh! F isto que desola vossa damal Segundo Servidor — Oh! E isto que acabrunha vossos servidores! Lorde — £ isto que faz com que vossos parentes fue jam de vossa casa, onde so como que repelidos por yossas estranhas loucuras. © nobre lorde! Pensa em teu nascimento, Chama de volta do desterro tuas antigas idéias e desterra esses sonhos abjetos © degradantes. Olha como teus servido- Fes fe acompanham, prontos a servir-te, cada um nas suas atribuigdes, ao menor sinal teu. Desejas ouvir miisica? Escutai Apolo esté tocando (Miisica.) e vinte rouxindis cantam nas sgaiolas. Ou preferes dormir? Vamos transportar-te para uma ‘cama mais macia do que 0 leito voluptuoso preparado para Semiramis. Dize que queres passear; és atapetaremos o caminho. Ou preferes andar a cavalo? Teus cavalos serio encithados com arneses de ouro e pérola. Gostas de faleoaria? ‘Terds faledes que voarso mais alto do que a cotovia matu- ‘ina, Preferes a caga? Teus edes fardo com que o eéu retumbe de latidos e que seja evocado 0 eco estridente das cavernas! Primeiro Servidor — Dize que queres cagar lebres. Teus galgos so to répidos quanto os cervos de grande folego; sim, mais ligeiros do que a corga, Segundo Servidor — Gostas de quadros? Vamos pro- curarte imediatamente um AdOnis pintado junto de um Tegato ¢ uma Citeréia, toda oculta nos juncais, que seu hélito parece mover e acariciar, como se os ondeantes canigos brin- feassem com a bisa Lorde — Nos te mostraremos Io, no momento em que, ainda virgem, foi seduzida e surpreendida; o quadro parece tio vivo que se acredita estar vendo a coisa Terceiro Servidor — Ou Dafne errando através de uma floresta de espinhos, arranhando-lhe as pernas, que se podera jurar que ela sangra e que, diante dessa cena, Apolo, deso- lado, chora, tio fielmente foram produzidos 0 sangue ¢ as ligrimas. Lorde — Es um lorde € nada mais do que um lorde! 383 ‘Tens uma esposa muito mais bela do que todas as mulheres destes tempos decadentes. Primeiro Servidor — Antes que as ligrimas que ela derramou por ti tivessem inundado seu rosto encantador com torrentes invejosas, ela era a mais bela criatura do mundo mesmo agora ainda néo é inferiot a nenhuma. Sly — Sou lorde ¢ tenho por esposa semelhante dama? Estou sonhando? Ou sonhei até agora? Nao estou dormindo. Veio, ougo, falo, sinto perfumes suaves e toco em brandas coisas, Por minha vida! Sou lorde de verdade e no funileiro, nem Crist6vdo Sly! Bem, tragam nossa dama aqui em nossa presenga. E, ainda uma vez, uma caneca de cerveja fraca. Segundo Servidor — Vossa Grandeza no deseja lavar as mios? Oh! Como estamos contentes vendo vosso juizo res- tabelecido! Oh! Se puderdes reconhecer, uma vez por todas, quem sois vés! Ha quinze anos estais mergulhado em um sonho, e até mesmo acordado, parecieis estar dormindo. ‘Sly — Hé quinze anos! Na verdade, que belo sono! E ni falei durante todo esse tempo? Primeiro Servidor — Oh! sim, milorde, mas somente palavras incoerentes, pois, embora estivésseis aqui neste es- pléndido quarto, pretendieis ainda que tinheis sido atirado pela porta, e ofendicis a hoteleira ou fazieis ameagas de cité- |i em justica, porque vos trazia cntaros de greda © nio ga rafas lacradas. As vezes, chamaveis Cecilia Hacket. Sly — Sim, a criada da cervejaria ‘Terceito Servidor — Como! Senhor, no conheceis a cervejaria, nem semelhante criada, nem tampouco esses ho- ‘mens que nomeais como Estévio Sly, o velho Joio Naps de Grécia, Pedro Turf e Henrique Pimpinela e outros vinte no- ‘mes semelhantes de homens que nunca existiram e que jamais foram vistos! ‘Sly — Enfim, Deus seja louvado pelo feliz restabeleci- ‘mento! ‘Todos — Amém. Sly — Muito obrigado, nada teris a perder. (Entra o 384 Pajem, vestido de dama de qualidade ¢ acompanhado por Servidores:) Pajem — Como esté passando meu nobre lorde? Sly — Ora, estou passando muito bem, pois agui hé bastantes provisbes. Onde esti minha esposa? Pajem — Ei-la aqui, nobre lorde. Que queres com cla? Sly — Sois minha mulher © no me chamais de vosso esposo? Meus criados devem chamar-me de senhor; para vés sou vosso mestre, Pajem — Meu esposo e meu senhor, meu senhor e meu cesposo. Sou vossa esposa com toda obediéncia. Sly — Sei disso muito bem. Como devo chamé-la? Lorde — Madama. Sly — Alice Madama ou Joana Madama? Lorde — Madama ¢ nada mais. E assim que os lordes, chamam suas damas. ‘Sly — Madama, minha esposa, dizem que sonkei ¢ dormi durante mais de quinze anos. Pajem — Sim, e esses quinze anos me pareceram trinta, tendo estado todo esse tempo longe de vosso leito. Sly — E muito... Criados, deixai-me s6 com ela. Se- nnhora, tirai vossa roupa e vinde logo para a cama. Pajem — Permiti-me que vos suplique, trés vezes nobre lorde, que vos digneis de escusar-me por uma ou duas noites, ‘ou, a0 menos, até que o sol se ponha. Vossos médicos orde- nara expressamente, sob pena de causar-vos uma recalda, que no compartilhe ainda de vosso leito. Espero que essa raziio me serviré de escusa. ‘Sly — A situagio € tal que terei que fazer grande esfor- G0 para esperar tanto tempo; mas no quero recair nova- ‘mente nos meus sonhos. Esperarei, pois, a despeito da carne do sangue. (Entra um Mensageiro.) Mensageiro — Os comediantes de Vossa Exceléncia, tendo tido conhecimento de vosso restabelecimento, vieram reptesentar uma encantadora comédia, pois assim determi- nnaram vossos médicos vendo o muito que a tristeza congelou 385 vosso sangue € que a melancolia é a nutriz do frenesi. Por conseguinte, pensaram que seria bom que escutisseis uma Pega que dispusesse vosso espirito a alegria e ao regozijo, os quais previnem mil males e prolongam a vida ‘Sly — Muito bem! Concordo! Que a representem! Uma comédia"! nao € algo semelhante as brincadeiras de Natal ou 4s acrobacias de saltimbancos? Pajem — Nio, meu bondoso senhor; de estofo mais agradével ‘Sly — Como! Um estofo caseiro? Pajem — £ uma espécie de estéria Sly — Bem, vamos ver isso. Vamos, madama, minha mulher, sentai-vos a0 meu lado, deixai o mundo girar. Nunca setemos mais jovens. (Fanfarra,) ATO PRIMEIRO CENA I: Uma praca pblica de Pédua, Eniram Lucéncio e seu criado Trini. Lucénelo — Tranio, jé que para satisfazer meu vivo desejo de ver a formosa Padua, bergo das artes, cheguci & fértil Lombardia, aprazivel jardim da grande Italia e, gragas 20 amor e petmissio de meu pai, encontro-me amparado por ‘ua boa vontade e por tua boa companhia, meu fiel servidor 2 toda prova, respiremos aqui um pouco © comecemos com felicidade um curso de sabedoria e de estudos engenhosos, Pisa, célebre pela gravidade de seus cidadaos, deu-me o ser, como o deu a meu pai, mercador de grandes relagées, chama do Vieéncio, descendente dos Bentivoglio. O filho de Vieén- cio, educado em Florenca, realizara as esperancas fundadas Trocaditho iotraduzivel entre comonty, usado no lugar de commodity. Commodity significava nio 6 méveis, comodidades. ‘como também, patifarias. 386 hele, a0 adornar sua fortuna com ages virtuosas. E asim, Trinio, durante o tempo de meus estudos,aplicar-me- a vi tude e aquela parte da filosofia que trata da felicidade que a virtude procura especialmente. Dize-me © que penal abandoned Pisa vim a Pédua como um homem que dei tum charco pouco profundo para mergulhar num oceano e rocura com dnsiaestancar a sede ‘Trinio — Mi perdonate, mew gentil amo. Em te compartilho vossos sentimentos, feliz em que prossgas asim fem vosta resolugdo de aspirar 8s doguras da doce filsaia Somente, meu bom senhor, enquanto admiramos esta vitude cesta dsciplina moral, nfo nos convertamos, por favor, em estéicos ou insensveis, Nao sejamos tio devotes das rettic G8es de Aristteles, que consideremios Ovidio come um pros Crito digno de ser tepudiado- Julgai a légica com o combed Iento que tenhais dela e praticai a relorica em vossa cote wersagl0 ordindria; culival/a mésica e a poesia para edi lar-vos;s6 tomeis das mateméticas e da metafisica o que pos sa digeri vosso est8mago; nio traz proveito aquilo que no agrada. Em uma palavra, senhor, estudai o que mais vot agradar. Lucéncio — Muito obrigado, Trinio, por teu excelente conselho, Biondello, se te encontrasses ncstas paragens, po- deriamos tomar imediatamente nossas medidas e procurar um albergue para receber dignamente os amigos que not ddaremos a encontrar, Mas. paremos um pouco: quem so “Franlo — Meu amo, sem davida uma delegaplo para dar-nos as boas vindas na cidade. (Eniram Batista, Catarina, Bianca, Grémio e Horténsio. Lucéncio e Trdnio permanecem 2 parte, sem tomar parte na cena.) Batista — Senhores, nfo me importuneis mais; conhe- xis minha firme resolugéo de nfo conceder a mo de minha filha mais moga, sem antes haver encontrado marido para a mais velha. Se um de vés ama Catarina, como vos eonhego, quero bem, ter minha permissio para corej-la A vontade. 387 Grémio — (A parte.) Seria preferivel levé-la em car- reta!?’ E muito rude para mim. Vamos ver, Horténsio: ser- vird para vossa esposa? Catarina — Por favor, senhor, quereis converter-me ‘em alvo do ridiculo destes pretendentes? Horténsio — Protendentes, senhorita! Que pretendeis significar com isto? Nao haveré pretendentes para vés, en- {quanto nio fordes mais amavel e doce. Catarina — Na verdade, senhor, nada tendes a temer. [Nio estais ainda no meio do caminho de meu coragio. De ‘outro modo, no duvideis de que meu tinico cuidado seria pentear vossa cabega com uma tripega, borrar-vos a cara e Horténsio — De demOnios semethantes, livrai-nos, 6 ‘bom Deus! Grémio — E a mim também, bom Deus! Tranio — Siléncio, patrio! Estamos assistindo a um ‘bom passatempo. Essa moga esta completamente louca ou é assombrosamente insolente, Lucéncio — Mas, estou vendo, no siléncio da outr jdez ¢ a reserva de uma doce virgem. Siléncio, Tranio! Trinio — Muito bem dito, senhor! Figuemos quietos olhai a vontade. Batista — Senhores, que meus atos respondam em breve ‘o que disse... Bianca, entra ¢ nio fiques desgostosa, boa Bianca, pois niio te amarei menos por causa disso, minha filha ‘Catarina — Que menina mais mimada!... Seria melhor ‘meter um dedo no olho dela que ela responderia. Bianca — Minha irmi, ficai contente com meu descon- temtamento! Senhor, submeto-me, humildemente, & vossa von- tade, Meus livros ¢ instrumentos me servirdo de companhi: estudatei e praticarci sozinha com eles. "2 Castigo infligido aos criminosos. Eram levados pelas ruas em carreta, como castigo ou exposigdo pibica 388 Lucéneio — Escuta, Tranio! Minerva esté falando! Horténsio — Signior Batista, sereis to original? Sinto que nossa boa vontade seja a causa do pesar de Bianca. Gremio — Quereis encarceré-la, Signior Batista, por ‘causa deste deménio do inferno ¢ fazé-la responsével pela lingua da irma? Batista — Cavalheiros, conformai-vos. Minha resolusio & inquebrantavel. Retira-te, Bianca. (Sai Bianca.) Como sei que ela faz da miisica, dos instrumentos da poesia sua maior delicia, trarei para minha casa professores capazes de instruir-Ihe a juventude. Se vés, Horténsio, ou v6s, Signior Grémio, conheceis alguns em condicdo, apresentai-os aqt pois serei muito afével e generoso com os homens instruidos, a fim de que minhas filhas recebam uma boa educagéo. E ‘com isto, adeus. Catarina, podeis ficar, porque & com Bianca ‘com quem tenho mais que conversar. (Sai) Catarina — Como! E eu cteio que posso também ir ‘embora. No posso? Sera que vio contar-me as horas? Como se, aparentemente, eu no soubera o que & preciso agarrar € (© que € preciso deixar! Ora! (Sai.) Grémio — Podeis ir reunir-vos mulher do diabo! Vossas qualidades sio tio boas, que ninguém quer nada con- vvosco. O amor dela no é tio grande, Horténsio; mas nds podemos soprar nossos dedos, e deixé-lo perfeitamente jejuar. [Nosto bolo esta cru de ambos os lados.!? Adeus! Entretanto, pelo amor que tenho por minha suave Bianca, se conseguir arranjar um homem erudito, capaz de ensinar-Ihe os conhe- cimentos que the causam prazer, eu 0 enviarei ao pai dela Horténsio — Eu também, signior Grémio; mas, per- miti-me uma palavra, por favor. Embora a natureza de nossa Guerela no nos haja permitido ainda entabular conversa, sabei agora, apés reflexdo, que interessa a nés ambos, que (se quisermos ter acesso, entretanto, a nossa bela amada © 9 Provérbio que significa 0 fracasso de um projet. 389 sermos afortunados rivais no amor de Bianca) ha uma coisa na qual devemos aplicar-nos especialmente. Grémio — Qual é ela, por favor? Horténsio — Ora, senhor, arranjar um marido para a ima dela Grimio — Um marido! Ou um deménio! Horténsio — Estou dizendo um marido. Grémio — E cu, um dem6nio. Acreditas, Horténsi que, apesar da fortuna do pai, havera homem tio louco para procurar casamento no inferno? Horténsio — Grémio, embora seja acima de vossa pa- cigncia ¢ da minha suportar-the os desaforos, acreditai, meu caro, que existem bons rapazes no mundo (a questio é aché- Jos), que a aceitariam com todos os defeitos © um bom dote. Gremio — Nao sei o que responder, mas, se tivera que apanhar 0 dote com essa condigdo, preferiria ser agoitado todas as manhis no pelourinho. Horténsio — Efetivamente, como dizeis, pouco hi a escolher entre mags podres. Mas. vinde; como este obs iculo legal nos torna amigos, mantenhamos esta amizade até © dia em que, tendo encontrado um marido para a filha mais velha de Batista, tenhamos devolvido a liberdade & mais mosa, para escolher o seu, e fiquemos rivais nova- mente, Doce Bianca! Feliz 0 homem a ela destinado! Ao corredor mais rapido, 0 anel."* Que achais, Signior Grémio? Grémio — Estou de acordo e entregareio melhor cavalo de Padua a quem Ihe fizer a corte, a seduzir, casar com ela, dormir com ela ¢ tornar a casa livre dela! Vamos. (Saem Grémio ¢ Horténsio.) Trinlo — Por favor, senhor, dizeime se € possivel que o amor se apodere tio repentinamente de um homem? Lucéncio — O Trinio, antes que eu tivesse a expe- rigncia, nunca teria acreditado que fosse possivel, nem mes- “ Jogo que consistia em apanhar um anel com a ponta de uma Tanga: 390 a mo provivel! Mas, vé: enquanto aqui estava olhando des- preocupadamente, senti o efeito do amor na despreocupacdo. E agora, confesso-te com toda a franqueza, a ti, meu con- fidente, que me € tio caro quanto Ana’? a rainha de Cartago, Trinio, ardo, desfalezo, sucumbo, Trinio, se ndo conseguir ‘0 amor dessa jovem € modesta donzela. Aconselha-me, Tri- rio, pois estou certo de que o farés. Ajuda-me, Tranio, por- ue sei que o queres. ‘Trinio — Senhor, agora no € 0 momento para cen- surar-vos. Nao se bane uma afeigio do coragio com repri- mendas. Se 0 amor vos feriu, 56 vos resta fazer uma coisa: redime te captus quam queas minimo,!* Lucéneio — Muito obrigado, rapaz, prossegue. O que tu dizes me satisfaz. Para consolar-me, basta ouvir teus con- selhos. ‘Trinlo — Senhor, olhdveis to ternamente para a jovem que talvez nio reparastes no essencial Lucéncio — Oh! sim. Noteithe nas feigdes a doce beleza, semethante a da filha de Agenor,”” que obrigou 0 grande Jopiter a humilhar-se diante dela ¢ a beljar com os joelhos as margens de Creta ‘Trimlo — Nio vistes mais nada? Nio notastes como firma comecou a resmungar ¢ levantou uma tal tormenta, {que 0s ouvides mortais dificilmente podiam suportar 0 ba- rulho? Lucéncio — Trinio, vi que se moviam seus labios de coral ¢ que perfumava o ar com a respiragio, Tudo que vi rela era celeste e doce! Trinio — Vamos, jé esté na hora de fazé-lo sair do éxtase. Despertai, por obséquio, senhor. Se amais esta jovem, 1 A rainha de Cartago era Dido, e Ana, sua imi ¢ confidente \w Redimeste do cativeiro pelo menor prego. Citagdo do Eunuco, de Teréncio (Ato I, Cena 1, 29), extraida da Gramética Latina de Lyly 1 ATTitha de Agenor, rei da Fenicia, & Europa, raptada por Jé- piter transformado em touro. 391 que vossos pensamentos e todo vosso engenho se encaminhem para conquisti-la, A situagio estd neste pé. A irma mais velha € tio maldita e mé, que até que o pai se haja desembaraca- do dela, vosso amor viverd castamente no lar. Por este mo- tivo, prendeu a mais moga, a fim de que no seja importu- nada pelos pretendentes. Lucéneio — Ah, Trinio! Como ele é um pai cruel! ‘Mas néo notaste que ele se preocupa em arranjar-lhe precep- tores habeis para instrut-la? ‘Trinio — Sem divida que sim, senhor, ¢ agora o plano jf estd elaborado, Lucéneio — J4 0 possuo, Tranio. ‘Trinio — Senhor, juraria que nossas idéias se combi ram ¢ se confundem numa sé. Lucéneie — Conta-me, primeiro, a tua. ‘Trinio — Vés sereis professor e vos encarregareis de instruir a jovem. Eis 0 vosso projeto. Lucéncio — Isto mesmo. Pode ser posto em execucio? ‘Trimio — Impossivel. Quem iria representar vosso papel seria aqui, em Padua, filho de Vicéncio? Quem manteria a casa, se ocuparia com 0s livros, receberia os amigos, vsitaria ‘8 compatriotas ¢ os convidaria aos jantares? Lucéncio — Basta.'® Acalma-te. Meu plano esté pronto. Embora no tenhamos sido vistos em casa alguma e ninguém sai distinguir pelos nossos rostos o criado do patrdo, mesmo assim, tu serés 0 patra, Trinio, e ficarés no meu lugar; manterés uma casa, terés tratamento ¢ criados como se eu ‘mesmo os tivesse. Eu serei outro homem, um florentino, um napolitano, ou um pobre-diabo de Pisa. Esti decidido; assim serd feito. Trinio, tira tua roupa imediatamente, toma meu chapéu e minha capa de cor." Quando Biondello chegar, 8 Basta é a palavra usada por Shakespeare Os eriadow usevam roupas escuras; Togo, quando no tempo se falava a Tinguagem teatral em usar cores, sigificava trocar de roupa. 392 ficard as tuas ordens; mas quero recomendar-lhe antes de mais nada que tenha cuidado com a lingua. ‘Trinio — E necessario. Numa palavra, senor, jé que assim vos agrada e me comprometi a obedecer-vos — pois quando partimos vosso pai me encarregou expressamente: ‘Obedece a meu filho", disse-me ele, se bem que o entendes- se, suponho, num sentido diferente —, sinto prazer em ser Lucéncio, porque tenho grande amizade por Lucénei Lueéneio — Sé Lucéncio, Tranio, pelo amor de Lu- céncio, ¢ permite-me que me converta em escravo para con- quistar essa donzela, cuja repentina contemplagdo enfeitigou meus olhos. Aqui esta chegando o tratante. (Entra Biondello.) Por onde andaste, rapaz? Biondello — Por onde andei? Ora, essa! Onde estais ‘v6s? Senhor, meu companheito, Trinio, roubow vossas rou- as? Ou sera que roubastes as dele? Ou vos roubastes mu: tuamente? Por favor, @ que aconteceu? Lueéncio — Aproximai-vos, rapaz! Nao é hora de gra- cejar. Por conseguinte, mudai de atitude, Aqui vosso cama- rada Trnio, para salvar-me a vida, vestiu minhas roupas € fomou meu lugar, e, eu, para minha salvaguarda, fiquei com as dele; pois, logo a0 chegar, houve uma contenda, matei um homem ¢ tenho receio de ser descoberto. Ordeno- vos que Ihe obedegais, como for preciso, enquanto vou afas- tar-me daqui para salvar minha vida. Vs me compreendeis? Biondello — Eu, senhor? Nem um pouco. Lucéncio — E nem a menor alusio a Triinio em vossa boca. Trinio se converteu em Lucéncio. Biondello — Melhor para ele! Quisera que houvesse ‘comigo! Trinio — Eu também queria, rapaz, se por causa disso LucEncio se casasse com a filha mais moga de Batista! Mas, eu vos aconselho, por respeito nfo @ mim, mas a meu patric, que vos conduzais com discrigo em toda espécie de socie- dade. Quando estiver sozinho, serei entio Trinio; mas, em qualquer outro lugar, sou vosso patria Lucéncio! 393 Lucéneio — Vamos embora, Trinio. $6 te falta fazer uuma coisa, Vais colocar-te entre o nimero dos pretendentes dela. Se me perguntas por qué, basta que saibais que minhas razbes so boas e importantes. (Saem. Falam os personagens do Prélogo.) Primeiro Servidor — Milorde, estais cochilando. Nao cstais prestando atengio a pega i Sly — Estou sim, por Santa Ana! Uma boa pega, no hd divida. Ainda vai continuar? Pajem — Milorde, mal acaba de comecar. ‘Sly — Uma excelente obra-prima, senhora dama. Qui sera que jé tivesse acabado. (Assentam-se e prestam atensdo.) CENA Il: Diante da casa de Horténsio, em Pédua Eniram Petruchio ¢ seu criado Grimio Petruchio — Verona, despeco-me de ti por algum tem- po para ver meus amigos em Padua, especialmente o pre ferido e mais fiel de todos, Horténsio. Se no me engano, aqui esti a casa dele. Vem aqui, Grimio! Vamos, bate! Gramio — Bater, senhor! Em quem devo bater? Alguém ofendeu Vossa Exceléncia?© Petruchio — Vilio, estou te dizendo para bater aqui pronto! Griimio — Bater-vos ai, senhor? Por qué? Quem sou cu, senhor, para bater-vos af? Petruchio — Vilio, estou dizendo para bater-me nesta porta e bate bem, sendo te abrirei a cabeca de pancadas! Grimio — Meu amo se tornou brigio... Se vos ba- tesse agora, bem sei que daqui a pouco levaria a pior. Petruchio — Nao queres batér? Palavra de honra, No caso presente, roca rebused por s, deveria ser muito engracado naquele tratante, se no quiseres bater, vou torcer-te as orelhas! Que- ro ver se sabes solfejar 0 sol e 0 fal (Torce-lhe as orethas.) Grimio — Socorro, senhores, socorro! Meu. patria esté doido! Petruchio — Agora, tocaris quando eu te mandar, tratante! Vildo! (Entra Horténsio.) Horténsio — Que ha? Que aconteceu? Meu velho amigo Grimio! E meu bom amigo Petruchio! Como estais passando em Verona? Petruchio — Signior Horténsio, vindes para fazer a paz? Com tuito il core ben trovato, posso dizer-vos. Horténsio — Alla nostra casa ben venuto, molto hono- rato signor mio Petruchio. Levanta-te, Grimio, levanta-te! Vamos resolver esta bri Grimio — No. Pouco importa tudo que ele alegue ‘em latim! Dizei-me se no é para mim um motivo legal para deixar-Ihe 0 servigo. Escutai, senhor. Ele mandou que ba- tesse nele e com pancadas bem fortes. Bem, seria conveniente que um criado procedesse assim com o patrio, que, tanto quanto possa saber, tenha, talvez, mais ou menos trinta ¢ dois anos? Quisera Deus que eu Ihe houvesse batido pri- meio! S6 assim Griimio nio teria levado a pior! Petruchio — Vilio estipido! Bom Horténsio, ordenei 2 este ordindrio que batesse na vossa porta e no pude con- seguir que ele fizesse nada, Grimio — Bater na portal... © oéus! Nao haveis ordenado claramente: “Rapaz, bate-me aqui, bate-me bem forte aqui, bate-me bem e bate-me com toda a forga”? E agora pretendeis que se tratava de “bater na porta?! Petruchio — Vai embora ou nio fales nada, estou te avisando, Horténsio — Paciéncia, Petruchio. Sou o fiador de Grimio. Sem divida, é uma discussio lamentivel entre ele € vs, vosso antigo, fil e divertido servidor Grdmio. E agora, % Raciocinio usado na Commedia dell Arte. 395 dizei-me, querido amigo, que vento feliz vos trouxe da velha Verona aqui a Padua? . Petruchio — © vento que dispersa os jovens através do mundo para buscar novidades longe do lar, onde se adqui- +e pouca experiéncia. Em poucas palavras, Signior Horténsio, cis a minha situagio: Anténio, meu pai, acaba de morrer € feu me lancei nesse labirinto para casar-me bem e prosperar © melhor que puder. Possuo coroas na minha bolsa, bens em casa e assim parti para o estrangeiro, desejando ver © mundo, Horténsio — Petruchio, queres que te fale sem rodeios? Queres que te apresente a uma esposa irritadiga e desagradé. vel? Apenas ters que agradecer-me o oferecimento: e, entre- tanto, eu te prometerei que seré rica, € muito rica, Mas, tu ‘meu amigo que no poderia descjar-te ver casado com ela Petruchio — Signior Horténsio, entre amigos como nos, poucas palavras bastam. E assim, se conheces uma mulher bastante rica para converter-se em esposa de Petruchio, co- mo a riqueza € 0 estribilho de minha cangio matrimonial, seja ela tio feia quanto a amante de Floréncio.? tio velha quantos a Sibila e tio abomindvel e bravia quanto Xantipa ide Séerates, ou, pior ainda, ndo me espantaré, ou, a0 menos, rio embotara 0 fio da paixéo, mesmo que seja tio furiosa como 0 mar Adriético, Venho para casar-me ricamente em Padua; e se casar-me ricamente em Pédua, casar-me-ei com toda a felicidade, Gramio — Notai, senhor, que vos disse francamente © {que pensa, Sendo assim, dai-Ihe ouro em abundincia, casai-o com uma boneca, com tuma figurinha de jéia, ou uma velhota, ‘desdentada, embora tenha tantas doengas quanto cingllenta 2 Floréncio, heréi de um conto de Gower em Confessio amaniis, promete casarse com uma velha feiticira se ela resolver um Enigma do qual depende sua vida, e que depois do easamento torna-se jovem e bela BTA Sibi €'a de Cues, a quem Apolo prometera tantos anos de vida, quantos grios de areia pudessem existir num punhado. 396 © dois cavalos. Ora, ninguém achari mal, desde que en- contre dinheiro, Horténsio — Petruchio, j& que levamos as coisas tio Jonge, continvarsi o que por brincadcia havin comegado, Posso arranjarte, Petruchio, uma esposa bastante ica, jo- vem, formosa e eicada, como convém a uma dama de auilidade, Sew tinico defeito (e bastante grave) consis em Ser intoleravelmente ruses, ieritada e_volunarioss, «dm ponto tal que, mesmo que mink situagio fosse pior 40 que E>nem por uma mina de ouro eu me casarin com cla Petruchio — Basta, Horténsio! Nio conheces @ vinude do ouro. Dize-me 0 nome do pai dela, © € quanto basta, Porgue pretendo abordi-ia, embora rite tio alto quanto tum trovdo quando rasga as muvens do outono. Horténsio — © pai dela é Batista Mino, genti-homem ativel ¢ corté. Ela se chama Catarina Minola, famosa em Piva pela lingua tervel. Petruchio’ — Conheso 0 pai dela, bem que nio a conhesa, ¢ cle conhecia muito meu falecido pai. Nio dor- mire, Horténso, enquanto néo a vir. Desctlpsi, pois, Tiberdade que tomo de deixar-vos tao depressa logo nese Primero encontro, a no ser que qUeitais acompanhar-me mela Grimio — Por favor, senhor, deixaio partir enguanto diurar este capricho. Por minha palavra, se cla o conhecesse to bem quanto o conheco,julgaria perfeitamene init f zerthe reprimendas. Pode chamé-lo quantas veees_uiser de tratante ou coisa semelhante, porque nada Ihe adiantard; ‘mas, assim que ele comegar, no recuaré dante da msior insoléncia. Garanto-vos, senor, que se ela resstir um mo- ‘mento que seja, ele Ihe deixard’ @ marca no rosto © a desi- suraré de modo que nio mais teréolhos para ver do que os de um gato. Nao 0 conheces, senhor. Hortensio — Espera Petruchio, devo ir contigo, porque meu tesouro esti debaixo da guarda de Batista. Mantém sob custédia a jSia de minha vida, filha mais mops, a bela 397, a el Bianca, ele a oculta de mim, bem como de outros mais que 2 cortejam € que so meus rivais em amor. Supondo, coisa impossivel por causa dos defeitos dos quais jé te falei, que Catarina pudesse ser pedida em casamento, Batista tomou essa resolugdo: ninguém teré acesso até Bianca, enquanto a maldita Catarina no encontrar um matido. Grimio — Catarina, a amaldigoada! Lindo titulo para uuma donzela e de todos pior! Horténsio — Agora, meu amigo Petruchio vai pres- tar-me um favor; consistiré em apresentar-me disfarcado com um traje grave, ao velho Batista, como hdbil professor de misica que se oferece para instruir Bianca. Ao menos, com este estratagema, terei a liberdade e o prazer de namo- ré-la e falar-Ihe, sem que ninguém descontie. Grimio — Nao hd a menor patifaria! Vede como ccombinam os jovens para enganar os velhos! (Entram Grémio Lucéncio disfarcados.) Olhai, senor! Othai a0 vosso lado! ‘Quem vem af? Hein? Horténsio — Siléncio, Griimio, € meu rival. Petruchio, fiquemos de longe um momento. Grimio — Um belo mancebo ¢ um belo amoroso! Grémio — Oh! muito bem! Examinei a nota. Ouvi bem, senhor, eur 0s quero ricamente encadernados, ¢ todos livros de amor! Tende cuidado para que no the fagam butra lei- tura, vés me compreendeis. Além disto ¢ fora das liber: dades do Signior Batista, eu acrescentarei algumas larguezas, Tomai também vossos papéis, e que eles sejam muito bem perfumados, pois aquela a quem se destinam & mais perfu. mada do que o préprio perfume. Qual seré 0 assunto de vvossa ligio? Lucéneio — Tudo quanto ler para ela redundaré em vyosso favor, em favor de meu protetor, podcis ficar certo; € (9 tio certamente quanto estivésseis em meu luge 2 Trata-se da lista dos livros. 398 talvez empregue termos mais persuasivos do que vés, senhor, a nio ser que sejais um sébio. Grémio — Oh! a ciéncia! Que coisa é isto? Grimio — Que asno é este galo selvagem! Petruchio — Siléncio, tolo! Horténsio — Psiu, Griimio! Deus vos guarde, Signior Grémio! Grémio — Tenho grande prazer de encontrar-vos, Signior Horténsio. Sabeis para onde estou me ditigindo’ Para a casa de Batista Minola. Prometi-lhe procurar dosamente um professor para a bela Bianca, e tive a boa sorte de cair sobre este jovem que, pelos conhecimentos & maneiras, € um mestre como ele ‘precisa, muito lido em poesia ¢ em outros livros, nos bons livros, posso garantir-vos. Horténsio — Est bem. E eu encontrei, também, um gzentil-homem que me prometeu encontrar um excelente més sico para instruir nossa amada. Assim, ndo ficarei atrés em meu dever para com a bela Bianca, a quem tanto amo. Grémio — E por mim também, como meus atos provaréo. Griimio — E como seus sacos 0 provario. Horténsio — Grémio, 0 momento nio é para jogarmes ‘nosso amor ao vento. Escutai-me, e, se fordes razodvel, tenho uma noticia muito boa para nés ambos. Aqui esté um cava- Iheiro que encontrei por acaso, e que, de acordo comigo, segundo sua conveniéncia, vai procurar fazer a corte & mal- dita Catarina; sim ¢ casar-se com ela, se Ihe convier 0 dote. Grémio — Assim dito, assim {eito, esti muito bem. Ele ja esta ciente de todos 0s defeitos dela, Horténsio? Petruchio — Sei que ela é uma insuportivel faladeira, Se for $6 iss0, senhores, ndo vejo perigo algum. Grémio — Nao? E dizeis assim, amigo? De que pais Petruchio — Nasci em Verona, flho do velho Anténio. Falecido meu pai, minha fortuna é suficiente para mim, ¢ espero ver bons ¢ longos dias. 399) Grémio — © senhor! Tal vida com uma tal mulher ia terrivel! Mas, se tendes valor, em nome de Deus, avan. te! Aqui estou para ajudar-vos em tudo 0 que puder. Mas, ides fazer a corte a essa gata selvagem? Petruchio — Quero eu viver? Grimio — Far-lhe- a corte? Certamente! Ou cu a cenforcarei! Petruchio — Para que vim aqui, seno com essa inten: do? Pensais que com um pouco de barulho vio aturdir ‘minhas orelhas? Jé no ouvi em meu tempo rugir os ledes? J4 nfo senti o mar, agitado pela agdo dos ventos, raivar ‘como um javali furiaso, todo suado de espuma? J4 no ouvi © canhdo troar nos campos de batalha e a artilharia do céu no firmamento? J no escutei no meio de um combate tra vado os ressonantes gritos de alarma, o relinchar dos coreéis 0 clangor das trombetas? E me falas da lingua de uma mulher, que néo faz no ouvido a metade do barulho de uma astanha ao estalar no fogo de um lavrador? Ora, ora, Buardai vossos espantalhos para fazerem medo as criancas. Gramio — Porque nio tem medo de nada Grémio — Escutai, Horténsio: este cavalheiro chega felizmente, segundo minha alma pressente, tanto para seu préprio bem, quanto para o nosso. Horténsio — Prometiclhe que contribuiriamos para os gastos que lhe causem a conquista, sejam quais forem eles Gremio — Concordo, desde que ele consiga con- auistécia, Griimio — Queria estar também seguro de um bom jan- tar. (Entra Tranio, ricamente trajado, em companhia. de Biondello,) ‘Trinlo — Cavalheiros, Deus esteja convosco! Se nio for indiscrigio, quereis dizet-me, por favor, qual 0 caminho ‘mais curto para ir & casa do Signior Batista Minola? Biondello — Aquele que tem duas belas filhas? E esse por quem perguntais? ‘Trinio — Fle mesmo, Biondello 400 Grémio — Escutdi, senhor. Nao quereis falar a. ‘Trinio — Talvez, a um © a outra, senhor. Que tendes Petruchio — Nao seré a que esté sempre zangada, por favor? ‘Trimio — Nao gosto das zangadas, senhor. Biondello, vamos embora Lucéncio — Bom comego, Trinio, Horténsio — Senhor, uma palavra antes de partides. Sois pretendente a mao da jovem de quem falas, sim ou no? ‘Trinio — E se assim for, haveria alguma ofensa? Grémio — Nao, desde que sem mais uma palavra vos retireis dag ‘Trinio — Por que, senhor? Nao sio as ruas tio livres ara v6s quanto para mim? Grémio — Mas assim nio é a jovem. Tranio — Por que raz0, por obséquio? Grémio — Pela razio, se desejais sabé- leita do coragdo do Signior Grémio. Horténsio — £ também a do Signior Horténsio. > Trimio — Calma, meus senhores. Se fordes gentis-ho- mens, tende a bondade de escutar-me com paciéncia. Batista € um nobre gentil-homem, a quem meu pai ndo era total- ‘mente desconhecido; e mesmo que a filha dele fosse menos bela do que 6, poderia ainda ter novos pretendentes, estando eu entre eles. A filha da bela Leda? teve milhares de adora- dores; logo, bem pode ter um a mais a encantadora Bianca. Ela o teré. Lucéncio quer entrar na fila, mesmo que 0 pré- prio Pris se apresentasse como rival Grémio — Como! Este fidalgo faré com que todos nés ccalemos? Lucéncio — Senhor, deixai-o que se vé; sei que vai ficar logo cansado. ude que € a 12 da bela Leda é Helena de Tréia, cujo rapto por Paris dew inicio & expedigao dos Gregos contra Tro 401 Petruchio — Horténsio, para que servem todas essas palavras? Horténsio — Senhor, desculpai a liberdade de minha pergunta: vistes algum dia filha de Batista? ‘Trinio — Nio, senhor; mas sei que tem duasfilhas, uma famosa pela mé lingua ¢ a outra pela encantadara modéstia Petruchio — Senhor, senhor, a primeira é para mim, no vos ocupels com ela Grémio — Sim, deixemos este trabalho para o grande Hercules ¢ ela sobrepujaré os doze trabalhos de Alcides Petruchio — Senhor, compreendei o que ha sobre 0 caso. A mais moga das fithas, a quem fazzs alusio, se encon- tra vigiada por tm pai que profbe todo acesso aos preten- dentes ¢ no quer prometé-a a nenhum homem enquanto @ irma mais velha ndo estver casada. Logo, a mais moga 56 entdo ficard livre e no antes ‘Tranio — Se for assim, senhor, se sois 0 homem que viré em auxilio de todos, nfo s6 de mim como dos outros, ese romperdes o gelo e realizardes a procza de triunfar da mais velha e libertar a mais moga, permitindo nosso acess0 até ela, ficai seguro de que 0 homem que a possuir nio seré tio malnascido a ponto de mostrar-se ingrato convosco, Horténsio — Senhor, falais bem, e bem raciocinais; co- mo vossa intenglo & ser pretendente, devs, como nés, mani- festar-vos agradecido a este cavalheiro, a quem todos esta- ros altamente penhorados. Trinio — Senhor, nfo serei fraco. Para comegar, eu vs proponho passarmos juntos esta tarde e esvaziarmos gar- rafas a saiide de nossa amada. Fagamos como os advogados ave, adversérios encarnigados diante do juiz, comem e be- bem como amigos Grlimio e Biondetlo — Oh! excelente proposta! Cama- radas, partamos! Horténsio — A proposta é, sem duivida, boa e que as- sim sea, Petruchio, serei vosso Ben venuto.(Saem.) 402 ATO SEGUNDO. CENA I: Sala da casa de Batista, em Padua, Entram Catarina e Bianca. Bianca — Bondosa irma, nem a mim nem a vés mes: ma, fagais a injdria de tratar-me como uma criada e como escrava. Acho que é uma coisa indigna. Quanto a estes outros, adornos, soltai-me as méos, porque cu mesma os desprende- rei, Sim, todos os meus vestidos, até minha andgua, Farei tudo 0 que me mandares, pois conhego meus deveres para ‘com minha irma mais velha. Catarina — Entre todos os teus pretendentes, eu te jrdeno que me digas quem mais amas; procure no dite Bianea — Acreditai-me, minha irmi, entre todos os homens vivos, ainda néo encontrei um rosto especial ac qual possa preferir a um outro, Catarina — Mentes, pequena. Nao Horténsio? Bianca — Se vés 0 amais, minha irma, juro aqu’ inter- cceder em vosso favor para que o consigais. Catarina — Oh! Entio, creio que preferis um mais Fico, Grémio vos agradaria para que vos fizesse bela Bianca — Por causa dele tendes inveja de mim? Vamos, estais brincando e agora bem percebo que nada mais fizestes do que brincar. Pego-vos, Catarina,% soltai-me as mas. Catarina — Se isto é uma brincadcira, o resto também era. (Bate em Bianca, Entra Batista) Batista — Eniao? Que & isto? De onde vem esta inso- léncia?... Bianca, retira-te. Pobre pequena! Esté chorando. Vai retomar tua agutha. Nao te metas mais com ela. Nao tens vergonha, mesquinha de espitito endemoninhado? Por % Conservamos exatamente o original de Shakespeare, onde pela necessidade da métrica ou da rima_os tratamentos variam eX. traordinartamente, 403 ‘que a maltratas, se nunca te fez mal algum? Quando trocou contigo uma palavra descortés? ‘Catarina — O ssiléncio dela me insulta e quero vingar- me. (Corre atrés de Bianca.) Batista — Como! Em minha presenga? Vai para dentro, Bianca. (Sai Bianca.) ‘Catarina — Como! Nao podeis suportar-me! Agora estou vendo. Ela é vosso tesouro. Deve arranjar um marido. Dangarei descalga no dia do casamento dela; ¢, pelo amor que Ihe tendes, levarei macacos para o inferno.” Néo me faleis! Vou trancar-me chorar até que encontre uma oca sio para vingar-me! (Sai,) Batista — Existiu algum dia um homem tio desditoso quanto eu? Mas, quem esté chegando ai? (Entram Grémio, LLucéneio, vestido como homem de condicao modesta; Pe- truchio, em companhla de Horténsio, em traje de misico; € Trinio com Biondello, trazendo um alaide e livros.) Grémio — Bom dia, vizinho Batista Batista — Bom dia, vizinho Grémio, Deus vos guarde, senhores! ‘Petruchio — E vés também, prezado senhor. Por favor, no tendes uma filha cujo nome € Catarina, bela e virtuose? ‘Batista — Tenho uma filha, senhor, chamada Catarina, Grémlo — Comecais muito bruscamente; procedei com mais método. Petruchio — Estais sendo injusto comigo, Signior Gré- ‘mio! Deixai-me agir. Senhor, sou um eavalheiro de Verona, que, tendo ouvido falar da beleza de vossa filha, de seu espi- Tito, de sua afabilidade, de sua pudica modéstia, de suas raras Qquelidades e da dogura de seus modes, tem a ousadia de mos- trar-se em vossa casa, héspede atrevido, para que seus olhos sejam testemunhas do que the foi repetido tao freqiiente- 1 As itmis mais velhas solteiras dangavam descalgas no casa- ‘mento da mais moga. As soltcironas levavam macacos para 0 Inferno por nfo terem tido filhos para educa 404 ‘mente. E, como introducdo a meu acolhimento, apresento-me a v6s com um de meus servidores (apresentando-the. Hor- ‘énsio.), versado em miisica e matemética, que instruiré vossa filha nestas ciéncias, que ja sei no Ihe s20 desconhecidas, Accitai-o, para que nfo me sinta ofendido. Ele se chama Licio © nasceu em Mantua. Batista — Sede bem-vindo, senhor, e ele também, em consideraco a vés. Mas, quanto a minha filha Catarina, estou certo de que ela néo poderd convit-vos, 0 que me faz ficar desolado. Petruchio — Vejo que vossa intengio é de nio vos separardes dela, ou entio que minha companhia vos de- sagrada Batista — Néo leveis a mal minhas palavras. Falo 0 que sinto, De onde sois, senhor? Que nome devo dar-vos? Petruchio — Petruchio é meu nome, filho de Anténio, ‘homem bem conhecido em toda a Itilia. Batista — Conheco-o muito bem. Sede bem-vindo em consideracdo a cle, Gréinio — Petruchio, agora que jé falastes, permit, por favor, que nés, pobres peticionérios, também falemos. Um momento! Estais maravilhosamente apressado! Petruchio — Oh!... Perdoai-me, Signior Grémio; estou disposto a acabar, Grémio — Nao duvido, senhor; mas, arriscais o éxito de vossa causa. Vizinho, eis aqui um presente que vos seré ‘muito agradével, estou certo disto. Para recompensar-vos de uuma simpatia de que me haveis dado tantas provas, apresso- me a apresentar-vos este jovem sibio (apresentando-the Lu- ‘céncio.), que durante longo tempo estudou em Reims, tio versado em grego, latim e outras Iinguas, como seu colega, ‘em miisica e matemética. Chama-se Cambio, Por favor, ace tai 0s servigos dele. Batista — Mil agradecimentos, Signior Grémio. Bem- vvindo, bondoso Cambio. Mas, amével senhor (dirigindo-se a 405 Trénio.), tendes 0 aspecto de estrangeiro. Poderia tomar a li- berdade de perguntar-vos a causa de vossa vinda? ‘Tranio — Perdoai-me, senhor; sou eu quem deve dir-vos desculpa por minha liberdade. Estrangeiro nesta ci- dade, tenho a ousadia de pretender a mio de vossa filha, a bela e virtuosa Bianca. Conhego vossa firme resolugao de garantir primeiro a irma mais velha. S6 pepo um favor: ‘quando conhecerdes minha familia, dar-me-cis 0 mesmo aco- Thimento igual aos outros pretendentes e me concedais livre facesso ¢ favor como a0 resto, Quanto a educagio de vossas filhas, aqui vos ofereco este simples instrumento e esta pe- {quena colegio de livros gregos e latinos. Se quiserdes aceité- los, terdo grande valor. Batista — Lucéncio é vosso nome? De onde sois, por — De Pisa, senhor; filho de Vieéncio. Batista — Poderoso homem de Pisa. Conheso-Ihe bem 4 reputagao. Sois muito bem-vindo, senhor. Pegai no alaide. E vs, ma colegio de livros, Ides imediatamente ver vossas alunas, Olé! Ha alguém af dentro? (Enira um Criado.) Ra- paz, leva estes senhores até onde esto minhas filhas, e comu- hica a ambas que so os professores delas; quero que sejam bem tratados. (Sai o Criado com Lucéncio e Horténsio, se- ‘guides por Biondello.) Vamos passeat um pouco pelo pomar depois jantaremos. Sois todos bem-vindos e vos pego que vos considereis todos como tai Petruchio — Signior Batista, meus assuntos nao admi tem dilagéo, eeu ndo posso vir todos os dias fazer minha corte, Conhecestes meu pai muito bem; sou o tinico herdeiro de suas terras © de seus bens, que entre minhas maos antes prosperaram que diminuiram. Nestas condiges, se conse- fir fazer-me amar por vossa filha, dizei-me: que dote rees- berei ao tomé-la como esposa? Batista — Metade de minhas terras quando falecer © desde ja vinte mil coroas. Petruchio — Em traca desse dote, eu the garantirei, se 406 ficar vidva, todas as minhas terras e todos os meus rendi- ‘mentos, sejam quais forem. Redigiremos, pois, as eldusulas do contrato, a fim de que nossas estipulacées sejam obser- vvadas por uma e outra parte. Batista — Sim, quando for conseguido o principal, ou seja, 0 amor de minha filha, pois tudo esté dependendo disso. Petruchio — Ora, isso ndo é nada. Porque eu vos ga ranto, meu pai, que sou to teimoso quanto ela é orgulhosa; € quando dois fogos violentos se encontram, consomem logo © objeto que thes alimenta a fria, Embora um fogo brando se torne forte com um vento fraco, um furacio, entretanta, © apaga rapidamente. Assim agirei eu com ela, ¢ assim ela ccedera comigo; porque sou enérgico e nio faco a corte co- ‘mo crianga. Batista — Que tu possas fazer-Ihe a corte © possas ser feliz! Mas prepara-te para receber palavras inconvenientes! Petruchio — Jé estou acostumado, como as montanhas {que 05 ventos no conseguem abalar,’ mesmo que soprem Perpetuamente, (Volta Horténsio com a cabega quebrada.) Batista — Que aconteceu, meu amigo? Por que estis 1 pélido? Horténsio — Garanto-vos que, se estou pilido, 6 de medo. Batista — Como! Seré que minha filha nunca s boa musicista? Horténsio — Acho que ela se mostraré melhor como soldado. O ferro pode resistir melhor com ela, mas niio os alaiides. Batista — Como! Entio fizeste com que ela quebrasse © alatide 20 tocé-lo? Horténsio — Certamente que no; foi ela quem quebrou © alaiide sobre mim. Eu the dizia simplesmente que estava enganada nas notas, ¢ segurei-the a mio para retffcar-Ihe © dedilhado, quando, com um movimento de impacineia dia: bélica, me disse: “Chamais isto de notas? Pois, tocai-as en- to”. E, com essas palavras, bateu-me com tanta forca que 407 © instrumento me atravessou a cabesa. E, assim, fiquel pe- ttificado durante uns momentos, como um homem no pelou- rinho, olhando através do alaide, enquanto ela me chamava de velhaco arranhador, miisico fracassado e de vinte outros rnomes injuriosos, como se tivesse estudado uma ligo para ‘melhor insultar-me. Petruchio — Ah! Pelo Universo, € uma donzela ro- busta! Amo-a agora dez vezes mais do que antes! Oh! Como estou ansioso para ter uma conversinha com ela! Batista — Bem, vinde comigo ¢ nfo fiqueis assim tio desanimado. Exercereis vossa profissio com minha filha mais moga. Ela tem tendéncia para estudar ¢ fica agrade- cida com todos os favores que Ihe sejam feitos. Signior Pe- truchio, quereis vir conosco ou preferis que mande chamar ‘minha filha Catarina? Petruchio — Mandai chamé-la, por favor; eu a espe- rarei aqui. (Saem Batista, Grémio, Trinio e Horténsio,) E ‘quando chegar, eu Ihe farei a corte com toda decisio. Di amos que me injurie; eu Ihe direi entio que canta tio suavemente quanto rouxinol. E que franza a fronte; eu The direi que tem 0 olhar tio limpido quanto a rosa matu- tina, ainda timida pelo orvalho. Digamos que se mostre ‘muda e nfo queira falar s6-palavra; lisonjearei entéo sua volubitidade e dir-the-ei que tem uma elogiiéncia persuasiva Se disor que me retire, eu Ihe agradecerei, como se tivesse mands do que permanecesse ao lado dela durante uma semana, Se mgar-se a casar, pedirlhe-ei para dizer-me quando de- versi mandar publicar os banhos ¢ quando deveremos casar- nos. Mas, ei-la que esté chegando. E, agora, fala Petruchio. (Entra Catarina.) Bom dia, Catita, pois soube que este era Catarina — Ouvistes bem, mas tendes os ouvidos um pouco duros. Os que falam de mim chamam-me de Ca- trina. Petruchio — Palavra de honra que estais mentindo, Vosso nome é simplesmente Catita, a boa Catita e, as vezes, 408 Catt, a més mas, Catita'a mais bela Catta da rstandad; minha melfva Catta, minha doce Catia, Por comepuin te, Catt, meu console, Catt, escta-mei Tendo vide em todas as cidadesclogiat ta dogira, tas vtudes, ta Beleea elogada (nfo tanto, conto, quanto merecem) sealing mor vido a cortejare como minha futura spon, Catarina — Moids! Nao € Sem tempo, Denabves mo- vere como viestes, ide embors Si dagul Vi mediatamente he tiels oar de movel Petruchio —~ Como! Que mével? Catarina — Um tamborete Petruchio — Disses ber! Vem e asenece em cima de mim ata também, Petruchio — As mulheres foram fetas para earegar€ vés também. a ‘Catarina — Nio seri o rocim que vos caresars, se & 4 mim que vo refer. Petruchio Ar de mim, bondosa Ca pesado, porgue, vendo-e Jovem leve Catarina "Muito lve para deitarsineapanbar por um casca grossa como ws. Entetant, peso 0 que deveria Psa Fetrchio Devers coninne! Sem divi algens Catarina — Falastes ber, mas como um fale Petruchio — 0 rolinba de Tento voa! Que also spanharte? Catarina — Oh! para uma roliha, vai ele buscar um falco! Petruchio — Vamos, vamos, minha vespa; na verdad, Gis ita, demas, Catarina —"Se sou vespa, cuidado com meu feo Petruchio — $6 tere, eno, um seméde.arancl — Os burros foram feitos para carregar ia. Nag te serei 2 A resposta de Catarina € A joind Stool, que néo s6 & um tamborete como, também, exprime pouco c2s0. desprezo, 409, Catarina — Sim, se o imbecil for capaz de saber onde est Petruchio — Quem nio sabe onde a vespa tem o fer- io? Na cauda. Catarina — Na sua lingua. Petruchio — Na lingua de quem? Catarina — Na vossa, se falais de caudas. E sabe o que mais? Adeus. Petruchio — Como! Com minha lingua na vossa cauda? ra, vinde aqui. Sou um cavalheiro, bondosa Catita Catarina — Vou entéo experimentar. (Dé-the wm tapa.) Retruchio — Juro que vos esmurrarci, se baterdes de ‘Catarina — E perderieis as armas de cavalheiro. Se ime baterdes, ndo sois cavalheiro, ¢ se no sois cavalheiro, ndo precisais de armas.2 Petruchio — Serieis um arauto, Catita? Oh! coloca-me em teu armorial! ‘Catarina — Qual & vosso timbre? Uma crista de galo?®! Petruchio — Um galo sem crista, contanto que Catita seja minha galinha. Catarina — Jamais sereis meu galo. Cantais como um capio. _ Petruchio — Vamos, Catita, vamos. Nio vos mostreis tio azeda, Catarina — B meu modo, quando vejo uma maga sil vvestre.2? Petruchio — Ora, aqui no hé nenhuma ma‘ tanto, no precisais ficar tao irritada. por: 2 Trocadtho entre tail (rabo) e tale (historia), 5 Trocadilho com arms que, em inglés, no 8 sBo 0s bragos co wey tncomb?, pergunta Catarina. A palavra no +6 significa a rita do gal, como 0 gorro Jo buffo'e, Togo, um ita SE Grabs en ingles earanguedo, somo, também, uma maga mui to aed 410 Catarina — Hé sim, hi. Petruchio — Entio, deixai que eu a veja. Catarina — Se tivesse um espelho, eu a mostraria etruchio — Como! Estais querendo dizer que mostra- rieis meu rosto? Catarina — Muito esperto apesar de tio mogo. Petruchio — Por Sio Jorge! Sou muito mais mogo do — Estais, entretanto, muito acabado. Petruchio — £ por causa das preocupagses. Catarina — Nao tenho preocupagées. Petruchio — Ouvi-me, Catita. Garanto-vos que nfo es: Catarina — Se ficar, vou irritar-vos. Preciso ir embora, Petruchio — Nao, de modo algum. Eu acho que sois extremamente gentil. Disseram-me que éreis brusca, ind6mi ta, desagradavel. E, agora, vejo que eram grandes mentiras. Acho-te deliciosa, jovial, extremamente cortés. $6 que tens 1 palavra lenta, mas doce como as flores na primavera. Néo sabes franzir o cenho, nem sabes olhar de soslaio, nem mor- der os labios, como as mogas geniosas. Enfim, a0 invés de sentires prazer em pronunciar palavras injuriosas, recebes teus adoradores com benevoléncia e afabilidade. Por que o mundo fala que Catita é coxa? © mundo caluniador! Catita é ereta esbelta como o talo da aveleira, morena como a noz mais doce que a améndoa. Oh! Deixa-me ver-te andando! Tu no. Catarina — Idiota, vai dar ordens a teus criados. Petruchio — Alguma ver, adornou Diana um bosque, como Catita enfeita esta sala com seu ar de princess? Oh! 'Sé Diana e que Diana se transforme em Catarina e, entéo, ‘que Catarina se torne casta e Diana, terna. Catarina — Onde estudastes todo este belo discurso? Petruchio — um improviso nascido de meu espfrito materno. ‘Catarina — Mie espirituosa com um filho estipido. aut Petruchio — Nio sou inteligente? Catarina — Sim, conservai-vos quente. Petruchio — Tai é minha intengio, doce Catarina, mas ‘em tua cama, Portanto, deixando de lado toda esta con- versa, expressar-me-ei em termos claros: vosso pai consente que sejais minha esposa. Vosso dote jé esté estipulado e, ueirais ou nio, casar-me-ei convosco. Agora, Catarina, sou 0 marido que vos convém. Logo, por esta luz que me faz ver tua beleza (beleza pela qual te adoro), tu s6 deves casar-te €o- migo, jd que nasci para dominar-te ¢ transformar uma Catari- nna selvagem em uma Catarina submissa como as outras gati- ‘nhas¥ caseiras. Esté chegando vosso pai. Nada de negativas! Devo ¢ quero casar-me com Catarina. (Voltam Batista, Gré- ‘mio ¢ Tranio.) Batista — Entio, Signior Petruchio, como vai indo com ‘minha filha? Petruchio — Perfeitamente, perfeitamente, senhor! De ‘outra maneira, no poderia acontecer. Batista — Entio, minha filha Catarina? Sempre de mau humor? Catarina — Estais me chamando de filha? Sem davida, estais me dando uma boa prova de ternura paternal querendo ceasar-me com um semilouco, um rufido furioso, um Jack blasfemador, que acredita poder impor-se com juramentos. Petruchio — Meu sogro, tanto vs quanto todos aque: les que me falaram dela fostes injustos. Se ela € maldizente, por politica, pois que nio é insolente, mas modesta como uma pomba. Néo é violenta, mas pacifica como a manhé. ‘Quanto & paciéncia, uma segunda Griselda e uma Lucré- © Referéncia a0 provérbio: “Tem bastante ineligéncia para fiear quent SOSia um trocaditho entre 0 diminutive de 3 Griselda era personagem dos antigos trovadores, eBlebre pela pacicncia, Muitos autores dela se-ocuparam, mas, no caso, rele- Fese i Griselda de um conto de Chaucer, tirade Jo Decameron, {be Boceaccio 412 cia romana pela eastidade. E para concluir, chegamos a tio) bom acordo que marcamos 0 domingo préximo para dia de Catarina — Antes te verei enforcado no domingo! Grémio — Estis ouvindo, Petruchio? Diz que antes te vera enforcado. ‘Trimio — © assim que tudo esta perfeito? Pois entio, ara nossa combinacio! fhio — Tende paciéncia, senhores! Eu a escalhi para mim, Se ela e eu estamos contentes, que importa a todos 6s? Quando estavamos sés, combinamos que ela continuasse a mostrar-se Aspera no meio dos outros. Posso garantir-vos que € incrivel como ela me ama. © adorada Catarinal Ela se pendurava em meu pescogo e, de beijo em bei, dados to depressa, fazendo juramentos sobre juramentos, que, num abrir e fechar de olhos, ela me conquistara. Oh! Sois ainda novicos! E um mundo a contemplar, quando homens ¢ mu- Iheres estéo sés, como um pobre diabo consegue dominar a ‘mais bravia megera. Dé-me tua mio, Catarina! Vou a Veneza comprar o enxoval necessério para o casamento, Preparai a festa, meu sogro, e fazei os convites, Estou certo de que minha Catarina ficaré encantadora. Batista — Nio sei o que dizer, mas dai-me vossas mos. Que Deus vos envie alegria, Petruchio! Estamos combinados. Grémio e Trinio — Amém, dizemos n6s. Serviremos ‘de testemunhas. Petruchio — Adeus, meu sogro, minha esposa © meus senhores. Parto para Veneza. © domingo esté préximo. Te- rremos anéis, todas as espécies de coisas, um brilhante cortejo. E, beija-me, Catita. Domingo, estaremos casados. (Saem Petruchio ¢ Catarina para lados diferentes.) Grémio — Sera que jé houve um casamento arranjado {io depressa? Batista — Por minha £6, cavalheiros, estou fazendo ago- ra 0 papel de um comediante que se arrisca loucamente num negécio desesperado. 13 =———e_—_—_——_— ‘Trinio — Era uma mercadoria abandonada que se de- teriorava a vosso lado. Ou ela vos trari, agora, lucro ou perecerd no mar. Batista — © lucro que procuro € a trangiilidade no ccasamento. Grémio — Nao tenhais divida de que cla fez uma boa saquisig&o. E agora, Batista, falemos de vossa filha mais moga Chegou © dia pelo qual ansiévamos ha tanto tempo. Sou vvosso vizinho e o primeiro dos candidatos. Trinio — E eu, alguém que ama Bianca muito mais do que possam expressar as palavras ou adivinhar vossos pen- samentos. ‘Grémio — Rapazelho, nio podes amar tanto quanto eu, Trinio — Barba grisalha, teu amor gelado! Grémio — Mas, o teu se derrete. Fora, tonto. Esta é 1 idade que fecunda. ‘Trinio — Mas a juventude, nos olhos das mulheres, € que floresce, Batista — Acalmai-vos, cavalheiros. Vou arranjar esta questéo. Com atos & como se deve ganhar o prémio. Aquele que puder assegurar 4 minha filha o melhor dote, esse tera © amor de Bianca. Dizei, Signior Grémio, que podeis asse- sgurar-the? Grémio — Em primeiro lugar, como sabeis, minha casa da cidade se encontra ricamente servida por baixclas de ouro, de prata, bacias e jarros para lavar-Ihe as delicadas mios. Minhas cortinas so todas de tapecaria de Tiro.% Enchi co- fres de marfim com minhas coroas; em arcas de cipreste, colchas de tapegaria, custosos trajes, cortinas ¢ dosstis, fino linho, almofadas turcas enfeitadas de pérolas, estofos de ouro dde Veneza bordados a agulha, vasilhas de estanho e cobre, ¢ todas aquelas coisas necessdrias para uma casa ou uso domés- tico, Além disto, em minha fazenda, tenho cem vacas leiteiras, % Tito, cidade da Fenicia, hoje Libano, célebre pela pdrpura 414 O_O Cento e vinte bois cevados no estébulo, ¢ todo 0 resto na mes- ma proporgio. Jé estou entrado em’ anos, devo confessat, mas, se amanha morrer, tudo isso seré dela, se consentir em ser somente minha enquanto eu viver. Trimio — Este "somente” € a melhor perspectiva. Pres- taisme atengio, senhor. Sou 0 herdeiro de met pai e filho ‘inico. Se puder conseguir vossa filha como esposa, deixar-ihe- ei trs ou quatro casas dentro da opulenta Pisa, tio boas quanto as que possui em Pédua o velho Signior Grémio, ‘Além disto, dois mil ducados por ano provenientes de terras {érteis, que constituirdo sua pensio quando eu tiver falecido. Entdo, Signior Grémio, no estais em apuros? Grémio — Dois mil ducados por ano em terras! Todas as minhas terras reunidas no chegam a essa soma. Mas, no importa. Ela terd, além de mais, um galedo que esta agora 4 caminho de Marsetha. Entlo, 'nio ficastes sem ar com 0 galeio? Trinio — Grémio, € sabido que meu pai nko possui ‘menos que trés galedes, além de duas galeacas e doze sélidas Baleras, Eu the asseguro tudo isto © duas vezes mais ainda, sobre tudo que oferecerdes. Grémio — Ofereci tudo © que possuia, nao tenho mais nada, ¢ 86 Ihe posso oferecer 0 que tenho. Se me aceitardes, cela me teré com todos os meus bens. Trinio — Pois, entio, a jovem me pertence, por ex: clusio de todos os outros, segundo vossa promessa solene. Grémio esta fora de luta, Batista — Devo confessar que vossa oferta € a melhor. Se vosso pai a confirmar, minha filha seré vossa. Entretanto, eveis perdoar-me; se morrerdes antes dele, qual sera a he. ranga de minha filha? Trinio — Isto nio passa de um sofisma. Ele € velho, eu sou jovem. Grémio — E os jovens no podem morrer tio bem quanto 0s velhos? Batista — Bem, cavalheiros; eis 0 que resolvi. Como ais sabeis, domingo préximo, casa-se minha filha Catarina. Pois bem, no domingo seguinte Bianca se casara convosco, se obti- verdes a garantia de vosso pai. Caso contrario, cla pertenceré 20 Signior Grémio, E, sendo assim, despego-me de vs € ‘agradego a ambos. Gremio — Adeus, bom vizinho. (Sai Batista.) Agora, rio te tenho medo. Vosso pai, jovem farsante, seria bem ingé- tuo de vos entregar tudo o que possui, para que, no declinar da idade, colocasse os pés debaixo de vossa mesa. Que inge- nuidade! Uma velha raposa italiana nio é to benfazeja, meu rapaz. (Sai) ‘Tranio — Maldita seja vossa pele enrugada! Entretan- to, fiz frente com uma carta de dez.3” Meti em minha cabeca fazer a felicidade de meu amo. Nao hi razio para que 0 falso Lucéncio néo possua um falso pai, chamado Vicéneio, Coisa imaravilhosa! Geralmente sio os pais que fazem os filhos, ‘mas, neste caso amoroso, gragas a minha habilidade, € 0 filho aque faz 0 pai. (Sai.) ATO TERCEIRO CENA I; Casa de Batista em Padua, Entram Lucénclo, Horténsio e Blanca. Lucéneio — Parai, alaudista. Estai-vos revelando muito confiado, senhor, Esquecestes tio depressa a recepcio que vos fez sua irma Catarina? Horténsio — Mas, pedante rixento, esta jovem € a pa- rocira da harmonia celestial, Respeitai, portanto, minha prerrogativa; e quando tivermos dado uma hora de misica, podeis consagrar outro tanto & vossa liga, Lueéneio — Asno absurdo, que nem mesmo leu ¢ bas- A card of ten era.0 ponto mais alto que se podia obter naqueles tempos em muitos jogos de carta 416 tante para saber por que a misica foi inventada! Nao foi para recrear a alma do homem depois dos estudos ou dos trabalhos habituais? Deixai-me, entéo, dar minha ligio de filosofia e, quando fizer uma pausa, entrai com vossa har- Horténsio — Biltre, no suportarei tuas bravatas! wea — Vamos, cavalheiros, vés me fazeis uma du- pla ofensa brigando por uma coisa que depende de minha escolha, Nao sou uma aluna para ser corrigida na escola. Nao posso estar sujeita as horas, nem ser escrava do tempo, mas ‘aprendo minhas ligBes como me agradar. E para cortar toda discussio, sentemo-nos aqui. Pegai em vosso instrumento tocai-o. Antes que 0 afineis, a ligdo dele teré acabado. Horténsio — Deixareis a ligho dele quando tiver afinado? Lucéneio — © que nunca acontecerd! Afinai vosso instrumento. Bianea — Onde haviamos parado? Lueéncio — Aqui, senhora Hic ibat Simois; hic est Sigeia tellus; Hie steterat Priami regia celsa senis Bianea — Traduzi. Lucéncio — Hic ibat, como ja vos disse antes... Si ‘mois, sou Lucéncio.... hic est, filho de Vicéncio de Pisa. Sigeia relus, assim disfarcado para conseguir vosso amor. . Hic steterat, © 0 Lucéncio que veio fazer-vos a corte. Priami & meu crido Trinio... regia, que tomou meu lugar... celsa senis, a fim de que possamos enganar 0 velho Pantaleio2” % Fala de Penélope em As Herdides (1, 33), de Ovidio, na. qual cla diz: “Por ali, corvia 0 Rio Simois; aqui fica a terra de Si Aqui se levanta 0 vasto palicio do veiho Priamo”. 3Pantaledo era g personagem tipico do velho cacete € falador da Commedia dell Arte 47 OO Horténsio — Senhora, meu instrumento jé esté afinado. Bianca — Vamos ouvir. Oh! Fora! A corda aguda esti desafinada, Lucéncio — Cuspi na abertura do instrumento, ho- mem, ¢ afinai novamente. Bianea — Deixai-me ver agora se posso fazer a tradu: 40. Hic ibat Simois, nfo vos conhego. .. hic est Sigeia tellus, ‘do tenho confianga em vés... Hic steterat Priami, tende cuidado para que ele nfo nos ouga. .. regia, nfo sejais pre- ssungoso.... celsa senis, mas nfo desespereis. Horténsio — Senhora, agora ja esté afinado. Lucéneio — Sim, menos 0 baixo. Horténsio — 0 baixo esta justo. E o baixo patife que desentoa. (4 parte.) Como nosso pedante & orgulhoso e cheio de audacia! Por minha vida, o patife faz a corte a mew amor! Pedantezinho, © vou vigiar-vos com mais cuidado ainda, Bianca — Talvez ainda possa crer em v6s, entretanto continuo desconfiada Lucéneio — No fiqueis desconfiada; porque, certa- mente, Ajax era Eécida, assim chamado por causa do nome do ava, Bianca — Devo acteditar em meu mestre; do contr rio, eu vos garanto que discutiria ainda sobre este pon- to. Mas, fiquemos por aqui. Agora, Licio, para vés. Bon. ddosos mestres, niio levels a mal, pego-vos, que haja bbrincada assim convosco. Horténsiv — Podeis ir dar uma volta e deixar-me 6 or um momento. Minhas ligées no tm misica a trés partes Lucéncio — Sois tio formal assim, senhor? Bem, devo esperar (@ parte), © vigiais, enquanto isso; porque, ou estou muito enganado, ou nosso bom misico esté © Diminutive depreciativo de pedante. 418 Horténsio — Senhora, antes que toqueis © instrumento para aprender comigo o dedilhado, devo comegar com 0s ru- ddimentos da arte. Vou ensinar-vos a escala de uma maneira mais curta, mais agradavel, melhor, mais eficaz do que meus ccolegas ensinaram até agora. Ei-la aqui neste papel, escrita ccom belos sinais. Bianca — Mas, hi muito tempo que jé aprendi a escal Horténsio — Lede, contudo, a escala de Horténsio. Bianca — (Lé,) Escala de d6. Sou 0 conjunto de todos os acordes ré. para defender a paixio de Horténsio. mi. Bianca, aceitai-o como esposo, 4,3. que vos ama com toda afeigio. sol,ré. Uma clave, duas nota tenho et, 1, mi, Tende piedade, ou eu morro, myom> Chamais isto de uma escala? No gosto dela. Prefiro os métodos antigos. Nio sou tio caprichosa para mudar a re- ras verdadeiras por estranhas invengGes. (Entra um Criado,) Criado — Senhora, vosso pai pede que deixcis vossos livros e ajudeis a preparar 0 quarto de vossa irmé, Sabeis que amanhi 6 0 dia do casamento, Bianca — Adeus, prezados mestres, tenho necessidade de sair. (Saem Bianca e 0 Criado.) Lucéneio — Entio, senhora, nfo tenho nenhum motivo para permanecer. (Sai.) Horténsio — Mas eu tenho motivo para espionar este pedante, Parece-me que ele tem o ar de quem esté apaixo- nado. Entretanto, Bianca, se teus pensamentos se rebaixam até o extremo de pousar teus olhos etrantes em qualquer um, apodere-se de ti quem quiser. Se alguma vez te encontrar diferente, Horténsio te abandonaré por sentir-te mudada, (Sai.) 419 CENA Ti: Diante da casa de Batista em Pédus Entrar: Batista, Grémio, Trénio, Catarina, Bianca Lucéncio ¢ convidados para 0 casamento. Batista — Signior Lue8ncio (a Trinio), este 6 0 dia marcado para o casamento de Catarina e Petruchio; entretan- to, nfo sabemos ainda onde esté nosso genro. Que vlo dizer? Que escindalo, quando © padre, para cumprir 0 rito cerimo- nial do enlace, esperar em vio a chegada do noivo! Que pensa Lucéncio desta afronta para todos nés? Catarina — Sou eu a afrontada. Coagida a conceder ‘minha mio, apesar de meu coracio, a um louco grosseiro, ‘mal-humorado que, depois de haver-me feito corte a toda pressa, pretende casar-se quando Ihe convier. Ja vos dissera que era um louco, dissimulando criticas amargas sob uma aparéncia de rude fraqueza. A fim de passar por um homem simpético, faria corte a mil mulheres, fixaria a data do casa- ‘mento, reuniria os amigos ¢ proclamaria os banhos sem jamais haver tido a intengao de cumprir a promessa. Agora, 0 ‘mundo apontara a pobre Catarina com o dedo e diré: “Othai! Ali vai a mulher do louco Petruchio; se Ike convier, voltaré ppara casar-se com cla” ‘Trinio — Pacifneia, boa Catarina, pacincia, Batista, Por minha vida, as intengOes de Petruchio sio boas, seja qual seja 0 azar que © impeca de cumprir a palavra. Embora seja brusco, tenho-o em conta de homem razodvel; e apesar de parecer brincalhio, é, no entanto, um homem sério. Catarina — Quem dera que Catarina nunca 0 tivesse visto! (Sai chorando, seguida por Bianca e outros.) Batista — Vai, minha filha; no posso agora reprovar teu pranto. Uma santa no permaneceria insensivel perante tal afronta, com muito mais razio, uma geniosa de humor tio impaciente. (Enira Biondello.) Biondello — Senhor, senhor! Velhas novas e tais novas ‘como nunca as ouvistes! Batista — E uma velha nova? Como pode ser isto? 420 Biondello — Como! Nao é uma nova saber a chegada de Petruchio? Batista — J4 chegou? Biondello — Ors, no, senhor! Batista — Que queres entio contar? Biondello — Ele esta chegando. Batista — Quando chegaré aq Biondello — Quando estiver onde estou e que possa ‘Trinio — Mas, conta-nos: quais sio as velhas novas? Biondello — Ei-las aqui. Petruchio vem com um cha- péu novo ¢ um gibao velho, um par de calgas velhas, viradas {rés vezes; um par de botas que foram caixas de vela, uma com fivela, 2 outra com cordées; uma velha espada enferru- jada, tirada do arsenal da cidade, com 0 punho quebrado e sem bainha; quebrados os metais dos dois talins; 0 cavalo derreado, com uma velha sela carcomida e estribos dife- rentes; além disto, atacado de mormo, pelado como um rato; padece de fava, infetado de sarna, cheio de tumores, cober- to de esparavées, marcado de ictericia, com as glindulas da garganta incuréveis, completamente initil por causa das ver- tigens, roido pelos vermes, a espinha quebrada e espiduas destocadas, completamente moido e munido de um freio com uma s6 guia e de uma testeira de pele de carneito que, fora de haver sido puxada para impedir que o animal trope- ‘gasse, arrebentou em muitos lugares e foi consertada com nés; uma ‘barrigueira remendada seis vezes ¢ uma retranca de veludo para mulher, tendo duas iniciais com 0 nome dela pri ‘morosamente marcadas com cravos e remendada, aqui e ali, com barbante. Batista — Quem vem com ele? Biondello — 0 senhor! lacaio dele, caparagonado co- ‘mo © cavalo, com uma meia de linho numa perna e pernei ras de sarja na outra, presas por um cordio vermelho azul; tum chapéu velho, e 0 “Humor das quarenta fantasias” colo- cado em cima a0 invés de pena. Um monstro, um verda- 421 deiro monstro no vestir, no tendo qualquer semelhanca com lum pajem cristo ou com o lacaio de um cavalheiro! "Tranio — Um capricho estranho 0 tera Ievado a ves- tirse desse modo, bem que, comumente, ande mal vestido. Batista — Fico contente que ele venha, no impor- ta como. Biondello — Mas, ele nfo vem, senhor. Batista — Nio disseste que ele vinha? Biondello — Quem? Que Petruchio vinha? Batista — Sim, que Petruchio vinha. Biondello — Nao, senhor, eu disse que o cavalo dele cstava chegando carregando-o no lombo, Batista — Bem, da tudo no mesmo. Biondello — Nio, por Sdo Jaime! Aposto um penny, ‘como um cavalo e um homem séo mais do que um e, con- tudo, nfo so muitos. (Eniram Petruchio e Gritmio.) Petruchio — Vamos, onde esto esses galantes? Quem est em casa? Batista — Sede bem-vindo, senhor. Petruchio — E, no obstante, no venho me sentin- do bem. Batista — Entretanto, no estais mancando. Trinio — Nio tio bem vestido como teria Aesejado. Petruchio — Tinha necessidade de apressar-me para hogar... Mas, onde esti Catarina? Onde esti minha en- ccantadora noiva? Como esti passando meu sogro? Senhores, dirse-ia que estais de mau humor. Por que toda esta com- panhia me olha como se visse algum monumento maravi- Thoso, um cometa ou um estranho prodigio? Batista — Sabeis, senhor, que hoje é 0 dia de vosso ceasamento. Primeiramente, estivamos tristes temendo vossa ‘auséncia, Agora, estamos mais trstes ainda, vendo-vos chegar ‘em tio triste estado, Vamos, trai essa roupa, indigna de vossa posigdo e desagradével & vista para nossa festa tio solene! a2 Trinio — E contai-nos que motives sérios vos prende- ram tanto tempo longe de vossa esposa e que vos fizeram aqui chegar tio diferente de vés mesmo? Petruchio — Seria tedioso de contar ¢ desagradivel de ouvir. Basta que saibais que vim cumprir minha palavra, apesar de haver sido obrigado a faltar em alguns pontos. A este respeito, em momento oportuno, eu vos darei minhas des- culpas e minhas explicagdes serio perfetamente saisatérias Mas, onde esté Catarina? Hé muito tempo que estou longe dela. A manha esté passando. J4 deviamos estar na igteja fa eslas horas, ‘Trinio — Nio vos apresenteis 3 vossa_noiva neste traje to impréprio. Ide a meu quarto e vesti minhas roupas. Petruchio — Estejais certo de que no farei isso; de- sejo véa assim mesmo. Batista — Mas suponho que nio sera assim que quel rais easar com ela. Petruchio — Na verdade, exatamente como estou. Por conseguinte, nio falemos mais no assunto. Ela deseja casar- se comigo ¢ nfo com minhas roupas. Se pudesse reparar 0 que ela em mim gastaré, como posso mudar estes pobrestra- jes, seria melhor para Catarina e melhor ainda para mim. Mas, que insensato sou, por estar conversando. convosco, quando deveria ir dar bom dia a minha noiva e sear 0 titulo com um beijo amoroso! (Saem Petruchio e Grimio.) ‘Trinio — Teri suas razies para vesti-se daquele mo- do. Tratemos de convencé-l, se for possvel, de que deve ves- tirse melhor antes de ir para a igreja. Batista — Vou atris dele para ver em que vai dar tudo isso, (Saem Batista, Grémio e convidados.) ‘Trinio — Mas, senhor, ao amor de Bianca, importa- nos acrescentar 0 consentimento do pai dela. A fim de obté- lo, nas condigdes que jé anunciei a Vossa Senhora, vou pro- ccurar um homem (Seja ele qual for, pouco importa, nés 0 Poremos a0 corrente do assunto), que sera Vic8ncio de Pisa 423 © que, aqui em Padua, dard garantia a uma soma muito ‘maior que a prometida por mim. Assim, vs aproveitarcis ‘rangiiilamente o objeto de vossas esperangas ¢ casarcis com 1 doce Bianca com consentimento do pai dela. Lueéncio — Se meu colega, 0 professor, no vigiasse tanto os passos de Bianca, poderiamos, quem sabe, casar-nos clandestinamente. Uma vez realizado 0 casamento, que 0 ‘mundo dissesse 0 que quisesse, porque ela seria s6 minha, a despeito de todo 0 mundo. ‘Trinio — Trataremos de lé chegar pouco a pouco, « esperaremos a ocasitio mais favordvel. Vai ser preciso enga- nar 0 barba grisalha, Grémio, o pai desconfiado, Minola, e 0 :misico exeéntrico, 0 apaixonado Licio, Tudo em consideragao ‘a meu amo Lucéncio! (Volta Grémio,) Signor Grémio, vindes da igreja? Grémio — Tio prazenteiramente como nunca vim da excolal Trinio — E a noiva e o noivo jf estio de volta? Grémio — O noivo, estais dizendo? Na verdade, 6 um palafreneiro, um brutal palafreneiro. A pobre coitada vera de sobra o que ganhou! Trinio — Pior do que ela? Como! E impossivel! Gremio — Ele! E um diabo, um diabo, um perfeito danado. ‘Trinio — Entio, ela € uma diaba, uma diaba, a mu- Iher do diabo. Gremio — Chega! Ela é um cordeiro, uma pomba, uma tola 20 lado dele. Vou contar-vos o que aconteceu, Se- hor Lucéncio. Quando 0 padre perguntou se consentia em receber Catarina como esposa, ele exclamou: “Sim, por Deus!” © comecou a praguejar em vor tao alta que 0 sacer- ote, completamente estupefato, deixou cair 0 livro no chlo; € como se curvasse para apanhé-lo, © noivo, Iouco furioso, deu-the tal palmada que padre ¢ livro, livro e padre rolaram pelo chao. “Agora”, acrescentou cle, “que os apa- snhem quem quiser! 424 Trinio — E que disse a jovem quando 0 padre se levantou? Grémio — Ela tremia e tiritava, enquanto ele batia ‘com 0 pé e praguejava, como se o vigério tivesse intengio de ridicularizé-lo. Depois de muitas ceriménias, pediu vino, “A. satide de todos!” exclamou, como se estivera a bordo, beben- do com os marinheiros depois de uma tempestade, Servido (© moseatel de um trago, atirou o resto na cara do sacristio, tendo como tinica razio que a barba dele, grisalha, rala ¢ esfaimada, parccia-lhe pedir as sobras do que bebia. Feito ito, peg espn elo pescogo ¢ dein um be nt boca ‘com um estalo tio clamoroso que fez eco em toda a ‘aro lo, cott pare el celo de vergouha, Caleta parece que vém os convidados. Nunca se viu um casamento tio louco quanto este. Ouvi, ouvi! Estou escutando os menes- tréis tocarem. (Misica. Voltam Petruchio, Catarina, Bianca, Batista, Horténsio, Grimio e 0 Cortejo.) Petruchio — Cavalheiros € amigos, agradego-vos por vosso trabalho. Sei que tinheis a certeza de jantar hoje comi- 80, pois havia preparado um soberbo banquete de bodas. Mas, infelizmente, meus negécios me reclamam longe daqui ©, Por isto, aqui mesmo me despeco de vés. Batista — f possfvel que queirais partir esta noite? Petruchio — Devo partir hoje, antes que chegue a roite. Nao fiqueis espantados. Se conhectsseis 0 motivo, vos ‘me animarfeis a partir, ao invés de ficar. Assim, agradego toda a honesta companhia que assistiu minha unio com a mais paciente, a mais doce e a mais virtuosa das esposas. Jantai com meu sogro, bebei a minha satide, porque preciso partir. Adeus a todos vés. ‘Trinio — Deixai-nos pedir-vos que a0 menos fiqueis até depois do jantar. Petruchio — Nio é possivel Grémio — Deixai-nos suplicar-vos. Petruchio — Nio pode ser. Catarina — Suplico-vos, também. 425 Petruchio — Estou contente, Catarina — Estais contente de ficar? Petruchio — Estou contente que me pegais que per- ‘manega; mas, no ficaria, mesmo que me pedisseis muito ‘mais ainda. Catarina — Vamos, se me amais, ficai. Petruchio — Griimio, meus cavalos! Grimio — Sim, senhor, j estio prontos! A aveia co- meu os cavalos! Catarina — Pois, entio faze o que quiseres. Hoje, nio tirei, no; nem amanhi, até que tenha vontade. A Parla et bert sehr. Alles yosso caminho. Podeis ir ‘a trote, enquanto vossas botas estiverem novas. Quanto a ‘mim, s6 sairet daqui quando me convier. Parece que sercis tum marido bem grosseiro, j& que assim comecais téo fran- ccamente. Petruchio — © Catita! Acalma-te, por favor, no fiques iertada, Catarina — Quero irritar-me!... Que fizeste? Ficai tranguilo, meu pai! Ficaré ele aqui até quando cu quiser. Grémio — Sim, palavra; vai comegar a partida. Catarina — Senhores, vamos a0 banquete nupcial! Vejo que uma mulher se arrisca a ficar louea, se nio tiver génio para resistr. Petruchio — Irfo para o banquete, se tu o exigires, Catarina, Obedecei A noiva, todos vés que fostes por ela convidados. Festejai, diverti-vos, e fartai-vos opiparamente! Bebei, em orgia sem limites, pela virgindade dela! Mostrai- vos loucos ¢ alegres, ou ide enforcar-vos! Quanto a minha ‘boa Catarina, deve seguir-me. Nao, néo é preciso abrir tanto os olhos, nem bater com os pés no chio, nem admirar-se, nem irritarse, Serei o dono daquilo que me pertence. Ela faz parte de meus bens, meus bens méveis; ela € minha casa, meu mobilirio, me campo, meu celeiro, meu cavalo. meu boi, meu burro, meu tudo, Aqui esté ela, cuidado quem ouse 426 tocar-the! Mostrarei quem sou a quem, atrevidamente, me detenha em meu caminho de Padua. Grimio, desembainha tua espadal Estamos cercados de ladrées! Salva tua patroa, se é homem! Nao tenhas medo, doce jovem; ninguém te to- card, Catita, Serei teu escudo contra um milhio de inimigos. (Saem Petruchio, Catarina e Grimio.) Batista — Vamos, deixai partir este casal pacifico! Grémio — Se nio tivessem partido depressa, teria mor- rido de tanto rir. Trinio — Entre todas as unides malucas, esta no tem par. Lucéncio — Senhora, qual é vossa opiniio sobre vos- Bianea — £ uma louca unida a um louco. Grémio — Garanto-vos que Petruchio esti encata- rinado. Batista — Vizinhos © amigos, se @ noiva © 0 noivo se fencontram ausentes, nio faltardo, para preenché-los, gulodi- ees na mesa. Lucéncio, vés ocupateis 0 lugar do marido © Bianca, 0 da irma. Trinio — A bela Bianca vai fazer 0 ens de noi Batista — Sim, Lucéncio. Vamos, senhores, parta- ‘mos! (Saem.) do papel ATO QUARTO CENA I: Casa de campo de Petruchio. Entra Grimio. Grimio — Fora, fora com todos os rocins fatigados, ‘com todos 0s patrées loucos e com todos os maus caminhos! 14 se viu homem to batido? J4 se viu homem to enlameado? 14 se viu homem tio cansado? Fui enviado na frente para ‘acender o fogo ¢ eles virio depois para se esquentarem. Ago- a1 ra, se no fosse um pequeno pote, que fica logo quente,*! ‘meus proprios labios poderiam gelar-se em meus dentes, mi- nha Iingua contra o céu da boea, meu coragéo contra meu tstémago, antes que pudesse sentar-me na lareira para des- ongelar-me. Mas, soprando no fogo, esquentar-me-ei; por- Que, considerando o tempo que esti fazendo, um homem mais alto do que et apanharia um resfriado. Olé! Ora viva, Curtis! (Entra Curtis.) Curtis — Quen: esta chamando com essa vor tiritante? Griimio — Um pedaco de gelo! Se duvidas, podes es- corregar de meu ombro ao meu caleanhar, bastando que tomes impulso de minha cabega ao meu pescogo. Fogo, bon- ddos0 Curtis! Curtis — Seri que virio meu patrio © a esposa, Grimio? Gramio — Ob! Sim, Curtis, sim! E, portanto, fogo, fogo; no atires 4gua em cima. ‘Curtis — Ela é uma megera tio esquentada como dizem? Grimio — Era, bom Curtis, antes desta geada, Mas, ‘como sabes, 0 inverno doma o homem, a mulher e o animal Por isto, domou meu antigo patrio e minha nova patroa ¢ ‘eu mesmo, camarada Curtis. Cartis — Para trés, buffio de trés polegadas'*? Eu no sou animal! Griimio — $6 tenho trés polegadas? Ora, teus comos devem medir bem um pé e eu tenho © mesmo comprimento, Mas, vais acender o fogo? Ou ento vou queixar-me a nossa patroa que jé esté perto. Sua mao se fard sentir friamente, se fores to demorado em esquentar-nes. ‘Curtis — Por favor, bondoso Grimio, dize-me, como ‘anda o mundo? 4 lite pot is soon hot, provérbio a que faz referencia Grimio. ‘© Referéncia ao’ pequeno tamanho de Gramio. 428 Grimio — © mundo anda frio, Curtis; tudo esta frio, exceto no teu trabalho; portanto, acende 0 fogo. Cumpre 0 teu dever, para teres 0 que & devido, porque minha patroa e ‘meu patrio esto quase mortos de fro. Curtis — 14 esté pronto © fogo; e, portanto, bondoso Grimio, conta-me as novidades. Grimio — Ora, “old Jodozinho, olé” dades quantas queiras! Curtis — Vamos! Estés pregando tantos logros!## Griimio — Foi por causa do fogo, porque o que me pregou foi um terrivel resfriado. Onde esti 0 cozinheiro? A cceia jf esté pronta, a casa arrumada, as esteiras estendidas,‘S tiradas as teias de aranha? Os criados esto usando 0 novo fustao, as meias brancas ¢ cada empregado os trajes de casa- ‘mento? Esto bem lavados 0s cAntaros por dentro ¢ as tige- las estio belas por fora%™ Os tapetes jd foram colocados ¢ tudo esté em ordem? Curtis — Tudo esté pronto e, portanto, faze-me o fa- vor, 3s noticias. Griimio — Primeiro, fica sabendo que meu cavalo esté exausto, e que meu patrio e minha patroa cairam, Curtis — Como? Griimio — Das selas na lama, B uma longa histéris Curtis — Vamos, conta-me essa histéria, bondoso aa Grimio — Aproxima tua oretha. Curtis — Esté aqui! Grimio — Toma la! (Dé-the wm sapa.) Tantas novi- © Antiga canso inglesa. ‘44 Em inglés cony-catching (pregar pegas)fazendo trocaditho com catch (estribilho). ‘© Naquele tempo, cobria-se o chio com esteiras, pois ainda nfo comegara o Us0 dos tapetes no cho. ‘@"Trocaditho em que aparecem as palavras Jack and Jil, rapaz rapariga, ¢, também, cantaros para beber cerveja 29 — E © que se chama sentir uma histéria ¢ Grimio — £ a maneira de tornar uma histéria sen- sivel. Este murro foi s6 uma chamada a teu ouvido, para que me eseutasse. Agora, vou comegar: Imprimis, descemos. ‘uma horrivel colina, meu patréo cavalgando na garupa de ‘minha. patroa Curtis — Ambos no mesmo cavalo? Grimio — Que te importa isso? Curtis — Importa ao cavalo, ora, Griimio — Conta tu a histérial Se nfio me tivesses inter- rompid, terias sabido como caiu o cavalo ¢ ela debaixo do cavalo; saberias em que lamagal ¢ como ficou toda enlamea- da; como a deixou com o cavalo em cima dela; como me bateu porque 0 cavalo dela escorregara; como ela patinhou pela lama para arrancé-lo de cima de mim; como ele pra- {guejava; como ela suplicava, apesar de nunca haver suplicado; como gritei; como os cavalos fugiram; como arrebentou 2 cabegeda do cavalo dela; como perdi minha retranca; com utras muitas coisas memoriveis que desde agora cairio no esquecimento, e das quais néo guardarés a lembranga até 0 tamu. Curtis — Por essa histéria, ele € mais terrivel do que ela, Griimio — Sim, e € 0 que tu € © mais valente entre todos ¥és reconhecereis quando ele aqui chegar. Mas para ue falar sobre isto? Chama Nataniel, José, Nicolau, Filipe, Valter, Biseoitinho e os outros. Faze com que as cabegas deles estejam cuidadosamente penteadas, as librés azuis bem esco- vvadas ¢ as jarreteiras bem uniformes. Dizei-Ihes que fagam reveréncia com a perna esquerda e que no ousem tocar num fio da cauda do cavalo de meu patrio, antes de beijarem as mfos dos dois. Todos ja estio prontos? Curtis — Estio. Grimio — Chama-os. 430 Curtis — Olé! Estio ouvindo? Deveis ir a0 encontro de meu patrio para saudar minha patroa. Grimio — Saudar! $6 ela pode dar satide a si mesma Curtis — Quem nio sabe isto? Griimio — Parece que nio sabes. Chamas teus cama- radas para que Ihe fagam a sade. Curtis — Eu 0s estou chamando para que the prestem a homenagem devida, Grimio — Ela nio esté precisando dos favores deles. (Enoram vérios Criados.) Nataniel — Bem-vindo, Grimio! Filipe — Que hd, Grimio? José — Entfo, Griimio? Nicolau — Camarada Grimio! Nataniel — Que hé, meu velho? Grimio — Bem-vindo?... Que ha?... Entio?... Ca- ‘marada?.... Isto é maneira de receber? Agora, meus guapos companheiros, tudo esté pronto e todas as coisas estio limpas? ‘Nataniel — Tudo est pronto. A que distincia se en- contra nosso patrio? Griimio — Muito perto! J4 esté quase se apeando. De modo que nao estejais... Pelo galo da paixio! Siléncio! Bs- tou ouvindo meu patrio! (Entram Petruchio e Catarina.) Petruchio — Onde estio esses criados? Que & isso? ‘Ninguém na porta para segurar meu estribo © pegar meu cavalo! Onde estio Nataniel, Gregério Filipe? Todos 0s Criados — Aqui, aqui, senhor! Aqui, senhor! Petruchio — Aqui, senhor! Aqui, senhor! Aqui, senhor! ‘Aqui, senhor! Imbecis e insolentes! Como! Ninguém aparece? Nenhuma atengio? Nenhum respeito? Onde est imbecil que mandei na frente? Grimio — Estou aqui, senhor. Tio imbecil quanto era antes Petruchio — Ristico, atrasadio! Filho da putal Escra- 431 vo ignorante! Néo te havia dado ordem para que me viesses ‘esperar no parque e trouxesses contigo todos estes miseraveis? Grimio — Senhor, a roupa de Nataniel no estava ainda terminada, ¢ os escarpins de Daniel estavam descosidos, ‘no caleanhar, Nao havia tocha acesa para escurecer 0 chapéu de Pedro e a adaga de Valter estava ainda sem bainha. S6 ‘Adio, Ralph e Gregério estavam prontos. Os outros estavam maltrapithos, velhos e parecendo mendigos, mas tal como tstdo, eos que vieram a0 vosso encontro, Petruchio — Saiam, tratantes, ¢ tragam minha ceia! (Saem os Criados. Cantando.) Onde esté a vida que antes levava,..7 Onde esto estes... Assentai-vos, Catarina, © sede bem-vinda... Ufa, ufa, ufa, ufa! (Voltam os Criados ‘com a ceia.) Entio, depressa!,.. Que é isto? Minha boa ¢ doce Catita, mostrai-vos alegre... Tirai-me as botas, imbecis! Depressal (Canta) Era um frade da ordem cinza, Que ia andando pela estrada. Fora, canalha! Estés me arrancando o pé! Toma isto e apren- dea tirar 0 outro. (Bate.) Ficai alegre, Catital Agua aqui! Como!... Olé!... Onde esté meu lulu Tréilo? Anda e vai buscar meu primo Fernando! Um primo, Catita, a quem eveis beijar para fazerdes amizade com ele... Onde estio ‘meus chinelos?... Essa gua ndo vem? (Entra um Criado trazendo égua.) Vamos, Catita, lavai as mios e sede cordial- mente bem-vinda. .. Como! Imbecil,filho da puta! Deixaste cir o jarro? (Bate) Catarina — Pacineia, por favor. Foi sem querer. Petruchi 10 da puta, um estGpido, um mi- serével orelhudo! Vamos, Catita, assentai-vos; sei que tendes petite. Quereis dar gragas a Deus, querida Catita, ou quercis que eu dé? Que é isto? Carne de carneiro? © Velha balada que devia ser cantada pelo recémcasado, 432 Primeiro Criado — Sim Petruchio — Quem a trouxe? Segundo Criado — Eu Petruchio — Esté queimada, como todo o resto da carne!... Que cies!... Onde esté o imbecil do cozinheiro? Como vos atrevestes,idiotas, a trazé-la da cozinha e servr- ‘me um prato que nfo suporto? Vamos, levai isto embora, Pratos, copos e tudo o mais! (Vai airando a carme e tudo 0 mais pelo paleo.) Vadios! Escraves ingratos! Que & isto? Estais resmungando? Vamos ajustar contas daqui a pouco! Catarina — Por favor, meu marido, aio fiqueis tao irritado. A carne estava boa, se vos houvésseis contentado com ela, Petruchio — Garanto-te, Catita, que estava_ queimada ¢ ressecada, c estou expressamente proibido de tocé-la. Gera a célera ¢ enraiza os maus humores. Fora preferivel que am- bos morréssemos de fome, sendo, como somos, tio propen- sos a cflera, que comer carne excessivamente cozida. Tem pacigncia. Tudo se arranjard amanhi. Quanto a esta noite jejuaremos juntos... Vem, vou levar-te para teu quarto nupcial. (Saem. Voleam os Criadas, separadamente.) ‘Nataniel — Pedro, ja viste coisas semelhantes? Pedro — Ele a mata com 0 proprio génio dela. (Vola Curtis) Grimio — Onde esta cle? Curtis — No quarto dela, fazendo-the um sermo s0- bre a continéncia! E pragueja, jura e ruge de tal modo, que 4 pobre coitada néo sabe como ficar, como olher, como falar € permanece como se acabasse de acordar de um sonho. ‘Vamos embora! Vamos embora! Ele esté voltando para cat (Saem. Volta Petruchio.) Petruchio — Assim, comecei meu reinado como pol tico habil e tenho esperanca de acabic-lo muito bem. Meu fal- cio esté agora exctado pelo jejum e com a barriga vazia e até que se torne amestrado, nfo convém cevé-lo, pois, entio, jamais olharia para a isca. Ainda possuo outro meio de do. 233 mesticar meu falco selvagem, de ensini-lo a vir e conhecer © chamado do dono, ou seja, manté-la sob vigilincia, como se faz com os milhafres, que se enfurecem, resistem eno querem obedecer. Ela, hoje, nada comeu, nem comerd. Nao dormiu a noite passada, nem dormiré esta noite. Do mesmo ‘modo que fiz com a comida, encontrarei algum defeito imagi- nério para queixar-me da maneira que o leito esté feito. E, enti, atirarei 0 travesseiro para. um lado, acolchoado para outro, cobertor para mais outro, lengbis para outro canto. Sim, e durante essa complicagio, dar-heei a entender que ‘tou fazendo tudo isto em beneficio dela. Em conclusio, ela ficaré acordada durante toda a noite, e se por acaso cockilar, praguejarei, gitar e com a barulhada que fizer, cv a man tetei acordada. Este € 0 meio de matar uma esposa pela deli- cadera; e, assim, dominar-hei 0 génio violento e teimoso Se alguém conhecer um melhor meio para domar uma me- era, que o diga. £ caridade torné-lo conhecido. (Sai.) CENA I: Diante da casa de Batista, em Pédua, Entram Tranio e Hortinsio. ‘Trinio — E possivel, amigo Licio, que Bianca pense fem outro além de Lucéncio? Posso dizer-vos, senhor, que la me dé as methores esperancas. Horténsio — Senhor, para convencer-vos de minhas pa- lavras, mantenhamo-nos de lado e observemos como ele dé a ligio, (Entram Bianca e Lucéncio,) Lucéneio — Entio, senhora, estais tendo proveito com vvossa ligdes? Bianca — Que estais lendo, mestre? Respondei-me isto ‘em primeiro lugar. Lueéneio — Estou tendo © que professo: a Arte de Amar. Bianca — E que possais mostrar-vos, senhor, mestre ‘em vossa arte! 434 Lucéneio — Enquanto vés, doce amada, vos mostrar- des a dona de meu coragio! Horténsio — Vede, ripidos progressos! Dizei-me ago- +8, por favor, se ousarieis jurar que vossa amada Bianca no ama ninguém tanto no mundo quanto Lucéncio! Trinio — 0 despeito amoroso! © sexo inconstante!. ‘Tenho que confessar-te, Licio, € incrivel Horténsio — Nao vos enganeis mais. Nio sow Licio, ‘nem miisico, como parego, Sou um homem envergonhedo de viver com este disfarce por uma mulher capaz de trait um cavalheiro por causa de semelhante poltrio, Ficai sabendo, semhor, que me chamo Horténsio. Trimio — Signior Horténsio, ouvi falar muitas vezes de vossa viva afeigéo por Bianca, e como meus olhos slo teste- ‘munbas de sua leviandade, quero convosco, se v6s 0 permit renunciar @ Bianca e a seu amor para sempre Horténsio — Othai como se beijam e se acariciam! Signior Lucéncio, eis aqui minha mio, com o firme juramen- to de jamais cortejé-la, renegando-a como eriatura indigna das homenagens com que a lisonjeei até agora Trinio — E aqui fago 0 mesmo juramento de jamais casar-me com ela, mesmo que me implorasse! Fora com ela! Vede que ternuras bestiais tem ela com ele! Horténsio — Quisera que todo o mundo, menos ele, @ abandonasse. Quanto a mim, a fim de permanecer fiel ‘meu juramento, casar-me-ei dentro de trés dias com uma rica viva, que néo cessou de amar-me durante 0 tempo em que mei esta orgulhosa de desdém feroz. E com isto, adeus, Signior Lucéncio, Na mulher, é a bondade e nio a beleza exterior © que, de hoje em diante, conquistaré o meu amor. Despego-me de v6s, pois, resolvido a levar avante o que jurei. (Sai) ‘Tranlo — Senhora Bianca, 0 céu vos conceda toda a {elicidade que podem ter os amantes felizes! Eu vos surpreen- di de repente, lindo amor, e renunciei a vés junto com Hor ténsio, 435 Bianca — Estais brincando, Trinio. Renunciastes am bos a mim? “Trinio — Renunciamos, senhora. Lacénelo — Entio, estamos livres de Licio. Tranio — Juro que sim arranjou uma vi a quem pensa agora cortejar e casar-se num dis. Bianca — Deus Ihe d@ slegria! Trinio — Sim, e ele a domard, Bianea — Segundo diz ele, Tranio. ‘Trinio — Por minha f6, ele foi para uma escola onde se aprende a domar. Bianca — Uma escola de domador! Como! Existe coisa semelhante? Trinio — Sim, senhora, © Petruchio € 0 mestre; cle censina infinitos truques para domar uma megera © enca a lingua de wma faladeira. (Entra Biondello.) Biondello — © senhor, senhor! Estive tanto tempo de cspreita que estou exausto; mas, enfim, surpreendi um anciéo respeitivel descendo a colina © que poderd servir-vos. ‘Trinio — Como é ele, Biondello? Biondello — Senhor, é um mercador ou um pedagogo, rio sei bem a0 certo; mas, pela gravidade das roupas que veste, do andar e do aspecto tem o ar de um pai Lucéneio — E que faremos com ele, Trani? ‘Trinio — Se for crédulo e der crédito a minha histéria, ficaré honrado em passar por Vieéncio e dard a garantia a Batista Minola, como se fora o verdadeiro Vicéncio. Levai vossa bem-amada ¢ deixai-me s6. (Saem Lucéncio e Bianca. Entra um Pedagogo.) Pedagogo — Deus esteja convosco, senhor! Tranio — E convosco também, senhor! Sede bem-vin- do. Viajais para mais longe ou estais no fim de vossa viagem? Pedagogo — Senhor. encontro-me no fim por uma se- ‘mana ou duas. Depois, reiniciarei a viagem até Roma, para tocar, por iltimo, em Tripoli, se Deus me conceder vida “Trinio — De que pais sois vés, por favor? a vigorosa, 36 Pedagogo — De Mantua, ‘Trimio — De Mantua, senhor? Ora, que Deus nao ppermita! E vindes para Padua sem temer por vossa vida? Pedagogo — Minha vida, senhor! Como, por favor? Isto std se tornando sério. ‘Trinio — Todo habitante de Mantua que vier a Pé- dua esta condenado & morte. Nao sabeis a causa? Vossos navios foram apreendidos em Veneza e 0 duque (por causa de uma briga particular entre vosso duque ¢ ele) mandou publicar proclamar por toda a parte a dita penalidade. & assombroso! Mas, € preciso que sejais um recém-chegado pois, no fora assim, terieis ouvide a proclamacio. Pedagogo — Ai de mim, senhor! Existe coisa ainda pior para mim, porque sou portador de letras de cambio de Florenca, que devo resgatar aqui. ‘Trinio — Bem, senhor; por gentileza convosco, vou fazer uma coisa, Eis 0 que vos aconselho... Mas, antes de mais nada, dizei-me: estivestes alguma vez em Pisa? Pedagogo — Sim, senhor, estive em Pisa virias vezes. Pisa € afamada pela gravidade de seus cidadaos. Trinio — Entre eles conheceis um chamado Vicéncio? Pedagogo — Nao 0 conhego, mas ouvi falar dele. E uum mercador incomparavelmente rico. ‘Trinio — £ meu pai, senhor, e, para dizer verdade, ele € um pouco parecido convosco de rosto. Biondello — (4 parte.) Tanto quanto uma magi. com ‘uma ostra ‘Trimio — Para salvar-vos a vida neste apuro, vou fa- zer-vos uum favor e vereis que néo é mau negécio parecer-se com Vicéncio. Tomareis o nome dele, passareis por ele e sereis amistosamente alojado em minha casa. Procurai desem- Penhar com cuidado vosso papel, entendei-me bem, senhor. Deste modo, podereis permanecer na cidade até o fim de vossos negécios. Se isto puder ser-vos agradavel, aceitai minha oferta, senhor. 437 Pedagogo — 0 senhor, aceito. E sempre vos considerarei como salvador de minha vida e de minha liberdade. ‘Trinio — Vinde entio comigo para por a coisa em execugio. A este respeito, devo prevenir-vos que meu pai & esperado aqui de um dia para outro, a fim de firmar um contrato de matriménio, Vou casar-me com a filha de um certo Batista, Vou colocar-vos par de todas estas circuns- tincias. Acompanhai-me para vestir-vos como convém, (Saem.) CENA Ill: Sala na casa de Petruchio, Eniram Catarina e Griio. Grimio — Nao, nio, deveras, no ousarei, por mi- ‘nha vida! Catarina — Quanto pior me trata, mais finge gostar de mim. Casou-se comigo para fazer-me morrer de fome? (Os mendigos que pedem na porta de meu pai s6 precisam cestender a mo para receberem a esmola. Se nao Thes é dada, fencontram a caridade noutra parte. Mas eu, que nunca pedi nada, que jamais tive necessidade de nada, estou com fome por falta de alimentos e estonteada por falta de sono. Os praguejamentos me mantém acordada e o barulho substitui 1 comida. E 0 que me mortifica mais ainda que todas essas privagées, 6 que ele faz tudo isso pretextando um perfeito amor. Poder-se-ia dizer, a0 ouvi-lo, que a alimentac30 ou 0 sono me causario uma enfermidade mortal ou uma morte imediata. Por favor, vai buscar-me alguma coisa para comer; ‘do me importa o que seja, desde que seja um alimento que ‘me faga bem. Grimio — Que dirieis de uma pata de vaca? Catarina — E excelente. Traze-me a pata, por favor. Grimio — Temo que seja uma carne muito irritant. Que dirieis de uma dobradinha bem gorda, finamente assada na grelha? 438 Catarina —— Gosto muito. Vai buseé-la, bondoso Grimio. Griimio — Estou em duvida. Tenho medo de que seja, também, irritante. Que achais de um pedago de carne de vaca com mostarda? Catarina — E um prato com que gosto de alimentar-me, Grimio — Sim, mas a mostarda € um pouco quen- te demais, Catarina — Entio, 0 pedago de carne ¢ deixa a mos: tarda, Griimio — Nao, assim no. Tereis a mostarda ou, en- tio, ndo recebereis 0 bife de Grimio, Catarina — Entio, as duas coisas, ou uma sem a outra, ou 0 que quiseres. Grimio — Entio, seja! A mostarda sem a came de vaca, Catarina — Anda! Sai daqui, traidor! (Bate em Gri- ‘mio.) Tu s6 me alimentas com 0 nome dos pratos! Desgraca para ti ¢ para toda a malta que triunfa assim de minha des- agraca! Vamos, vai andando, estou dizendo! (Enram Petruchio ¢ Horténsio trazendo um prato de carne.) Petruchio — Como est, minha Catita? Como, minha querida, muito abatida? Horténsio — Como estais passando, minha senhora? Catarina — Juro que com tanto frio quanto seja. pos- sivel. Petruchio — Cria animo e olha-me alegremente, To- ‘ma, meu amor. Estis vendo como estou cheio de atengSes. Eu mesmo preparei tua comida ¢ estou aqui com ela. Estou certo, querida Catita, de que tanta bondade merece agrade- cimento, Como! Nem uma palavra?s Ah! Estou vendo entio que néo gostas disto ¢ tive tanto trabalho em pura perda, Levai este prato daqui! Catarina — Por favor, deixai-o ficar. Petruchio — O servico mais insignificante merece um 439 EEE agradecimento, Por conseguinte, 36 tocareis no prato se me agradecerdes. Catarina — Muito obrigada, senhor. Horténsio — Signior Petruchio, que & isto? Isto no se faz! Vinde, Senhora Catarina, eu vos farei companhia. Petruc (A parte.) Come tudo, Horténsio, se gos- tas de mim. Que este prato possa fazer muito bem a teu gentil coragio! Catita, come depressa... E depois, meu querido amor, voltaremos para a casa de teu pai. Vais vestir-te ele- ‘gantemente com vestides de seda, chapéus, antis de ouro, golas de folhos, punhos, anquinhas, e outras coisas mais, junto com charpas, leglies, guarnigdes sobressalentes, bem ‘como braceletes de Ambar, colares e outras bagatelas mais, Entio, jd jantaste? O alfaiate esté a tua disposigao para ador- nar tet corpo com o tesouro de suas mais ricas fazendas (Entra um Alfaiate.) Aproximai-vos, alfaiate, e deixai-nos ver estes enfcites, Mostrai 0 vestido, (Entra um Mascate.) Que ‘razeis de novo, senhor? ‘Maseate —- Trouxe 0 gorro que Vossa Senhoria en- ‘comendou. Petruchio — Como! Isto foi moldado numa gamela! Um prato de veludo! Tira daqui! Tira daqui! £ inconveniente ¢ escandaloso! Parece uma concha ou uma casca de noz, uma bagatela, um brinquedo, um logro, uma touca de crianga. Tirai-o daqui, vamos, e trazei-me um maior. Catarina — Nio quero maior. Este esti na moda assim estio usando as damas elegantes. Petruchio — Quando fordes delicada, tereis um igual; mas, no antes.© Horténsio — (A parte.) Nao sera tio cedo. Catarina — Sabei, senhor, se posso ter a liberdade de falar e quero falar, que nio sou crianga, nem bebé. Pessoas “ Trocadilho com genilewomen, intraduzivel em portugues 440 melhores que v6s agiientaram minha franqueza; © se néo quiserdes suporté-la, & melhor que fecheis os ouvidos. Minha lingua exprimira 0 ressentimento de meu coragio ou, se a prendesse, meu peito arrebentaria e, antes que isto sticeda, ‘quero ser livre e falar como quiser. Petruchio — Como! Estés dizendo a verdade, Este gorro & horrivel, uma crosta de creme, uma quinquilharia, uma torta de seda. Gosto tanto de ti que nio posto ver-te Catarina — Gostes ou niio de mim, eu gosto do gorro € ficarei com este ou com nenhum outro. (Sai o Mascate.) Petruchio — Teu vestido? Ah! Sim. Vinde, alfaiate: deixai-nos vé-lo. Misericérdia, meu Deus! Que fantasia é esta? Que ¢ isto? Uma manga? Parece uma bombarda, Co- ‘mo! Cortado de cima para baixo como uma torta de magis? Aqui estd cortado e recortado, novamente cortado, talhado, retalhado. Parece estufa de barbearia! Vai para o diabo, alfaiate! Que nome dés a isto? Horténsio — (4 parte.) Estou vendo que no ter nem gorro nem vestido, Alfainte — Vés me encomendastes que 0 fizesse cl dadosamente na moda, Petruchio — Sim, & verdade! Mas, se vos lembrais, ro vos disse que o estragass® de acordo com a moda do. dia. Vamos, saltai-me todos os regatos, para que nio seja obrigado a fazer-vos pular, senhor, como costumo. Nao quero nada disto. Fora daqui! Fazei o que melhor vos pareca Catarina — Nunca vi vestido mais bem-feito, mais clegante, mais agradivel, nem mais perfeito. Parece que que- reis fazer de mim uma boneca. Petruchio — Essa é a verdade. Ele queria fazer de ti uuma boneca. Alfaiate — Ela diz que Vossa Senhoria pretende fazer dela uma boneca, Petruchio — © monstruosa arrogancial Mentes, linha, 441 dedal, jarda, trés quartos, metade, quarto de jarda, nba, ple, Iendea, grilo do inverno! Deixar-me-ci intimidar em Prinha propria casa por uma meada de linha? Para trés, farra- fo, retalho, sobra, ou vou medirte com tua jarda, de ma: hejra que no esquecas jamais em tua vida teus mexericos! Repito-te que tu estragaste 0 vestido. "Alfainte — Vossa Senhoria esta enganado. O vestido foi feito exatamente como ordenou meu patréo, Grimio deu a ordem de como deveria ser feito. ‘Gramio — Eu no the dei ordem; eu the dei o pano. “Alfaiate — Mas, como desejaveis que ele fosse feito? Grimio — Ora, senhor, com agulha ¢ linha. ‘Alfaiate — Mas, no pedistes que ele fosse cortado? Grimio — Mediste muitas coisas. Alfaiate — E. verdade. Grimio — Nio me mecas. Fizeste muitos homens so- berbos; nio te fagas de soberbo comigo. Nao quero que me ‘megam, nem que me enfrentem. Digo-te na cara, Encarreguei teu pattdo de cortar o vestido, mas nfo que 0 cortasse em pegas. Ergo, tu mentes. “Alfainte — Ora, aqui esté a nota do feitio, Ela serviré de testemunba. Petruchio — Léa. Grimio — A nota mente pela boca dele, se ela disser que eu disse isso ‘Alfaiate — (Lé,) “Imprimis, um vestido com blust larg ‘Grismio — Patrio, se algum dia eu disse um vestido com blusa larga que me cosam nas saias e que me batam até a morte com uma meada de linha marrom. Eu disse um vestide. Petruchio — Continua. Alfaiate — (L2.) “Com um pequeno cabecio arre- dondado.” © A nail, no caso presente, & uma medida equivalente a 57 mi- limetros. 442 Grimio — Confesso 0 cabesio. Alfaiate — (Lé.) “Com uma manga larga’ Grimio — Confess dus manga Alfainte — (Lé.) “As mangas cuidadosamente cortadas.”| Petruchio — Sim, ai esta a vilania Grimio — O erro & da nota, senhor; 0 erro é da nota. Eu mandei que as mangas fossem cortadas e logo cosidas, Ete provare, embora teu dedo minimo esa arma com Alfaiate — £ verdade 0 que estou dizendo e se esti. vesses em outro lugar, tu jé te recordarias. Grimio — Estou a tua disposicio. Apanha a nota, da-me tua jarda € néo me poupem. i Horténsio — Deus vos proteja, Griimio! Assim, ele nfo terd vantagem. Petruchio — Bem, senhor, em poucas palavras: 0 ves- tide nfo € para mim. Grimio — Tendes razio, senhor; & p: th , senhor; & para minha patroa. Petruchio — Vamos, e guarda-o para uso de teu patrio. Grimio — Vilio, de maneira algumal Por tua vidal Levar o vestido de minha patroa para uso de teu patrio! Faterkie — Que 6 io, snr? Que pretender dl Griimio — 0 senhor, a opinito & mais profunda do que supondes. Levar 0 vestido de minha patroa para uso de meu patrao! Oh! Fora, fora, fora! Petruchio — (4 parte.) Horténsio, fala que pagaris 20 sifainte. Sai dau anda ¢ nem uma palavta ai. __ Horténsio —'Alfaiate, eu te pagarei o vestido amanhi 'Nio leves a mal estas palavras irhpetuosas. Vai-te, estou man- dando! Meus cumprimentos a teu patréo. (Sai o Alfaiate,) Petruchio — Bem, vinde minha Catarina, iremos para a de vosso pai com estes trajes simples e decentes. Nossas bolsas esto cheias, pobres, nossas roupas. Fa alma que enri- quece 0 corpo. Assim, como 0 sol rompe através das nuvens ‘mais escuras, assim a honra assoma através da roupa mais 443 CENA IV: Biante da casa de Batista, em Pédua. Eniram Tranio e 0 Pedagogo vestido como Vicéncio. Trinio — Senhor, aqui est a casa. Quereis que eu toque! : Pedagogo — Sim, que mais? A nio ser que me engane o Signior Batista deve fecordatse haver-me visto hi perto de vinte anos aris em Genova, onde estivamos alojados na estalagem do Pégaso. “Trio Ext bem; guards, em todo caso, aquel ravidade que convém a um pa Se pedagone Eu vos. garanto... (Entra Biondello,) Mas, snfors esi chegando vosso pajem. Seria bom que The dsstmos a io. 444 ‘Trimio — No vos preocupeis com ele. Biondelio, che- gou o momento de cumprir vosso dever, estou vos advertin- do. Imaginai que seja 0 verdadeiro Vieénci Biondello — Basta! Nio temais por mim. ‘Trinio — Deste 0 recado a Batista? Biondello — Disse-Ihe que vosso pai estava em Veneza, que v6s o esperdveis, hoje, em Pédua, ‘Trinlo — Es um 6timo rapaz! Toma isto para tomar uma bebida. Esté chegando Batista. Prestai aten¢do & vossa fisionomia, senhor. (Eniram Batista ¢ Lucéncio.) Signior Ba- tista, que prazer encontrar-vos! (Ao Pedagogo,) Senhor, este € 0 cavalheiro de quem vos falei. Suplico-vos, mostrai-vos ‘agora bom pai para mim, dai-me Bianca por matriméni Pedagogo — Calma, meu filha! Senhor, com vossa per- missio. Tendo vindo a Padua para cobrar algumas dividas, meu filho Lucéncio me pés ao corrente de um caso impor- tante de amor entre vossa filha e ele mesmo. Assim (em vir- tude das boas informagdes que de vbs me deram ¢ do amor ue sente por vossa filha e ela por ele), a fim de no o fazer esperar muito tempo, ficaria encantado, devido 4 minha solicitude paternal, se pudera vélo casado. E se vés nao encontrais mais impedimentos do que eu, senhor, depois de hhavermos combinado, achar-me-eis voluntariamente disposto a aceitar este enlace; porque, Signior Batista, no posso ser escrupuloso convosco, de quem tio bem ouvi falar. Batista — Senhor, perdoai-me pelo que vou dizer-vos. Vossa franqueza ¢ vossa concisio muito me agradam. B per- feitamente verdade que vosso fiho' Lucéncio, aqui presente, ‘ama minha filha e que é amado por ela, ou ambos dissimulam perfeitamente seus sentimentos. Sendo assim, se prometerdes Portar-vos como um pai com vosso filho e assegurar a minha filha uma pensio suficiente quando ficar vidva, o casamento std resolvido e tudo conclufdo. Vosso filho ter minha filha com meu consentimento. Trinlo — Muito obrigado, senor. Onde desejais 445, to, que s© verifiguem os esponsais e que o contato seia fedighlo de acordo com as convengSes de amas as artes? Batista Nio em minha casa, Lucéncio, pois, como sabeis at paredes tm ouvidos, tenho muitos criados. Além dist, velho Grémio continua sempre de alcatéia e poderia, ser que féssemos interrompidos, ‘Trinlo —" Entio, sera em meu alojamento, se bem vos parecer. Lé mora meu pai e Id esta noite terminaremos 0 MSsunto particular ¢ comodamente. Mandai buscar voss filha pelo servidor que vos acompanha. Meu pajem ira imediata- Tnente A cata do eserivao. O nico inconveniente € que, nio tstando ninguém prevenido, ides ter pitanga pobre © pouco shundante. atisia — Vosta proposta me agrads, Biondello, corre a minha casa dizei a Blanca que se prepare rapidamente Ewe quiserdes, contaithe 0 que acontecey, iso é, que 0 Pai {2 Lustncio chegou a Pidun e que, provavelmente, serd a espora de Lucan. iondello —~ Imploro aos dewses de todo 0 meu cora- fo que ela 0 Frinio Nao brinques com os deuses e parte. (Sai Biondello) Signior Batista, posso mostat-vs o eaminho. Sois bemvindo, mas um 36 prato serd sem dtvida vosso gape. Vamos, senor. As coisas serio melhores em Pisa Batista Estou-vos sepuindo. (Saem Trinio, o Pede- ‘0g0 ¢ Barista. Volta Biondello.) Biondello — Cimbi Lucéneio — Que dizes, Biondello? Blondello —-Vistes meu pattfo pitcar 0 olho € rie Pir Toctncio — Que quis dizer com isso, Biondello? Blondello — Nada, juro; mas, deixou-me aqui para interpretar o sentido © a moral de seus sna e gests Tracéncio —- Por favor, vejamos « moralidade dees Blondello — Evla. Batista es em lugar seguro, con- versando com 0 pai falo de um filho falo. 446, Lucéncio — E depois? Biondello — A filha dele deve ser por vés levada & ceia. Lucéneio — E entio? Biondello — © velho sacerdote da igreja de Sd0 Lucas cestd a vosso servigo em todas as horas. Lucéncio — Eo fim de tudo isto? Biondello — Nao posso dizer mais nada, a nfo ser que cestejam agora ocupados redigindo um contrato falso. Assegu- rai-vos dela, cum privilegio ad imprimendum solum.® Vamos para a igreja! Pegai um sacerdote, um sacristio ¢ algumas {estemunhas suficientemente honestas. Se nao é esta a ocasido que desejais, nada mais tenho a dizer-vos que vos aconselhar 2 dar adeus a Bianca para a eternidade © um dia Lueéncio — Estis me escutando, Biondello? Biondello — Nao tenho mais tempo a perder. Conheci ‘uma jovem que se casou numa tarde, quando foi & horta apa- thar salsa para rechear um coelho. Vés podeis fazer outro tanto, E com isto, adeus, senhor. Meu patrio me mandou ir a So Lucas dizer ao padre que esteja pronto para vit, assim que chegueis com vosso apéndice. (Sai.) Lucéneio — Posso e quero tudo isso, se ela aceitar. Ela ficard encantada; por que entio super 0 contritio? Suceda (© que suceder, vou abordé-la resolutamente. As coisas irdo mal, se CAmbio voltar sem ela. (Sai.) CENA V: Uma estrada Entram Petruchio, Catarina, Horténsio ¢ Criados. Petruchio — Vamos, em nome de Deus! Coloquemo- nos novamente 2 caminho da casa de nosso pai... Bom Deus! Como a lua brilha clara e serena! Catarina — A lual E 0 sol. Nio hé luar agora, % Inserigde nas paginas do titulo dos livros, indicativa do. privie légio do editor. 447 = ae — Peo Horténsio — Petruchio, segue teu caminho. Conquis- 448 Horténsio — Vai fazer o homem ficar louco, querendo transformé-lo em mulher Catarina — Jovem virgem em botio, bela, vigosa e doce rosa, aonde vais? Ou onde resides? Felizes pais que tém como filha tio bela jovem! Mais feliz o homem a quem as estrelas propicias te destinam para terna companhcira de leito! Petruchio — Entio, que é isto, Catita? Espero que nio esicjas louca, E um homem, anciio, enrugado, definhado, descarnado, ¢ no uma donzela como dizes Catarina — Perdoa-me, velho pai, o engano de meus ‘thos. De tal maneira o sol os deslumbrou que tudo aquilo gue vejo me parece verde. Percebo, agora, que és um vener vel ancido. Perdoa-me, pego-te, meu louco engano. Petruchio — Perdoa-a, bondoso avd, e dize-nos que ccaminho segues; se 6 © mesmo que © nosso, gostaremos mul to de it em tua companhia, Vieéncio — Bom senhor e vés, minha alegre dama, cujo estranho encontro tanto me surpreendeu, meu nome é ‘Vicéncio. Minha residéncia & em Pisa e estou me dirigindo a Padua, para visitar um filho meu, de quem hi tempos no possuo noticias. Petruchio — Como se chama cle? ‘Vicéncio — Lucéncio, gentil senhor. Petruchio — O encontro € feliz, principalmente para teu filho. A lei, bem como tua idade venerivel, me permitem chamar-te de pai bem-amado. Teu filho se casou com a irma dde minha mulher, esta dama que aqui vés. Nao fiques assom- brado nem triste; ela & de boa reputgedo, ricamente dotada, de naseimento digno; além do mais, possuidora de tais qua lidades que seria merecedora do mais nobre genti-homem. Abracemo-nos, velho Vieéneio, e prossigamos juntos a viagem para vermos teu honrado filho; tua chegada vai enché-lo de alegria. Vicénei io — Mas, isto & verdade? Ou estais brincando, ‘como fazem certos viajantes engragados, quando encontram ‘outros eaminhantes? 449 Horténsio — Garanto-te, ancifio, que € perfeitamente verdade. Petruchio — Vamos, vem conosco para convencer-te por ti mesmo. Nossa primeira brincedeira fez com que ficas- fes desconfiado, (Saem todos, menos Horténsio.) © "Hlorténsio — Bem, Petruchio! Isso me infundiu animo! Vou atrés de minha viva; e se estiver intratavel, tu ensinaste 4 Horténsio a nfo deixar-se dominar. (Sai) ATO QUINTO CENA I: Diante da casa de Lucéncio, em Pédua Grémio anda na frente da cena. Entram por trés Biondello, Lucéncio e Bianca: "S fncéacio — Vou voando, Biondell; mas, podem ter 450 Pedagogo — Quem esti batendo como se quisera der- rubar a porta? ‘Vicéncio — O Signior Luctncio esté em casa, senhor? Pedagogo — Esti em casa, senhor, mas nio € possivel falar com cle. ‘Vicéncio — Mesmo se alguém the trouxesse com ou duzentas libras para diverti-se? Pedagogo — Guardai essas cem libras para vés. Nio Ihe fardo falta enquanto eu vive. Petruchio — Vedes? Ja vos dizia que vosso filho era ‘muito estimado em Pédua. Estais me ouvindo, senhor? Para acabar com circunléquios fiteis, peyo-vos que digais 20 Signior Lucéncio que © pai dele acaba de chegar de Pisa € esta agui na porta para falar-Ihe. Pedagogo — Estis mentindo. O pai dele ja chegou de Pidua'! e € ele quem esté olhando na janela Vicéncio — Es pai dele? Pedagogo — Sim, senhor; assim diz a mie dele, se pos- so acreditar nela. Petruchio — (A Vicéncio.) Ora, que me diz agora 0 cavalheiro? Nao sabeis que & uma baixa agéo tomar 0 nome de outra pessoa? Pedagogo — Prendei o vilfo! Suspeito de que deseja ‘enganar alguém desta cidade, encoberto por meu nome! (Volta Biondello.) Biondello — Eu os vi juntos na za a bom porto! Mas, quem esti "aq Vi reja. Deus 05 condi ‘Meu velho patrio incio! Estamos perdidos ¢ reduzidos a nada! Vicéneio — (Notando Biondello.) Vem ca, bandido! Biondello — Creio que possa fazer © que quiser, senhor. 5 Assim aparece nos Folios © nos Quartos e vérias mudangas fo- ‘am sugeridas como sendo um engano. Eniretanto, a edigdo Cam: bridge manda assim conservar, argumentando que 0 Pedagoro quer dizer que. nio ssiu de Padua, procurando.garanti-se da Smeaga de morte que pairava sobre ele 451 Vieéncio — Vem cé, tratante! J4 te esqueceste de mim? Biondello — Esquecer de vés? Nio, senhor. Nio posso esquecer-me de v6s, porque nunca vos vi em toda minha vida Vieéneio — Como! Terrivel velhaco, nunca viste Vi céncio pai de teu patrio? Biondello — Quem? Meu velho, meu venersvel velho patrio? Sim, sem divida, senhor. Ali esti ele olhando na janela Vieéncio — Ah! E assim? (Bate em Biondello.) Biondello — Socorro, socorro, socorro! Aqui esti um louco que deseja matar-me! (Sai.) Pedagogo — Socorro, meu filho! Socorro, Signior Ba- Petruchio — Pego-te, Catarina, fiquemos de lado, para vermos 0 final desta controvérsia, (Saem. Volta 0 Pedagogo. em-no Tranio, Batista e Criados.) embaixo; segt Trinio — Senhor, quem sois vés que ousais bater em mess servidor' Vicéneio — Quem sou eu, senhor? Ora, quem sois vés, senhor? © deuses imortais! © lindo vilao! Um gibao de seda! Calges de veludo! Manto escarlate e chapéu. pontudo! Estou arruinado! Estou artuinaio! Enquanto represento em ceasa 0 papel de pai econémico, meu filho e meu empregado gastam tudo na universidade ‘Trinio — E agora? Que aconteceu? Batista — Que 6 isto? Estar Iunatico? Trimio — Senher, tendes todo o aspecto de um cava- heiro idoso, sensato e respeitivel, mas vossas palavras pare ceem as de um louco, Por que, senhor, tendes que ver se eu 0 ouro ou pérola? Gragas a meu bom pai, posso permitir- me este luxo, Vietneio — Teu pail © patife! Teu pai é veleiro em Bérgamo' Batista — Por favor, como pensais que ele se chama? tais engunado, senhor, estais enganado. 452 Vicéncio — O nome dele! Como se no o conhecesse! Eu o eduquei desde os trés anos de idade ¢ © nome dele € Trinio, Pedagogo — Fora, fora, asno louco! Ele se chama Lu céncio! E meu filho Unico ¢ herdeiro de todos os bens que tenho eu, Signior Vieéncio. Vieénclo — Lucéncio! Oh! Assassinou o patrlo! Pren- dei-o, ordeno-ves, em nome do duque! © meu filho, meu filho! Dize-me, bandido, onde esté meu filho Lucéncio? Trinio — Mandem chamar um guards. (Entra um Criado com wm Guarda.) Levai este louco para a prisio! Pai Batista, encarrego-vos de tomar conta para ver se ele serd reso. Vicénclo — Levar-me para a prisio! Grémio — Ficai, guarda; ele nio iré para a prisio, Batista — Calai-vos, Signior Grémio. Estou dizendo que iri para a prisio. Grémio — Cuidado, Signior Batista, nko vos deixcis fenganar neste negécio. Atrevo-me a jurar que este homem & © verdadeiro Vieéncio. Pedagogo — Jura, se ousas, Grémio — Nio, eu no 0 oyso jurar. ‘Trinlo — Entio, farias melhor dizendo que nfo sou Lucéncio, Grémio — Sim, reconhego que sejas 0 Signior Lu- Batista — Fora com este velho caduco! Levem-no para a priséo! Vicénelo — E assim que se maltratam e insultam os estrangeiros!... © monstruoso patife! (Voltam com Bion- dello, Lucéncio ¢ Bianca.) Biondello — Oh! Estamos perdidos! Olhai, esti ali! Negai, fingi no reconhecé-lo, ou do contririo, estamos atrui nados! 453 DT Lucénclo — (Ajoehando-se) Perdoaime, bondoso pi Vicenio — Meu amado flho es Wvo! (Sem cor rend s mate depressa que puderem, Blondel, Tranlo Peder. Bianca — Perdio, qui ps : Batts — Que fzeste para ofendé-lo? Onde ests Lu Sensi ednco — Aqui esté Luctncio, verdadciro tho de Vien gue aeaba de easarse com tu fifa, enguanto per- tomas false engaavam tus ols nie Trauma iniga dsiberada para enganar- nos todos! Victusio — Onde esté 0 maldito Trinio, que se ateveu instar cara a cara com tanta inslénca? Batista — Como! Dizei-me, este no € meu criado Cambio? : Bianca — Cambio virou Lucéneio. Lucéneio — Foi 0 amor que operou estes milagres. Por amor de Bianca, troquei de personalidade com Trio, cenquanto ele se fazia passar por mim na cidade. E assim ccheguei felizmente ao porto desejado de minha ventura, ‘Teinio nada mais fez do que obedecer minhas ordens, Per: osi-o, pois, querido pai, pelo amor que me tendes. Vieineio — Quebrarei 0 nariz do vilo que pretender levarsme para a prisio. Batista — Mas, dizei-me, senhor, casastes com minha filha sem pedir meu consentimento? Vicéncio — Nada temais, Batista; faremos com que fir queis satisfeito, Mas quero entrar para vingar-me desta vilania. (Sai) Batista — E, eu, para esclarecer a fundo esta velhaca- ria, (Sa.) Lucéncio — Nio empalideras, Bianca. Teu pai nio ficaré zangado! (Saem Lucéncio ¢ Bianca.) 484 a Grémio — Estou derrotado, no tenho mais esperanga, 1 nfio ser de ainda conseguir um lugar no banquete.* (Sal) Catarina — Vamos segui-los, meu marido, para ver 0 fim desta complicaco, Petruchio — Beija-me, primeiro, Catia, © eu con- Catarina — Como! No meio da rua? Petruchio — Ora esta! Estis com vergonha de mim? Catarina — Nao, senhor, Deus me livre. Estou enver- ‘gonhada de beijar-vos. Petruchio — Ora, entio voltemos para casa novamente, ‘Vamos, rapaz, voltemos, Catarina — Nao, vou dar-te um beijo. Agora, rogo-te, amor, que fiques. Petruchio — Nao ¢ bom? Vamos, minha encantadora Catita, Mais vale tarde que nunca, pois, jamais é tarde de- mais. (Saem.) CENA I: Casa de Lucéncio, em Pédus, Eniram Barista, Vieéneio, Grémlo, 0 Pedagogo, Lucén- cio, Bianca, Petruchio, Catarina, Hortensio, a Viiv, Trinio, Biondello e Grimio. Criados, divigidos por Trdnio, servem o banquet Lucéncio — Enfim, depois de nossos longos desacor- dos, estamos em harmonia. £ 0 momento, terminada a guerra furiosa, de sorrir aos perigos passados. Minha bela Bianca, dd as boas-vindas a meu pai, enquanto expresso a mesma ter- ura ao teu, Irmo Petruchio, irma Catarina e tu, Hortén- sio, assim como tua amada vidva, banqueteai-vos 9 melhor que puderdes © sede bem-vindos a minha casa, Este jantar vai acabar com nosso apetite, depois de nosso grande festim. A primeira sentenga desta fala & uma expressio proverb sea, My cake is dough 435 Sentai-vos, por favor, nfo s6 para conversar como para Petruchio — Sim, para mesa! Para mesa! Mas, para comer, s6 para comer! Batista —- Padua fornece todas estas doguras, meu filho Petruchio, ‘Petruchio — Padua s6 brinda com aquilo que seja adorével . ‘Horténsio — Desejaria, para nés ambos, que essas palavras fossem verdadeiras - Petruchio — Por minha vida! Horténsio tem medo da ‘Viva — Entio, nio confieis jamais em mim, se inspi- rar medo. Petruchio — Sois muito sensata e, contudo, no com- preendeis o sentido de minhas palavras. Quero dizer que Horténsio tem medo de vés. Vidiva — Quem é tonto pensa que 0 mundo girs a0 redor. Petruchio — Bem respondido. Catarina — Senhora, que quereis dizer com isso? Vidva — E que, gragas a ele, concebo. Petruchio — Concebeis gragas @ mim?... Que pen- sari Horténsio? - Horténsio — Minha vidva diz que € assim que ela concebe a explicagio da frase. Petruchio — Muito bem emendado... Beijai-o pela resposta, boa vidva! ‘Catarina — Quem é tonto pensa que o mundo gira a0 redor? Gostaria que me explicésseis o que entendeis por esas palavras. ‘Viva — Vosso marido, importunado por uma megera ede as penas de meu marido pelas suas. Agora, sabeis o que wuero dizer. i. ‘Uma opinio bem baixa. ja — Isto mesmo, referia-me a vés. 456 Ne Catarina — Segundo vossa opinifo, sou entio baixa. Petruchio — A ela, Catital Horténsio — A cla, vidval Petruchio — Aposto,cem marcos como minha Catita a derrotaré! Horténsio — Aqui entro em fungio. Petruchio — Fala como um funcionétiol A tua saide, camarada! (Bebe a saiide de Horténsio.) Batista — Que pensa Grémio deste assalto de subtilezas? Grémio — Acreditai-me, senhor, do marradas juntos ‘muito bem. Bianca — Cabega ¢ marrada! Uma pessoa de réplica pronta diria que, para dar marradas, € preciso, como vés, possuir cornos. ‘Vicéncio — Sim, senhora recém-casada, isto vos fez acordar? Bianca — Sim, mas no me inquietou, Assim, vou dor- mir de novo. Petruchio — No durmais, nfo. Visto que despertastes, vou atirar-vos uma ou duas flechas agudas. Bianea — Sou vosso pissaro? Vou mudar de moita, « entio persegui-me com vosso arco. Sede todos bem-vindos! (Saem Bianca, Catarina e a Viiva.) Petruchio — Ela me evitou! Bis aqui, Signior Tranio, © pissaro para quem estivestes visando sem poder atingir! ‘Vamos, bebo A satide de todos os atiradores infelizes! Trinio — 6 senhor! Lucéncio me soltou como um algo que acossa a caga, mas s6 a entrega ao dono. Petruchio — Boa e répida comparagio, mas cheirando a canil ‘Trini — Fizestes bem, senhor, de cagar para vs mes- mo. Dizem que vossa corga vos encurrala. Batista — Oh! Oh! Petruchio, agora € Trinio que acer- ta em vés. Lucénei io — Obrigado pelo teu sarcasmo, bom Trinio, 457 Horténsio — Confessai, confessai, ele no vos acertou ‘em cheio? Petruchio — Confesso que passou de raspio, mas, ‘como 0 tito ricocheteou, apostarei dez contra um que ele atingiu vs ambos, Batista — Falando agora sério, filho Petruchio, acho aque tens a mais geniosa de todos. Petruchio — Pois eu digo que nio; ¢ para provar 0 que digo, cada um mande chamar sua esposa aquela que for mais obediente ¢ venha em primeiro lugar, ganharé a aposta que tenhamos estabelecido. Horténsio — Concordo. Quanto apostaremos? Lucénelo — Vinte coroas. Petruchio — Vinte coroas! & 0 que eu artiscaria por meu faledo ou meu edo, mas por minha mulher, aposto vinte Lucéneio — Cem coroas, entio. Horténsio — Apostado. Petruchio — Ent esti combinado! Horténsio — Quem comegari? Lucéneio — Eu! Biondello, ide dizer a vossa patroa due venha aqui Biondello — 4 vou. (Sal.) Batista — Meu filho, parto a metade convosco. Bianca viré tucéneio — Nio quero sécio. Faso a aposta sozinho. (Volta Biondello,) Entio? Que ha? ‘Biondello —- Senhor, minha patroa manda dizer-vos que cesté ocupada ¢ que niio poderd vir. Petruchio — Camo! Esti ocupada e no pode vir! Isto 6 resposta? ‘Grémio — Sim e amével, também. Rogai a Deus, se hor, que vossa esposa ndo vos envie uma pior Petruchio — Espero uma melhor. Horténsio — Biondello, vai solicitar a minha mulher para vir aqui imediatamente. (Sai Biondello.) 458 Petruchi venha, Horténsio — Temo, senhor, que, embora fazendo 0 que quiserdes, a vossa néo atenda vossas solicitagées. (Volta Biondello.) Entio, onde esté minha mulher? Biondello — Ela diz que estais imaginando alguma brincadeira e que nfo vird; ela manda. dizer-vos para ir procuré-la, Petruchio — De mal a piot! Ela nio quer vir! £ vil, intolerdvel, insuportivel! Grimio, vai procurar tua patroa ¢ dize-the que Ihe ordeno que venha aqui! (Sai Grimio.) Horténsio — Ii sei a resposta dela. Petruchio — Qual? Horténsio — Ela nio viré. Petruchio — Tanto pior para mim, e isto € tudo. Batista — Como! Por Nossa Senhora! Olha Catarina! (Volta Catarina.) Catarina — Que desejais, senhor, que mandastes bus- Petruchio — Onde esto vossa irml e a mulher de Horténsio? Catarina — Conversam no salio, assentadas perto da — Ob! Oh! Solicitar-the! Duvido bem que larei Petruchio — Ide busci-las e trazei-as aqui. Se se re- cusarem a vit, envii-as aos maridos delas com boas chicota- das. Fora, estou dizendo, ¢ trazei-as imediatamente. (Sai Catarina.) Lucéncio — Se existem milagres, aqui esta um. Horténsio — Com efeito, € um milagre. Que poderd pressagiar? Petruchio — Ora, € um pressigio de paz, de amor, de Vida trangiila, de respeito as conveniéncias da supremacia do marido, Em uma palavra: todas as alegrias ¢ todas as feli- cidades Batista — Que a felicidade esteja contigo, bom Petru- chio! Ganhaste a aposta e quero acrescentar, As que eles pet- 439 deram, vate mil eoroas, com novo dote para uma nov fk, et to mudada, que € uma outa Fels pguchio Nio, quero gathar melhor ainda » apo dar-vs a demonstagig mais evdente de s0a obeigniae de Si nova sue. Oiha-al At ver ela (azendo vossas duas ‘Maire como pestoneas de su persaaio feminina! (Vol IE Cura co Bianca a Viva) Catarina, este B00 que Cian vos assent Tira ete apo © ops sob Voss ne ven rar, enguanto inthe! " ‘Bianca — Que vergonha! Como qualificais uma obe- diéncia tho luca como esta? Tractnclo =~ Quisra que @ voss fone tho luca as sma, ambem! O conhesimento de voso deve, bela Bianca, Gosioure com cords depois da cia. Bianca Mas louse fosts v6 apostando sobre minha bedinca Pruchio — Catarina, ordno-te de dizer a estas mu there cabepdes qais so deveres «que esto obigadas tm relagdo seus Senhores © matin. Widen “Vamos, vamos, exalt eagoando, No quere: mms liso, — Meu Deus! Nunca me deis ocasiio de cho- ime vir reduzida a um servilismo téo hu- estou mandando, € comesa prime ro por ela vive — Niio o fara. Petuchio ~ Digo que 0 far! Comesaprimeio por ela Catarina — Que vergenha! Que vergonha! Desarma essa Fronts ameagadora © feror eo lanes cus ols esses sihars Jeadenhosos, como se gusesesstavesat teu seahor, teu rac teu governant. Isso empana tua formosira, como te peas covtam su campina, dest tn fepuaglo, come oe frases aytam 6 lindos bates ¢ nfo € prudenie nem Studvels Uma mulher ritada € como uma fone aitada, tures desapndivele sem encanto. E enquano assim perma: 460 ee necer, ninguém haveri, por mais sedento ou alterado que csteja, que se digne acercar dela seus labios ou beber uma s6 gota. Teu marido é teu senhor, tua vida, teu guardifo, tua cabega, teu soberano; & quem cuida de ti, quem se ocupa de teu bem-estar. B ele quem submete seu corpo aos trabalhos rudes, tanto na terra como n0 mar. De noite, vela no meio da tempestade; de dia, no meio do fio, enquanto tu dormes calidamente em casa, segura ¢ salva. S6 implora de ti 0 tre bbuto do amor, da doce e fiel obediéncia: paga bem pequena para tao grande divida. A mulher tem as mesmas obrigagoes fem relaglo a0 marido do que um sito em felagio ao prince pe. E mostrando-se indomével, mal-humorada, intatéve, desaforada e desobediente is suas legitimas ordens, nfo passa de uma rebelde, uma vil ltigante,culpada do delito de taigdo para com seu senhor bem-amado, Causa-me vergonha ver as mulheres declararem, ingémuas, a guerra, quando deveriam implorar a paz; pretendefem o mando, a supremacia e 0 do- minio estando destinadas a servir, amar e obedecer. Por que nossos corpos sio tio delicados, frageis e tenros, impréprios para as fadigas e agitages do mundo, a néo ser porque a ‘qualidade gent de nosso espirto, de nossos coragSes, deve achar-se em harmonia com nosso exterior? Vamos, vamos, vermes impotentes ¢ indéecist Eu também tive um génio tao {ifiel quanto os vossos, um coragio tio altaneiro e, talvez, maiores motivos para opor uma palavra a outra palavra ¢ ‘mau humor por ‘mau humor. Mas, agora compreendo que nossas langas no passam de frégeis canigos; nossa forea, fraqueza, uma enorme fraqueza que, aparentando que somos os mals, provamos que somos os menos. No vos mostreis pois, orgulhosas, que de nada servria e ponde yossas méos 305 pés de vossos esposos em sinal de obediéncia. Se 0 meu andar, minha méo esté pronta, se isso causar-the prazer. Petruchio — Bravo! Isto é'0 que se chama uma dame! Vem aqui e beijarme, Catita! TLucéncio — Bem, segue teu caminho, camarada, pois conseguiste 0 que desejavas. 46 Vieéncio — Como é agradivel escutarfilhos déceis! Lucéneio — Mas, nada mais desagradavel do que mu- Theres incorrigiveis. Petruchio — Vamos, Catita, para a cama. Casamo-nos (0s trés; mas, sois dois condenados. (A Lucéncio.) Ganhei a posta, embora tenhais atingido o alvo casando com Bianca. E como vencedor, que Deus me dé uma boa noite! (Saem Petruchio e Catarina.) Horténsio — Sim, segue teu caminho. Domaste a pior smegera, Lucéneio — Com vossa permissio, € uma maravitha ue ela haja sido assim domesticada por ele. (Saem.) 462

You might also like