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Gianni Vattimo {Turim, 1836) ¢ um dos mais renomades fi {6sofos talianos,além de ser colaborador de prestigiados jomals ¢ revista, Discipulo de Hans-Georg Gadamer e Luigi Pieyson, le- ep. CONILISHO £0 PROBLEMA DA TEMPORALIDADE a7 incriadas: e quem conhece como tt a volipia das coisas por vir? Despojei-te da obedigncia, das genuilexdes, das genilidades; dei-te o nome de ‘reviravolta da fatalidade’ ‘destino’... Chamei-te ‘destino’, orbe da orbe’, ‘cordao ‘umbilical do tempo’... onde mais, como em ti, o passa do e 0 futuro se tocam?”" 98. Zamtasry, Ik: "Do grande ane” AVISAO DE MUNDO DE NIETZSCHE O problema do horizonte “B assim o homem, crescendo, foge de tudo aquilo ue outrora o restringia; nao é necessério que quebee vio entamente as amarras, a que de repente, ao comando de uma divindade, elas caem por si sés, E.onde esté entio a argola que ainda o reprime? ££ 0 mundo, ou Deus?” ‘Um discurso sobre a maneira como Nietzsche vé 0 mundo deve tomar como ponto de pattida esse frag: mento autobiografico, escrito aos 19 anos de idade, nao apenas por motivos histéricos e cronol6gicos, para tragar desde seu nascimento a perspectivafilossficanietzschia~ na, mas porque esse fragmento esté repleto de uma for- ‘a profética singular e pode muito bem ser tomado para. indicat, também e precisamente em seu caréter de pro- blematicidade aberta, 0 significado abrangente dessa fi- losofia. Os intérpretes que, como Lawith,¢ recentemen- 1 De um fgmento autobiogrificn datado de 18 de sotombzo de 1863, in Were, Masque, el, Scholes, 1956, vol. Hp. 110. 50 iALOGO COM NiETZsCH, te Deleuze e Fink {por mais que estes itimes o tenham feito de mancira mais matizada), tendem a uma solugao do problema favorével ao mundo, embora tenham mui- to boas razdes para susteniar tal interpretacao, nao cap- tam espitito mais profundo do pensamento nietzschia- no, Bastaria, para confirmd-lo, 0 preémbulo da carta que Nietzsche escreveu de Tarim a Burckhardt no inicio da Joucura: “Cato professor, no fim cu teria preferido ser pro- fessor em Basileia a ser Deus; mas ndo ousei levar me egofsmo privado tao longe a panto de omitir, por causa dele, a enagio do mundo.”* Pode-se atribuir essa carta & loucura: mas de tom no muito diferente so intimeras outras paginas de ou tyas obras nietzschianas, como sobretudo Ezce homo, que tatnbém so lidas como obras confidveis e passiveis de interpretacio. © tom paradoxal e “escandaloso” dessas afirmagées é, na verdade, comumn a todos os escritos de Nietzsche, especialmente aos co Nietzsche maduro. A. diticuldade de aceité-los como dignos de interpretagao ¢ de discussio nao puramente clinica nasce mais do fato de que a totalidade desse pensamento entra em choque com nossos modos de pensar mais arzaigados, questio- rnando-os violentamente, Por esse motivo, também é jus to dizer que a louctra, clinicamente comprovada, de Nietesche nao € um evento “casual” de sua biografia, mas. tem uma ligagdo essencial e constitutiva com sou esfor- {0 filoséfico’. Nessa perspectiva, a loucura de Nietzsche 2. trad italian carta a Burekhaedtencontts-se em Ca Leggio Nite Burtt ct, pA 2 Sobre a gogo ene Toucurae andinco de novos valores, ongoaforisme de Aura, ode nine 14, no qual Nietache pate- fr reconhecer que, em linha getl, 08 grandes anincadores de nova visses do mundo sempre fram locos ou, elo menos, acabarsm por _A sho De MUNDO DE NIETZSCHE St apenas um sinal ou uma confirmagao exterior de sua radical impossibilidade de pertencerao mundo a que per- tencemes. Parece-me itil, para compreender esse pensamento tio polémico e tao aberto a mal-entendidos (muitos: 0 ais clamoroso, como se sabe, é aquele que faz dle Nict2~ sche, espitito curopeu, se & que houve um, 0 profeta do zazismo), comegar procuranda definit qual é a “visao de mundo” de Nietzsche, ¢ antes de tudo o proprio cance to de mundo. A partir desse conceito, teremos, em uma patte significativa, o conjunto da perspectiva filos6fica hietzschiana, Entre “mundo” e “visio de mundo” ha no pensamento de Nietzsche uma ligagéo toda particular. De fato, sta filosofia nao é apenas uma visio de mundo no sentido em que essa expressio se aplica a toda filoso- fia que, dizem, é sempre uma Wetanschauung. Nessa ex- pressdo, subentende-se, em geral, que o mundo € algo Sbvio, dado comumenie a todas as filosofias, e que as di- ferencas enite as diversas donutrinas nascem precisamen- te como diferentes modos de ver, apresentar e coneeber uma realidade que ¢ fundamentelmente a mesma (ou, pensa-se, tem de ser a mesma se deve exist uma filoso: fia como visio verdadeira do mundo). Ora, em Nietzsche a filosofia é visio de mundo na medida em que, antes de tudo, é 0 questionamento do undo e do préprio conceito de Weltanschauung’. E por es cnmidera ou fazer com que os consderassem loucos, Eprecsamen te porque, ao menos no mundo antigo, a loucuta parecia ago divin, jue colocavao lowed acinw da ela he davao ditto de modifies, “40 lato de Nictsche sero proela de uma Gpocn earacteriza, ent outta cosas, pela ta das Welanschanngen & uma tee de Het Aegger: verse Ntsc cit, ive primero, De Heidegger cf também Lege det ianagine de mond (1938, Seti intros (1950), ta, de. Chic, Plorenga, La Nuova tall, 1984, pp. 71-101 82 idvoco com mierzscue {sso que os dois pontos extremos da busca de Nietzsche podem muito bem ser assinalados pelos dois fragmentos que reproduizi,o fragmento autobiografico de Nietzsche aos 19 anos ¢ a carta a Burckhardt escrita vinte e seis anos depois. No primeiro desses textos, o mundo é um problema no sentido em que nos perguntamos se é esse © Ambito que contém © homem mesmo quando caem todas as perspectivas provisétias e particalares. No se- gundo, o mundo permanece um problema, no sentido se que cabe ao homem (se quisermos, a0 fl6sof0)erié-lo, tomando-se de algum moclo Deus, por sua vez. Entre esses dois extremos, que nao por acaso caracterizam-se pela presenca dos mesmos dois termos, o mundo e Deus, realiza-se a especulagio nietzschiana que é o desenvol- ‘vimento das linhas indicadas pelo fragmento autobio- stifico de 1863 até as posigdes manifestadas na carta es- crita de Turan om 1889, ‘A pergunta que encerra o fragmento autobiogrifico adquire seu verdadeiro significado especulativo e profé- tico especialmente se alribufmos a constatagao da queda dlas amatras nao apenas o sentido psicol6gico e indivi dual que ela tem literalmente, mas também 0 sentido mais amplo, explicitado por toda a obra nietzse sequente, ce balango do pensamento europeu, de ria do niilismo. O que o Nietzsche de 19 anos viveu ¢ desereve antes de tudo como um fato referente & propria consciéncia ~ e que, psicologicamente, & uma experién- cia comum, a sensagaio de gue, & medida que se amadu- rece, desaparecem as amarras (mas também as fortale- as proietoras) que até certo momento haviam definido com clareza 0 ambito de nossas escolhas c as orientagiies de nossas decisées -, ele passard a constaté-lo e a revi- vé-lo, no decorrer de sua obra, como fenémeno de toda uma civlizagéo, aquela civilizagio europeia que tem int pee _qvisko DE MUNDO DE NIETZSCE 53 cio com Sécrates e se encerra com ele, Nietzsche, “o pri- ‘meio nilista completo” ¢, por isso mesmo, também o | primeito a se livrar do niilismo. Niilismo ¢ justamente 0 nome que Nietzsche dé a fesse process0 € 20 seu resultado: assim como o jovem aque viu desaparecet ao seu redor ¢ dentro de si todas as famarras e os “sistemas” que 0 mantinham preso se per- inta 6 que ainda existe, contudo, para constituir 0 ho- rizonte dentro do qual colocar a propria vida, assim a ci vilizagio europeia, com o, desaparecimento progressivo dos mitos, da filosofia, da propria religiao que a impul- sionaram ¢ a guiaram em seu “desenvolvimento” que entao aparece na verdade como um processo involutive ‘ou, melhor ainda, como um devir sem sentido unitévio, ainda que capaz de levar a um novo inicio ~ essa civil zagio agora “resvala do centro em ditesao ax". A de- niincla desse balango falimentar, comumn a muitas dow Luinas filos6ficas ¢ a muitas poétieas de carder profético da segunda metade do século XIX e do século XX, no é ‘em Nietzsche o resultado de uma operagao puramente intelectual de cobranga do mundo, uma espécie de cogi- tocartesiano (0 qual, segundo Nietzsche, nao 6 radical 0 suficiente), mas resultado de uma meditagao sobre a cul- {ura e sobre a mentalidade ocidental que ocupa toda stia vida de pensador ¢ que constitui, quantitativamente, a patle mais relevante de sua obra. Foi por isso, entre ou- tras coisas, que Nietzsche pékie aparecer como um “mo: ralista’, termo com o qual geralmente se pretende indi- car uma espécie de jornalista de alto padrao, que nos re ‘ela os limites e os profundos segredos de nessos tabus 5. A onal de potécia, pelélo, 3. 6 A omlade de pottcia, "0 nilsmo europew”, m1 54 uALOGO com NiErZsCHIE sociaise culturais, sem contudo ir muito além desse exer- cicio de acuidade. Bu ditia que quem considera Nietz- sche dessa maneira nao dé nenhuma importancia & per gunta com que se encerra o fragmento autobiogrifico de 1863, aquela sobre o horizonte dentro do qual se sitvam © adquirem sentido 0s vatios fatos e o futuro das Welt- anschauwongen. Ein outros termos, Nietzsche é um “mo- ralista” sé enquanto é antes de tudo um metafisico: a so: lugéo do problema, ou pelo menos a apresentacio dele, indicada pela carta a Burckhardt, com toda sua aparén~ cia de paradoxo e sua stspeita de loucura, ainda & sua resposta de metafisico & questo aberta pelo balango fa- limentar da cultura ocidental Balango do niilismo: o mundo verdadeiro transformou-se em fabula Quais sio as “vozes” desse balango, ou seja, qual 6, ‘em suas linhas essenciais, a hist6ria do nillismo? Nietz- sche fornece tuma indicagao sueinta dessas linhas em um capitulo da Gatzendimmerung que, significativamente, traz 0 titulo "Wie die wahre Wel endlich zur Fabel wur- de" [Como o mundo verdadeito acabou se transforman do em fabula). “1. O mundo verdadeiro ao alcance dos sabios, dos piedasos, dos virtuosos ~ que vive neles, & eles mesmos. 2.0 mundo verdadeiro, por ora inatingivel, mas pro= metido aos sabios, aos piedosos, aos virtuosos. (A ideia progride, torna-se mais sutil, mais fugidia e insidiosa ~ fe- miniza-se, torna-se crista. ~3.O mundo verdadeiro nao alcangével nem demonstravel, nio mais objeto de pro- ‘mesa, mas jé, enquanto pensado, presente como con- _gynsto Db MUaNDO DE NIETZScHe eS solo, obrigagio, imperativo. (No fundo sempre 0 vetho sol mnas através da névoa da sképss; a ideia tornada su- blime, pélida, nérdlica, konigsberguiana,) ~ 4. O mundo verdadero: inatingfvel? Fm todo 0 caso, nao alcangade, Frenguanto néo aleancado também desconhecido. E, consequentemente, tampouco capaz. de consolar, redi- tit, obrigar: a que poderia nos obrigar algo desconhe- ido? (Alvorecer. Primeiro bocejo da razao. Canto do galo do positivismo) ~ 5.O mundo verdadeiro: uma ideia que nfo serve mais para nada, nem sequer é capaz. de obri- gat a alguma coisa; uma ideia que se tomnou intitle su- ppérflua, portanto uma ideia refutada: vamos aboli-la! (ia caro; hora do café da manha; volta do bom-senso e da serenidade; Plato vermelho de vergonha, grande estrépito de todos os espititos livres.) ~ 6. Abolimos 0 ‘mundo verdadeiro: que mundo resta? O mundo aparen te, talvez? Nao: com 0 mundo verdadeiro abolimos tam bém o mundo aparente! (Meio-dia; hora das sombras cuttas; fim do longo exto; ponto culminante da humani dade; incipit Zaratustra)"” ‘As varias etapas desse provesso, sumariamente esbo- ‘ado, correspondem aquilo que no fragmento autobiogré- fico eraa queda das amarras envolventes e dominantes; 0 “incipit Zaratusira” conclusivo, com o desaparecimento, juntamente com 0 “verdadeiro mundo”, do mundo apa- Tene repete, mas ao mesmo tempo também inicialmen- te tesolve, o problema do horizonte iitimo que no escrito de 1863 era colocado como conclusio problematica Como 0 mundo verdadeio ~ ou seja, fundamental: mente, o mundo das ideias platénicas (veja-se o primei- 7.0 erepsenta dos Klos: "Como 0 verdsin mune aeabou se leansfoemande em fibula, Histria de um eto" 56 puto ‘COM MIETZSCHE 10 ponto da passagem citada), aquele que sustenta e ex- plica o munclo das aparéncias mutaveis e do devit ~ pode transformar-se em fabula? Simplesmente porque desde o inicio ele nao passava de fabula, porque na realidade o mundo verdadeiro nunca existiu. A critica do conceito de verdade como evidéncia, ou seja, a manifestagio imedia- ta e de maneira psicologicamente convincente e indiscu: tivel de alguma coisa: um “objeto”, uma proposicao, como verdadeira, ot seja, como correspondente ao “es- tado das coisas” — & um dos pontos mais constantes ¢ significativos da especuilagio de Nictzsche, se nao 0 principal significado de sua contribuigdo para a historia do pensamento, O problema da verdade acompanha Nietzsche por toda sua catteira, desde 0 ensaio Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (1873) até os ilti- mos apontamentos reunidos sob o titulo A vontade de poréncia E precisamente no ensaio Sobre verdade e mentira ‘que Nietzsche define as linhas fundamentais de sua cri- tica ao conceit de verdade como evidéncia, as quais continuardo a predominar durante toda sua carreira de pensador. “Ainda nao sabemos”, escreve Nietzsche, “de onde provém o impulso & verdade, pois até agora ouvi- ‘mos apenas a obrigagéo que a sociedade estabelece para cexislit: de dizer a verdade, isto é, usar as metiforas habituais; «em outros termos, exprimindo-o eticamente, a obrigagéo de mentir segundo uma convencao estabelecida, de mentit como um rebanho, em um estilo obrigatério para todos.”* Fa primeira convengio é justamente a de acre- ditar na “objetividade” dos “objetos”, ou seja, acreditar 8. Silla wrth ea mienzngnain senso extr-morale ad. 3 on por E Lo Gatto, in Serit minor, Nepales, 1916 p. 54 “avisMO De MUNDO DE NIETZSCHE 57 ue, 0 conhecet, o mundo seja dado como um espetd: julo totalmente traduzivel nos esquemas logicos. Na yealidade, o que se chama de verdade nao é outra coisa {que a conformidade de nossos discursos a certas regras iniversalmente aceitas em um certo mundo. A eriagao das metéforas linguisticas, ou seja, de um cetto vocab Jério que traz, em si uma estrutura de conceitos e, na si taxe, de uma organizagao detetminada que o homem| impée originariamente as coisas, é fundamentalmente tum fato postico ¢ estético: em sua forma origins, alin guage ¢ a “esfera média livemente poetante e criado- ra", necesséria para realizar a passagem do mundo como © Gem si, e sobre o qual nada sabemos, pata o mundo or- ganizado nos esquemas conceptuais. Mas, depois desse momento de criagao e produgao de metaforas, quem tra- balha para a consolidacao e para o esclarecimento do mundo da linguagem e dos conceitos nele implicados é acciencia, “Assim como a abelha primeiro constréi os fa- vyos ¢ 0s enche de mel, assim a ciéncia trabalha sem cvs- sar para esse grande columbarium de conceitos."" Por 0 to lado, 0 arcabougo dos conceitos ¢ o abrigo no qual a ciéncia vive e prospera,o Ambito de estabilidade com que clase defende do devir incessante das coisas. Mas, a par- tirdo momento em que o intelecto se torna livre, ou seja, {que expetimenta aquele processo eujo pice é o niilismo, cease arcabougo nao passa de “um andaime de madeita, ¢ de um objeto para seus audazes jogos de destreza” Esse esclarecimento do carter convencional, 04, ci rfamos melhor, sintético lingu‘stico da verdade, seré 9, Sula writ ea mena, p58 30 Sulla wea ea menzoga,p. 2 Sula cerita le menzogna, p64 58 iALOcO Com NiETesCHHE precisado ¢ aprofundado nas obras subsequentes, em que se afitma cada vez mais claramente o vinculo entre a evidéncia, como fendmeno psicoldgico da imposigao de uma “verdade” & consciéncia de maneira cetta e indiscu tivel, eo pertencimento a um certo mundo, a um siste- ma de “preconceitos", a um mundo histérico cujas co vengies ou, mais em geral, cyja linguagem aceitamos, ‘mais ou menos inconscientemente, sem discutir, “Que a lareza”, esctove Nietzsche evidentemente reportando sao conceito cartesiano de idea clara e distinta, “deva ser uma atestagao de verdade, cis uma ingenuidade.”" Tendo em vista as caracteristicas inconstantes ¢ contra ditérias da experiéncia comum do mundo, quando mui- to tetfamos de suspeitar que clareza, orciem e simplici- dade sio justamente o sinal de que estamos diante de algo falso, de um simples produto da imaginagao". Na verdade, 0s critétios com base nos quats se con sidera que uma proposigio € evidente ~ portanto, com uma ilaglo, verdaceira— ndo sdo sempre os mesos, mas variam nos diferentes mundos historicos, séo eles mes: 'mos proclutos histdrieos, Falar de certezas imediatas, es- reve Nietesche, & uma ilusio: toda certeza é sempre 0 resultado de uma série de mediagies', [sso significa que iio existem verdades por si sis evidentes, ou seja, capa 2¢ de se manifestat como tais antes de cada enquadra: mento em categorias convencionais ou hist6ricas: Alias, .evidéncia de uma proposicao nao passa de sua adapta «so perfeita e sem dificuldades ao sistema de preconcei- tos que constituem as condigées de conservagao ¢ de- 12 Vomade de pec, 9.538, 13. Vontade de pon, 536 « 29 14 Alin do i do mal, “T ppsko DEMUNDO DENIET2SCHE 59 gerwolvimento de um certo mundo hist6rico a que per~ tencemos. Parece-nos.evidente aquilo que se adapta a cezse sistema de preconceitos; assim, a verdade como eonformidade” (da proposicio ao estado das coisas) ‘dquire aqui um sentido diferente, sintético, poder-se-ia dizer: é verdadeira a proposi¢ao que se conforma nao antes de tudo ao estado das coisas, mas as regras inter- pas da linguagem que define 0 ambito do nosso mundo. ‘Gam base nessa conformidade, nés afirmamos a outra (a @onformidade entre proposicao e coisa) mas também essa passagem nao é “natural”; ela é, mais uma vez, uma inaneira historicamente dada de inferir um fato a partir Ue outro fato, do qual o primeito é assumido como sinal fiele confidvel. Rejeigio do historicismo Poderia patecer faci, neste ponto, colocar Nietzsche hire os muitos que, sobretudo no século XDX, afirmaram a relatividade histérica daquilo que chamamos a verda de. De fato, se ndo existe uma apresentacéo imediata do mundo como é em si, mas apenas uma manifestacao dele em diversas perspectivas, as quais so sempre historica mente condicionadas, a conclusio parece ser a de que, endo, toda “verdad” é relativa & época em que surge € 6 enuinciada, que cada época tem sua “visio do mundo". Mas Nietzsche recusa-se explicitamente a ser colocado ‘entre os historicistas, ou seja, precisamente entre os que afitmam a relatividade historica da verdade. A poléinica contra 0 historicismo cle dedica um de seus mais belos escritos, a segunda das “consideracdes extemporéneas”,escrita em 1873-74, Da utilidade e des- 60 rALOGO COM NIETESCHIE ‘vantagem dos estudos histéricos para a vida: um escrito re lativamente juvenil, da mesma época do ensaio Sobre ver- dade € mentint, © que junto com este pode ser tomado para definir aquele que serd o ambito do desenvolvimen- to sucessivo do pensamento de Nietzsche, sua problem fica, Os estudos histéricos, ou seja, aquela consciéncia stotiogréica da propria colocagio “histrica” que 0 8é- ‘ealo XIX praticamente eriara e de que Nietzsche tinha al- guns insignes exemplos sobretudo na historiografia ale ‘ma, sio titeis para a vida apenas na medida em que néo a bloqueiam, impedindo-Ihe todo desenvolvimento. Obserye-se que Nietzsche vive quando os grandes sistemas historicstas do século XIX, 0 hegelianismo e 0 positivismo, jé estéo comegando, ao menos como fato fi- los6fico, a manifestar os sintomas da crise que os afeta- 14 cada vez mais profundamente nas décadas seguintes: © historicismo toma-se agora darwinismo no sentido cientifico do termo, ou seja, teoria da cvolugdo das esp cies naturais. Em outros termos, comeca-se a perder a fé no necessério desenvolvimento espiritual da humanida de para acentuar apenas o devir. Em Hegel e em Comte, © devir & ainda ditigido necessariamente para a auto: consciéncia e para 0 progresso da ciéncia e da saciedade; mas & medida que nos aproximamos do fim do século torna-se cada vez mais evidente que essa necessidade do progresso & muito problemitica, e que nossa tiniga cer: teza é, a0 contrétio, 0 puro devit, a transitoriedade das culturas, o fato de que tudo o que acontece esta destina do a passar. Ora, toda essa linha de pensamento, q alias comeca a se anunciar de modo muito obscuro, pode ser também atribufda ao crescimento desmesurado dos conhecimentos hist6ricos, que tornam cada vez mais ficil enquadrar todos os eventos em um plano filosdfico providencialista como o hegeliano. ‘jwasho DE MUNDO DE NIETZSCHE ol Assizn, se a consciéncia historiogrifica leva-nos a re ‘conhecer a transitoriedade de todo evento e de toda cria G0 humana, o resultado seré que nao criaremos mais hada; que a historiografia teré matado a histéria como feontecimento de qualquer coisa nova, surgimento de jnovas inslituigdes etc. Quem tivesse plena consciéncia de jue, como dizi Heréckito, tudo fai no ousaria mais mo ver um dedo, nao teria mais nenhuma fé no valor daqui Ip que faz. e nao encontraria a forga para agir. A vida ~ 6 tila a conchisio, proviséria, a que chega a segunda con sideragio extemporanea -, para se desenvolver, precisa cde uma zona obscura, de wm horizonte de nao conscién ‘Gia histérica dentro do qual ainda seja possivel acreditar nas proprias decisbes e no aleance daquilo que se faz. (© que na segunda Extempordnea permanece no nf- vel da pura exigencia, esse Ambito obscuro dentro do qual a vida pode florescer como em uma solugio nuttti a, torna-se expticito nas obras suubsequentes e sobretu. ‘do naquelas da maturidade, do Zaratustra aos fragmen- tos de A vontade de poténcia, O sentido da grande ideia {que Nietzsche anuncia pela primeira vex na Gata ciéncia e que retoma e desenvolve no Zaralustra e em A vontade de poténcia, ou seja, aquela do etemo retorno do mesmo, Eantes de tudo o esforgo de substituir a viséo propria do historicismo por outra visio. ‘No mbito do historicismo, como vimos, o presente, apresentado nos moldes de um simples ponto na linha “que do passado conduz ao futuro, perde todo significa do, e com ele também a devisio. Cada momento do tem- po, em uma perspectiva historicista, € definido apenas fem relagdo ao momento que vem depois dele: mas pas- sado e futuro, para defini o presente, devem ter uma es pécie de existencia auténoma e precedente em relagéo «2 iALOGO com uErzscHe 20 proprio presente, jé que é s6 em relagio a eles que o presente se constitui. E isso 6 evidente nas verses pro- videncialistas do historicismo, que so as mais conse- quentes: para elas, ha um curso necessétio da histéria, estabelecido de algum modo a prior, e cada momento tem um sentido enguanto se insere nesse curso (66 en- quanto se insere na estrutra dialética do real o evento & tunidade e identidade de real e racional, como quer He Bel: 0 que nao se deixa reduzir ao esquema, admitindo- Se que este exista, é apenas aparéncia, acidentalidlad), no entanto, ninguém tem 0 poder de mudé-lo. Desse modo, essas perspectivas supoem que exista um tempo como fluxo uniforme de momentos, como linha, na qual estamos colocados em um certo ponto. A relagao entre a decisio e o tempo 6 aqui inteiramente favordvel ao tom- po: a decisio, diz-se sucintamente, est no tempo, nds estamos no tempo. Ora, essa é precisamente a visio da historia que tor- za impossivel a histéria como novidade, como distinta de umn devir puramente natural em que tudo se desen- volve necessariamente e de maneia previstvel. Esse his toricismo, juntamente com a f6 na evidéncia como ctité tio da verdade, de que se falava no ensaio Sobre verdade € mentira, é o principal inimigo de Nietasche, 0 alvo po- lemico em relagao ao qual sett pensamento se constitui ¢ pode, consequentemente, ser compreendido. Bssa.von- {ade de justficar a histéria como nascimento de novida- de, ou seja, a histéria como vida, fez. com que se falasse, acerca de Nietzsche, de vitalismo e, por conseguinte, de itmacionalismo'% mas esse discurso, como ¢ evidente, 56 15. Como se sabe, esa intgpretag &defendida sobretud, hoje, por G. Latkes, em Die Zerstvang der Vermunp, Beri, 1984, tad it La Aistracion del none (1958), Tim, Binal, 1989, _AVISAO DE MRINDO DE MIETZSCHE 6 tem sentido do ponto de vista de um racionalismo me- tafisico ainda profundamente hegeliano, e ndo por acaso ‘vein dos mandstas. Se ¢ irracionalismo uma perspectiva que vé a razio lutar para se afirmar e para constituit coe- roncias em um mundo substancialmente problemtico, onde nada esté gatantide por antecipacdo, pois bem, Nietzsche é um irracionalista, Mas racionalismo e f@ na azo tornam-se entao prerrogativas de quem nao acre dita realmente na forga da razdo, mas faz. dela uin sim ples espelho de uma ordem.estabelecida de uma vez por todas fora dela, ou a0 menos fora daquilo que comumen- te chamamos razdo ¢ exetcernos como ta ; Qual perspectiva Nietzsche opie aquela que vé a decissio e 0 presente colacados ¢ definidos no tempo? Mrata-se efetivamente de uma verdadeira inversio. Se info fosse assim, seria precisamente o tempo a resposta 3 ‘questo que Nietzsche, como vimos, formula na concl sio do fragmento autobiografico ce 1863, ¢ que perma- nece subsiancialmente aberia até o fim. Nao é 0 tempo uilo que no fim envolve ainda o homem e constitu © Fusion dentzo do qual nas decsGer se colo ead- quirem sentido, Ou methor:o tempo se constitu apenas no instante da deciséo. ‘Besee 0 sentido de uma das mais sugestivas paginas do Zaratustra, 0 capitulo intitulado “Da visio e do enig, ma’, Aqui o niicleo da visio, que constitui ao mesmo tempo o enigma e sua solugao, € que os dois eaminhos do pasado e do futuro esto unidos firmemente sob a grande porta em que esté eserito “Augenblick”, o instar. te. Besse o instante da decisio a partir da quel o tempo se estende em suas dimensdes constitutivas. E 0 presen- te 6 justamente decisdo, corte e diseriminagdo apenas em relagio a decisdo de que existe um passado e um futuro. 64 utLoGo CoM MuEescHE Antes disso nao existe o tempo nem sequer como sim- ples fluxo, jé que até um fluir implica uma dirego, urn it pata, e portanto jé contém aquela distingao, aquela dis- ‘riminacio que 86 a decisio é capaz de instituir. Nao é a decisio que esté no tempo, somos obrigados a dizer, Portanto, mas é o tempo que esté na decisio. Juntamente com 0 ensaio Sobre vendade e mentira, a segunda Extempordnea, com scus desdobramentos nas obras sucessivas, constitui, assim, 0 outro fundamento do pensamento de Nietzsche porque, assim como aque le destruia a supersticao da natuteza, do dar-se imediato das coisas como critétio da verdade e como horizonte, esta destr6i 0 outro grande mito, proprio do século XIX, da historia como horizonte. Esta vitima instancia, para dlistinguir 0 verdadeiro do falso, que para o empitismo havia sido o “mundo da experiéncia”, se tornara, para 0 século XIX, a "Hist6ria”, Bera uma forma de salvar a es- tabilidade do mundo, mesmo acmitindo, ou pensando admitir, 0 devit, De fato, pareciam dizer, nao existe um dar-se imediato das coisas ¢ da verdade; toda verdade & telativa; mas, justamente, ¢ relativa 4 6poca, ¢ existe por- tanto um saber verdadeito, aquele que relativiza as ver dades as diversas épocas (a filosolia de Hegel, para o idealismo; a sociologia, para o positivismo). Mas, como vimos, para Nietzsche, e precisamente através desse des dobramento de pensamento, 0 mundo verdadeito tor- nou-se fabula; nao 36 0 mundo da natureza e da chama da evidéncia, mas também o da historia, Admitit a “His- teria” dentro da qual enunciados ¢ ages adquitem umn sentido € também admitir um mundo estavel e verda. deiro, se no em suas caracteristicas exteriores, ao menos ‘em stias leis de desenvolvimento (a dialética). _jvisho DF MUNDO DE METZSCHE 8 como fabula A filosof A reflexao sobre o historicismo e sobre a conseién- ia histética 6, portanto, apenas outra mareira com que Sfotusche verca que 0 mundo se tomou fébula. B 0 into de chegada dessa reflexdo ainda é 0 mesmo: inci- pit Zarathustra. Afinal, o que significa dizer que o mundo fe tornon fébula? O que Nietzsche pe no lugar das f Bolas da evinci & da sti. nae qua endo se ntara a metafisica ocicdental? pm eat como fazer encantmentos (Zatbrn) text consigo um desencantamento (Entznnberung) dante de judo o que existe.” Assim, em sua erica as fabulas e aos tos, Nietzsche também se apresenta como umn criador de encantamentos. $6 porque ele tem uma nova fabula para apresentar, as velhas fabulas se revelamn como lais. Desse modo, Nietzsche rejeita, com a qualificagao de historicista, uma outra qualificagdo que seriamos ten- tados a Ihe atribuir, e com muitas razdes, a de desimitifi- cador ou desmitologizador. Também a desmitiicagao, que Nietzsche exercitou talvez mais do que qualquer ov- tto pensador modemo, implica, porém, a f& em uma cer teza que est na base de todo desvelamento. Desmitif car quer dizer mostrar 0 espirito de vetdade, a estrattra ocala (mas, esta sim, vrdadeira) dos mito, verdad rm face que se esconde atrés de sua méscara. Ora, para ser tim desmitologizador ou desmitfcado, falta @ Nietz~ sche justamente 0 essencial, ou seja, a f€ na possibilida de de chegara uma estrutura oculta, defintiva, que se re~ vele como niicleo verdadeito sob a fabula. Se no fosse 16 "Le sete slitaini® [Aste solids, fragmenta destnado a ‘uma nova parte do Zaratustn,em Ope, vol. VI tomo 1, pate2, p61 66 puALoso CoM NuEresciie assim, ele também teria de admitir uma evidéncia tiltima em relagéo a qual o mito ea fabula se revelam como tais, Contudo, a desmitologizacao e a desinitificaco sao um aspecto inegivel e preponderante do pensamento de Nietzsche: como se expiica? Precisamente porque a des- Iitifiagio é um aspecto vinculado necessariamente ttiago de novos mitos; 86 por ter um mito novo para apresentar Nietzsche pode desvelar os mitos preceden {es em sua mitologicidade. Fazer encantamentos tam. bém implica sempre un desencantamento diante daqui- To que ja existe. iso € muito importante, porque nos diz 0 que de vemos esperar de Nietzsche como filésofo construtivo, de que natureza sio as propostas que ele nos faz, as teo” rias que ele defende. E ele mesmo quem nos adverte: a que ele nos prope no passa dle outa fabula, que pre tende tomar o lugar das outras, mas que nao se apresen- ta com nenhum maior titulo de “verdade”. Antes de nos propor uma nova filosofia, Nietzsche quer apresentar uma nova maneira de entender e de fazer filosofia. Que posicio se pode realmente tomar dante de alguém que, antes de comesar seu discurso, nos avisa que esta prestes a nos contar uma fabula, js que as filosofias sao todas Fa bulas, a sua ndo menos que as outras? O que & questio- nado ¢ obrigaco a uma decisio 6, antes de tudo, nasso maodlo de discutir, de aceitat ou rejeitar 0 que nos & pro- Posto. O discurso de Nietesche nao pede para set aceito ‘ou rejeitado com base em provas, pede alguma outra coi. sa. E qual coisa? Provavelmente, mais que uma ace! tagéo ou uma recusa com base em provas, pede uma tesposta, Aqui Nietzsche alcanga outro grande pensador do séeulo XIX com quem tem em comum muito mais do que bs sho DE MUNDO DE NIETZSCUE or acredita, Kierkegaard. A verdade ndo é um dda; 2 verdade (para Kierkegaard a verdade reigns, de non) ns aioe eso pest de sips strep posta aade so passa ou a acetagio “racional, mas or sso im- Pal, que sedi a um teorema de geometta, do qual a Fossa vida no depende de todo algun ao contro, Be nos apresenia sua tabula para que nés the demos tara epost, ainda gue igualnent fabulzando, por sana vet, A filosfia ern sta, &proposta de porigies oalsdiante do mundo, acetar a discussio com cla F pnifica assurira responsabllidade de elaborate propor tam posicionamento proprio, Eterno retorno ¢ responsabilidade do homem Esse & um primeiro sentido, ainda historiista, se de- sejarmos, da idcia do eterno retorno do mesmo, uma das ldcas mais dieis de sportar” De fato, a0 menos era tum primero sentido, ela significa aquelaconsinciahe- racitiana muito clara do fluir e do passar ineessante de todas as coisas, consciéneia que tiraria toda capacidade de agir de quem nfo tenha uma coragem sobre-huma- na. Este primeiro significado da ideia do eterno retomo cexplica também em que sentido o primeito nilsta com pleto é também aquele que pela primeira vez supera 0 17 Sobze a dein do eterno reteno como “o pensamento master rive”, 9 qual Nietzsche volta com mit fequédla, cf. por exemplo (pre ol VIL, tomo, pate 2, p 265. 68 uttoco cow wierzscue Pode-se dizer que o tiltimo degrau da escada do nii- lismo (insensatez de todas as coisas em virtude do devit incontrolavel) é também o primeiro passo para a suppera sa deste. Compreender isso significa compreender tam- bém em que sentido a perspectiva de Nietzsche est bem dlstante cle confiar filosofar ea verdade ao arbitrio e ao inracional, Se realmente o devir 6 um eterno retorno do mes- ‘mo, ou seja, ndo tem uma diego nem um desenvolvi- mento como queria o historicismo, a decisao, por um Jado, torna-se um absoluto e, por outro, torna-se deter rminante nao de um tinico ponto da historia, mas da his- tstia em sua totalidade. $40 essas as caracteristieas que, em aparente contradigao, Nietzsche atribui precisamen. te. decisio uma vez que se tenha reconhecido o eterno Fetomo do mesmo, Antes de tudo: se o devir néo é um desenvolvimento organizado por leis, cada ponto dele equivaleré a outro ponto (ou melhor, na yerdade eles hao se diferenciarao), e nenhusn deles poderd ter uma ptioridade de valor sobre os outros; nenhuma decisio poderd dizer-se determinada ou condicionada por outra coisa, Bm um mundo em que ndo existe histéria como devir historicista, a decisio 6 realmente um absoluto, © ‘que parece constituir 0 problema do fragmento autobio- grifico de 1863 € a decisdo nao incluida em nenhum ho. Hzonte, mas que, quando muito, insttui um horizon. Ela ndo esté em um mundo, mas precisamente, como diré a dltima carta a Burckhardt, funda e institui, cria 0 mundo. disso que deve ter consciéncia 0 stuper-homnem hiletzschiano. Pode essa consciéncia diltir-se em levian dade ou arbittio? O que existe de mais severo que o im- Perativo: aja como se aquilo que voce esta para fazer ti- vesse de se repetir eternamente? o ct 69 5 gyasko De MUNDO DE NIETZSCHE Jim, 0 pensamento do eterno retorno & mais umn apeto response ssn apna indo transformou-se em fabula: sso significa Jems, que toda a responsabildade recai sobre nos. Até Mrnorte de Deus, que Zaratustra anuncia, nfo é outra casa qo fi ds arta de que o harem da meta fsa acon se adr pa se ar a respons ide pen por seus alos. De fato i “o deus moral gque morte”, ou sea, 0 deus da ordem constituida de tima vez por todas. ; Ofamen nov que Nietzsche projets para x preparar 9 caminho com seu pensamento & 0 ho~ SKemlcepar de assum plenamente seas press res joncablidades. f por esse motive que nos fragmentos do We ur Mack, obra que Netshe planjava como anma de sew pensamento e que jamais levou a texto, hierarquia dos valores, mas em seu aspecto dinamico, como insituigdes dessa ordem dos valores. : Desejou-se interpretar sobretudo esse aspecto do pensamento de Nietzsche como uma apologia do auto- Htarismo, do supra-humanismo politico de que a pri meira metade do século XX nos forneceu alguns tristes txemplos. Na verdade, a ctiagSo e promulgacio de ta- bas de valores é uma tarefa que Nietzsche prope a to- dos os homens. No entanto, ele sed conta de que, pata ‘iar autenticamente valotes, pata fazer algo de signilica- tivo na histria, € preciso estar preparado. Tod chamados a fazer algo significativo, mas poucos conse gem fazé-lo 18 CE. Werke, Leipaig ed. Naumann 1903, vo. XII, p75. ” ubLOGO com NHerzscuE Resumida desse modo, a posigio de Nietzsche tor- na-se até banal. E seria, se no fundo dela no houvesse sempre algo de misterioso e de dificilmente exprimivel fora da aura mitica em que Nietzsche deliberadamente a deixa. Um livro inteito do Wille zur Macht traz o titulo (decidido pelos editores, mas com base nos apontamen. tos de Nietzsche) Zucht und Ziichnng, disciplina e edi. cagiio; mas a melhor tradugéo para Zucht seria criadou. Yo, e se usa igualmente para animais. De resto, todes sa bem quanto Nietzsche insiste no conevito de raga, ¢ também isso o levou a ser incluido entre os profetas do nazismo, Mas quem procurar interpretar esse conceito mantendo-se fiel ao significado abrangente do pensa. mento de Nietzsche reconhecera que, com essa insistén. cia na raga, mais que na educagao no sentido costume. +0 da palavra, Nietzsche quer apenas acentuar o carster femoto, ¢ por isso mais biolégico que pedagogico e cul tural, da prepatagao necesséria ao homem que faz. algo de decisivo na histéria, aquele super-homem eapaz de Suportar a ideia do eterno retomno e de abrigar sua deci- S20 fora dos horizontes estabelecidos, fora de qualquer Sarantia. E por isso, por exempto, que ninguém se toma filésofo, mas nasce filésofo, “Para estimar o valor das vei, S25, nao € suficiente conhec®-s, ainda que isso seja ne- cessirio. & preciso atribuit-Ihes valor, & preciso ser al- sguém que tem o direito de atribuir valores" Ora, quuém me da o dircito de me considerar legislador? Sem divi. da, é um diteito que temos na medida om que decidimos assumi-to, mes até essa decisdo implica uma especie de Predestinaglo. “HA no fundo do espirito alguma coisa ‘que ndo pode ser ensinada: uma rocha granitica de fata 19. Oper wo. Vl, tom 2 fe 248 “AvIsHO DE MUNDO DE NIETZSCHE, a dade, de deco 6 tomada sabe tos os problemas sant adequarsee refers aise a0 mestno tempo {mm diteito a determinados problemas, uma inscrisio de- fogo com nosso nome.” z fe “ean predestinagio nao significa outra coisa senao ue a possibilidade para o homem de fazer algo signifi Sees ha stra ene dima ate ent, dea la rng que aes repo jostamente 2 role em bapa ouligrsts dle 1863. E verdade que nao se resolve a questo do hori- zonte da acdo e da decisao, ou re ee e, aoe rem aperas car hoon as agent de {869 js acenava para lguma otra cola, que ag parece .e evidenciar plenamente, ou seja, a presenga de uma for 7 regente e norteadora. Antes das palavras conclusivas fe laos no in, Nitin eae nue ween po : acontece comigo até agora, sea alegria ou dor, ¢ 0s eventos me conduzitam até agora Saoina nee fem poe reac as amare o enol, € ag ara remota ‘que permite ao super-homem ser aquilo Ge & supra ie tad etomo torn ede, ‘ier a pti deco na cere Decisdo e relagio com o ser Descobre-se aqui o tiltimo e mais profundo signifi cado da ideia do eterno retorno, aquele que, apesar de tudo, poderia levar a falar, em tum sentido muito amplo, tomo 1, cademo 1 fe. 202. 20. Oper, vl n ULOGO COM MIEFescHE de um Nietzsche religioso, ou no minimo de um Nietz sche ont6logo ou ontologista. Se ¢ verdade, de um lado, que a devisio nao tem um horizonte pré-constituido, tas, a0 contrétio, ela mesma cria 0 proprio horizonte, justamente porque o devirhistérico nao tem mais aque lesentido norteador que o historicismo Ihe attibuita, tam bém ¢ verdade que o poder de decidir chega ao homem nao por um ato arbitratio, ¢ sim por uma espécie de raiz remota de que Nietzsche fala poutco, ¢ & qual alude com muitas metéforas biolégicas, incluindo a de raga, Ora, essa raiz leva a pensar que a decisio, apesar de tudo, também se define em relagdo a algo, ainda que esse algo no possa ser nem o mundo (da natureza ou da historia) nem Deus, entendido no sentido tradicional. Em suma, além da queda dos horizontes, hé uma telagao constitu tiva da deciséo ¢ do super-homem, O que 6 essa relagéo, e com o qué? A tinica respo: fa possivel, que Nietzsche ndo dew explicitamente, mas que podemos imaginar com base no restante de seu pensamento, & que essa relagio que cria e constitui ori ginatiamente a deciséo — que, por sua vez, esté na base do tempo, das suas dimensdes de passado ¢ de futuro, ¢ de todas as relagées historicamente identificadas ~ 6 a relagio com a totalidade do ser: “aceitar e aprovar um nico fato significa aprovar o todo, a totalidade do pas- sado e do presente”, Alids, esse € também um sentido ossfvel dos discursos sobre a responsabilidade de cada decisto, na qual esté implicado o destino de tudo, De- molida a estrutura serial-do tempo, ou ao menos sendo esta reconhecida como nao originaria, a decisdo também ‘do se coloca mais em relacdo com este ou aquele mo- 21. Oper vo. VIL, tomo 2, p 4, | ‘Aviso DE MUNDO DE wIETZSCHE B unto do tempo, mas com a totalidade do devir e do ser -vordade e aparénca iusoria). E por essa relagao, como j& parece sugerit 0 fragmento autobiogratico de 1863, é {qualificada ¢ em certo sentido determinada, Ba relagio com o todo, a raiz remota na totalidade do ser que dé a0 filésofa 6 diteito de filosofar, ou seja, de legisla. 850 significa, traduzido no nivel do discurso s0- bre a historia de que partitnos, que o devir da historia é garantido como devir ¢ como novidade s6 enquanto bro~ ta de uma origem, de um ser que tem como caractetisti- ca a ctiatividade, a originariedade precisamente no sen- tido de ser uma origem permanente e sempre ativa, ja~ mais ocotrida de uma vez por todas, das coisas. Se 0 devir da histéria fosse confiado a uma decisio arbitréria do homem, no se poderia falar de verdadeira novidade. Nada mais do chamado arbitrério esta ligado as condigoes existentes: o humor, a heranga biol referéncias instintivas. PreNictzoche nfo vé a hst6ria como natureza neste sentido, ou seja, no sentido de que a novidade histérica 6 um produto do instinto ou da “vida” no significado ba~ nal e bruto do tetmo. Para ele, a histéria é natureza, quando muito em outro significado, no sentido da pala vra grega phjsis, que significa forca originante, manan- cial permanente, fonte atwal da novidade, origem, nasei- mento. £ essa, om iitima andlise, a razdo pela qual para Nietzsche nao se pode falar de um mundo dado de wma vez por todas, em relagdo ao qual a proposicao se verif gue como verdadeira enquanto conforme a ele. Nao exis- te o mundo, existem mundos como posigSes sempre em movimento da origem, a qual gera 0s mundos como, ou enquanto (¢ talvez seja a mesma coisa), gera as perspec: ” DuALOGO COM NiErzscHE tivas dentro das quais eles se revelam. A maneira de se aproximar da verdade ndo 6, portanto, a de finalmente chegar a ver as coisas como estdo, jé que clas nio “es- £20" de jeito nenhurm, mas antes ~e aqui vamos além do sentido literal dos textos nietzschianos ~ manter-se em. relagdo com a origem, evitar perder-se no interior da pr pria perspectiva hist6rica absolutizando-a, identifican- lo-a imediatamente com a realidade. Tudo isso esté con- tido na ideia nietzschiana do eterno retorno do mesmo, ‘cohomem que Nietzsche quer preparar com sta filoso- fia, 0 super-homem, é aquele capaz de viver neste mun- do, no set assin entendido e compreendido. Paradoxalmente, Nietzsche nao deixa de dar uma es- pécie de justificacao histérica para sua exigéncia de uma nova humanidade. B aquela que pode ser encontrada, Por exemplo, no apontamento do Wille zur Macht, preci- samente no livro intitulado Zueht und Zithtung. Com 0 progresso da técnica, o homem tera necessidade de cada ‘vez menos virtude para sobreviver no mundo, jé que as condiges externas de dificuldade das quais as virtudes se criginaram terSo desapatecido. A esta altura, o homem terd diante de si dois eaminhos: ou abandonar-se total mente & mediocridade e & massificagio, perdendo, com a necessiiade de se esforgat, também todas as virtudes que pouco a pouco havia adquirido na hist6ria, em um processo involutivo que nao sabemos aonde iia dat; ou ento dedicar-se conscientemente a propria autoforma. ‘0, finalmente liberta da casualidade a que se via obri- gada pelas vtias exigencias exteriores Se quisermos, 0 mundo em que a verdade como es- tabilidade tomou-se fabula 6 0 novo mundo da técnica, fem que cada vez mais se torna evidente que as coisas ao s80 como so, mas como nés as fazemos. Fm um ‘AvIsh0 DE MUNDO DE NIET2SCHE % no em que o homem nao encontta mais aquilo que fos aqui que fe proud, ate o sentido do erno ‘eo conceito de ser devem ser renovados. O ser, pensa Nietzsche, j& no pode mostrar-se como a estabilidade do dado, mas como a dinamicidade da origem perma- nentemente viva e originante. E neste mundo o homem também no & mais o mesmo. $6 podemos imaginar de aneita aproximada aquilo que ele deve se tornat. O que sabemos é que, para ser homem neste mundo, ele deve omesat @ assum plenamente as proprias responsabil dades. (© PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO E A FORMACAO DA IDEIA NIEIZSCHTANA DA VERDADE, Filosofia ¢ filologia A caitica que, ao longo de todo o desenvolvimento de seu pensamento, Nietzsche realiza & nogio tradicio- nal da verdade como conformidade da proposicio a0 dado, eritica vineulada aquela da nocio de evidéncia como critério da verdade, costuma ser resumida muito apressadamente com aquilo que, também aqui de modo tum tanto genérico, se indica como scu irracionatismo om vitalismo. Para esclarecer tal interpretagio, além disso, costtima-se evocar sua dependéncia de Schopenhater, ¢ «© peculiar tom metafisico que este dew & distingo kan- tiana entre fendmeno e niimeno. (Ot, se & certo que Nietzsche encontrou em Scho- penhauiet, ao menos no primeito periodo de sua produ- 0, 0s instrumentos conceituais que Ihe permitiram for- mular filosoficamente sua visdo de mundo, instrumentos que, sem diivida, influenciaram também 0 contetido de {al visto de mundo, também é certo que, especialmente no que diz respeito ao problema fundamental da verda- 8 IALOGO COM MIEYZsCHE dle, Nietasche passou a constituir a propria posigao de ‘maneira substancialmente independente de Schopen hhauer, © em referéncia a um tipo de experiéncia que, no fundo, nao podia encontrar um lugar adequado no siste- ma de Schopenhauer, ou seja, & experiéncia do conheci- mento hist6rico. Essa inclependéncta, ndo tao telatva, de Schopenhauer no que se refere aos pontos essenciais da concepgio de verdace explicaria também como na filo- sofia de Nietzsche essa concepgao de verdade pode per- manecer inalterada, e até se aprofundar sem se conttad er, mesmo quando qualquer adiesio ao pensamento de Schopenhatier era um fato do passado. Reconhecer a importancia da experiéncia filolégica na formagio da nogto nietzschiana da verdade significa também, entre outras coisas, indicar um dos caminhos ais auténticos ¢ fecundos através dos quais se pode re- conhecer a ligagio de Nietzsche com a tradigao filos6f ca europcia. A filologia, nao tanto ou nao apenas como diseiplina especializada quanto sobretudo como modelo, ideal do conhecimento e como ambito de uma repropo- sigio geral do problema da existéncia do homem no mundo ¢, acima de tudo, no tempo, de fato sempre se encontra nos grandes momentos de virada da moderna consciéneia europeia, ¢ também da filosofia em sentido espeeifico, Bastaria lembrar o significado central da filo- logia na formagio do humanismo e do renascimento e, ‘mais tarde, na preparagdo do romantismo attavés da Spo a do classicismo alemio. No fundo, essas referéneias nao siio alheias & constituigao essenecial ¢ a problematica dominante da filosofia nietzschiana; ao contrétio, elas servem precisamente para situar Nietesche na linka de uma tradicio que é aquela & qual ele pertence mais au téntica e profundamente, a tradiggo que chamarfamos ‘a pkosteMA Do CONHECIMENTO HISTORIC y genericamente de tradigdo “humanista” do pensamento cearopeu. As tentativas que ainda recentemente se fizeram de vincular Nietzsche e seu pensamento mais 20 desen- volvimento das modemnas ciéncias da natureza tém o de~ feito de tomar coma base o interesse, inegivel mas cer tamente nao “origindrio”, e alm disso sempre cultivado de modo fragmentirio e ocasional, pelas teorias cientif cas de suia época; interesse refutacio bem claramente (a0 menos é o que procurarei mostrar) pelo peso determi- nante da experiénecia floldgica na formagio de sua idcia da verdade. : Quando se fala de experiéncia filolégica, contudo, & preciso esclarecer desde o inicio que tal experiéncia, para Nietzsche, nunca foi, nem sequer nos anos em que ele se dedicou a ela mais completamente, uma atitude de eru- dito, de especialista. Mas isso, mais uma vez, aproxima-o precisamente dos filblogos das épocas decisivas da his- {ria do esprito europeu a que aluclfamos poueo acima; 05 fildlogos do humanismo e do dlassicismo, ao menos 6 grandes, tampouco foram especialistas do passado enquanto passado. Para Nietzsche, filologia significa, an- tes de tudo, apresentagdo do problema da nossa relagao com o passado. Ora, ta problema esté de qualquer mado na base de todo o desenvolvimento do pensamento mo- demo, que ndo por acaso culmina (e chega também a uma reviravolta decisiva) nas grandes doutrinas histori- cistas do século XIX ¢ também do século XX, Nietzsche, que vive em uma época em que o amadurecimento da consciéncia hist6ric, iniciaddo no humanismo, chegow a seu apogeu e agora entra em crise precisamente pelo de- senvolvimento sem precedentes da consciéncia historio- grifca (das dlisciplinas histéricas), em certo sentido re- conduz, toda a questo as suas origens, repropondo o 80 BiALOG0 CoM NirTzsCH problema acerca do modo como se dé nossa relagio-com © pasado e sobre o significado que tal relago tem para a determinacéo geral da fisionomia de nossa civilizagao. Nao € por acaso que a obra em que Nietzsche se apresentava ao priblico como fildlogo, propondo uma vi- sao original e revoliciondtia do espitito do classicismo, tenha sido também toda uma apaixonada discussio da decadéncia do moderno espirito europeu. Na Geburt der Tiagedie, os dois temas, visdo do classicismo e problema da decadéncia, estdo estreitamente ligados. Para sait da decadéncia nao basta substituir uma certa visio da ci lizagao grega por uma visio diferente, eventualmente mais fiel e objetiva. O que determina a decadéncia 6, a0 contrério, toda uma manera abrangente de apresentar e de conceber nossa relagao com o passado, uma maneita vinculada com @ ideia que fazemos da civilizacio grega, mas que néio se redu a um etto historiografico que é preciso simplesmente cortigit com uma perspectiva mais adequada, O fato de a civilizagio grega se manifestat sob as vestes daquilo que habittialmente chamamos de clis- sico esta estreitamente ligado, num elo de determinagio. reciproca, com o fato de que temos uma atituce epig6ni- inte do passado em geal. E possivel dizer que com. essa ideia Nietasche no faz. sendo enunciar claramente aquele que havia sido 0 paradoxo da mentalidade classi« cista viva no pré-romantismo alemdo: a contemplagao do classicismo como tinico mundo auténtico, equilibra- do, digno do homem, ¢, 20 mesmo tempo, a consciéncia profundamente nostélgica da impossibilidade de recu- petar tal condigéo, Assim como nessa perspectiva uma certa visio do contetido do classicismo era acompanhada ou simples- mente determinada por uma certa maneira de se sittiat 7 o moMEMA D0 CONE HISTORIC 8 diante do passado, na nova perspectiva de Nietzsche a proposta de um modo diferente de interpretar € conce- ber o significado da civlizagao classica caminha parale~ lamente & tentativa de encontrar um modo nao mais, epigénico de se relacionar com passado, Alids, pode-se dizer que a propria claboragio de uma hipdtese historio- ¢grafica diferente sobre a civilizacao grega constitui-se no interior desta segunda busca, que, ao contratio, geralmen te visa esclarecer o significado que a tomada de cons- iéncia do préprio passado, tem para uma civilizagao. Vinculando a propria ideia do cardter “classico” do classicismo com a mentalidade epigdnica ¢ decadente, Nietzsche, em Geburt der Tragédie, liquida definitivamen” te-0 mito classiista, e no fundo ainda roméntico, da ci- vilizago grega. Mas essa liquidacdo nao ocorre tanto ou. principalmente no nivel dos contetidos, 0 que poderia levar a dizer que a hipdtese nictzschiana sobre o signifi- cado ¢ 0 “espirito” da antiguidade clissica é suscet de discussao ¢ de eventual correcso no plano filolbgico;, a visio classicista da antiguidade ¢ impossibilitada des- de os seus fundamentos, na medida em que a propria atitude espiritual da qual ela ngo passava de uma mani- festagao & transformada em objeto de critica Por esse motivo, obviamente nao tem sentido consi- derar que Nietzsche, ainda que as vezes o texto sobre a ‘tagédia leve a pensar o contratio, vise de algum modo uma restauragao da eivilizagio grega. Para ele, 0 que é constitutivo de nossa relagao com 0 passado 6, antes, ptecisamente o reconhecimento de sua Einmatigkeit. Mas a0 mesmo tempo, paradoxalmente, justamente a reniin- cia a imitar e a reproduzir o passado, 0 reconhecimento de sta historicidade, 6 também a tinica maneira que te- mos de imité-lo autenticamente. De fato, o que constitui 82 DIALOGO CoM NiETasCHE a riqueza c a vitalidade do mundo grego, que o levatam 2 set assumido como um ideal por tanios momentos da ulterior eiviizacio europeia, é precisamente, também (ou fundamentalmente), uma certa maneira diferente da nos 2, epignica e decadente, de se relacionat com 0 priprio passado, e mais em geral com a verdade. Se quisermos, poderemos resumir tudo isso dizen- do que, para uma civilizagéo, a maneira como ela pensa a préptia relagao com o passado & decisiva, A propria ideia de uma época eléssiea esta ligada a uma maneira decadente de pensar essa relagéo. Nietzsche substitui definitivamente a ideia de classicismo pela de tragicida- dea cvilizagio grega nao é uma civilizagio cléssica, mas sim uma civilizagao trdgica. E, asim como a qualificagao de classiea néio a define tanto em sua esséncia quanto em seu significado para nds, assim também a tragicida- de no ser uma caracteristica apenas daquela civiliza ‘40, mas qualificaré também fundamentaimente nossa maneira de nos relacionar comn ela, Como a ideia de clas sicismo correspondia a uma certa maneira de se situar diante do passado, epigénica c decaciente, & preciso en- contrar que maneira nova e diferente de apresentar essa relagio corresponde & nova concepgio tragica da anti- suidade grega, fi em relagio a essa problematica da bus. ca de uma maneita que poderfamos dizer auténtica, ou, ‘a0 menos nio decadente, de se posicionar diante do pas- sado, que amadutece e se desenvalve inicialmente em Nictesche a reflexao sobre a verdade. De fato,a historia também é historiografia: questionar a maneita correta de se relacionar com 0 passado significa questionar 0 sign ficado da nagio de verdade nas ciéncias histéticas. Essa € a origem nietzschiana, autinoma, independente de Schopenhauer ¢ ligada antes & experiéneia de seus est- ‘O PRONLEMA DO CONHECIMENTO InSsTOCO 83 fo flol6gicos origindtios, da reflexio sobre a verdade & qeratica&nocto tradiclonal da verdade como “obje dade”, como conformidade verificavel da proposigao 20 dado”. O que dissemos acimna mostra, akém disso, como cessa fixagdo do problema da verdade na experiénia filo {égica nao o isola em um plano de especialidade, de me~ todologia de uma ciéncia determinada e muito particu Jar; em virtude da maneira como Nietzsche pensa e exer- ce a flologia, coloca-o, a conttétio, no centro de toda sua filosofia da cultura, jitude” do fato histérico Filologia e verdade: A problematicidade da filologia e do conhecimento hist6rico, como se revela desde os eseritos inaugurais de Nietzsche e amadurece especialmente nos apontamen tos de Wir Philologer, além de na famosa segunda Con: sideragio extempordnea, tem diversos aspectos, todos 05 {quais convergem no questionamento da nogao de verda de como conformidade da proposigao a0 dado, nogao que dominara toda a tradigao metafisica e que Nietzsche encontrava como ideal da cidncia de sua época. Ha, antes de tudo, uma desproporgao enormne, “ri- dicala’, entre o objeto que a filologia quer conhecer, 2 an- liguidade cléssica, que se apresenta a nés sobretuclo na forma da grande producio postica e artistica, e » méto- do com que se pretend abordé-la: “a relagio do erudi- to com o grande poeta tem algo de ridiculo”. f preciso Lin. Nctesche, Gemini Werke, Munique, Musarion Verlag, 1922, ol lp. M0, Cito parti da edigio Missarion porque e tata de apontamests anteriores a 1867, ainda nao publicados na edi cen. 84 uttoco com Nrrzscne apenas aprofundar o signiticado dessa desproporggo para encontrar as exigéncias que, segundo Nietzsche, devem ser atendidas por uma doutrina adequada da verdade has ciéncias histéricas. Ha um primeito sentido da des Proporcio, e é ele que depois Nietzsche tera continua- ‘mente presente e se tomnard o Leifmotiv de seu pensamen- tono chamado primeiro periodo de sua especulagao: en ‘quanto a filologia cléssica forma eruditos, os gregos nada tinham de eruditns, ¢ no havia vestigio de erudicéo em seu ideal de educaggo. No periodo da grande filosofia Brega (@ filosofia pré-socratica), ou seja, naquela que Nietzsche chama de época trdgica dos gregos, “0 erudi- to é uma figura desconhecida”®. Os gregos sao antes poe. tas, precisamente, diante de cuja obra o erudito se reve- la incapaz de qualquer compreensao adequada. No entanto, nao se trata de negar ao erudito a capa ‘Cidade de uma fruigéo estética das obras da antiguidade. Ao contratio, a fruigio estética, no sentido moderno des- sa palavra, enquanto ela indica uma esfera de experién- cia que nao tem nada a ver com verdadeiro e falso, bem e mal ete, & até um produto tipico da mesma civilizagao que produzo erudlito. A esteticidade que catacteriza a ci- vilizagao grega e suas prodgSes tem a ver, antes, com a propria maneira de se posicionar diante da verdade, uma ‘manera que nao é racionalista e reflexiva, mas que tem de algum modo a imediagéo e a simplicidade caracteris" ticas da obra de arte’ No entanto, além desses dots sentidos to radical mente opostos de esteticidade, existe um outro em que se pode dizer que o conhecimento hist6rico, para ser au- 2, Werle, vol I, pp. 342.636 3.CE Werke, voll pp. 3665, (0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO % féntico, deve ser um fato estético, em um sentido que estetcidade, De fato, Nietzsche diz que uma “civiizagio Eantes de tudo a unidade de um estilo aitistico em to das as manifestagdes de vida de um povo”'. A unidade do estilo artistco implica uma unidade mais profunda ¢ mais ampla, que é precisamente a unidade "estética”, ou seja, organica e definida, de uma certa civilizagao. Bn- quanto unitéria, caracterizada por uma certa "format (que obviamente pode ser também um sistema de con- ceitos), uma civilizagao ¢ tim fato estético. Paralelamen- te, 0 fildlogo, para abordar © proprio objeto de modo ‘menos inadecqado, deveria ser capaz de reconstruit in tuilivamente grandes totalidades. O conhecimento filo- égico quase sempre tem urn cardtet analitico que o faz perder de vista 0s vinculos ou, caso se quelra, a totalida- de das épocas com que depara: o que esté ligado ao fato de que 0 fldlogo carece de um ponto de vista total sobre ‘omundo, também ¢ antes de tudo sobre o mundo de seu tempo, e por conseuinte ndo pode compreender a his \6ria cm suas grandes conexdes, nem sequer a histéria do passado de que se ocupa, Ele se parece mais com um. “opera da insti sevigo da cna” «perdu todo gosto “de abragar uma totalidade maior ou de institu novos pontos de vista sobre o mundo”. Essa capacidade pode, portanto, ser considetada estética no sentido em {quea compreensio de um todo como organicamente es- truturado tem algo de estético aa ‘Mas o sentido em que Nietzsche vincularé essa “es tcticidade” da compreensio histérica com a esteticidade, 4 Consideraieseempontnens. I. David tous. Der Beker ud er Slit 5 Wek, vol p 296 86 iALOGO CoM NiErascHe por assin dizer, existencial, que cle peculiatmente teori- Za e que encontta na civilizagio tgica, é diferente e mais profundo. A passagem seré realizada por meio da relagao inseparsvel que nao se pode deixar de reconhecer entre organicidade ¢ vica em ato, ainda que essa ligagéo pos- sa ser apontada no ambito da interpretagao endo emer ja temiética e explicitamente em seus textos. E certo, cantudo, que o fildlogo-erudito néo com- preende 0 passado em suas formagdes abrangentes, 0 aspecto estrutural das épocas e das grandes unidades histéricas, porque nao possui um ponto de vista geral so- bre o mundo. Ora, “a compreensio histérica ndo é senao a concepeio de determinados fatos com base em pres supostos filos6ficos". Um fato historico é alguma eoisa de “infinito jamais plenamente reprodutfvel””, Mas essa infinitude (¢ nesse ponto Nietzsche se revela classicista, oUt seja, apreciador da forma definida e acabada) é uma “md infinitude”: ao menos se compreendida como a impossibilidade de uma reprodugao total do fato,jé que de qualquer modo o conhecimento histérico no deve ter apretensio de “reproduzit” o passado que deseja conhe- 2. Alii, um dos perigos que ameagam ahistertorata justamente o perigo de ela se propor simplesmente nos fazer reviver sentimentos e estados de espitito do passa~ do; contra esse tipo de historiografia vale o lema evangé lico: "eeixem que 0s mortos sepultem os seus mortos” A infinitude do fato historico, concebida dessa ma~ heira, &justamente, quando muito, aquela que justifica ria um trabalho filolégico de tipo erudito e anaiitico, Na verdade, 0 fato histérico “infinito", jamais perfeitamente 6 Werk, vo 7d 8 Opere, vol IV, tomo, p. 148 (OFRORLEMA D0 CONHECIAENTO HISTORICO 87 reprodutivel, nao pode ser objeto de uma representaao total c organic, como a que Nietzsche deseja. Esta 56 € possivel se, reconhecida essa “ma infinitude”, se vai até 6 fim e se reconhece também que ela é apenas sinal de uma concepgao equivocada da verdade como objetivida- de e reflexo fiel dos fatos. Nao foram os eruditos e os co- Ietores de fatos que fizeram a filologia progredir: “a for- ga posta ¢ 0 instinto ctiativo produzitam o melhor na filologia. A maior influéncia foi exercida por alguns belos «erros". O texto como tal oferece sempre infinitas possi- bilidades de leitura; ama leitura se concretiza na medida fem que se escolhem alguns pressupostos, uma perspec tiva definida™. De um lado, portanto, a filologia objetiva como erudigao e verificagao dos fatos ndo € apropriada para o conhecimento de seu objeto porque 0 deixa esca~ par em sua verdadeira ¢ completa estrutura de fato total A ‘ma infinitude” do fato, sua reprodutibilidade nunca perfeita, nos pie em guarda, por assim dizer a partir ce denito, contra a concepedo da verdade (historiogratfica, por enquanto) como conformidade perfeita ao dado. Po- xém, mais profundamente, o problema se esclarece por- que também nos coloca na presenga de uma infinitude “boa do fato histérico, aquela que, positivamente, exige um certo tipo de conhecimento e fornece indicagées para ‘uma doutrina mais aceitével da verdade. ‘A verdadeira tazdo pela qual o erudito nao pode compreender adequadamente 0 fato histérico € que 0 ato € algo vivo, em sua atualidade, enquanto 0 erudito 0 mumifica ¢ 0 esgota, entende-o como algo motto", Para 9. Ware, vo, p. 296. 10.CF Wore, ot 1, CE. Consideragesexteportess H. Da wii edesoantagen da histia pra ava, 6. 88 ALGO CoM NierescHte poder fazer enunciados definitivos, documentados e ir- refataveis, dos quais tanto gostam os filblogos abjetivos, © fato hist6rico precisa estar completamente morto, tanciado de nds, definido em uma esteutura imutével Quando é entendida dessa forma, é precisamente sua natureza de fato histético que se deixa escapar comple. tamente. Aqui, ¢ inttil lembrar, é evidente quanto 0 his- toticismo contempordineo deve a Nietzsche, especialmen- te Dilthey, para além das formulas mais vagas que falam de “vitalismo"; 6 que nos importa destacas, porém, & que, em telagao a Nietzsche, o prdprio Dilthey, com a perma nente adesio a um ideal no fundo empirista do conheci- ‘mento, acaba permanecendo muito mais ancorado a no- so tradicional da verdade como conformidade, a0 pas so que Nietzsche segue a linha de importantes desen- volvimentos ontolégicos". Ahistoricidacle da existéncia consiste no seu ser um “nie zu vollendes Imperfektum’", formula que lembra Dilthey. Para esse tipo de “fatos”, para esses “imperfei- tas” que nunca sao pretérito perfeito, o conhecimento objetivo que constitufa o ideal do positivismo cientifico nao é absolutamente adequado, O questionamento da ogo tradicional da verdacle como objetividade, inicia do aqui no plano do conhecimento hist6rico, se esten- dtd a todo 0 ambito do conhecimento, incluindo o das chamadas ciéncias da natureza, e veremos até que, para Nietzsche, a préptia distingao entre ciéneias da natute zac ciéncias do espiito nao teté nenhum sentido. Aqui, 12. Dafa Himitag das intepretages de Nictesche que tendem a estacar sua contibuigo para formagdo do historic sero com lemporineo: vee, por exemplo,a obra de M. Schosck, Niches Phi fosphie des “Mensch ~Alzumenschlche”, Tablngen, Mok, 1945, 1. Da lide desmtagen, (FRORLEMA DO CONHECIMENTO HIsTORICO 89 jor enquanto, importa ressaltar que a verdadeira infin Fide fate histoco nao sa reprodutiade m- ca perfeita; ou melhor, essa md infinitude leva-nos a evidenciar outro sentido do cardter infinito do fato, om seja, sua abertura constitutiva, que faz com que diante dele jamais seja possivel um comportamento “ objetivo’ ‘Aocontrario, quiem quer realizar esse comportamento & 6 erudito, que depara com uma dupla derrota porque, de um lado, jamais conseguiré reproduzir 0 fato em sua inteireza;¢, seja como for, 0 que conseguitia obter, even tualmente, com esses métodos de reconstrugao e de re produgio nao seria jamais o fato histético em sua con- creta atualidade. Determinagio e abertura do horizonte historiogréfico Diante disso, vemos como o verdadeiro problema da filologia e do conhecimento histérico é o de abordat um fato com um comportamento igualmente histrico; 0 de entrar vivendo em relagio com outro evento enquan- to evento vivo. Os pressupostos filosdficos com base nos quis 0s fatos histéricos devem ser compreendidos reve- lam-se, assim, nao tanto, ou nao apenas, necessétios me- todologicamente para chegar a0 fato; ao qual, como sa- bbemos, nunca se chega “objetivamente”, portanto nem sequer emprogando aquelas perspectivas gerais como instrumentos a servigo de tal objetividade, Ao contratio, 0s pressupostos filosoficos ¢ as perspectivas gerais so mais necessaios para garantir que o conhecimento ¢ a compreensio hist6rica sejam um fato de vida, ¢ 86 en quanto tais poclem ser considerados adequados para a 0 it ‘com muetzscre compreensio da histoticidade em sua abertura de “im- petfeito jamais perfective’. em vista dessa compreensio historiografica, ¢ ela mesma hist6rica, entendida como ato de vida ¢ néo como (impossivel) reflexo objetivo do fato, que “o fildlo- g0 deve compreender trés coisas: a antiguidade, o pre senle e a si mesmo”*. Obviamente, 0 que se deve fazer é esclarecer essa nod de “vida”, que por ora é apenas esbogada no conceito de imperfeito jamais perfectivel ¢ na nogio de uma “tinidade estilistica” exemplificada so- bretudo pela civilizasio grega. Jé nesse conceito de vida aqui delineado, embrionariamente, para opot, & nogdo de verdade como conformidade ao dado e objetividace, uma nogio mais adequada ao caréter vivente tanto do objeto como do sujeito do conhecimento hist6rico, anun- cia-se aquele carater “instituinte” que, no pensamento do Nietasche maduro, serd proprio da vontade de po tGncia, da forga, em getal de todas as noges que servi- 180 para indicat e pata ilustrar o carter do set. De fato, desde essas reflexes sobre o conhecimento histirico, 0 conceito de “forca” mostia-se essencial: & importante fa- 2er essa observacao, porque a forca de que falaré Nietz sche no Wille zur Macht e nos outros esccitos da maturi- dade devers ser compreendida justamente com base nesse primeito uso, para evitar os tao frequentes equivo cos naturalistas : Quem julga, interpreta, reconstrsio passado naque- las totalidades orgénicas compreendidas com base nos “ pressupostos filos6ficos" & a “maior forga do presente”. ALE mesmo o conceito de justiga, paralelo ao de Rang. 14, Oper, vol. AV, caderno 3, 62. 18. Da wilde edesnutigen, 6 | mom 2a D0 conecmenTorstORICO a ondnung, que teré tanta importancia no Wille zur Mack, navce e se evicencia pela primeira vex nessas reflexdes sobre o conhecimento historico. A verdade de tal conhe~ cimento, diz, Nietzsche, ndo pode ser concebida nos mol- des das ciéncias naturais', mas como justiga, como of- dem gue uma forga estabelece entre os fatos, dando a cada aspecto e elemento um lugar préprio, estabelecen- do uma hierarquia’ Todos esses conceitos retonario no Wille 2ur Macht e conservarao tambysm ali um sentido Ii gado a essa sua origem hermenéutica Em suma, a forma adequada de abordar e «le com- preender 0s fatos histériens,¢ antes de tudo os textos es- tos e as obras, que so as formagées mais completas, as instituig6es mais definidas que o pasado nos deixou, €irao encontro deles de maneira viva: 0 que para Nietz- sche, nesta primeira fase de seu pensamento e sempre também em seguida, ainda que de forma e com concei- tos mais elaborados, significa encontré-los como abertos como sujeitos a um ato de interprotagao e sistematiza- <0 de nossa parte. Esse ato nao deve, antes de tudo, ser objetivo: o importante é que seja dltigido por uma visio geral silida, profunda, organica. A hipotese historiogré- fica ndo verifica sua validade em comparagao com 0 fato, quase como se 0 fato, contrapondo-se a ela como algo cexterno, pudesse confirmé-la ou desmenti-la. O que de cide € aquilo que Nietzsche denomina “a altura dos pres supostos’: “A compreensao histérica nada mais é que a ‘eoncepgao de determinacos fatos com base em press~ postos filoséficos. A altuta (He) (ou nivel) dos pres- ‘supostos determina o valor da compreensio histética,”" 16, Da lide edesantage, 4 17. Da uted desmntagen, 6. 18, Were, vol Mp. 289, ¢ Opere ol | tome 3, part 2 p. 247 92 DIALOG com wierzscite Se buscamos em outros escritos nietzschianos da ‘mesma época, ott pouco posteriores, algo que passa es- clarecer essa nogao de “altura” ou de “nivel” dos pres- supostes filosétficos, no encontramos nada mais, por exemplo na segunda Consideragio extemporiinea, que a ideia de uma unidade estilstica, de uma delimitagio ¢ solider de estruturas, que decidem no tanto sobre @ adequagio da interpretagio ao objeto quanto sobre a ca- pacidade de tal interprotagaio de viver, de consistir como fato vivo. A tinica adequagio possivel na compreensio historica € a forga instituinte de uma interpretacao que, vivendo, dé vida ao passado, compreendendo-o. B indtl objetar que, nesse caso, o conhecimento his- trico torna-se algo arbitrério, e que a histéria se reduz & historiografia. Tudo isso se insere ainda em um Ambito de pensamento que considera a conformidade ao dado como eritério de verdade, a0 passo que aqui Nietzsche esta justamente verificando a impossibilidade, em quial- quer circunsténcia, de que uma tal nogéo de verdade possa explicat e justificar 0 conhecimento hist6rico, ain- da que por ora nao apresente uma alternativa totalmen- te e nitidamente determinada. Por outro lado, 0 fato de ele estar bem distante de querer reduzir a flologia a puro atbitrio, a reconstrugio fantasiosa do passado, 6 de- monstrado, 20 menos no ambito metodol6gico, pela i partancia que, nesses escritos, ele atribui ao rigor da ve= Hificagio critica dos textos. O que the importa, porém, é debar claro que essa verificagao critica nao é suficiente, ainda nao significa nada, é apenas um momento preli- zminar (mas também jé “interno”, nunca completamente aulénomo) do auténtico conhecimento da hist6tia, que 86 pode ser tum ato de vida, no sentido de interpretagao, justiga ~ como vimos ilustrando até aqui. [PROBLEMA DO CONHECIIMENTD HISTORICO 3 onge de ser algo caético, iracional ete, a vida pre~ ces de “hen eerminndo™ 7 ae ‘expresso que Nietzsche emprega no mesmo escti- one een nnesse conceito, jé que com muita frequéncia a nogéo de vida em Nietzsche apareceu como equivalente & de um fluxo desordenado, de uma forga itracional, isto 6 sem Ici nem limite, Ora, se ¢ verdade que também ocorre tudo isso, por ora vamos extrait desses esctitos sobre o conhecimento histirico e sobre a filologia, que estamos examinando, um elemento que Nietzsche jamais aban- donara no decorrer de seu itinerério especulativo: o con- ceito de unidade esilistica, ou, se quisermos dizé-lo em ‘outros termas, de forma ou estrutura, do qual a vida é in- sepatavel. A ponto, como se disse, de a possibilidade de abordar de maneira viva a vida do evento histético, ou scja, sua atualidade de evento, sua constitutiva abertura de imperfeito, ser condicionada precisamente pelo fato de abordé-la com uma sélida estratura de pressupostos, encertando-a em um horizonte determinado, Mas, as sim como existe uma “ma infinitude” do fato histérico, ‘existe também uma “md determinagio”: é a do Historis- ‘mus, entendido como ideal do delineamento completo de uma situago em todos os seus componentes € cone- es histéricas" MO se disse que esa determinacio definitva do fato histético nao é possivel, justamente por causa de sua (ma) infinitude, Mas quando o historiador pretende ter sucesso nesse empreendimento, e com 0 aciimule de da- dos tern a ilusio de ter conseguido, entdo o fato histéri- 19, Da ida desing, 1 20, Da dade edesoringen, 9. 94 DIALOGo com nuErescie o perde justamente stia potencial (boa) referéncia ao in- finito, Nietzsche descreve esse fenémeno no que se re- fere & conscigncia hist6rica de um individuo ou de uma Epoca: o Historismus, como descrigio completa ¢ cit- cunstanciada da situagio em todos 0s seus componen- tes, como explicitagio total das referéncias proximas ¢ Temotas dessa situacdo, limita o homem porgue the to- Ihe qualquer abertura pata o infinito”” Essa referéncia a0 infinito, como o ptdprio Nietzsche mosira compreendé lo nas paginas da segunda Extemporinen, s6 pode ser a referéncia a vida em sua infinitude, em seu caréter de imperfcito: o que € outta maneira de dizer que o erudito ‘mumificaa hist6tia, perde-a no seu conereto ser de even: to aberto, em devir, sempre ainda na esfera da possibili- dade (onde, a distancia, se encontra um tema kierke- gaardiano: o fato de algo ter ocorrido nao significa qui seja neeesstio; o conhecimento histérico & aquele que comhece o fato sempre ainda como contingente) § por causa dessa referéncia a0 infinto, dessa per ‘manente infinitude da histéria enquanto sempre in fer, ‘que, invertendo uma fala historicista comum, Nietzsche escteve que "a pergunta: o que teria ocorrido se se tives- se verificado isso e aquilo, que € quase unanimemente rejeitada, € precisamente a pergunta fundamental”: a istGria se faz ustamente com os “se” e os “mas”. “Quem nao compreende quanto a histéria é brutal e sem senti~ do ndo compreendeté tampouco o impulso para dar-Ihe lum sentido.” Uma historia que rejeita 08 “se” e 08 "mas" € aquela que foi predominantemente escrita até agora, 0u seja, uma histétia “do ponto de vista do sucedido”, 2h id 22. Opere, vol IV, tomo 1, p. 124 23. oid. (O PROBLEMA DO CONHECIMENTO JSTORICO 95 que supde que o sucedido revele também um dircito, uma raza’ ‘© que impele Nietzsche a rejeitar esse tipo de his totiografiajustificadors, que para ele se reduz explicita mente & identificagao hegeliana de real e racional, nao é ‘uma atitude pessimista genérica, e sim uma precisa exi- géncia amadurecida na reflexao sobre o conhecimento hist6rieo. A histéria do ponto de vista do sucedido de- semboca, ainda que implicitamente, mas sempre inevi tavelmente, na equacdo hegetiana de real ¢ racional, 0 que significa que o fato histérico, mais uma vez, é perdi do em sua auténtica esteutura de fato, ou seja, de posst vel, para se tomar algo rigidamente conchuido que & pre- iso apenas justficar a posterior, Nesse tipo de conheci- mento justificador, que se julga objetivo porque diz a pa- lavra definitiva sobre os eventos passacios, nao apenas se mumifica e se perde o passado em sua esséncia de even to earacterizado pela possibilidade, mas, paralelamente, o alo de conhecimento histérico nao é mais, nem sequer el um ato hse, no vendo de evento dota de wn futuro, Hegel, que é o grande expoente dessa conscién- fazer o inventario dos devaneios ¢ da volta a si da razao, mas nao cria nenhum fato novo, Nem poderia fazé-o, porque a consciéncia totalmente desvinculada do devit das coisas fecha também definitivamente o devit, ao me- nos como histéria, ou seja, como iniciativa, porque faz perder toda capacidade de agio™. A tinica atitude ainda possivel ao homem na era do historicismo absoluto & 24 hi 25. Da lida desotagen 25, Cl. passagem sobre 0 “disciple de Herselto” em Da wt tee deeontagen, 96 idtoco com MiErescHE “o vaguear como um turista no jardim da histéria"’. O fiisteu do século XIX baseia toda sua certeza de set um homem desenvolvido, justo, objetivo, precisamente nes- se conhecimento “tutistico”, indiferente, de toda a histé- Tia; confuncle sua absoluta falta de estilo, ou soja, de uni- dade e de ordem no sentido da "justiga” auténtica, com ‘0 tinico estilo possivel. A imracionalidade da histéria luz dessa exigéncia de compreender a historia em sua verdadeira natureza de evento, portanto de possi lidade — exigéncia que pode ser satisicta, segundo Nietz- sche, s6 entendendo o proprio ato de conhecimento his titico como um fato histérico, por sta ver®-, se esclarece também outto aspecto que tem notavel peso nos escritos de metodologia filvlogica de Nictasehe (especialmente [Nos fillogos) e que esté destinado a deixar sua matca s0- bre todos os eseritos do chamado segundo periodo (prin- cipalmente Aurora, Huomano, demasiado umano, A gaia iéncia) ~ periodo que nessa perspectiva se revela muito ‘menos claramente separado do primeiro do que comu- ‘mente se imagina, De fato, precisamente nas anotagées para a jamais redigida consideragio extempordnea intitulada Nos, flé- logos, ao lado da exaltagio e da admiragio da eta clissi- «a, hi uma insisténcia no fato de que a larefa do filélogo Cevidenciar a imacionalidade que esti na base da cultu- 2 Da wilde edessantagen, 10. 28, sve € 0 senda nas radical da afirmagio de que “a conse ‘nea hbtriea ela mesma um problema histnio” Da lida des. eantagen, 8 (PROBLEMA DO CONHECIMENTO HISTORICO or a ¢ da civilzagdo classica. Hsse tema, ja dominante no ia, € muito mais ressaltado aqui, na Nascimento da tr medida em qui da filologia clissica “"Trazer & luz a irracionalidade presente nas coisas humanas sem nenhum pudor: eis 0 objetivo dos nossos inmdos e companheitos."” Por esse motivo, 0 filblogo tam= bam é definido como grande cético®. Hle deve aprender ‘a compreender “como as maiores produces do espirito tém um fundo terrivel ¢ mau; a visao eética: e como mais bolo exemplo da vida se toma a civilizagdo grega”™. Po- deriamos multiplicar as citagées desse tom, como prova de uma espécie de obstinagio iconoclasta do filblogo Nietzsche contra o valor exemplar da civilizagao cléssica. A questao essencial, contudo, é: essa vontade de re velar o itracional que esté na base das produgies do es pfrito, portanto da civilizagao eléssica, deve ser atribut- dda genericamente ao pessimismo schopenhaueriano de Nietzsche, ou também ela, ao contratio, esté igada antes de tudo a reflexao sobre a experiencia filoldgica e sobre © problema do conhecimento histérico? E, neste caso, como se vincula mais precisamente a eles? A nhiip6tese mais correta parece sera dlkima, que as~ sim permite explicar por que a vontade de desmitificar a civilizagao cléssica, de evidenciar seus funcamentos itra- cionais, se manifesta precisamente em um escrito que, por outras aspectos, € ainda uma exaltagao da filologia, ‘A demonstragio da irracionalidadte nada mais & que tum desdobramento coerente do conhecimento histérico 28. Oper, vo. 1V, tome Ie p14 20. Oper, vol IV, tomo 1, p10? 31. Gper, vol. IY, tomo p91. 98 DIALOGO COM NIET2SCHE como ato de vida (no sentido que esbogamos aqui) que eneonta outro evento em sta abertura e infinitude con creta. Quando Nietzsche escreve, em Nés, fildlogos, que a improdutividade de nossa cultura se deve & nossa atitu de diante da cultura antiga, na medida em que nao di tinguimos nela a fase realmente produtiva da fase deca- dente alexandrina”, pode-se muito bem dar a essa afi. mago um significado mais geral: ou seja, que nossa cul- tura é improdativa precisamente porque ¢ na medida em que nd se reconhece com clareza suficiente 0 inraciona- lismo que esta na base da propria época cléssica. Alo- xandkina e decadente é nossa assungio da época clissi- €a como um modelo unitério, como um bloco inteira- mente positivo diante do qual temos de permanecer em uma atitude de admiragdo: o filisteu faz exalamente as- sim, ndo distingue € nao julga, toma a época cldssica como um todo que, eximindo-o de juizos, o exime tam bbém de qualquer ulterior esforgo criativo © prodtivo. Contra essa atitucl, a tatefa do fildlogo 6 gerar inimiza- de entre a cultura atual ¢ a cultura da antiguidade”. Se eramos, mesmo aterido-nos estritamente ao sen- tido um tanto literal dos textos, que ver “uma raz30 no sucedido” € peculiar da historiografia justficadora, ow seja, do historicismo; isto é, que a consideracio fechada, cerudita, da histéria implica sempre, no final, a identifica a0 hegetiana do real com o racional, do fato com 0 va~ lor, nao sera dificil perceber como, de maneita simettica- mente oposta 2 rectisa de considerar a histéria como fe- chada deve fundamentar-se necessariamente na nega- so da identidade entre real e racional e, portanto, no 32. Opere, VoL IV, tomo 1p. 12, 58, Oper, vol IV, tomo Xp 106, (0 PROBLEMA DO CONIIECIMIENTO HISTORICO 99 reconhecimento da inacionatidade dos eventos nos. A insisténcia no fundo ittacional da época cléssica, ‘mas em geral de toda producao histotica, se resume as- sim total e coerentemente aquela que é a preocupaciio dominante de Nietzsche em todo esse primeiro periodo de sua especulacko, ou seja, a busca de uma forma de se relacionar com o verdadeito, ow mais em geral de uma nogio de verdade que nao esteja sujeita as objegdes a ‘que, como se vé a partir da reflexdo sobre o conhecimen- Ao histérico, esta exposta a nogio metafisica tradicional da verdade como objetividade, como confotmidade da proposigio ao dado. Alids, essa ligagao & demonstrada precisamente por uma das passagens jé lembradas, em ‘que Nietzsche fala do esclarecimento da irracionalidace {que est na base das coisas humanas: uma vez eviden- ciada e reconhecida a irracionalidade, “seré preciso dis linguir entre 0 la fundamental e irremedidvel ¢ ‘© que, ao contratio, ainda pode ser corrigido””. ‘© reconhecimento da irracionatidade (mas, pode- riamos também dizer, sem trair 0 espitito do pensamen- to de Nietzsche, da nao racionalidade em sentido hege Jiano) da histovia 6 a condigdo para assumirmos diante dela wna posig3o viva, que implica uma escolha e uma decisio. E36 em decorréncia do carater vivo dessa to- mada de posigdo que o passado se deixa aprender como fato de vida, como imperfeito jamais perfectivel. Se, portanto, como esereve Nietzsche nas primeiras Jinhas de Homer wnd die klassische Philologie (1869), a fi- Jologia é, em sua inteireza,sintese de histéria,ciéncia na- tural e estética, é esta tiltima, a estética, ou a esteticida de, que Ihe confere o carater de ato vital a partic do qual 34 Oper wok IY, toro, p11 100 DIALOG com NirrescHt: se pode aprender o passado em sua verdadeira nature za de evento histético, De fato, como historia, a filologia quer compreender “a lei que governa a sucessio dos fe- némenos"; como ciéncia natural, “esforca-se por penetrar ‘no mais profundo instinto do homem, 0 instinto da lin- guagem”; mas é 56 como estética que ela, “do conjunto sdas antiguidades, escolhe a chamada antiguidade classi ca", ou seja, erige em modelo qualquer produto do pas- sado precisamente por meio de uma escolha que € um ato de vida. A no racionalidade da historia é, assim, 0 pano de fundo necessétio desse conhecimento filolégico ue assume uma relagéo viva com a vida do passado. 0 problema da verdade no escrito sobre “Verdade e mentira em sentido extramoral” Essa relagdo entre produgdes espirituais (da lingua- gem as grandes obras de arte) e fundamento itracional, que nos eseritos filolégicos aparece estreitamente vincu lada com a teflexiio metSdica sobre o conhecimnent hi tético, parece antes tomar uma posigdo de afirmagio tedrica autGnoma em um escrito de 1873 dedieado expli- citamente ao problema da verdade (Uber Wahrheit und Liige im aussermoralischen Sin). Em que medida a posi cio e 0s resultados desse escrito, um dos mais significa- tivos do jovem Nietzsche no que diz respeito & critica a0 conceito metafisico tradicional da verdade como evidén cia, também estao ligados & temética que vimos se de- senvolver, em parte antes ce 1873 e em maior parte de- pois dessa data, nos escritos filoldgicos? 135. Vepse a tra italiana em Oper, vol I tomo CO PROMLEIMA DO CONECIMENTD HISTORICO 101 ‘A impressao de que o ponto de vista desse escrito 6, por assim dizer, “naturalista’, ou seja, que o enfoque nele assumido nao pode ser aproximado da temdtica que en- contramos nos escritos sobre a filologia, &, mais que ou- tra coisa, precisamente uma impressao, explicével prova- vvelmente com a forga sugestiva do encaminhamento “loopardiano”* da ensaio, Observado com mais profundidade, esse escrito re vvela-se mais ficil de vincular A tematica dos escrtos filo logicos: antes de tudo, porque no centro dele esté a lin- guagem. A rigor, aliés, ele poderia ser assumido como tuma preparacao de Wir Philologen, precisamente na me- dida em que considera o problema da presenga da ver~ dade na linguagem em seu sentido mats radical. Em es- séncia, para Wir Philologen a questao da verdade jé che- got a um certo nivel de elaboragao; néo ha mais davida, por exemplo, de que a verdade nao pode ser considera- dla objetividade, reflexo ete. E essa conclusao fundamen- ta-se na experiéneia do conhecimento histrico. O eseri to sobre a verdade e a mentira também diz respeito & historia, ow seja, as produgdes espitituais do homem. Tals produgées néo passam de metéforas, algumas das quais io consideradas “a realidade” porque um certo grupo social as escolheu como bases da propria vida comum, Ora, nao é dificil perceber que justamente dese ca- réter metaférico das produgdes espirituais também deri- va a impossibilidade do conhecimento histérico como conhecimento objetivo. E o irracional subjacente a essas formas espirituais, que aqui Nietzsche chiama explicita- mente de “cupidez, crucllade, ferocidade”, na verdade * Do poeta Giacomo Leopards (1798-1897) ou relaclonado a ss arte ea stat obras IN. ca TE} 492 bIALOGO com mierascit: nada mais que o limite obscuro do conhecimento, oe siduo infinitamente fugidio ¢ nunca redutivel, exprimi- vel, em metéforas linguisticas, que caracteriza também 0 fato hist6rico em sua indefinida itreprodutibilidade. Tam- bém no escrito Uber Wahrheit und Lige, em suma, a evo- cagio do itracional serve simplesmente para criticar a vi- sio metafisica da verdade como conformidade da pro: posigdo ao dado, como objetividade e evidéncia, para fundar a relagao com a verdade como uma relagio inter- pretativa, ssa relagio interpretativa, que em Uber Wahrheit und Liige permanece indefinida, se eselarece em Wir Phi Jologen como relacio vital, como ato de vida que respon- de a outro ato de vida e 66 assim o apreende, o tespeita, © deixa ser como tal. Nessa perspectiva, no existe nem sequer diferenga entre a irracionalidade de que fala Uber Wabrrheit und Liige, 0 imperfeito jamais perfectivel da se- gunda Extemporinen, ¢ a irracionalidade de Wir Philolo- gen: nos tr€s casos, esses termos indicam simplesmente © cardter “aberto” da existéncia, caréter que poe em cti- se toda a concepgdo da verdade como objetividade e como evidéncia. Alem disso, hé outro sentido em que Liber Wahrheit tnd Lige pode ser considerado logicamente uma prepa- tagio de Wir Phifologen e das reflexoes metodolégicas s0- bre a historia: de fato, ele permite ver como as reflexdes de Nietzsche sobre o problema do conhecimento hist6- rico devem necessariamente set ampliadas até pr em 36, Naturalmente a relagSo interpretativa nfo pode ser entenida apenas como uma chegade,oravs de uma evocag ede uma decode ‘cago de signs, ainda e sempre a0 dado. E asim que a hermenéut ‘anietzschiana € vista, por exemplo, por J Granie, Le problee de ie dasa pilesopie de Niteshe, Pais, 196, CO PRORLEMA DO CONITECIMENTO HISTORICO 103 discussio toda a teoria metafisica da verdade como ob- jetividade. Considerando apenas os escritos sobre a filo~ logia, ainda podia haver a civida de que todo o discur- s0 de Nietzsche sobre a impossibilidade de uma concep. gio da verdade como reflexo objetivo era valido para 0 conhecitnento historico, para as Geisteswissenschaften, ‘mas nao para as Naturissenschaften, Contudo, 0 escrito Sobre verdad e mentira, entre outras coisas (mas pode-se também considerd-lo seu principal resultado, ao menos do ponto de vista que apresentamos aqui), destroi desde 6s proprios fundamentos qualquer possibilidade de uma distingdo desse tipo: ndo ha nenhum dar-se imediato da realidade ao homem, que depois construiria seus esque- mas hist6ricos. Até mesmo aquilo que julgamos ser a realidade ¢ que distinguimos das interpretagies ja & 0 produto de uma atividade metaforica, “livremente criati- ‘va e poetante”; s6 que essas metéforas no s0 mais re conhecidas como fais porque se tomaram as bases de toda uma sociedade, época ou unidade histtica. A rigor, portanto, ndo existem Naturwissenschaften; todas as cien-

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