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ESCREVO O QUE £ | QUERO APRESENTACAO BRASILEIRA BENEDITA DA SILVA ise] DP eee ek ce eT tle Ue ere oe UCR Erase UR Ae Lt Coe tel oe er ae ect r a a Eta Ae Ie omen Eel art Mia ear Reem Ae med Pera nee Cum Le Bee ule branca 6 uma condi¢do sine qua non nes- CCT eee eR CRU) Cree Museu rene) Be ee mene Cems Reed elas MI LR leo um sistema de valores ao povo nativo.”’ eric) cd ee OE POMC Cet scene os ee ose Pee Cane Oe cu cee Bee Oat ine ia ae tend brasileiros e demais setores sociais com- eC C men ce eek creas EROS nee saci renee eee nee Rae ts cu Pree as cee) Este livro reine os escritos mais importantes de Steve Biko, herdi do movimento de libertagao do povo da Africa do Sul, que em 1977 foi torturado @ assassinado pela policia sul-africana. Para os que viram o filme Grito de liberdade, é a leitura desses textos que vird dar consisténcia e profundidade historia desse lider e de sua corajosa atuacdo, Por sua apaixonada defesa da solidariedade entre os negros, Steve Biko foi chamado Pai do Movimento de Consciéncia Negra. Sua lucidez 6 ainda mais admiravel dentro do contexto da sociedade sul-africana, baseada no apartheid — um sistema estruturado de modo a om s enrvis levar 0 negro 2 se 0 DOS’ reales convencer de que ele nao Seer te Vi Yate nada, de que @ um 3 ser inferior. O grande mérito de Steve Biko 6 que, tendo nascido nessa situaco, ele ndo a aceitou ~ © nao s6 para si mesmo, mas ndo a aceitou, ativamente, para todo 0 seu povo, conclamando-o a reconhecer 0 valor da negritude. APRESENTACAO BRASILEIRA Os textos aqui pilings aie form BENEDITA DA SILVA pa poh tadec Gata fora 800 STEVEBIKO 89“ ESCREVO O QUE EU QUERO TRADUGAO: Grupo Solidatio Sao Domingos APRESENTACAO Da EDICAO BRASILEIRA: nedita da Silva Série Temas volume 21 Sociedade e politica ‘Titulo original: J write what I like Copyright © N. M. Biko, 1978 Selecao e organizacao; Aelred Stubbs CR ‘TEXTO Ferman Pato ASSISTENCIA EDITORIAL. sa Mara Lando “reapucAo ‘Grupo Solidrio Sto Domingos REVISAO DE TRADUGAO, ‘Cid Knipel Moreira PREPARAGAO DOS ORIGINAIS (Catmen Garces ARTE Butore Bettini PROIETO GRAFICO :M10LO) ‘Milton Taleeda (COORDENAGAO GRAFICA "Tadao Uwagoys (COMPOSIGAO E PAGINAGKO EM VIDEO ‘Neide Hiromi Tovots Diree Ribeiro de Aratio ISBN 85 08 036256 1990 Todos os direitos reservados Editora Atica S.A. — R. Bardo de Iguape, 110 CEP 01507 — Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656 End. Telegréfico “Bomlivro” — Sao Paulo — SP ntos 9 ‘Siglas citadas 11 por N. Barney Pityana 13 negra em pele branca? 31 08 negros 39 mntagao da resisténcia negra 47 conceitos culturais africanos 55 ilo da Consciéncia Negra 65 vista por um jovem leigo 71 branco e Consciéneia Negra 79 sum fator decisivo na politica sul-africana 93 falar sobre os bantustoes 101 msciéncia Negra e a busca de uma verdadeira Consciéncia Negra? 123 de nossa forca 147 tica americana em relacao a Azania 167 ‘estratégia para a libertacdo 173 a morte 183 da edigao brasileira, por Benedita da Silva 5 Apresentacao da ¥ edicdo brasileira Benedita da Silva Deputada Federal U.C.P.A. 2% ie (UNIAO DOS COLETIVOS PAN-AFRICANISTAS) 4. A Consciéneia Negra é, em esséncia, a percepgao pelo homem negro da necessidade de juntar forcas com seus irmaos em torno da causa de sua atuacao — a negritude de sua pele — e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os pren- dem em uma servidao perpétua. Procura provar que é mentira considera o negro uma aberragio do “normal”, que € ser bran co. Ea manifestacao de uma nova percepedo de que, ao procurar Sugir de si mesmos ¢ imitar 0 branco, os negros estado insultando @ inteligéncia de quem os criow negros. Portanto, a Consciéncia Negra toma conhecimento de que 0 plano de Deus deliberada mente criou o negro, negro. Procura infundir na comunidade ne- gra um novo orgulho de si mesma, de seus esforcos, seus siste- mas de valores, sua cultura, religido e maneira de ver a v1 Steve Biko Enfim chega ao Brasil a voz de mais um dos mértires da luta de libertagao do povo negro sul-africano assassinado pelo regime do apartheid da Africa do Sul. Steve Biko, a exemplo de Nelson Mandela, encarna com sua vida e sua morte o profundo sentimen- to de liberdade latente em todo homem que se recusa, mesmo ao prego da propria vida, a submeter-se aos mecanismos que tentam fubtrair do homem a sua condicao humana e sua liberdade. 6 Eecrevo 0 que eu quero Contrapondo-se 2o proceso de desumanizacao imposto aos negros pelo apartheid, Steve Biko define a Consciéneia Negra co- moa tinica atitude capaz de promover 0 reencontro do negro con- sigo mesmo e de resgat4lo como agente de sua prépria liberta- ‘¢ao, pela recuperagdo dos valores positivos e essenciais da cultura negra africana fundada nos pressupostos do humanismo africano e da fraternidade. Profundamente imbufdo de um sentimento religioso, o pen- samento de Biko recupera para 0 negro uma identidade metafisi- a perdida no proceso de coisificacao determinado pela escravi- dao e pelas persistentes formas de discriminacao racial existentes contra os negros em todas as partes do mundo — discriminagao que o sistema do apartheid retrata em toda a sua crueldade. No entanto, Steve Biko nao cai na velha armadilha da vitimi- zacao do negro € constréi uma reflexao na qual busca superar 0 maniquefsmo do algoz branco e da vitima negra, procurando de- tectar como a opressio tem seu resultado mais eficaz ao produzir no oprimido a consciéncia de subserviencia e impoténcia para trans- formar sua situacao real; e é justamente essa consciencia defor- ‘mada internalizada pelo negro 0 alvo principal da reflexaoe da aio politica de Steve Biko, ‘Ao condenar 0 apartheid, Biko tem a coragem de reivindicar a Africa para os africanos: “Nada pode justificar a presun¢ao ar- rogante de que um pequeno grupo de estrangeiros tem o direito de decidir sobre a vida da maioria”. Porém, observador impiedo- so das seqtielas prociuzidas em seu povo pela opressao racista, Steve Biko nao teme afirmar que ‘'a falta de bens materiais ja € bastante ruim, mas unida & pobreza espiritual é morttfera, Este iltimo efei- to € provavelmente aquele que ctia montanhas de obstéculos no curso normal de emancipacao do povo negro”. Esquadrinhando os efeitos mortais do racismo, Biko diagnos- tica a légica que esta por tras da dominacao do branco — "Prepa- rar 0 negro para desempenhar um papel subserviente neste pais — e chega as formas mais desagregadoras do processo de desu- manizacao do negro ao identificar que “bem no fundo, sua raiva cresce com 0 acamulo de insultos, mas ele a manifesta na direcao errada — contra seu companheito na cidade segregada, contra coi sas que S40 propriedade dos negros. Ele nao confia mais na lide- ranga, [..] € nem ha uma lideranga em que confiar”’ Portanto, a proposta politica desenvolvida por Biko a partir do conceito de Consciéncia Negra implica o reconhecimento da mi- ‘Aprosontagao da edigae brasileira a séria espiritual produzida pela opressao racista e um processo de olhar para dentro, num re-conhecimento da cultura africana esma- gada sob a acusacdo européia de barbarie; retomar as praticas e costumes religiosos, valorizar a heranca cultural, “reescrever a his- t6ria do negro e criar nela os herGis que formam o nticleo do con- texto africano”. La, como entre nés, Biko explicita a inmportancia da luta ideo. Jogica. B necessério construir herdis, instituir datas. Opor os Zum- bis a0s Domingos Jorge Velhos, os vinte de novembros aos treze de maios. Afirmar os valores positivos das culturas negras em opo- sicao ao dilaceramento da decadente cultura ocidental, contrapor @.nosso sentido de comunidade & impessoalidade do mundo oc- lental A leitura dos textos de Steve Biko torna inevitavel 0 reco- nhecimento da semelhanca entre a situacdo do negro brasileiro ado negro sul-africano, pois de um lado eles nos instigam a refle- tir sobre 0 nosso compromisso de solidariedade para com a luta do povo negro sul-africano e, de outro, nos obrigam a deter-nos sobre o estagio em que se mantém as desigualdades existentes en- tre os grupos raciais no Brasil, tornando evidente que os métodos de segregacao racial utilizados no Brasil e na Africa do Sul, embo- ra diferentes entre si, alcangam resultados iguais. Os bantustdes sul-africanos aqui so redefinidos nos conglomerados de favelas, alagados e invasdes, compostos majoritariamente por populacao negra; a lei do passe sul-africana é aqui mascarada na exigéncia da carteira assinada, violenta e vexatoriamente requisitada pelos policiais brasileiros ao trabalhador negro desempregado e margi- nalizado, As taxas alarmantes de analfabetismo entre a populacao negra brasileira expressam no Brasil a “igualdade de direitos e oportunidades” existente entre os cidadaos brasileiros, conforme preconiza a nossa democracia racial. Essas condigdes tornam 0 pensamento de Steve Biko abs lutamente atual no contexto das relacdes raciais do Brasil. Espe- ramos que ele seja fonte de inspiracdo para a reflexao e a acdo po- Iitica dos movimentos negros brasileiros e demais setores sociais comprometidos com a defesa dos direitos humanos fundamentais e com a construcao de uma ordem social justa e igualitéria, com- promisso que esta inequivocamente presente nos responsdveis pela organizacao deste livro e na decisao politica de oferecé-lo ao pt blico brasileiro. Agradecimentos U.C.P.A. (uNIAO DOS COLETIVOS PAN-AFRICANISTAS) O organizador e a editora agradecem as seguintes pessoas e en- lades pela valiosa ajuda na compilacdo deste livro: World Uni- versity Service, cuja_generosa subvengo deu ao Sr. David Mesenbring a possibilidade de reunir grande parte do material aqui apresentado; 0 proprio David, por sua assisténcia criativa durante 0 varios estagios; a bibliotecaria e o pessoal da Universidade Na ‘ional de Lesoto; 0 Comité de Advogados para os Direitos Civis sob a Lei, de Washington, D. C., por nos fornecer varios artigos escritos por Steve Biko que o comité possuia; Dra. Gail M. Ger hart; C. Hurst and Co., por permitirem a reproducao de “A Cons- ciencia Negra e a busca de uma verdadeira humanidade”; David Philip Publisher (Pty) Ltd., por permitir a reproducdo do capftulo intitulado “Racismo branco e Consciéncia Negra”; The New Re- public Inc., pelo capitulo “Sobre a morte”; as organizacdes Chris- tianity and Crisis ¢ Episcopal Churchmen for South Africa, por permitirem a reproducao de “Nossa estratégia para a libertacao”; ‘The International University Exchange Fund; Hugh Levin. African National Congress (Congreso Nacional Africano) ‘Afrikaanse Studentebond (Associagdo dos Estudantes Afri- ceinderes) “Association for the Educational and Cultural Development Of the African People (Associacao para 0 Desenvolvimento Educacional e Cultural do Povo Africano) Black Community Programmes (Programas da Comunidade Negra) Bureau of State Security (Departamento de Seguranca do Estado) Black People’s Cénvention (Convencao do Povo Negro) Community of the Resurrection (Anglican) — (Comunidade da Ressurreicao — Comunidade religiosa da Igreja Anglicana) ‘Coloured Representative Council (Conselho Representativo dos Mesticos) General Students’ Council (Conselho Geral dos Bstudantes) Industrial and Commercial Workers Union (Sindicato dos ‘Trabalhadores da Industria e do Comércio) — uma tentativa mais antiga de organizar um sindicato negro, por Clement Kachalia ¢ outros ise manter as siglas origins, por serem bastante conhecidasinternacio- ‘raduzindo-se apenas o seu significado para possibilitar a compreensao IDAMASA Interdenominational Association of African Ministers of Re- ligion (Associacao de Ministros Religiosos Africanos de v: rias Denominagdes Cristas) NEUM —_Non-European Unity Movement (Movimento de Unio dos Nao-Europeus) NAPSAS National Federation of South African Students (Confedera- ‘cao Nacional dos Estudantes da Africa do Sul) NUSAS National Union of South African Students (Uniao Nacional dos Estudantes da Africa do Sul) op Order of Preachers (Ordem dos Pregadores — Dominicanos) PAC Pan-Africanist Congress (Congreso Pan-Africanista) POQO Ala militante do PAC SAP South African Police (Policia da Africa do Sul) SASO South African Students’ Organization (Organizacao dos Es- tudantes da Africa do Sul) SB Security Branch of SAP (Divisio de Seguranca da Policia da Africa do Sul) s} Society of Jesus (Sociedade de Jesus — Jesultas) SRC Student’s Representative Council (Conselho Representativo dos Estudantes) SWAPO South West African People's Organization (Organizacao do Povo do Sudoeste da Africa — Nam*bia) UBC Urban Bantu Council (Consetho Urbano Bantu) UCM University Christian Movement (Movimento Cristao Univer~ sitario) UNB University of Natal Black (Universidade de Natal para Ne- gros). Anteriormente UNNE: University of Natal Non- European (Universidade de Natal para Nao-Europeus) UNISA University of South Africa (Universidade da Africa do Sul) Introducao: Bantu Stephen Biko em perspectiva N. BARNEY PITYANA Bu me lembro como se fosse ontem. E jé faz dez anos. Nao eu estivesse presente no enterro, para ser transtomado pelo fer- da emocéo, e também nao tive oportunidade de extravasar mi- raiva. Nao que tenha visto aquelas fotografias horripilantes que ram a extensdo da brutalidade que estava ocorrendo dentro camaras de tortura da Gestapo sul-africana. Nao é nem mesmo eu tenha assistido & farsa de um inquérito que se vangloriava ter toda a aparéncia de um sistema de justica, 86 para se expor ‘uma caricatura de justica. Para muitos de nés, nossas memd- ‘remontam até a horrivel realidade do assassinato de Steve Biko. No entanto, eu estava na prisdo. Uns poucos dias antes de levee Peter Jones serem presos naquela barreira na estrada, me contrava definhando nas celas da delegacia de policia da Rua 1 ‘no centro de Port Blizabeth. A noticia da prisao de Ste- me foi dada por um certo major Fisher da Policia de Seguran- “@ih, Com indisfarcavel prazer. Era para eles um golpe importante. como se, com o fechar das algemas e o trancar das chaves, tivessem imposto com sucesso a autoridade deles sobre as ci- es segregadas® para negros na Provincia Oriental do Cabo. Lo- ‘seria provado que estavam enganados. searegndas: Townships, no original. elo sistema de apartheid, cada as- ada raga (branca, negra, mestica, asitica) tem areas separadas para mo- At; Aexpressao fowoship, ou seia, cidade segregada, se refere em geral as éreas des ou bairros separadis, para Uso exclusive de negros, mesticos ou asiticos. 7) 4 Brerevo 0 que eu quero O que lembro claramente, porém, é isto: na noite em que Ste- ‘ve morreu, eu estava mergulhado em uma memordvel e animada discussao com ele. O episédio pareceu terminar com Steve me con fiando o futuro ¢ o bem-estar de seus filhos. Eu me lembro de de xar isso de lado, rindo. Talver por eu ter a tendéncia de nao levar ‘a sério os titimos desejos de meus amigos. Mas agora sei que aque Je era o seu tiltimo desejo e seu testamento. E deste Steve que pre- firo me lembrar: um homem cheio de vida, alegre, ¢ no entanto alguém que tinha a capacidade de exprimir até os pensamentos mais profundos de um modo jovial. Ele jamais gostou de ser leva- do muito a sério. Como todos os sonhos, passou tao depressa co- mo veio. Fiquei para descobrir 0 mistério. ‘Nao levou muito tempo. Na manh seguinte havia uma ativi- dade febril em tomo de minha humilde morada. O guarda mesti- g0, como eles chamam, foi sumariamente removido. Em seguida, tive o privilégio de ter trés guardas brancos vigiando todos os meus movimentos. Aquilo que passava por uma janela, na minha cela, foi tapado com tébuas e fiquei sem ter acesso ao mundo exterior, nem um vislumbre de luz natural. Outro guarda foi postado do la~ do de fora para interceptar minha comunicacao ocasional com as pessoas que passavam e que, incidentalmente, inclufam minha es- posa e outros amigos, Dentro de vinte e quatro horas fui removido para a distante cidade de Alexandria. Mas isso nao aconteceu an- tes de eu ter descoberto, por meus préprios meios, que Steve fora assassinado pelas mesmas pessoas que me mantinham pri ioneiro. Eu me pergunto por que tais recordacdes sombrias si0 ne~ cessérias agora, dez anos mais tarde. A Africa do Sul nunca este- ve numa situacao pior, tio conturbada. A atividade politica, tanto dentro como fora do pais, se encontra num nivel critico. H4 uma incrfvel oscilacao na politica negra entre militancia e dinamismo, oportunismo e puro cansaco, esperanca e desespero. Nés nos lem- ‘ramos agora porque é preciso parar ¢ avaliar, refletir e planejar novas estratégias. Em tudo isso, Bantu Stephen Biko ¢ 0 legado da Consciéncia Negra sao fatores cruciais. ‘Aqueles dentre nés que tivemos 0 privilégio de participar dos acontecimentos hist6ricos da era Biko precisamos prestar aten¢o a varios aspectos. Como organizadores da tradi¢ao, nao podemos jamais presumir que somos seus tinicos intérpretes assim retiré- la do dom{nio do povo. Precisamos evitar a tentacao de permitir {que nosso olhar sobre o passado se torne uma fixagao que nos trans- forme em estatuas de sal, iméveis, e que nao respondem aos desa- Bantu Stephen Biko em perspectiva 15 fios sociais do momento presente. Precisamos ter consciéncia da tendéncia de romantizar os acontecimentos que tém um lugar es- pecial em ‘nosso coragao € de nao sermos criticos € criativos em ‘nossa andlise. Ao mesmo tempo, devemos observar que boa parte ddesses dez anos ser4 forgosamente revista com o beneficio de um olhar a posteriori. Os acontecimentos na Africa do Sul tém se de- senrolado muito depressa e precisamos nos lembrar de que tam- bém crescemos & amadurecemos nesse interim. Apresento como ‘exemplo minha surpresa ao reler aida de Steve a respeito de uma ‘uniao nacional de estudantes”. Hoje parece que ele estava con- ‘cedendo & Unio Nacional dos Estudantes da Africa do Sul (NU- SAS), liderada pelos brancos, um cardter de nacionalidade ao qual, Fe, eae Regros, no tnha direito. Mas preciso lembrar le momento parecia nece ic ico lit ros de nnn pat vessdrio e estratégico limitar nos- Minha tarefa neste ensaio é apresentar uma avaliaciio de fu Stephen Biko e do movimento de Consciéncia een acontecimentos: Politicos na Africa do Sul hoje, Nao foi a toa que _ @Sinodo Provincial da Igreja da Provincia da Africa Austral (An- ‘licana) discutiu uma mocao apresentada por alguns delegados ne- r pedindo que Steve Biko fosse lembrado no calendario liturgi- da Igreja. Essa mocao foi acompanhada de pedidos para que e declarado martir. Jé foram escritos livros e realizados docu- thentarios de televisao a respeito dele, e agora vai ser langado um we inspirado em sua vida*. Seu nome tem sido invocado para ou justificar uma grande variedade de causas, como, por plo, a Conscién ria Negra defendida pela Organizacao do Po- de Azania, a participacao no movimento progressista de ativis- -anteriormente ligados & Consciéncia Negra, como Aubrey Mo- reivindicac4o do Congreso Pan-Africanista (PAC) de que tum “eles”, ou o realinhamento de forcas progressistas sob quarda-chuva do Congresso Nacional Africano (ANC). Todas es- ‘eausas podem ter uma parcela de verdade. O que provam é 0 hé um tinico pensamento, estilo ou organizacao que ‘possa todo esse entusiasmo, ha um perigo real de que Bantu Biko se torne uma imagem a ser venerada. Muitos que Festam culto”” poderiam ser levados a ter uma ligaco pouco critica com ele. As vezes me pergunto como ele teria 16 Erorovo © que ou quer reagido a tudo isso. Nao posso deixar de pensar que ele se sentiria extremamente embaracado. Ele nunca buscou a gléria pessoal, mas servia & causa da justica e da libertacao como parte de um movi- ‘mento dinamico. Em tom de zombaria, ele muitas vezes se referia mo “Filho do Homem’”. ‘si Hise tento tem como objetivo situar Steve Biko dentro da perspectiva do movimento mais amplo de libertacao na Africa do Sul, tracando a evolucao das idéias de Consciéncia Negra. Para ‘compreender isso claramente, em minha opinido € preciso ver Steve como ele era: um ser humano comum. O dia 18 de agosto de 1978 foi o primeiro aniversario da pri- so de Biko e de Jones. Alguns dias antes eu fora solto depois de doze meses na prisdo. Minha esposa, minha filha e eu estavamos fugindo de nossa terra para o exilio, quando peguei um jornal em Kingwilliamstown, cidade natal de Steve. Nele, MamCete, a mae de Steve, descrevia os primeiros estdgios da consciéncia politica de Steve. O que ficava claro na entrevista era que uma tradicao de ativismo politico dentro da familia, o fato de aprender em casa a respeito da injustica e da miséria extrema, por si s6 nao levavam ‘a um engajamento politico. O melhor professor continua sendo 0 apartheid, a maneira como é visto e experimentado, juntamente ‘com uma mente sensfvel e inquieta. Sao os Hamlets deste mundo que exclamam: “Nosso tempo esta desnorteado. Maldita a sina Que me fez nascer um dia para conserté-lo!” (Hamlet, I, V)* Biko tinha uma mente muito agucada. Como estudante era inteligente e, na argumentacao, légico, bem informado e rapido. Ele sabia que a vida politica nao era um mar de rosas e, 0 que era mais doloroso, que ele teria de frustrar as ambicoes de sua familia seu respeito. Menosprezava as pessoas de visao curta. Acredita- ‘ya, com conviccdo, que era s6 pela via politica que o futuro da ma- ternidade, da irmandade e da vida familiar poderia ser garantido. Queria muito libertar a mae da escravidao de tarefas subalternas @ recompensar a irma, que financiara boa parte de sua educacao, Infelizmente a irma morreu cedo. O lar dos Biko era realmente uma grande familia. Todos aprenderam a partilhar ¢ contribufram para a vida familiar de *Tradugho de Millor Fernandes. (N. T.) Bantu Stopken Biko em perspective Ww acordo com suas capacidades. Esse espfrito de colaboracao deixou uma impressao duradoura em Steve. Ele nao foi criado somente com 0 itmao e as irmas, pois a mae, embora tivesse um emprego de tempo integral, tambémriou filhos de alguns parentes. Steve se impressionava com a atitude filos6fica de sua mae em relacto Aluta diéria pela sobrevivencia e seu compromisso total de ofere- cer toda a ajuda que pudesse, nao s6 para os préprios filhos, mas para todos que a solicitassem na hora da necessidade. Isso era na- tural. Mas foi a semente da qual nasceu um sistema politico que ira transformar toda a cena sul-africana. ‘Meu relacionamento com Steve remonta ao tempo em que estivemos juntos em Lovedale, uma escola para meninos perto da cidade de Alice, na Provincia do Cabo Oriental. Provavelmente € justo dizer que, para nds dois, Lovedale foi o berco de nosso en- ‘olyimento politico posterior. Em 1963 fomos expulsos, juntamente ‘com muitos outros meninos, apés uma greve. Depois disso nos se paramos, para nos ligarmos de novo apenas em nosso perfodo uni- yersitéirio. Ele estudou na Escola de Medicina da Universidade de Natal e cu estudei em Fort Hare, Alice. A minha instituicao era tribal, organizada pelo governo, e a dele era, oficialmente, uma es- cola multirracial, com tendéncias liberais; lé a participacao dos es- tudantes na politica era a norma geral, ao passo que em Fort Ha: re, com uma tradicdo igualmente longa de ativismo radical, os di- tames do apartheid eram aplicados sem piedade. Em 1967 Steve foi passar alguns dias em minha casa, em Port Elizabeth, depois de participar do congresso anual da NUSAS — ‘uma organizacdo liberal, liderada por brancos, — na Universidade de Rhodes, em Grahamstown. Sua elogiiéncia conquistou a aten- ‘¢40 dos meios de comunicacao, e sua lideranca sobre os delegados negros manifestou-se na imediata articulacao destes em torno de Sua pessoa. A questo que estava sendo discutida era a da segre- gaco de residencias. Durante os debates me dei conta de que Ste- ve nao tinha nenhuma esperanca de que um dia a frente liberal branca entendesse a questo da orientacao radical dos jovens ne- gros da época. Tinha se convencidlo de que os brancos eram inca- pazes de compreender satisfatoriamente as aspiracdes dos negros. Em outra conferéncia de uma organizacao multirracial — o encon- tro do Movimento Cristao Universitario em Stutterheim, em 1968 — essas idéias foram enfocadas de um modo claro ¢ criativo ¢ re- ceberam uma resposta entusiasta da delegacio negra, que era muito 18 Becrevo 0 que eu quero maior. A convencao de negros, organizada em Stutterheim, deu origem ao nascimento da Organizagao dos Estudantes da Africa do Sul (SASO). Vivi ainda mais proximo de Steve apés 1968, quando foi as- sumido o desafio de organizar um novo movimento nacional de es- tudantes e criar uma filosofia politica distinta. Seguiram-se cinco anos de intensa atividade e desenvolvimento de idéias criativas. Muito foi realizado devido & energia, a confianea, ao poder de per- suasao ¢ otimismo de Steve. Em 1970 sucedi-o na presidéncia da SASO e mais tarde me tornei secretério-geral da jovem organiza- ‘cao, enquanto ele dedicava suas energias a implantacao dos Pro- gramas da Comunidade Negra (BCP), junto como Bennie Khoapa. Durante esse periodo moramos juntos em uma casa em Umlazi, perto de Durban, e nossas familias tornaram-se muito mais ami- gas. Veio 0 ano de 1973, e estavamos entre os dezesseis estudan- tes ativistas, negros e brancos, que foram banidos* pelo assim cha- mado ministro da Justica. A injungdo nao apenas limitava nossas atividades politicas, como também nos obrigava a desocupar nos- sa casa comum em Durban: Steve foi confinado em Kingwilliams- town e eu em Port Elizabeth. Quando penso nesse periodo, trés caracteristicas de Steve me ‘vem logo & mente. A primeira é a capacidade para o trabalho. Ste- ve era um trabalhador muito ativo e entusiasmado. Durante algum tempo ele manteve a aparéncia de estar seguindo o curso de medi cina, mas logo desistiu para dedicar mais tempo aos varios aspec- tos de seus interesses politicos. Costumava varar a noite escrevendo panfletos, alguns dos quais so reproduzidos aqui, ou mantendo intensas discussoes com companheiros, ao planejarem estratégias, Era um leitor voraz.e se mantinha bem informado quanto a teorias € aos acontecimentos do pafs e do exterior. Sem contar 0 afluxo de colegas que iam the pedir conselhos. A noite era tao cheia de atividades que para ele era dificil manter um hordrio normal de trabalho. Outro produto dessa vitalidade noturna foram suas car- tas minuciosas a amigos e outros correspondentes que 0 consulta: vam. Como podemos ver pelas reproducdes que constam neste vo- lume, elas revelam por si mesmas 0 cardter e as idéias politicas de Steve, = Umma das penas impostas por lei a ativistas na Africa do Sul € 0 “banimento’ confinamento em determinada érea ou cidade, com a conseqiente proibicio de se ‘movimentar pelo pas. A pena inclu também a proibigio de estar com mais de uma ‘pessoa ao mesmo tempo, de publicar qualquer escrito seu, etc. (N. T.) Bantu Stephen Biko em perspectiva 19 A segunda caracteristica € a capacidade de amar. Conside- rando-se que a intensidade de sentimentos tanto pode ser uma for- ¢a como uma fraqueza, Steve deve ser julgado dos dois modos. Refiro-me aqui ao amor nao apenas como um valor sentimental ou ‘um desejo de agradar aos outros, mas também como a fonte do compromisso com pessoas ¢ causas, a capacidade de se abrir aos ‘outros e se identificar completamente com eles. Pode-se dizer que Steve nao conseguia controlar sua ansia de amar. Sempre acolhia as pessoas com verdadeiro calor, fossem elas amigas ou gente ne- cessitada. Preocupava-se com 03 outros e era atencioso, embora essas virtudes as vezes causassem problemas, como seu costume de trazer convidados inesperacos para o jantar ou sua predilecao por festas improvisadas. E evidente que isso criava problemas pa- ra sua esposa. Steve sentia-se & vontade em qualquer companhia: entre a gente “esperta” das cidades e dos bairros segregados, com quem estava sempre disposto a brincar; entre esportistas e entre pessoas coultas, com quem gostava de ouvir musica; estava sempre ansioso para encorajar a todos a estabelecer ligacoes politicas. Gostava de receber as pessoas ¢ nao perdia uma boa festa. Todo mundo se sentia valorizado, respeitado e compreendido. Por tudo isso, nao Ede se admirar que fosse muito considerado na comunidade, nao como um politico local, mas como amigo. Havia ocasides em que nao sabia julgar corretamente o-caré- ter das pessoas. Isso porque estava sempre pronto a confiar nos outros. Essa ingenuidade as vezes dava certo, porque ele conse- guia trabalhar em estreita relacao com muitos jovens, fazendo com que dessem 0 melhor de si mesmos. Era lindo ver a maturidade politica se desenvolver. Steve e eu tivemos de assumir uma res- ponsabilidade igual pelo desastre de Themba Sono, meu sucessor como presidente, que logo provou ser indigno dese cargo. A tinica vez em que me lembro de ver Steve realmente furio- 0 foi quando um colega, estudante de medicina na Provincia do Cabo Oriental, tomou atitudes grosseiras, racistas e chauvinistas em relacao a nossos companheiros asidticos que participavam de uma agraddvel reuniao social no quarto de Steve. Nao é preciso dizer que o estudante recebeu um tratamento sumério e teve de se-retirar as pressas do quarto. 0 outro lado dessa moeda, no en- tanto, se revelou na maneira téo delicada com que tratou um com- panheiro de viagem num trem vindo da Cidade do Cabo. O homem. estava bébado e tinha a tendéncia a se tornar desagradavel, espe- 20 Escrevo 0 que eu quero cialmente porque nés querfamos conversar ou descansar. Mas ele queria por toda a lei ser hospitaleiro e insistia em nos dar alguns de seus sandniches. Ficava sempre murmurando: “4 com fome, amigo?”. Acabamos por partilhar de sua refeicao, embora a prin. cipio tivéssemos relutado. Para Steve, a generosidade do homem era uma licdo prética sobre os valores africanos, tio essenciais & promocao da Consciéncia Negra. i A terceira caracteristica que me marcou em Steve era sua sen- sibilidade. Talvez nao seja uma surpresa que ele fosse uma pessoa ue se exprimia de modo muito apaixonado. Podia ficar profunda- mente magoado com a insensibilidade. Nao havia nenhuma amiza- de entre ele e a Policia de Seguranca que o seguia em Kingwilliams- town, ¢ no entanto era capaz de passar por cima da mesquinhez da- queles homens e brincar com eles. Para Steve, 0s projetos de de- senvolvimento comunitério eram declaracoes politicas. Expressa- vam a luta de um povo pela autodeterminacdo e eram um meio pa: rase utilizar com eficécia os recursos da comunidade. Em um nivel ideal, eram empreendimentos cooperativos e nao atos de caridade. Era vital, portanto, que o pessoal que trabalhasse neles fosse negro ‘e que eles surgissem a partir da percepcao que a prdpria comunida- de tinha de suas necessidades. No decorrer de tantas atividades, sem duivida enfrentavamos muitos perigos. Numa ocasiao, estévamos viajando em um grupo de Durban para Johannesburgo. Devido a pressao das reunioes, costumavamos viajar a noite. Quando chegamos a cidade segrega- da de Alexandria, de manha, a maioria de nés estava atordoada € cutive de ser levado as pressas para o Hospital Coronation, pois me achava quase inconsciente devido a um envenenamento por monéxido de carbono, Fora uma tentativa de sabotagem. Quando havia perigo, Steve era frio e transmitia seguranca, Lembro-me de um acidente no qual estivemos envolvidos, novamente no ca- minho entre Durban e Johannesburgo. Dessa vez, nosso chofer deve ter cochilado e 0 microonibus saiu da estrada. Felizmente nenhum de nds sofreu ferimentos sérios, mas perigos como esses nos uniam ainda mais. Steve era muito lel aos amigos. O choque da morte de Mthuli ka Shezi em circunsténcias misteriosas, em Johannesburgo, no odeixou paralisado. Mthuli foi um dos primeiros martires da luta. Foi Steve quem promoveu varias mocdes para homenageé-lo, pa ra sustentar a mae dele e para fazer uma campanha com 0 obje tivo de tornar publicas as circunstancias de sua morte. Com- Biko om porspectiva a1 Mohapi, a coisa chegou ainda mais perto. Mapetla mor- juanto estava sob custédia da policia, poucos meses antes do préprio Steve. Tornava-se claro que o movimento pre- a realidade da morte de pessoas em suas fileiras. mntos politicos j4 representavam uma diminuicao dos re- mas a morte colocava um ponto final que podia intimidar.. go apos as assembléias do Viva Frelimo em 1974, houve uma @ perseguicad aos ativistas da Consciéncia Negra em toco . Estranhamente, Steve foi deixado de fora. Ele nunca dei- ude se torturar por isso. Em 1976, como testemunha de defesa ulgamento ca SASO, teve a oportunidade de se identificar com ipostamente ilegais de seus amigos. Seu testemunho foi smplo elogiiente de co-responsabilidade. Seu destino, entre- seria pior que o de Strini Moodley, Aubrey Mokoape e ou- que aps serem condenados tiveram de passar uma média de anos em Robben Island*. ___ E preciso dizer, porém, que Steve achava muito diftcil lidar ‘com as divisdes que comecaram a aparecer no movimento depois "dos levantes de 1976. Havia um abandono da tradicao de toleran- ve de argumentacdo racional, que era a caracteristica da politi- da Consciéncia Negra. As discussdes sobre estratégia ¢ ideolo- gia se tornaram muito acaloradas. Muitos ativistas jovens procura- Yam a orientacao do movimento de Consciéncia Negra, mas assim -mesmo estavam decididos a entrar numa luta armada. Para alguns, “oconceito de Consciéncia Negra ja cumprira seus propésitos e pre- tisava ser substituido por uma doutrina ideologicamente sélida. Embora profundamente envolvido nas discussées, Steve era ‘paz de incentivar a unio e as atividades nas bases. Os companhei- ‘ros confiavam na imparcialidade das suas andlises. Foi compelido a visitar a Cidade do Cabo, entre outros motivos, por sentir que tinha a obrigacao de unir os dois lados. Além disso, ele sempre tratou as ordens de banimento com desprezo. Apareceu varias ve~ zes em Port Elizabeth e ficava muito alegre por escapar da captura. E praticamente impossivel fazer uma boa andlise politica da Africa do Sul de hoje sem mencionar Steve. Isso porque a Cons- cigncia Negra fez surgir uma nova era de consciéncia politica, por ‘meio da qual os préprios oprimidos estavam assumindo a respon- * Robben Island: tba no lado da Cidade do Cabo, ane se localiza uma famosa pri sto na qual muitos presos politicos cumpriram pena. (N. T.) 22 Eecrovo o que ou quero sabilidade por seu destino politico, e que deu confianga — embora alguns a chamassem de “arrogancia”” — aos jovens negros, espe- cialmente para que exprimissem suas aspiracOes. Tudo isso ¢ as- sunto conhecido. O que est agora em questao, no entanto, é 0 ca- rater ideolégico da Consciéncia Negra e a sua relacio com as or- ganizacdes que lutam pela libertacao, como 0 ANC e o PAC. Mai recentemente, parece que os ideais da Consciéncia Negra, quando confrontados com as mudaneas na cena social e politica, tém sido inflexiveis e algumas vezes contra-revoluciondrios. Quero tratar dessas questdes principais do modo mais direto posstvel. Posso indicar trés areas principais que estao no centro do de- senvolvimento da estratégia da Consciéncia Negra: a responsabi- lidade do negro, a unido e uma estratégia orientada para 0 povo. A responsabilidade do negro ‘Na verdade, a Consciéncia Negra nao trouxe nada de novo. O movimento tinha plena consciéncia de pertencer a uma longa historia de resistencia popular. Podia buscar sua inspiragdo nos mo- vimentos religiosos do Etiopismo e outros movimentos profético- religiosos africanos, nas lutas pela terra que deram impulso a0 Con- gresso dos Nativos da Africa do Sul (como entao era conhecido © ANO), nas lutas dos operarios do Sindicato dos Trabalhadores da Industria e do Comércio (ICU) e Anton Lembede, nas tendén- cias africanista e nacionalista dentro da tradicao de Iuta e no reco- nhecimento do papel e da contribuicdo dos sul-africanos mesticos asidticos. Todas essas tendéncias tomaram consisténcia dentro do conceito de Consciéncia Negra. A Alianca do Congresso, espe~ ‘cialmente na fase de ndo-participacao, e os ideais de uma nova Afri ‘ca do Sul foram debatidos'a fundo e representados dentro da Cons- ciéncia Negra. Para manter tal amélgama de pontos de vista, € preciso que os objetivos politicos sejam definidos claramente. E preciso também haver um reconhecimento da diversidade e uma isposicao de formar aliancas com base em um programa comuta. Foi exatamente isso 0 que a Consciéncia Negra procurou fazer des tro do programa limitaco que tinh estabelecido para si mesma. Numa época em que 08 movimentos populares tinham sido banidos, o medo era um fator muito real dentro de muitas comuni: dades negras. Depois das detencdes generalizadas, em 1964, e do Stephen Biko am perspects 23 ) para o exilio de muitos dos ativistas mais capazes, 0 campo livre para aqueles que definiamos como oportunistas: um ) de moderados (como eram chamados) dentre as classes le- .¢ de pequenos comerciantes, dos quais sairam muitos dos lideres. Havia também os Iideres dos bantust6es*, que nao encontrar nenhuma oposi¢ao a reivindicacao de serem dadeiros porta-vozes do povo. Para explicar essa mudanca Jealdades, apregoou-se a teoria de que os lideres dos bantus- ; tinham um programa secreto e possufam a gota d'dgua que ‘entornar o copo. Essa atitude foi em grande parte apresentada imprensa liberal inglesa e entre os baluartes da ortodoxia libe- | sul-africana, como 0 Instituto Sul-Africano de Relacées Raciais ), o Partido Progressista e as Igrejas inglesas. O SAIRR, ‘em particular; parecia cortejar esses lideres dos bantustdes e dar- hes uma plataforma em seus conselhos. Enquanto isso, tinhamos ‘aimpressao de que uma tradi¢do alternativa estava sendo imposta ‘de forma sutil a nosso povo, e muito em breve diriam que ele apoia- ‘va o grande projeto do apartheid. Nao estévamos preparados para ‘aceitar que isso acontecesse e também ndo iamos permitir que os movimentos populares e seus lideres fossem impiedosamente su- plantados, quer estivessem na prisdo ou no exilio, ‘A estratégia da Consciéncia Negra era ressuscitar a verda- deira politica de libertacio, orientar as pessoas para seus verda- deiros lideres na prisao ou no exilio, ¢ unificar a Juta pela liberta- gao. Para que essa estratégia fosse eficaz, era essencial realizar lum processo de auto-andlise critica, para que o medo e 0 fracasso ddesse empreendimento pudessem ser enfrentados. Os negros fo- ram incentivados a examinar de perto o que estava acontecendo ea rejeitar os pseudolideres emergentes. Eles precisavam enfren- taro medo e forjar a unidade e plataformas comuns. Para esse fim, ndo bastava admirar Helen Suzman** — que em dltima andlise nao estava defendendo a causa dos negros —, nem a vida do negro iria melhorar por meio do sistema politico que era parte da ideologia do desenvolvimento em separado para cada raca. Simplesmente ‘nao era suficiente ficar sentado esperando por um milagre, seja vindo do alto ou do movimento de libertacao sediado no exterior. * Hgntustdo: Kentuston on homeland, no original. Sao dreas reservadas para os negros, consideradas pelo governo da Africa do Sul como paises independentes. (s africanos, sto é, 08 negros, so considerados por lei cidadaos desses bantus- tes ¢ nao da Africa do Sul. Nenhum outro pats os reconhece. (N. T.) ** Helen Suzman: mulher branca que, naquele momento e durante muitos anos, {050 ‘nico memibro do Parlamento que pertencia ao Partido Progressista.(N. T.) 24 Erorevo 0 que eu quero Grande parte dos escritos de Steve, sob o pseudonimo de “Frank Talk”, falava aos negros sobre todas essas questdes. Portanto nao devemos nos surpreender com a forga de sua linguagem, especial- mente no que se refere as reivindicagdes da instituicao branca li- beral. A chave para essa reviravolta conceitual era uma nova defi- nicdo da negritude: a que tratava do fato objetivo da expenéncia de opressao ¢ injustica e que fazia um apelo as comunidades ne- ‘gras para que assumissem uma nova maneira de entender a negri- tude, que permitisse uma participacao total dos asiaticos e dos mesticos. E um mérito permanente de Steve 0 fato de que, apesar de alguns pronunciamentos fortes contra brancos liberais, ele ainda mantinha muitas amizades profundas e leais. Era sempre franco e honesto, mas tinha a capacidade de nao fazer com que as pes- ‘soas se sentissem insultadas ou diminuidas. Muitos jovens bran- cos que percebiam que nao aprovavamos o envolvimento deles na uta dos negros como tal, mas que apesar disso se sentiam frustra- dos pelas limitagdes da politica liberal dos brancos, encontraram em Steve um ouvinte receptivo e um bom conselheiro, Hoje, mui tos deles se encontram nos sindicatos e em trabalhos de assistén- cia juridica, ou se tornaram professores que usam seus conheci- ‘mentos para promover a causa da libertacto. Um deles confessou: “Bstou muito feliz por nao ser mais um branco liberal. Agora sou ‘um radical” Uniao ‘Numa época em que o espirito de luta parecia ter se dissipa- , do, € um mérito do movimento de Consciéncia Negra ele ter acre- Gitado que sua principal tarefa era reunir todas as contribuicoes possiveis que pudessem ajudar a acabar com o apartheid. Houve: um processo consciente de consultas a pessoas que sabidamente apoiavam as varias organizagoes como o ANC e o PAC. Depois da tragédia de Sharpeville, parecia que a desunifo era um luxo que nosso povo nao podia se permitir. Mas essa unio precisava ser fundamentada em prinefpios claros, Estévamos convencidos de que a Consciéncia Negra fornecia um programa comum, com 0 qual a totalidade do movimento de libertacao podia se identificar. Em segundo lugar — e era essa de fato a unica base sobre a qual os militantes do ANC ou do PAC podiam se apoiar para se associar 4 Consciéncia Negra —, tinhamos de afirmar que a importéncia nae Biko em perspective a do ANC e do PAC nao podiam ser questionadas. E, ila e muitas vezes reconhecemos tanto a autoridade das ides de libertacao como a lideranca auténtica que estava confianca As pessoas comuns. Elas podiam ver que a a na época dava continuidade a tradicao de resistén- lecida pelo ANC e pelo PAC. ‘que a unio precisava ser baseada em princfpios cla- icao de negritude exclufa deliberadamente os que eram parte do sistema e os que participavam, de varias ma- ris, de projetos criados pelo governo, Eram chamados, com des- 70, de “nao brancos”, porque aceitavam para si mesmos essa finigao negativa e a inferioridade racial que formava a base da itica do governo. No entanto, isso s6 ocorreu depois de ardoro- ppara tira-los do rumo que os colocava fora das Iutas i) povo. Fizemos consultas ao Partido Trabalhista, ou a elemen- progressistas desse partido, e ao Chefe Gatsha Buthelezi, e fo- 2o do Congresso Indiano de Na- (NIC). Achavamos que a Inkatha* seria um movimento retr6- ee. @ ficou provado que estvamos certos. Com 0 tempo conse- ee trabalhar razoavelmente bem com o NIC, que fazia parte 'Alianga do Congresso. Por fin, pusetos em andaniento uma consulta As véras orga- ‘nizagbes comunitérias que operavam. entre os negros. De diversas formas elas eram desafiadas a examinar a eficécia de sua atuacdo nas esferas em que se empenhavam. Sentiase intensamente a ne- cessidade de um movimento de solidariedade, embora se reconhe- -cesse que havia menos apoio para uma organizacao de ambito nacio- ‘nal ou uma organizacao politica com esse carater. A Convencto do ‘Povo Negro (BPC) surgiu dessas discussdes. Outras conseatiéncias ‘podiam ser notadas na proliferacao de associacdes — comunitérias, de moradores ou ligadas a questoes espectficas —, que tém caracte- rizado a atividade politica mais recente. © Comité de Soweto, de dez membros, foi talvez a primeira manifestacao dessa tendéncia. pase Um movimento popular A Consciéncia Negra radicalizou a politica dos negros de va- rios modos significativos. Ajudou as pessoas a se tornarem mais Takata movment liderado por Gatsa Buel, der bane que fo cootado pelo governo de minor Branca que oapdia, Atua na regito de Natal. (N. T) 26 Escrevo 0 que eu quero analiticas e articuladas, incentivowas a deixarem de reconhecer ‘qualquer um que participasse de instituicdes governamentais e deu a elas ferramentas para organizarem suas préprias vidas. Agora, dex anos depois, pode ser dificil avaliar 0 avanco que isso repre Sentou. Em seus escritos, Steve abordou de maneira direta os ele ‘mentos necessérios para que os negros assumissem mais uma vez sua prépria luta. Como foi que se conseguiu essa transformacao? Um dos re- cursos utilizados foi um programa cuidadoso de se colocar ao lado do povo em sua vida quotidiana: os estudantes realizavam traba- hos comunitérios, tais como lecionar, ajudar nas clinicas de satide ealfabetizar. O programa cultural foi um instrumento muito pode- 030. Hoje em dia dificilmente podemos conceber que um povo pos- sa lutar sem as fortes cadéncias das dangas foyi-toyi* e dos cantos de libertagao, ou sem 0 forte movimento de teatro popular ou da poesia. De todas essas maneiras o povo arrancou de volta sua cul- tura do monte de lixo da ideologia do apartheid, em que era usada como instrumento de opressao. Nao podemos nunca subestimar © efeito que acontecimentos puiblicos como demonstracdes ¢ co- micios de protesto tiveram na divulgacdo das aspiragdes dos ne- gros. Lembro-me de como eram populares, em Durban, as mani- festacoes do Dia dos Herdis, a leitura de poesias e o teatro radical do Conselho de Teatro de Natal (TECON), dirigido por Strini Moo- dley ¢ Saths Cooper. Em 1974, a confianca da lideranca da SASO era tal que foi capaz de, naquele ano, desafiar uma proibicao mi- nisterial da assembiéia do Viva Frelimo em Currie's Fountain, Dur ban. Os acontecimentos em Soweto, naquele dia 16 de junho, sao, agora parte da historia popular. Mas eles significam, de fato, o de- senlace da luta. Hoje as cidades segregadas de negros esto fervilhando de descontentamento. Em todo o pais elas parecem zonas de ocupa- ‘sao militar ou campos de concentracdo nazistas. Dentro delas 0 Povo mantém uma atitude de desafio. O regime de Botha foi obri- gado a declarar guerra a seu préprio povo, e assim ficou clara a ilegitimidade do governo baseado no apartheid, no sentido de que um governo que nao tem o consentimento do povo, nenhum de- sejo de promover o bem comum, e cuja autoridade encontra’uma resistencia ativa. Agora as alegacbes de que o regime de apartheid Toyi-Tori ipo de canto-slogan sobre a libertagao, com um ritmo emocional bem ‘mareado. F cantado e dangado com um simbolismo de luta e vitdria (N. T.) ‘phen Biko em perspective 27 Jegitimidade moral esto tendo mais aceitacao, mesmo na do Sul, Jovens negros tem sido dolorosamente sacrificados. da justiga est4 sendo muito alto. De tempos em tempos Juma sensacao de cansaco, mas de modo geral nao ha ne- ‘diminuicao no ritmo da fata. Como prova desse empenho 0 permanente estado de emergencia e a tendéncia rumo a lo policial; a sabotagem do parlamento minoritério eleito*, ssidéncia executiva ou pelo poder do Conselho de Seguran- lacional; e a censura implacdvel a qualquer encontro rom 0 ‘Sem ctivida existem reagdes da parte do governo. De um mo- ‘confuso, mais que por meio de uma politica bem organizada, medidas tém sido tomadas para incorporar africanos em estruturas subordinadas do governo. Sao as chamadas con- sullorias ou aconselhamentos. Um outro perverso instrumento de Fepressao também aparece: os grupos de “justiceiros”” que aterro- as dreas de negros, intimidando eficazmente algumas comu- jes. Temos também conhecimento de esquadrdes da morte ‘€ outras formas de execugdes extrajudiciais. Essas medidas tor- hum dificil qualquer conclusdo a respeito do progresso da luta. No entanto, a propria desordem pode ser uma prova de progresso. Apesar de tudo, o que mais impressiona é a lideranca e a ca- pacidade de organizacao, a habilidade e o julgamento politico pers: picaz demonstrado por pessoas como Cyril Ramophosa, do Sindi eato Nacional dos Mineiros (NUM), pessoas de Igreja tais como © Dr. Allan Boesak, o Rev. Frank Chikane e o Pe. Smangaliso Mkatshwa, a coragem da lideranca da Frente Unida Democratica (UDF) ea tenacidade dos jovens companheiros. A greve convoca- da pelo NUM, quando mais ou menos 340 mil operdrios suspende- ram 0 trabalho durante duas semanas, em agosto de 1987, é uma prova da coragem e da determinacao dos membros ¢ da sofistica- da organizacao da lideranca do sindicato, Os mineiros, muitos dos quais estrangeiros ou trabalhadores migrantes, enfrentaram riscos enormes para defender o principio de um salario justo e de segu- ranga no trabalho. A producao foi reduzida e o governo ficou em situagao embaracosa; a indiistria de mineracdo comecou a perce- ber que nao pode mais deixar de se preocupar com seus operdrios, A atual Consttuicao, que data de 1983, criou uma representacdo para os mest {gos € outra para os asiticos, ov indianos, tanto no executive quanto no legslativo. $6 que, tanto mim caso como no outro, a proporgao ¢ de quatro brancos para d ‘mestigas eum indiano, Nenlum negro tem 0 direto de votar ou de ser eleto.(N.T). 28 Escrovo 0 qué ou quero O préprio carater social da Africa do Sul esta sofrendo uma mudanga. £ inegavel que as conseaiiéncias do incentivo para que muitos negros passem a fazer parte da burguesia — objetivo os- tensivo da politica atual — esto afetando as atitudes politicas. Nao podemos mais falar do apartheid como 0 “grande nivelador”, co- ‘mo costumavamos fazer. O “dividir para governar”” agora se rea- liza também por intermédio de methorias econdmicas e materiais para uns poucos e do continuo empobrecimento da maioria. Jé que alguns negros podem ser proprietdrios de suas casas, eles podem se separar dos mais pobres, indo morar em subuirbios de elite ou até em subuirbios para brancos. No trabalho, a diminui¢ao das exi- géncias nas leis de reserva de empregos significa que muitos ne- gros agora se identificam com a administracao. A medida que os negros da classe mais alta mandam seus filhos para escolas mul- tirraciais, as lutas pela qualidade do ensino nao 0s interessam mais e eles deixam de lutar ao lado do restante da comunidade. Portanto, a definigao de Consciéncia Negra precisa ser re- vista. Essa revisio permitiré que tenha um apelo mais amplo e um impulso ideol6gico mais forte. A cor da pele tornou-se um par: metro superficial e inconsistente. A experiéncia social é muito mais confiével. Uma nova definicao possibilitard que os militantes da Conscigncia Negra participem plenamente da luta e expressem 0 ideal de unidade na pratica. Desse modo, a ret6rica da Conscién- cia Negra, que cada vez mais leva em conta os fatores de classe, ser reconhecida na vida e na pratica de seus sezruidore: Como resultado, terfamos a eliminagao de oportunistas co- mo um certo Magina e seu esquadrao de “‘justiceiros” AmaAfri- ‘ka, que espalha o terror nas cidades segregadas da regiao de Port Elizabeth-Uitenhage. A motivacao e a lealdade deles s40 questio- ndveis. Por exemplo, como declarar-se seguidor da Consciéncia Ne- ‘gra alguém cujo ponto de vista se expressa por frases do tipo: “Ve- readores, policiais negros e lideres dos bantustdes nao sdo parte do problema [...]. Por que nao deveria haver policiais nesses lo- cais? Essa é a lei do pais” (City Press, 19 de julho de 1987; citado no ANC Newsbriefings, vol. 11, n? 28). Pessoas como essa se apro- veitam da falta de clareza ideolégica na filosofia da Consciéncia Negra. Se a Consciéncia Negra quiser continuar a gozar de credi- bilidade, precisa se desvincular de elementos desse tipo. Todo programa politico que procura participar da luta pela libertagao precisa ter consciéncia do racismo endémico na socie- dade sul-africana ao mesmo tempo que enfrenta as divisdes de clas- Stophen Biko em perspectiva 29 estéio se espalhando rapidamente e que levam a exploracao ica e & inferioridade social. Uma sociedade justa 86 con: a credibilidade quando pode ser definida como uma socie- ‘sem classes e nao racista, Para tanto € preciso priorizar 0 con- da necessidade de transferir o poder e de maximizar uma par- Ao criativa e significativa no processo politico. Quando di- ‘que a Consciéncia Negra nao tem ideologia, seus criticos ale~ que sua retérica e sua andlise nao revelam nenhum entendi- ito dessas questdes. A observacdo € procedente. No entanto, se pode acusar a Consciéncia Negra de nao fazer o que nunca propos. Em seu programa limitado, ela se considerava apenas agente catalisador, um agente que possibilitasse o desabrochar drama politico. ‘As perguntas que se colocam para aqueles que agora adotam. ‘4 Consciéncia Negra com certeza devem ser: Commo podemos parti- ‘cipar integralmente das lutas de hoje? Sera que conseguiremos en- ‘eontrar uma f6rmula para definir a unidade de modo que nao fique- ‘mos fora do grande esforgo pela libertacao? Se estivermos unidos ta acdo, a solidariedade sera construida e as suspeitas que $6 ser- ‘vem para alimentar os interesses da seguranca do apartheid pode- ‘lo ser removidas. Na Consciéncia Negra, nenhuma causa, nenhum ano, nenhum ato de desprezo pessoal seria suficiente para nos afas- tar do objetivo fundamental de conquistar a nova Africa do Sul. Ao refletir sobre Steve Biko e o legado da Consciéncia Ne- ‘gra, encontrei a seguinte declaracao, de uma pessoa chamada Theo- philus Mzukwa, que exprime de modo comovente tudo aquilo pe- Toque, acredito, Steve viveu e morreu. Mzukwa, que é da geracao de 1976, testemunhava em seu julgamento em defesa prépria, Co- mo membro do Umkonto we Sfzwe, o brago militar do ANC, ele relata suas experiéncias.no ANC: “Como tinhamos nos compro- metido a trabalhar pela liberdade”, disse ele, “4 nos sentfamos melhor. Nao somos mais escravos. Eramos pessoas que lutavam pela liberdade, estavamos lutando por nosso povo. E aqueles que estavam comigo me respeitavam e me amavam. E eu os amava” (Cape Times, 6 de junho de 1987; citado no ANC Newsbriefings, vol. 11, n? 23). Foi essa a mistura de confianca e de paz interior dentro da ‘causa que Steve conseguiu realizar: a liberdade de confiar, de amar : ede lutar. O essencial da Consciéncia Negra € possibilitar e inten- sificar a participacao do povo nas proprias lutas. Birmingham, agosto de 1987 julho de 1970, no I Conselho-Geral dos Estudantes da SA- mey Pityana sucedeu a Steve na presidéncia. Steve foi eleito -das publicacies da SASO, No més seguinte, o boletim men- izacdo comecou a publicar artigos escritos por ele, com 0 “No juulgamento da BPC/SASO, en certo momento 0 juiz per- “0 [acusado] niimero 9 [Strini Moodley] nao é Frank Talk?"; es ‘Nao, ndo, ele nunca foi Frank Talk, eu é que era Talk” (ver pag 134). Este artigo e 0 seguinte, que foram publi- 0 boletim nas ediches de agosto e setembro de 1970, respectiva- gapresentam wma auiéntica exposieao da filosofia da Conscién- vo 0 que eu quero A seguir est4 o primeiro de uma série de artigos com esse 0, que aparecerao regularmente em nosso boletim. ik Tall: pseudonimo nsado por Steve Biko. Frank & um nome proprio e sig mibém “franco”. Tal significa ‘‘conversa”” e pode ser usadio como sobre- je. No caso, o pseudonimo seria “Conversa Franca’’. (N.T.) 32 Alma negra em pele branca? A comunidade branca na Africa do Sul é basicamente homo- génea. B um grupo de pessoas acomodadas, que desfrutam de uma posicao privilegiada que nao merecem, que tém consciencia disso, € que por essa razdo passam todo o tempo tentando justificar por ‘que sao assim. Quando existem diferengas em suas opinides polt- ticas; mesmo estas tentam justificar sua posicao privilegiada e sua uusurpacao do poder. Com a teoria de “Tiberdade em separado para as varias na- cdes dentro do Estado multinacional da Africa do Sul”, os nacio- nalistas fizeram muito no sentido de dar 4 maioria branca da Afri- ca do Sul uma espécie de fundamentacao moral para o que ocorre. Todo mundo se satisfaz com a declaragao de que “essa gente" — referindo-se aos negros — ser libertada quando estiver pronta para dirigir seus préprios negécios em suas prdprias areas. O que mais, poderiam querer? Mas nao é com “essa gente” que estamos preocupados. Nosso_ problema é aquele estranho grupo de nao-conformistas que expli- cam sua participagao em termos negativos: aquele grupo de pes- soas bem-intencionadas, que tém uma porc&o de nomes: liberais, esquerdistas etc. Sao os que alegam nao serem responsaveis pelo racismo dos brancos e pela “atitude desumana do pafs em relaeao ao negro”. Sao as pessoas que declaram sentir a opressdo com a ‘mesma intensidade que os negros e que, por esse motivo, também deveriam se envolver na luta do negro por um lugar ao sol. Em. Tesumo, sao as pessoas que dizem que tém a alma negra, dentro: de uma pele branca. ¥ O papel do branco liberal na historia do negro na Africa do Sul, ¢ bem curioso. A maioria das organizacdes negras estavam sob a diregdo de brancos. Fiéis 4 sua imagem, os brancos liberais. sempre sabiam 0 que era bom para os negros e diziam isso a eles. O mais incrivel € 0 fato de os negros terem acreditado neles du- rante tanto tempo. Foi s6 no fim da década de 50 que os negros comegaram a exigir 0 direito de serem seus proprios guardides. Sob nenhum aspecto a arrogancia da ideologia liberal é mais. evidente que na insisténcia em afirmar que os problemas do pais 86 podem ser solucionados por uma abordagem bilateral, envol- vendo tanto os negros quanto os brancos. De modo geral, tal posi- -ao € assumida com toda a seriedade como o modus operandi na rica do Sul por todos aqueles que declaram que gostariam que , negra om pele branca? 33 uyesse uma mudanca no sfa/us quo. Por esse motivo vemos or- nizacbes e partidos politicos multirraciais e organizagoes estu- antis “‘ndo raciais”, todos os quais insistem na integragdo nao s6 como um objetivo final, mas também como um meio. A integragao de que falam é, em primeiro lugar, artificial, de tudo por resultar mais de uma manobra consciente do que ‘uma orientacao profunda da alma. Em outras palavras, as pes- S0as que formam 0 organismo integrado foram extraidas de varias es segregadas, com seus complexos de superioridade e de joridade introjetados, complexos que continuam ase manifes- smo na estrutura “nao racial”” do organismo integrado. Por 0, a integracao assim obtida é uma via de mao tinica, na qual brancos sto os tinicos a falar, cabendo aos negros escutar. presso-me em dizer que nao estou afirmando que a segregacdo necessariamente ordem natural; no entanto, uma vez que um oza de privilégios a custa de outro, torna-se evidente que integracao arranjada as pressas nfo pode ser a solucao do pro- na. E 0 mesmo que esperar que 0 escravo trabalhe junto com fiho de seu dono para eliminar as condigdes que o levaram a es- ido. Em segundo lugar, esse tipo de integracao 6 um meio quase ‘improdutivo. Os participantes gastam muito tempo nas reu- Ges trocando insultos, tentando provar que A € mais liberal que }, Ou seja, a falta de uma base comum para uma identificacdo s6- | se manifesta o tempo todo nas brigas internas do grupo. _ A busca dos negros pela auto-afirmacio, numa sociedade que Fala como eternas criancas menores de 16 anos, nao deve pa- anacrOnica a nenhuma pessoa verdadeiramente interessada ia integracao real. Uma verdadeira integracio nao precisa de nejamento ou estimulo. Quando os varios grupos de uma co- dade se afirmam o suficiente para que haja respeito muituo, mos entZo os pontos basicos para uma integracao verdadeira ¢ nificativa. No coracao da verdadeira integracao se encontram elementos para que cada pessoa ¢ cada grupo crescam ¢ atin m a identidade almejada. E preciso que cada grupo seja capaz icar seu estilo de vida préprio sem invadir ou ser frustrado itr. Do respeito miituo e da total liberdade de autodetermi- to com certeza surgird uma genuina fusao dos estilos de vida itos. Essa é a verdadeira integracao. ‘Portanto, enquanto os negros estiverem sofrendo de um com- 0 de inferioridade — conseqiténcia de trezentos anos de deli 34 Ezorevo 0 qus'eu quero berada opressao, desprezo € escérnio —, sero intiteis como co- construtores de ma sociedade normal, na qual a pessoa néo seja nada mais que um ser humano, para 0 seu proprio bem. Assim, como preliidio ao que quer que possa vir em seguida, é necessério estabelecer nas bases uma consciéncia negra tao forte que os ne- ‘gros possam aprender a se auto-afirmar e a reivindicar seus justos direitos. Desse modo, a0 adotar a linha de uma abordagem no racial, 1s liberais estao fazendo seu velho jogo. Reivindicam o “monopé- lio da inteligencia e do julgamento moral” estabelecem o padrao © o ritmo para a realizacao das aspiracdes do negro. Eles querem continuar a gozar da simpatia tanto do mundo dos negros como dos brancos. Querem se afastar de todo tipo de “‘extremismo”, con- denando ‘‘a supremacia branca” por ser tao ruim quanto o “Poder Negro”! Oscilam entre os dois mundos, verbalizando com perfei- gio as reclamacdes dos negros ao mesmo tempo que extraem 0 que Ihes convém do conjunto exclusivo de privilégios dos brancos. ‘Mas basta pedir que apresentem um programa concreto ¢ signifi cativo que pretendam adotar, e veremos de que lado realmente es- tao. Seus protestos sio dirigidos a consciéncia do branco; tudo o que fazem se destina a convencer 0 eleitorado branco de que o ne- gro também é um ser humano e de que em algum momento no fu- turo deveria Ihe ser dado 0 acesso & mesa do branco, mito da integracdo proposta pela ideologia liberal precisa ser derrubado e morto, pois ele possibilita que se acredite que al- ‘go esté sendo feito. Na realidade, porém, os circulos artificialmen- te integrados sao um soporifero para os negros e fornecem uma certa satisfacao para 0s brancos de consciéncia culpada, Tal mito se baseia na falsa premissa de que, ja que neste pais é muito dificil reunir racas diferentes, ento 0 simples fato de se conseguir essa reuniéo é em si mesmo um grande passo para a total libertacio dos negros. Nada poderia ser mais irrelevante* ¢ portando enga- nador. Os que acreditam nisso estdo vivendo na ilusao. Em primeiro lugar, os circuilos de brancos e negros S40 qua- se sempre uma criagao de brancos liberais. Como prova de que se acham completamente identificados com os negros, conforme ale- gam, cles convidam alguns negros “inteligentes e articulados” para Trrelevant, no original: termo usado na Africa do Sul para questionar nio a boa intenedo de insttuigdes ow atividades, masa sua eficicia em relacdo A realidade da ‘opressio sofrida pelos negros. Sao freaentes também as palavras relevante” “re. levineia” neste contexto. (N.T.) ‘nogra em pele branca? 35 ‘um ché em casa”, ocasiao em que todos os presentes se fa- mesma velha e gasta pergunta: “Como podemos provocar sna Africa do Sul?””. Quanto mais chas desse tipo alguém tanto mais liberal seré e tanto mais livre se sentir da ‘gue perturba e amarra sua consciéncia. A partir de entao es- ém se moveré em seus circulos brancos — hotéis, praias, res- antes € cinemas s6 para brancos — com a consciéncia menos achando que é diferente das outras pessoas. E, no entanto, fundo de sua mente existe o constante pensamento de que tudo ‘muito bem para ele e que, por isso, nao deveria se preocupar m mudangas. Embora ndo vote nos nacionalistas (4 que, de qual- eito, agora sao a maioria), ele se sente seguro sob a protegao ida por eles e, inconscientemente, repele a idéia de mudanca. € 0 ponto que separa o liberal do mundo negro. 0s liberais encaram a opressao dos negros como um proble- 1a que precisa ser resolvido, algo que enfeia e estraga um pano- que, sem cla, seria muito bonito. De tempos em tempos eles esquecem do problema ou deixam de olhar para o que enfeia Paisagem. Por outro lado, em sua opressao, os negros experi- -mentam uma realidade da qual nunca conseguem escapar. Lutam "para se livrar da situacao e nao apenas para resolver uma questo ‘Secundéria, como € 0 caso dos liberais. Essa é a razo por que 08 ‘hegros falam com muito mais urgéncia que os brancos. ___ Osliberais se tornaram mestres no jogo de evasivas delibe- das. A pergunta “O que posso fazer?” surge com muita freqiién- cla, Se Ihe pedem para fazer algo como deixar de usar servicos ‘em que haja segregaio, para sair da universidade e trabalhar em -empregos subalternos como todos os negros, ou ainda denunciar ‘e desafiar os regulamentos que lhe dao privilégios, sempre respon- de; “Mas isso nao ¢ realistal”. Embora tal afirmacao possa ser ver- dade, esses exemplos servem apenas para demonstrar que, nao im- ‘porta o que um branco faca, a cor de sua pele — seu passaporte __ ara o privilégio— sempre o colocaré quilometros & frente do ne- ‘gro. Portanto, em iltima andlise, nenhum branco escapa de per- tencer ao campo opressor.. _ “Existe entre as pessoas, porque so seres humanos, uma so- lidariedade pela qual cada um € corresponsdvel por toda a injusti- Ga e por todo o erro cometido no mundo, em especial pelos crimes ‘cometidos em sua presenca ou os que ele nao pode ignorar.”” Essa descricao da “‘culpa metafisica” explica de modo ade- quado que o fascismo branco “6 é possivel porque os brancos sao 36 Escrevo 0 quo eu quero indiferentes ao sofrimento e pacientes em relacaoa crueldade” com ‘que as pessoas negras sao tratadas. Em vez de empenharem todas as suas forcas numa tentativa de eliminar o racismo de sua socie- dade branca, os liberais desperdicam muito tempo tentando pro- var ao maior ntimero possfvel de negros que sao liberais. Tal ati- tude provém da crenca errénea de que estamos diante de um pro- bblema de negros. Nao hd nada de errado com os negros. O proble- ma é oRACISMO BRANCO, ¢ ele est bem no centro da socieda- de branca. Quanto mais cedo os liberais perceberem isso, tanto me- Thor para nds, negros. A presenca deles entre nés incomoda e ser- ve para criar transtornos. Faz com que o foco de atencaio seja des- viado de pontos essenciais para conceitos filos6ficos mal definidos, {que a0 mesmo tempo sao irrelevantes para o negro e apenas ser- vem para nos desviar do nosso rumo. Os brancos liberais preci- sam deixar que os negros cuidem dos prdprios assuntos, enquanto eles devem se preocupar com 0 verdadeiro mal de nossa socieda- de: 0 racismo branco. Em segundo lugar, os circulos mistos de brancos € negros so circulos estéticos, sem direc&o nem programa. As mesmas per- guntas sao feitas e a mesta ingenuidade aparece nas respostas. A verdadeira preocupacao do grupo é manté-lo em funcionamen- to, mais que torné-lo itil. Nesse tipo de situacao podemos ver um exemplo perfeito de como a opressao vem agindo sobre os negros. Fizeram com que eles se sentissem inferiores durante tanto tem- po que se sentem consolados em beber cha, vinho ou cerveja com brancos que parecem traté-los como iguais. Como conseqtiéncia, tem 0 ego reforcado a tal ponto que se acham superiores aos ou- tros negros que nao recebem 0 mesmo tratamento dos brancos. E esse tipo de negro que constitui um perigo para a comunidade. Em ver de se dirigirem aos irmaos negros ¢ olharem seus pro- blemas comuns a partir de uma plataforma tnica, preferem can- tar seus lamentos para um audit6rio aparentemente simpatico que se tornou perito em gritar em coro: “Que vergonhal””. Esses ne- gros de inteligencia obtusa, egocEntricos, sio tio culpados pela falta de progresso quanto seus amigos brancos, pois € desse tipo de gru- po quéa teoria do gradualismo emana e € 0 que mantém os negros onfusos, sempre & espera de que um dia Deus desca do céu para resolver seus problemas. Sto pessoas de grupos como esses que todos os dias Iéem cuidadosamente o jornal, procurando por qual- quer sinal de uma mudanca pela qual esperam com paciéncia, sem fazer nada para que ela aconteca. Quando o ntimero de votos obti- “Ria negra om pole brance? 37 “dos por Helen Suzman cresce em alguns milhares, esse aumento € visto como um marco importante da “‘mudanca inevitavel”’. Nin- suém olha para o outro lado da moeda: a remocao de grandes con- tingentes de africanos das reas urbanas, 0 zoneamento iminente de lugares como a Rua Grey, em Durban, e milhares de outras ma- nifestacdes dle uma mudanca para pior. Tais pontos de vista significam que sou contra a integracao? Sepela integracao se entende a penetracao dos negros na socieda- de branca, a assimilacdo e a aceitaco dos negros num conjunto ide normas ja estabelecido e num cédigo de comportamento esta- tuido e mantido por brancos, entao SIM, sou contra. Sou contra _estratificacio da sociedade em superior-inferior, branco-negro, ‘que faz do branco um professor perpétuo e do negro um aluno per- pétuo (e um mau aluno, além do mais). Sou contra a arrogan intelectual dos brancos, que os faz acreditar que uma lideranca bbranca ¢ uma condigao sine qua non neste pais e que os brancos tém um mandato divino para imporem o ritmo deles ao progresso. ‘Sou contra a imposi¢ao de todlo um sistema de valores ao povo na- tivo por parte de uma minoria colonizadora. Se, por outro lado, a integracio significar que havera uma participacao livre de todos os membros de tuma sociedade, que ha- veri condigdes para a total expressao do ser em uma sociedade que se transforma livremente conforme a vontade do povo, entao estou de acordo. Pois nao se pode negar que, em qualquer socie- dade, a cultura compartilhada pelo grupo majoritario deve deter- minar as grandes linhas da direcdo que a cultura conjunta dessa sociedade vai tomar. Isso néo deve prejudicar os que sentem de modo diferente, mas, no conjunto, um pafs na Africa, onde a maio- tia do povo é africana, precisa inevitavelmente apresentar valores africanos ¢ ser africano de verdade em seus costumes. E quanto a reclamacao de que os negros estio ficando racis- tas? Esta queixa € um dos passatempos favoritos de liberais frus- trados que sentem que esto perdendo terreno na sua atuacao co- mo curadores. Esses auutonomeados curadores dos interesses dos negros se vangloriam de seus anos de experiéncia na luta pelos “direitos dos negros”. Eles vém fazendo coisas para os negros, em favor dos negros ¢ por causa dos negros. Quando estes anunciam que chegou a hora de fazerem coisas para eles mesmos, ¢ inteira- mente por eles mesmos, todos os brancos liberais gritam, como se fosse o fim do mundo! “Ei, voce nao pode fazer isso! Voce esta sendo racista. Est caindo na armadilha deles. re Brerevo © que eu quero ‘Aparentemente esté tudo bem com os liberais, desde que con- tinvemos presos na armadilha deles. ‘As pessoas bem informadas definem o racismo como a dis: criminacao praticada por um grupo contra outro com 0 objetivo de dominar ou de manter a dominacao. Em outras palavras, nao se pode ser racista a menos que se tenha o poder de dominar. Os negros estao apenas reagindo a uma situagao na qual verificam que 20 objeto do racismo branco. Estamos nesta situagao por causa de nossa pele. Somos segregados coletivamente — o que pode ser ‘mais légico que reagir como um grupo? Quando os trabalhadores ‘se unem sob 08 auspicios de um sindicato para lutar por melhores condicoes de vida, ninguém no mundo ocidental se surpreende. B ‘o que todo o mundo faz. Ninguém os acusa de terem tendéncias separatistas. Os professores travam as suas proprias lutas, os li- xeiros fazem 0 mesmo, e ninguém age como curador dos outros. ‘Mas, de algum modo, quando os negros querem agir por si, 0 sis- tema liberal parece encontrar nisso uma anomalia, Na verdade, trata-se de uma contra-anomalia. A anomalia se encontra antes, quando os liberais sao presuncosos o suficiente para achar que ca~ be a eles lutar pelos negros. O liberal precisa entender que o tempo do Bom Selvagem ja passou, que 0s negros nao precisam de um intermedidrio na luta pela propria emancipacao. Nenhum liberal verdadeiro deveria se ressentir com o crescimento da consciéncia negra, Antes, todo li- eral verdadeiro deveria perceber que é dentro de sua sociedade branca que precisa lutar pela justica. Se é um verdadeiro liberal, tem de entender que ele mesmo nao passa de um oprimido; que, portanto, precisa lutar pela prépria liberdade e nao pela liberdade daqueles vagos “eles” com quem na verdade nao pode dizer que se identifica. O liberal deve se concentrar, com dedicagao total, na idéia de ensinar a seus irmaos brancos que num dado momento a histéria do pais poder ser reescrita e que poderemos viver “num pais onde a cor nao servird para colocar um homem num compar timento”. Os negros j4 ouviram demais sobre esse assunto. Em ‘outras palavras, o liberal precisa desempenhar 0 papel de um lu- rificante de modo que, quando mudarmos a marcha & procura de ‘uma direcao melhor para a Africa do Sul, nao se ouca 0 ruido dos metais em atrito, mas o som de um movimento livre e fluido de um veiculo bem-cuidado. Frank TALK © 0 que eu quero No ultimo nimero fiz um apanhado de um setor da comuni- branca. Hoje me proponho a falar i Banca, Hoje me proponho a falar do mundo negro — da val Tendo nascido pouco antes de 1948*, vivi ina vi onsciente dentro da estrutura de um Haesanyolpaicaa anes institucionalizado. Minhas amizades, meu amor, minha ea , meu pensamento e todas as outras facetas de minha vida m formados e modelados dentro do context da segregacao ra varios estagios de minha vida consegui superar algumas ue o sistema me ensinou. Agora me proponko, e espero seguilo, «dar uina olhada naqules que paticipam da opost .: io de um ponto de vista distanciado, mas do le um homem negro consciente da preméncia de a 2 ce © que est envolvido na nova abordagem: a “Cons- @ ano em que 0 Partido Nacionalista chegou ao poder. 40 Eecrevo o que eu quero E preciso entender as questdes fundamentais antes de se es- tabelecer os recursos para a melhoria de nossa situacao. Algumas das organizagées que atualmente “‘lutam contra o apartheid” tra- balham a partir de uma premissa demasiado simplificada. Fizeram ‘uma andlise superficial da realidade que esté af e elaboraram um diagnéstico errado do problema. Esqueceram-se quase por com- pleto dos efeitos colaterais e nem sequer levaram em conta a cau- sa mais profunda. Por isso, qualquer coisa que seja improvisada como remédio nao conseguiré sanar nossos problemas, O apartheid — tanto nas questdes pequenas como nas gran- des — é evidentemente um mal. Nada pode justificar a presungio arrogante de que um pequeno grupo de estrangeiros tem 0 direito de decidir sobre a vida da maioria. Portanto, mesmo que fosse apli- cada de modo fiel e honesto, a politica do apartheid mereceria a condenagao e a forte oposicéo do povo nativo do pafs, como tam- ‘bém daqueles que véem o problema em sua perspectiva correta. O fato de o apartheid estar vinculado & supremacia dos brancos, a exploragdo capitalista e a opressao deliberada torna o problema muito mais complexo. A falta de bens materiais jé ¢ bastante ruim, mas unida @ pobreza espiritual € mortifera. E este tiltimo efeito €provavelmente aquele que cria montanhas de obstéculos no cur 0 normal da emancipacao do povo negro. ‘Nao devemos perder tempo aqui tratando das manifestagdes da pobreza material do povo negro. Uma ampla literatura ja foi escrita sobre esse problema. Talvez se deva dizer algo a respeito da pobreza espiritual. O que faz o negro deixar de reagir? Sera que ele se convenceu por si mesmo da prdpria incapacidade? Serd que em sua constituicao genética ndo existe aquela qualidade rara que faz com que um homem esteja pronto a morrer pela realizacao de suas aspiracdes? Ou ser4 ele apenas uma pessoa derrotada’ A res- posta para essas questdes nao é evidente. No entanto, est mais préxima da iiltima sugest4o que de qualquer outra. A légica que se acha por trés da dominagao do branco a de preparar 0 negro para desempenhar neste pais um papel subserviente. Hé pouco tem- po tal afirmacao costumava ser feita sem constrangimento no Par- lamento, até mesmo a respeito do sistema educacional para os ne- ros. E ainda se afirma até hoje, embora numa linguagem muito mais sofisticada. Os malfeitores foram em grande parte bem- sucedidos em produzir, como produto final de sua méquina, uma espécie de homem negro que $6 € homem na forma. Tal é 0 ponto a que avancou 0 processo de desumanizacao. nogroe a1 Sob o governo de Smuts os negros estavam oprimidos, mas eram gente. Eles deixaram de mudar 0 sistema devido a va- que nao vamos analisar aqui. Mas o tipo de homem ne- temos hoje perdeu sua dignidade humana. Reduzido a uma ervical, ele olha com respeito e temor para a estrutura de do branco e aceita o que vé como uma “*posicdo inevitavel” fundo, sua raiva cresce com o aciimulo de insultos, mas anifesta na direcao errada — contra seu companheiro na -segregada, contra coisas que so propriedade dos negros. ado confia mais na lideranca, porque as prisdes em massa de } podem ser atribuidas a inabilidade da lideranga, e nem ha fideranca na qual confiar. Na intimidade de seu banheiro con- ce o rosto numa condenacao silenciosa da sociedade branca, mas feigbes se iluminam ao sair depressa para atender, com a obe- de um cordeiro, ao chamado impaciente de seu amo. No ou no trem, voltando para casa, junta-se ao coro de vozes condenam o branco claramente, mas é o primeiro a elogiar 0 no na frente da policia ou de seus patrées. Seu coragao al- ja o conforto da sociedade branca e ele culpa a si mesmo por “‘educado” o suficiente para merecer tal luxo. As propala- lizagdes dos brancos no campo da ciéncia — que ele s6 en- je vagamente — servem para convencé-lo, até certo ponto, da ide de resistir e a jogar fora qualquer esperanga de que al- n dia as coisas mudem. No geral, 0 homem negro se transfor- numa casca, numa sombra de homem, totalmente derrotado, ado na propria miséria; um escravo, um boi que suporta o ju- opresséo com a timidez de um cordeiro. Por mais amarga que possa parecer, essa é a primeira verda- que temos de aceitar antes de poder iniciar qualquer programa tinado a mudar o status quo. Torna-se ainda mais necessério en- a verdade como ela é se percebermos que 0 tinico veiculo ‘@ mudanca sao essas pessoas que perderam a personalidade. primeiro passo, portanto, é fazer com que o negro se encontre ‘mesmo, insuflar novamente a vida em sua casca vazia, infun- nele o orgulho ea dignidade, Lembrar-Ihe de sua cumplicidade crime de permitir que abusem dele, deixando assim que o mal asse em seu pais natal. & exatamente isso que queremos di- quando falamos em um processo de olhar para dentro, Essa Africand deses. (NT) J.africano branco, em geral descendente dos colonizadores holan- lagto da resistencia negra 51 anos. E claro que essas promessas nunca sero cumpridas — menos nao imediatamente —, e enquanto isso o inimigo caval- ica do Sul como um gigante, rindo alto das tentativas frag- das massas impotentes, que fazem apelos a seus ouvi- “0 Transkei é 0 calcanhar-de-aquiles dos nacionalistas”, de- politicos intelectuais que logo encontram uma brecha, mes- parede de ferro com dois palmos de espessura. Essa € a logica falsa. O Transkei, 0 CRC, a Zululandia e todas as ou- instituicoes do apartheid sao redutos de tipo moderno, atras is 0s brancos desse pafs se esconderao ainda durante mui- empo. O tapete esta sendo puxado lentamente debaixo de nos- ns, como negros, logo acreditaremos piamente que nos- ‘direitos polfticos se encontram de fato em nossas “‘prdprias”” . Dai em diante vamos verificar que nao temos mais nenhum, ato em que nos basear para exgir qualquer direito a “par- \eipal da Africa do Sul branca”, que, incidentalmente, vai nger mais de trés quartos da terra de nossos antepassados. _ Na minha opiniao, o perigo maior com que a comunidade ne- defronta no momento atual é o de estar sendo condicionada modo pelo sistema que até nossa resistencia mais bem pla- ja acaba se adequando a ele, tanto em termos de meios quan- objetivos. Uma prova disso € a nova tendéncia encontrada ‘9s Iideres da comunidade indiana em Durban. (Devo admitir fago tal afirmativa com dor no coracao.) Desde que se ouviu que o Conselho Indiano seré eleito num futuro préximo, um m niimero de pessoas inteligentes esta pensando em ressusci- ) Congresso Indiano e deixar que ele forme algum tipo de opo- dentro do sistema. Essa é uma forma perigosa de pensamen- tr6grado, ao qual nao se deveria dar espaco para crescer. As oes do apartheid estao engolindo um ntimero grande de- tis de pessoas dignas, que seriam titeis em um programa signi tivo de emancipacao dos negros. Assim, quem sao os lideres do mundo negro, j4 que nao se mntram no interior da instituicao do apartheid? Evidentemen- 08 negros sabem que seus lideres sfio as pessoas que agora se em Robben Island, out foram banidas, ou estao no exilio — io ou nao, As pessoas como Mandela, Sobukwe, Kathrada, . Naidoo e muitos outros sempre terao um lugar de honra em mente, como os verdadeiros lideres do povo. Podem ter si- ) chamados de comunistas, sabotadores ou coisas do género — 52 Bnerevo 0 que ou quero na verdade, podem ter sido condenados por ofensas semelhantes, em tribunais de justica, mas isso nao diminui a esséncia verdadei- ra de seu valor. Sao pessoas que agiram com uma dedicacao sem paralelo nos tempos modernos. A preocupacao com nossa condi- cao lamentavel como negros levou-0s a conquistar o apoio natural da massa do povo negro. Potlemos discordar de algumas atitudes que tomaram, mas sabemos que falaram a lingua do povo. Serd que isso quer dizer que eu nao vejo absolutamente ne- nhuma vantagem na situagao atual? A menos que a astticia poltti- ca das pessoas negras envolvidas nessas diferentes instituicbes do apartheid se torne mais agucada, tenho medo de que estejamos che- gando rapidamente a um impasse. A nova geracao pode estar cer- ta ao nos acusar de contribuir para nossa prépria destruicao. Na Alemanha, os funcionarios subalternos que decidiam quais judeus deveriam ser levados embora também eram judeus. No fim, as gan- gues de Hitler também foram buscé-los. Logo que os elementos dissidentes que nao pertencem as instituicoes do apartheid forem completamente silenciados, eles virdo buscar aqueles que fazem barulho dentro do sistema. Quando isso acontecer, as fronteiras de nosso mundo sero para sempre a circunferéncia dos “pontos negros”, que representam treze por cento. ‘Talvez devamos ser um pouco categoricos nesse ponto. De- saconselho totalmente a iniciativa de pessoas de esquerda de in: gressarem nas instituicdes do apartheid. Ao planejar uma estrat gia, muitas vezes temos de tomar conhecimento da forca do inimi- go e, até onde posso julgar, todos dentre nds que querem/lutar no interior do sistema estdo subestimando por completo a influencia ‘que o sistema exerce sobre nds. O que me parece l6gico, nesta eta- pa, 6a esquerda fazer uma pressao continua sobre as varias inst tuigdes do apartheid para testarem os limites das possibilidades dentro do sistema, para provar que 0 jogo todo é uma fraude e pa- rase desligar do sistema. Tomo 0 exemplo do Partido Trabalhista porque parece ser o grupo dissidente mais bem-organizado no in- terior do sistema Partido Trabalhista dos Mesticos se apresentou as eleigdes ‘com uma plataforma antiapartheid e conquistou a maioria das ca- deiras votadas. Além disso, ele nao perdeu tempo em declarar sua posicao antiapartheid e ressuscitou em grande parte a atividade politica dentro da comunidade dos mesticos. Na verdade, a cres- cente consciéncia da possibilidade de uma acdo politica entre os mesticos se deve ao Partido Trabalhista. Daqui a pouco, 0 partido tacao da resiténcia negra 53 ceber que est repetindo o mesmo estribilho e tudo o que 9 tera mais valor de novidade. Nesse meio tempo, Tom tz comecaré a fazer exigéncias em favor dos mesticos e € pro- yel que obtenha algumas concessoes. Os mesticos perceberao a verdacle uma atitude positiva como a de Tom Swartz é mais inda que uma atitude negativa como a do Partido Trabalhis- que continua a repetir as mesmas falas. E entao 0 Partido Tra sta comecard a cair em desgraca. Tal afirmacao nao é mera teoria. J4 aconteceu no pasado mm Matanzima e Guzana no Transkei. O partido de Guzana, que M dia foi o orgutho dos dissidentes do Transkei que queriam de- trar sua rejeicao ao sistema, agora foi relegado a ultimo pla- ‘operanclo até mesmo a direita do partido de Matanzima — cu exigencias militantes esto sendo consideradas uma oposicao icativa ao sistema, mais que uma nova forma do velho deba- Sobre a protecdo dos interesses dos brancos no ‘Transkei, Portanto, acredito que o verdadeiro valor do Partido Traba- ta reside em revitalizar suas forcas agora, organizando-as & rando-se do Conselho Representativo dos Mesticos juntamen- om o apoio de todos os mesticos. Quanto mais tempo perma. eerem no CRC, mais se artiscam a tornar-se irrelevantes. A per: Seguinte seria: “Retirar-se e fazer o qué?”. Hé muito traba- uunitdrio que precisa ser feito para promover a autoconfianca ‘consciéncia negra entre todas as pessoas negras na Africa do Acredito que ¢ o que 0 Partido Trabalhista deveria comegar = Por ora, j deram provas suficientes de que os mesticos am. CRC. Continuar a operar dentro do sistema s6 pode le- iF A castracao politica e & criacdo da postura ““Sou-um-mestico”, sserd um retrocesso para o programa de emancipagaio do negro jue criard grandes obstdculos & implantacao de uma sociedade racial, uma vez solucionados 08 nossos problemas. Para mim, ‘Ga tinica maneira de transformar uma desvantagem em van- sm, Nao tem valor apenas para o Partido Trabalhista, mas tam- im para todos os negros conscientizados que agora operam den- do sistema _Assim, num esforco para manter nossa solidariedade e rele ia dentro da situacao, precisamos resistir a todas as tentati de fragmentacao de nossa resistencia. Os negros precisam re- onhecer nas varias instituicoes do apartheid aquilo que elas de ito sto: mordacas, que visam levar os negros a lutarem separa 54 Escrevo 0 que eu quero damente por certas ‘‘liberdades” e “‘conquistas”” que foram deter- minadas para eles hd muito tempo. Precisamos nos recusar a acei- tar como inevitavel o fato de que 0 tinico caminho para a agao poli tica dos negtos € por intermédio dessas instituicdes. "Mesmo que pareca mais atraente e até mais seguro juntar-se ao sistema, precisamos reconhecer que agindo assim estaremos bem perto de vender nossa alma. Frank TALK nvocada pela Associagao de Ministros Religiosos Africanos de va- 4s Denominagdes Cristas (IDAMASA) e pela Associagéo para 0 De- lvimento Educacional ¢ Cultural do Povo Africano (ASSECA), ada em 1971, no Centro Ecuménico de Treinamento de Leigos Eddendale, Natal. A conferéncia reunia varias organizagies negras almente interessadas em uma ligacdo mais estreita, Entre os trabathos apresentados, inclufa-se um do Chefe Gatsha Bu- i. Esta conferéncia se revelou um marco no caminho para a for- 0 da Convento do Povo Negro, que se realizou em Johannesbur- ‘em dezembro do mesmo ano. conceitos culturais africanos ‘Uma das missdes mais dificeis hoje em dia é falar com auto- de sobre qualquer assunto relacionado com a cultura africana. gum modo, ndo se espera que os africanos tenham uma com- profunda da prépria cultura ou até de si mesmos. Outras Se tornaram autoridades a respeito de todos os aspectos ida africana ou, para ser mais preciso, da vida BANTU. As- temos os mais yolumosos trabalhos sobre os assuntos mais inhos — até mesmo “Os hébitos alimentares dos africanos 56 urbanos”, uma publicacdo de um grupo bastante “liberal”, o Ins- tituto de Relagbes Raciais. Em minha opiniao, nao é necessério falar com os africanos sobre a cultura africana. No entanto, & luz do que afirmei de inf cio, verificamos que tanta confusao foi semeada — nao somente entre eventnais leitores nao africanos, mas até entre os préprios africanos — que talvez se deva fazer uma tentativa sincera de que 0s proprios africanos enfatizem os aspectos culturais auténticos de seu pov. Desde aquela data infeliz — 1652 — temos experimentado ‘um processo de aculturacao. Talvez seja uma presuncao chamé-lo de “aculturacao”, pois essa expressao implica uma fuso de cul- turas diferentes. Em nosso caso, tal fusdo vem sendo extremamente unilateral. As duas grandes culturas que se encontraram e se “fun- diram” foram a cultura africana ¢ a cultura anglo-béer* . Enquan toa cultura africana era simples e sem sofisticacao, a cultura anglo- Ger apresentava toda a pompa de uma cultura colonialista e, por: tanto, dispunha de equipamento pesado para a conquista. Quando podiam, conquistavam por persuiasto, valendo-se de uma religiao altamente exclusivista que condenava todos 0s outros deuses e exi- gia a observancia de um cédigo estrito de comportamento em re- lacao & vestimenta, a educacéo, ritual e habitos. Quando era im- possivel converter, as armas de fogo estavam ao alcance da mao € eram usadas com vantagem. Por isso a cultura anglo-béer era a mais poderosa em quase totlos os aspectos. Foi entao que o afri- cano comecou a perder o controle sobre si mesmo e sobre seu meio ambiente. Assim, ao examinar os aspectos culturais do povo africano, € inevitavel que se facam comparaces. Isso se dé, basicamente, por causa do desprezo que a cultura “‘superior” demonstra em re- Tagao a cultura nativa. Para justificar o fato de se basear na explo- aco, a cultura anglo-boer Sempre atribui um status inferior a to- dos 05 aspectos culturais do povo nativo. Sou contra a opiniao de que a cultura africana esta presa ao tempo, & nogao de que, com a conguista do africano, toda a sua cultura foi apagada. Também sou contra a idéia de que, quando fa- amos de cultura africana, nos referimos necessariamente & cultura pré-Van Riebeeck. Sem diivida a cultura africana vem suportando golpes duros © é possivel que tenha sido t&o espancada pelas = Ber palavra derivada da expresso holandesa que designa ‘“fazendeiro™. Wsada para se feferir abs descendentes dos holandeses radicados na Africa do Sul. (N-T.) ceites culturais africanos 87 agressivas com as quais colidiu que quase perdeu sua for- etanto, em sua esséncia, até hoje percebemos no africano neo os aspectos fundamentais de sua cultura pura. Por nar a cultura africana, estarei me referindo também je chamo de moderna cultura africana. m dos aspectos essenciais de nossa cultura é a importancia a0 homem. Nossa sociedade sempre foi centrada no ho- s ocidentais muitas vezes se surpreendem com nossa ca- e de falar uns com 0s outros — ndo com 0 objetivo de che- conclusto especifica, mas apenas para gozar da co- ¢do em si mesma. A intimidade € algo que nao existe ex- amente entre amigos chegados, mas se aplica a todo um grupo ‘que se encontram reunidas, seja no trabalho, ou por de moradia. verdade, na cultura africana tradicional nao existe a ami- nas entre duas pessoas. Os grupos de conversa eram de- dos de forma mais ou menos natural pela idade e pela divi- trabalho. Assim, todos os meninos cuja tarefa era cuidar ose encontravam periodicamente em locais populares para rsar sobre o seu gado, as namoradas, os parentes, os herdis, artilhavam seus segredos, alegrias e tristezas. Ninguém. que estava se intrometendo desnecessariamente nos assun- Outra pessoa. A curiosidade manifestada era bem-vinda. Ela de um desejo de compartilhar. O mesmo padrao era en- do em todos os grupos etérios. A visita a casa de outros se parte do modo de vida das pessoas mais velhas. Nao havia sidade de um motivo para a visita. Tudo fazia parte do pro- vinteresse que tinhamos uns pelos outro ‘ais habitos nao se véem na cultura do ocidental. Uma pes- faz uma visita a casa de outra, a menos que se trate de 20, € sempre recebida com a pergunta: “O que posso fazer “yooé?”. Essa atitude de considerar as pessoas no por elas mes- tas como agentes com uma fungao espectfica, seja contra jou a nosso favor, é estranha para nosso povo. Nao somos uma | desconfiada. Acreditamos na bondade inerente ao homem. as pessoas por elas mesmas. Consideramos o fato de juntos néo como um acidente infeliz que justifica uma indvel competic&o entre os individuos, mas como um ato de- do de Deus para fazer de nés uma comunidade de irmaos envolvidos juntos na busca de uma resposta abrangente para frios problemas da vida. Portanto, em tudo aquilo que faze- 58 Exoreve © que eu quero mos, colocamos o homem em primeiro lugar e, por isso, nossa aa0 em geral é uma aco comum, mais orientada para a comunidade soliddria do que para o individualismo, que ¢ a marca registrada da abordagem capitalista. Sempre evitamos usar as pessoas como egraus para subir. Em vez disso, estamos dispostos a um progres- so muito mais lento, num esforgo de garantir que todos caminke- ‘mos no mesmo ritmo. Nao ha nada que mostre de modo tao intenso 0 animo dos africanos em se comunicar uns com 0s outros como 0 seu amor pela mtisica e pelo ritmo. Na cultura africana, a musica se encon: tra presente em todos os estados emocionais. Quando vamos trax balhar, partilhamos os encargos e as alegrias do trabalho que fa- zemos por intermédio da misica. £ estranho notar que essa carac- teristica singular se filtrou através do tempo, até hoje. Os turistas sempre assistem espantaclos & sincronia entre mtisica e acao quando 08 africanos que trabalham numa estrada usam suas pds e picare: tas, acompanhando com grande precisdo um canto que marca 0 ritmo. Os cantos de luta eram uma caracteristica da longa marcha para a guerra, nos velhos tempos. Meninas e meninos, sempre que brincavam, usavam misica e ritmo como base da brincadeira. Em outras palavras, para os africanos a miisica e 0 ritmo nao eram um Tuxo mas parte integrante de nosso modo de nos comunicarmos. Qualquer sofrimento que suportassemos tornava-se muito mais real por meio do canto e do ritmo. Nao ha ditvida de que os chamados spirituals (cantos religiosos), cantados pelos escravos negros nos Estados Unidos enquanto labutavam sob a opressto, indicavam a sua heranga africana. ‘O aspecto mais importante a ser notado em nossos cantos é que nunca eram feitos para ser cantados por uma tinica pessoa. Todos os cantos africanos sao grupais. E, embora muitos deles te- nham palavras, elas nao s40 0 ponto mais importante. As melo- dias eram adaptadas para se adequar & ocasido e tinham o efeito ‘maravilhoso de fazer com que todos entendessem as mesmas coi- as a partir da experiéncia comum. Na guerra, os cantos tranqtili- zavam aqueles que tinham medo, acentuavam a determinacao do regimento de ganhar uma batalha e tornavam muito mais urgente a necessidade de acertar as contas; no sofrimento, como no caso dos escravos negros, ajudavam a extrair a forga do sentimento de tuniao; no trabalho, 0 ritmo que une faz com que o fardo se tome mais leve para todos, e assim os africanos podem continuar a tra- balhar por horas a fio gracas a essa energia extra. toe culturaie afticanot 59 atitude dos africanos em relacao a propriedade também ‘quo pouco individualistas eles so. Como todos aqui sa- psociedade africana tem como base a comunidade da aldeia. nos sempre acreditaram que era melhor ter muitas aldeias iimero controlavel de pessoas em cada uma delas do que rério. Isso era, obviamente, um requisito adaptado as neces- }de uma sociedade baseada na comunidade e centralizada . Portanto, quase tudo era propriedade comum do gru- plo, nao havia propriedade individual da terra. A ter- encia ao povo ¢ estava apenas sob o controle do chefe locas, do povo. Quando o gado ia pastar, ia para um campo aber- Nao para a fazenda de uma determinada pessoa. Tavoura e a agricultura, embora com base em familias in- , tinham muitas caracteristicas de esforcos comuns. Por tum simples pedido e a realizacao de uma cerimonia espe- pessoa podia convidar os vizinhos para trabalhar em a remuneracao. pobreza era um conceito estranho a eles. Isso $6 podia real- er para toda a comunidade e devido a um clima ad- ante uma determinada estacao. Se alguém estivesse em , Nunca era considerado desagradiavel pedir ajuda aos . Quase sempre havia ajuda entre os individuos, entre as entre os chefes etc., mesmo quando enfrentavam uma i diante das dificuldades apresentadas pela vida em geral. nto o ocidental est programado para pensar sobre a solu- 08 problemas partindo de andlises muito delimitadas, nossa 6 experimentar situagdes. Cito um trecho escrito pelo Dr. a para ilustrar esse ponto: "Occidental tem uma mentalidade agressiva. Quando vé Jum problema, nao descansa enquanto nao formular uma so- o para ele. Nao consegue viver com idéias contraditérias ma mente; precisa concordar com uma ou com outra, ou en- to desenvolver em sua mente uma terceira idéia que har- moniza ou reconcilia as outras duas. E ele € rigorosamente “cientifico ao rejeitar solucdes para as quais nao ha fundamen- to na logica. Faz uma distincao clara entre o natural € 0 $0- brenatural, entre o racional e 0 nao racional, e com muita 60 Eecrovo 0 quo ou quero freqiiéncia descarta o sobrenatural e 0 nao racional como st persticao... e r Os africanos, sendo um povo pré-cientifico, nao reco: nhecem nenhuma separacdo conceitual entre o natural e 0 so: brenatural. Antes, experimentam uma situagao, mais que en: frentam um problema. Com isso quero dizer que eles permi: tem que tanto os elementos racionais como os nao racionais provoquem um impacto sobre eles, e qualquer agao que em: preendem pode ser descrita mais como uma resposta da to: talidade de seu ser a uma situacao especifica que o resultado de algum exercicio mental. Acredito que essa é uma andlise muito apropriada da dife- renga essencial entre as maneiras de cada um desses- dois grupos encarar a vida. Como comunidade, estamos preparados para acei- tar que a natureza tenha seus enigmas, cuja soluco est além de nossa capacidade. Muitas pessoas interpretam essa atitude como falta de iniciativa e energia; no entanto, apesar de entender que h4 uma grande necessidade de experimentacdes cientificas, nao posso deixar de sentir que se deveria gastar mais tempo ensinan- do os homens a viver juntos e que a personalidade africana, com sua atitude de dar menos énfase ao poder e mais ‘énfase: ao homem, ‘vem fazendo grandes progressos no sentido de solucionar nossos problemas de confrontacao. 5 1 Todas as pessoas concordam que os africanos s4o uma raga profundamente religiosa. Nas varias formas de culto encontradas ‘em toda a parte sul de nosso continente havia pelo menos uma bax se comum. Todos acreditavamos, sem diivida nenhuma, na exis: téncia de um Deus. Tinhamos nossa propria comunidade de san> tos. Acreditavamos — 0 que era coerente com nossa maneira de encarar a vida — que todas as pessoas que morriam tinham um lugar especial junto a Deus. Achdvamos que uma comunicacao com Deus 56 podia ser feita por intermédio dessas pessoas. Nunca sou bemos nada sobre o inferno; nao acreditamos que Deus possa criar as pessoas 86 para castiga-las eternamente, depois de um curto pe~ riodo na terra. a Outro aspecto de nossas préticas religiosas era as motivagoes para o culto. Mais uma vez, nao pensévamos que a religido pude: se ser retratada como parte separada de nossa existéncia na terra, Ela se manifestava em nossa vida cotidiana. Agradectamos a Deus, por meio de nossos antepassados, antes de beber cerveja, antes, onceitos culturaisafricanoe 61 ar, de trabalhar etc. Seria extremamente artificial criar oca- iais para o culto. Tampouco achavamos logico ter um al no qual todos os cultos seriam realizados. Acret los que Deus estava sempre se comunicando conosco e, por- ; Merecia nossa atencdo em todo e qualquer lugar em que es- 0s missiondrios que confundiram nosso povo com sua ». Por alguma légica estranha eles argumentavam que igiao deles era cientifica, ¢ a nossa, mera supersticao, apesar iscrepancias biol6gicas t4o evidentes na base de sua religiao. am mais adiante, pregando a teologia da existéncia do in- , amedrontando nossos pais e nossas mfes com historias a ito de chamas eternas que queimavam, dentes que rangiam ‘que eram triturados. Essa religiao fria e cruel era estranha 6s, mas nossos antepassados ficaram com tanto medo da ira dora desconhecida que acreditaram que valia a pena ten- eita-la, E 14 se foram nossos valores culturais! No entanto, € dificil matar a heranca africana. Apesar das h ‘superficiais entre uma pessoa “destribalizada” e um. l, ainda existem muitas caracterfsticas cuturais que iden- m aquele “‘destribalizado” como um africano. Nao defendo | separacao baseada nas diferencas culturais. Tenho orgulho para acreditar que, em condi¢des normais, os africanos N conviver em harmonia com pessoas de outras culturas € es de contribuir para as culturas comuns das comunida- -quais se juntaram. Contudo, o que quero dizer é que, mes- ‘sociedade pluralista como a nossa, ainda ha alguns tra- irais — dos quais podemos nos vangloriar — que conse- Tesistir ao processo de abastardamento deliberado. Trata- aspectos da cultura africana moderna — uma cultura que usa itos do mundo branco para se expandir, baseando-se em ca- isticas culturais inerentes. Assim, vemos que na area da miisica o africano ainda se ex- 1 com conviceao. A grande popularidade do jazz vem do fato ‘08 artistas africanos convertem meras notas em mtisica sig- iva, que exprime sentimentos reais. O monkey jive, o soul etc. ectos de um tipo de cultura africana moderna que exprime sentimentos originais. Solos, como os de Pat Boone e Presley, nunca poderiam encontrar uma expressao dentro da africana, pois nao esté em nés ouvir passivamente notas tis puras. No entanto, quando 0 soud chegou com seu ritmo 62 Brcrevo 0 que eu quero contagiante, imediatamente cativou e agitou centenas de milhdes dde corpos negros em todo o mundo. Eram pessoas que liam 0 ver~ dadeiro significado do soul — a mensagem provocadora: “Fale al- to! Sou negro e tenho orgulho de ser negrol”. Isso est4 se tornan- do rapidamente nossa cultura moderna. Uma cultura de desafio, de auto-afirmacao, de orgulho e solidariedade grupal. Essa é uma cultura que provém de uma experiencia comum de opressao. As- ‘sim como se expressa agora por intermédio de nossa miisica e de ‘nossa roupa, vai se alastrar para outros aspectos. E a nova € mo- derna cultura negra, para a qual demos uma contribuicao impor- tante. B a cultura negra moderna que € responsavel por restaurar nossa autoconfianca ¢ que por isso oferece uma esperanca quanto ao rumo que estamos tomando a partir daqui. ‘Assim, na totalidade, a cultura africana nos identifica como pessoas particularmente préximas da natureza. Como diz Kaun- a, nosso povo pode ser iletrado e seus horizontes fisicos podem ser limitados, no entanto eles “habitam um mundo mais amplo que 6 do ocidental sofisticado, que ampliou seus sentidos fisicos por meio de artificios inventados, muitas vezes as custas de excluir a dimensao do espiritual”, A intima proximidade com a natureza per- mite que o componente emocional que existe em nés se torne mui- to mais rico, no sentido de possibilitar que, sem nenhuma dificul- dade aparente, nos sintonizemos com as pessoas e nos identifique- ‘mos facilmente com elas em qualquer situagio emocional prove- niente do sofrimento. 'A chegada da cultura ocidental mudou nossa perspectiva de modo quase dréstico. Nao podiamos mais dirigir nossos préprios ‘assuntos, Exigia-se que nos adaptassemos como pessoas toleradas, com muitas restrigées, numa sociedade de tipo ocidental. Fomos tolerados simplesmente porque nossa mao-de-obra barata é neces: Aria. Por isso, somos julgados por padrées pelos quais nao somos responséveis, Sempre que a colonizacio se estabelece com sua cul- tura dominante, devora a cultura nativa e deixa atrés de si uma cultura abastardada, que 86 pode se desenvolver na medida e se- ‘gundo o ritmo que lhe é permitido pela cultura dominante. Foi o ue aconteceu com a cultura africana, Chamam-na subcultura uni- camente porque 0s africanos nos complexos urbanos estao arre- ‘medando 0 branco sem muita vergonha. ‘Ao rejeitar os valores ocidentais, portanto, rejeitamos tudo aquilo que para nés € nao apenas estrangeiro, mas também aquilo que procura destruir a nossa crenga mais querida — a de que a Alguns conceites cultures africance 63 petra fundamental da sociedade 6 0 proprio homem, ¢ nao apenas a sua prosperidade, o seu bem-estar material; mas somente o ho- mem, com todas as suas ramificacdes. Nao aceitamos a sociedade baseada no poder, a sociedade desse homem ocidental que parece Sempre preocupado em aperfeigoar seu conhecimento tecnol6gi- co, enquanto perde terreno em sua dimensdo espiritual. Acredita- ‘mos que a longo prazo a contribuicao especial que a Africa dard ao mundo ‘seré no campo do relacionamento humano. As grandes poténcias podem ter realizado maravilhas ao conferir ao planeta um aspecto industrial e militar, mas 0 grande dom ainda vira da ‘ica — dar ao mundo uma face mais humana. edigido provavelmente em dezembro de 1971, este escrito “sea um curso de treinamento para liderancas da SASO, in- i como wn exemplo do que Steve dizia aos membros de sua :organizacdo, portanto do que brotava do cerne de sua propria ia ¢ da deles. igao da Consciéncia Negra Em nosso manifesto politico definimos os negros como aque- Por lei ou tradicao, sao discriminados politica, econémica jente como um grupo na sociedade sul-africana e que se ficam como uma unidade na luta pela realizagao de suas as- . Tal definicko manifesta para nds alguns pontos: 1 Ser negro nao é uma questao de pigmentagto, mas o re- flexo de uma atitude mental; 2. Pela mera descricao de si mesmo como negro, jé se come- aa trilhar o caminho rumo A emancipacao, jé Se est com- prometido com a luta contra todas as forcas que procuram usar a negritude como um rotulo que determina a subser- viéncia. A partir dessas observagbes, portanto, vemos que a expres- lo negro nao é necessariamente abrangente, ou seja, 0 fato de 66 Becrevo © que eu quero sermos todos ndo brancos nao significa necessariamente que to- dos somos negros. Existem pessoas nao brancas ¢ continuarao a existir ainda por muito tempo. Se alguém aspira ser branco, mas sua pigmentacto 0 impede, entao esse alguém é um ndo branco Qualquer pessoa que chame um homem branco de “Baas’’*, qual- quer um que sirva na forca policial ou nas Forgas de Seguranca 6, ipso facto, um nao branco. Os negros — os negros verdadeiros — so os que conseguem manter a cabeca erguida em desafio, em vez de entregar voluntariamente sua alma ao branco, ‘Assim, numa breve definieao, a Consciéncia Negra é em es- séncia a percepcao pelo homem negro da necessidade de juntar forcas com seus irmaos em torno da causa de sua atuagao — a ne- gritude de sua pele — e de agir como um grupo, a fim de se liber: tarem das correntes que os prendem a uma servidao perpétua. Pro cura provar que € mentira considerar o negro uma aberragao do “normal”, que é ser branco. £ a manifestagao de uma nova per- cepcao de que, ao procurar fugir de si mesmos e imitar 0 branco, ‘0s negros esto insultando a inteligéncia de quem os criou negros. Portanto, a Consciéncia Negra toma conhecimento de que o plano de Deus deliberadamente criou 0 negro, negro. Procura infundir na comunidade negra um novo orgulho de si mesma, de seus es- forgos, seus sistemas de valores, sua cultura, sua religiao e sua ma- neira de ver a vida. ‘A inter-relacdo entre a consciéncia do ser e 0 programa de emancipacao é de importdncia primordial. Os negros nao mais pro curam reformar o sistema, porque isso implica aceitar os pontos principais sobre os quais o sistema foi construfdo. Os negros se acham mobilizados para transformar o sistema inteiro e fazer dele ‘0 que quiserem. Um empreendimento dessa importancia s6 pode ser realizado numa atmosfera em que as pessoas estejam conven cidas da verdade inerente & sua condicao. Portanto, a libertagao tem importancia basica no conceito de Consciéneia Negra, pois nao podemos ter consciéncia do que somos e ao mesmo tempo perma- necermos em cativeiro. Queremos atingir 0 ser almejado, um ser livre. ‘0 movimento em direcao a Consciencia Negra ¢ um fenéme- no que vemn se manifestando em todo o chamado Terceiro Mundo. Nao hé diivida de que a discriminagao contra o negro em todo 0 planeta tem origem na atitude de exploracao, por parte do homem ‘Senhor”, na hinga africaner, Tratamento que os brancos exigem dos negros. wT) fo da Consciéncia Negra ico, Através da Histéria, a colonizacao de paises brancos pe- ncos resultou, na pior das hipdteses, numa simples fusao ‘ou geografica, ou, na melhor, no abastardamento da lin- E verdade que a historia das nagbes mais fracas é molda- as nagdes maiores, mas em nenhum lugar do mundo atual rancos explorando brancos numa escala ainda que remo- nte semelhante ao que ocorre na Africa do Sul. Por isso so- (os chamados paises independentes negros nao terem atin- jo uma independéncia real. Com esse contexto em mente, temos de acreditar entao que 1 € uma questo de possuir ou ndo possuir, em que os brancos deliberadamente determinados como os que possuem, e 05 \egros os que ndo possuem. Entre os brancos na Africa do Sul, por xemplo, no existe nenhum trabalhador no sentido cléssico, pois té mesmo o trabalhador branco mais oprimido tem muito a per- se o sistema for mudado. No trabalho, varias leis 0 protegem uma competicao por parte da maioria. Ele tem o direito de voto utiliza para eleger o governo nacionalista, uma vez que os con- 5 tinicos que, por meio das leis de reserva de empregos, esforcam em cuidar de seus interesses contra uma competicao or parte dos “nativos”. ‘Devemos entao aceitar que uma anélise de nossa situacao em “termos da cor das pessoas desde logo leva em conta o determinan- Ainico da acao politica — isto 6, a cor — a0 mesmo tempo que "ve, com justica, os negtos como os tinicos trabalhadores reais na Africa do Sul. Essa andlise elimina de imediato todas as suges- tes de que algum dia pode haver um relacionamento efetivo en- tre 0s verdadeiros trabalhadores, ou seja, os negros, e os trabalha- ores brancos privilegiados, ja que mostramos que estes ultimos ‘$40 0s maiores sustentculos do sistema. Na verdade o governo ermitiu que se desenvolvesse entre os brancos uma atitude anti negro tao perigosa que ser negro é considerado quase um pecado, € por isso os brancos pobres — que economicamente sao 0s que €stéo mais préximos dos negros — assumiram uma postura extre- mamente reacionéria em relacao a eles, demonstrando a distancia eexistente entre os dois grupos. Assim, o sentimento antinegro mais forte se encontra entre os brancos muito pobres, a quem a teoria de classes convoca para se unirem aos negros na luta pela emanci- Paco. E esse tipo de légica tortuosa que a abordagem da Cons- * ciéncia Negra procura erradicar. 68 Bscrevo o que eu quero Para a abordagem da Consciéncia Negra, reconhecermos a existéncia de uma forga principal na Africa do Sul. Trata-se do ra~ cismo branco. Essa é a tinica forca contra a qual todos nés temos de lutar. Ela opera com uma abrangencia enervante, manifestando: se tanto na ofensiva quanto em nossa defesa. Até hoje seu maior aliado vem sendo nossa recusa em nos reunirmos em grupo, como negros, pois nos disseram que essa atitude é racista. Desse modo, enguanto nos perdemos cada vez mais num mundo incolor, com uma amorfa humanidade comum, os brancos encontram prazer € seguranca em fortalecer 0 racismo branco e explorar ainda mais a mente € o corpo da massa de negros que nao suspeitam de nada Os seus agentes se encontram sempre entre nés, dizendo que é imoral nos fecharmos num casulo, que a resposta para nosso pro- blema € o didlogo e que a existéncia do racismo branco em alguns setores é uma infelicidade, mas precisamos compreender que as coisas estio mudando. Na realidade esses so os piores racistas, porque se recusam a admitir nossa capacidade de saber o que qu remos. Suas intencdes sao dbvias: desejam fazer o papel do bat metro pelo qual o resto da sociedade branca pode medir os senti- mentos do mundo negro. Esse € 0 aspecto que nos faz acreditar na abrangéncia do poder branco, porque ele nao s6 nos provoca, como também controla nossa resposta a essa provocacao, Deve- ‘mos prestar muita atencao neste ponto, pois muitas vezes passa despercebido para os que acreditam na existéncia de uns poucos bbrancos bons. Certamente ha uns poucos brancos bons, do mesmo modo que ha uns poucos negros maus. ‘Mas o que nos interessa no momento sao as atitudes grupais ea politica grupal. A excecao ndo faz com que a regra seja menti rosa — apenas a confirma. Portanto, a andlise global, baseada na teoria hegeliana do ma- terialismo dialético, é a seguinte: uma vez que a tese é um racis- ‘mo branco, 86 pode haver uma antitese valida, isto é, uma sdlida unidade negra para contrabalancar a situacdo. Se a Africa do Sul deve se tornar um pais em que brancos e negros vivam juntos em harmonia, sem medo da exploracZo por parte de um desses gru- Pos, esse equilfbrio s6 acontecer quando os dois opositores con- seguirem interagir e produzir uma sintese vidvel de idéias e um ‘modus vivendi. Nunca podemos empreender nenhuma luta sem ofe- recer uma contrapartida forte as racas brancas que permeiam nossa sociedade de modo tao efetivo. cisamos eliminar de imediato a idéia de que a Conscién- |é apenas uma metodologia ou um meio para se conse- |fim. O que a Consciéncia Negra procura fazer é produzir, ido final do processo, pessoas negras de verdade que iderem meros apéndices da sociedade branca. Essa ver- ‘pode ser revogada. Nao precisamos pedir desculpas por € verdade que os sistemas brancos vém produzindo 0 0 mundo grande mimero de individuos sem consciéncia ‘também sao gente, Nossa fidelidade aos valores que esta- mos para nds mesmos também nao pode ser revogada, pois serd uma mentira aceitar que os valores brancos s4o ne- amente Os melhores. Chegar a uma sintese 6 é possivel com “No caso de os negros adotarem a Consciéncia Negra, o as- que preocupa principalmente 0s iniciados ¢ 0 futuro da At a: da Africa do Sul. J4 definimos o que para nés significa integracao real, e a propria existencia de tal definicao € um xemplo de nosso ponto de vista. De qualquer modo, nos preoct: ‘mais com 0 que acontece agora que com o que acontecera o futuro. O futuro sempre serd resultado dos acontecimentos pre- ‘Nao se pode subestimar a importéncia da solidariedade dos gros com relacdo aos varios segmentos da comunidade negra. No pasado houve muitas insinuacdes de que uma unidade entre negros nao era vidvel porque eles se desprezam um 20 outro. Os mesticos desprezam os africanos porque, pela proximidade com ‘estes tiltimos, podem perder a oportunidade de serem assimilados pelo mundo branco. Os africanos desprezam os mesticos e os in- " dianos por varias razoes. Os indianos nao s6 desprezam os africa- nos mas, em muitos casos, também os exploram em situagdes de trabalho e de comércio. Todos esses esteredtipos provocam uma ‘enorme desconfianca entre os grupos negros. O que se deve ter sempre em mente é que: 1. Somos todos oprimidos pelo mesmo sistema; 70 Escrevo o que eu qui 2, Ser oprimidos em graus diferentes faz parte de um propé- sito deliberado para nos dividir nao apenas socialmente, mas também com relacao as nossas aspiragoes; 3, Pelo motivo citado acima, é preciso que haja uma descon- fianca em relacdo aos planos do inimigo e, se estamos igual- mente comprometides com o problema da emancipacao, faz parte de nossa obrigago chamar a atengao dos negros para esse propésito deliberado; 4, Devemos continuar com nosso programa, chamando para ele somente as pessoas comprometidas e nao as que se preocupam apenas em garantir uma distribuigao equitati- va dos grupos em nossas fileiras. Esse é um jogo comum entre os liberais. O sinico critério que deve governar toda nossa acao € 0 compromisso. Outras preocupagdes da Consciéncia Negra dizem tespeito as falsas imagens que temos de nds quanto aos aspectos culturais, educacionais, religiosos econdmicos. Nao devemos subestimar essa questo. Sempre existe uma interacdo entre a histéria de um OVO, ou seja, seu pasado, € a fé em si mesmo e a esperanca em ‘seu futuro, Temos consciéncia do terrivel papel desempenhado por nossa educagdo e nossa religido, que ctiaram entre nés uma falsa compreensio de nés mesmos. Por isso precisamos desenvolver es- quemas no apenas para corrigir essa falha, como também para sermos nossas préprias autoridades, em vez de esperar que 08 ou- tros nos interpretem. Os brancos s6 podem nos enxergar a partir de fora e, por isso, nunca conseguirao extrair e analisar 0 etos da comunidade negra. Assim, e para resumir, peco a esta assembléia que procure 0 Manifesto Politico da SASO, que apresenta os pon- tos principais da Consciéncia Negra. Quero enfatizar novamente que temos de saber com muita clareza o que queremos dizer com certas expressdes e qual o nosso entendimento quando falamos de Consciéncia Negra. Negra e realizada no Centro Ecuménico de Treinamento s, em Edendale, Natal. Um ocidental secularizado dificilmente eguiré compreender a importéncia que os ministros religiosos tém iedade negra. Ao mesmo tempo, eles sofrem uma enorme pres- p para se conformar com o status quo. Steve e Ben Khoapa, director cutivo dos BCP, perceberam a importancia de se buscar uma “cons. desse setor-chave da comunidade negra. A altitude tradi- mnalmente conservadora desses ministros por fim sofreu uma gran- transformacdo. Em 1978, cinco antigos estudantes da Faculdade ¢ Teologia (Anglicana) de Saint Peter haviam sido banidos ou pro- 98, 0 que nos dé uma pequena medida dessa mudanea. Essa situacao ‘Seria inimagindvel dez anos antes. Em 1987, com Desmond Tutu co- 0 metropolita da lgreja Anglicana na Africa do Sul, Frank Chika- “Nie como secretdrio-geral do Conselho de lgrejas da Africa do Sul e Stan- “ley Mogoba como secretario da Igreja Metodista, a Igreja jd tinha a eapacidade — se realmente quisesse — de mudar 0 modelo branco, transjormando-o “num modelo que apreciamos, amamos, compreen- demos e que é relevante para nés”. (Ver pag. 7.) Nao é a isso que ‘Sserofere a lideranca do arcebispo Desmond? E para todos os membros da Igreja! 72 Excrevo 0 que eu querd A Igreja vista por um jovem leigo Tenho consciéneia de que hoje me dirijo a um grupo de pes soas de quem me distingo em dois aspectos: em primeiro lugar, sou tim leigo falando para um grupo de ministros religiosos; em segundo, sou um jovem diante de uma platéia relativamente idosa, Essas duas diferencas talvez sejam responsdveis por eu es: tar aqui. E fundamental que se procure diminuir a lacuna entre as duas geracdes ao se reexaminar uma situacao, até ento orto- doxa, que parece se tornar cada vez mais obsoleta na mente dos jovens. Também é importante necessario tornar comum 0 con- Ceito de religiao, em especial o do cristianismo, cuja compreensio se torna cada dia mais um monopélio dos chamados tedlogos. Por essa razdo tratarei do assunto de um modo leigo. De acordo com meu ponto de vista, a religiao pode ser defi nida como uma tentativa do homem de se relacionar com um ser supremo ou uma forca suprema a que atribui toda a criagao. Nos: s0 modelo especifico, neste momento, é o cristianismo. Nao est muito claro até que ponto € importante que todas as religides exis tentes no mundo se tornem uniformes. No entanto, uma questo é certa: todas as religides possuem caracteristicas semelhantes: 1, Todas formam a consciéncia moral do homem. Em outras ppalavras, toda religiao contém um conjunto de normas mo- rais que governam o bem-estar espiritual de um povo es: pecifico, dentro de um determinado contexto; 2, Todas tentam explicar a origem e o destino do homem, To: das concordam que o homem, em sua forma humana, é um ser de passagem no mundo; e que a origem do homem pro: ‘vém de alguma forea, cuja natureza precisa é definida de modo diferente por cada uma. O ponto em que as religides tendem a se diferenciar € 0 enunciado do destino do homem; 8. Todas as religides reivindicam, ou quase, um monopélio da verdade a respeito da natureza do ser supremo € a res- peito da maneira de se identificarem com 0 prop6sito ori- ginal deste ser em relago aos homens. ‘Toda religiao é altamente ritualista. Através de anos de pré tica, ela desenvolve um certo padrao € certos procedimentos que mais tarde se tornam insepardveis de sua mensagem central. Se considerarmos a religiao apenas o que ela é, ou seja, uma instituicdo social que tenta explicar aquilo que nao pode ser co- {Cabo da Boa Esperanca: primeiro ponto do teritorio subafricano tocado pelos Brasces. (N.T.) ntao desde 0 comeco poderemos perceber a necessidade Todas as sociedades, na verdade todos os individuos, oui modernos, jovens ou velhos, se identificam com uma religido e, quando nao hé nenbuma, criam uma. Na 8 CaS0s, a religiao esté intimamente ligada aos demais is de uma sociedade, o que, em certo sentido, torna uma parte integrante do padrao de comportamento dos Assim, devido & forte identificacao que tm com ela, a5 S4o cerceadas pelos limites de seus ensinamentos. Quan- séo submetidas a uma religiao em desacordo com rfsticas culturais, logo se pode notar entre seus mem- des de descontentamento e, as vezes, até mesmo uma jo aberta. Por isso podemos dizer que a maioria das religioes effica e, quando deixam de observar as exigéncias da espe- dade, precisam ser suficientemente adaptaveis para transmi- ens relevantes a pessoas diferentes, em situiagdes dife- . Pois, na verdade, cada religiéo tem uma mensagem para as entre as quais est operando. as sAo talvez algumas das questoes que nunca foram prio- ‘por aqueles que trouxeram 0 cristianismo para a Africa do 0 cristianismo tenha sofrido uma rigorosa adaptagao, a partir da antiga Judéia, passando por Roma, Londres, ¢ Lisboa, de algum modo chegou ao Cabo* com uma apa- bastante rigida. Chegou transformado no ponto central de cultura que trouxe consigo um novo estilo de roupa, novos , novas formas de etiqueta, novas abordagens da medicina Ivez,novas armas. Com a difusao do cristianismo por aqui, as tiveram de jogar fora suas roupas nativas, seus habitos s crengas, que eram todos considerados pagaos € barbaros. uso da lanca se tornou simbolo de selvageria. Em pouco 0 a nossa gente foi dividid em dois campos — os converti- (amaggobhoka) e os pagaos (amagaba). A diferenca entre as rou- tusadas por esses dois grupos fez o que poderia ser apenas uma erenca religiosa transformar-se, algumas vezes, numa guerra in- Despojados do cerne de seu ser e tornados estrangeiros um 0 outro por causa de suas diferencas, os africanos foram trans- clos em joguetes dos colonialistas. A historia nos mostra que 4 Ezcrovo © que ou 4) aquele que traz consigo uma nova ordem a conhece melhor ¢, esse motivo, se converte no professor perpétuo daqueles a qui 2 nova ordem foi imposia. Se aos olhos do povo os missiondri brancos estavam “‘certos” a respeito do Deus que traziam con) go, entao a tinica atitude que os africanos podiam ter era aceill tudo 0 que esses novos mentores oniscientes tivessem a dizer respeito da vida. A aceitacao do cristianismo, em sua vers2o cot rompida pelo colonialismo, marcou o ponto critico na resisténcit do povo africano. Desse modo, a Igreja e sua atuacao na Africa do Sul nos tem pos atuais precisam ser analisadas da perspectiva de como essii instituicao foi introduzida no pais. Mesmo agora, depois de tanto tempo, podemos constatar a espantosa irrelevancia da interpreta: do dada as Escrituras. Num pafs cheio de injusticas e comprome: tido fanaticamente com a pratica da opressao, da intolerdncia e da crueldade gritante, provocadas pela perseguicao racial; num pais em que os negros sao forgados a se ver como os enteados indese: javeis de um Deus cuja presenca nao podem sentir; num pafs em que paie filho, mae e filha, dia a dia todos se transformam em neu: réticos pela absoluta incapacidade de pensar no futuro, uma vex que se véem num desamparo arrasador, a Igreja colabora para au mentar ainda mais a inseguranca deles por sua definicao intimista do coneeito de pecado e por encorajar a atitude do “‘mea culpa”. Todos os domingos, ministros de expresséo severa sobem 20 ilpito para colocar uma pesada carga de culpa sobre os negros que vivem nas cidades segregadas, por causa de seus roubos, in- vasdes de domicflio, facadas, assassinatos, adultérios etc. Ninguém jamais tenta relacionar todas essas faltas com a pobreza, o desem- prego, a superpopulacao, a falta de escolaridade e a mao-de-obra migrante. Ninguém deseja ser conivente com um comportamento abominavel, mas muitas vezes € preciso que analisemos as situa- des com maior profundidade. Porque os missiondrios brancos descreviam os negros como ladrdes, preguicosos, Avidos por sexo ete., e porque eles identifi ‘caram com a brancura tudo 0 que era valioso, nossas Igrejas, por intermédio de nossos ministros, nao consideram todas as faltas que mencionei manifestagdes de crueldade e de injustica a que somos submetidos pelo homem branco, mas acreditam que séo uma pro- va de que, afinal de contas, 0 branco estava certo quando nos des- crevia como selvagens. Assim, se ao ser introduaido o cristianismo foi corrompido pela incluso de aspectos que o tornaram a religizo "Por tum jovem leigo 15 \eolonizacdo de povos, hoje ele é, em sua interpretacio, leal para manter esses mesmos povos subjugados. eiso lembrar também que a Igreja na Africa do Sul, as- | toda a parte, vem sendo estragada pela burocracia. apenas a expresso dos sentimentos religiosos de s tornou-se altamente institucionalizada — no como ‘unidade, mas como varias unidades poderosas, que tal- firam tanto em relacao a interpretacdo das Escrituras lant aos objetivos institucionais. Hoje € impossivel pen- Mrica do Sul sem uma Igreja Catotica Romana, uma Igreja (a ou uma Tgreja Anglicana, apesar de que 0 metodista mé- anda na rua dificilmente sabe em que ele difere de um an- de um congregacionalista. Essa burocracia ¢ essa insti- agao levam a Igreja a se afastar de suas prioridades mais lantes e a se concentrar em funcOes secundérias e terciarias aspectos estruturais, financeiros etc. Por esse motivo, a {se tornou muito irrelevante; na verdade, transformou-se nu- e de marfim”, como alguns a denominam. par da burocratizacao e da institucionalizacao da Igreja, um problema espectfico que também torna a Igreja extre- te irrelevante — a concentracao dessa burocracia e dessa itucionalizacdo nas maos das pessoas brancas. E sabido que, to nas Igrejas africanderes, na maioria das Igrejas 70, 80 ou. ) por cento de seus membros pertencem ao mundo negro. £ sa- também que na maioria das Igrejas 70, 80 ou 90 por cento poder de controle estéo nas méos dos brancos. E, ainda, que as brancas simplesmente nao conhecem as pessoas negras fia maioria dos casos, nao tomam a peito os interesses dessas Portanto, pode-se coneluir que ou as Igrejas dos negros s40 madas por uma pequena minoria de estrangeiros nao- npatizantes, ou entdio um mtimero excessivo de pessoas negras freqiientando Igrejas estrangeiras. Nao est4 bem claro qual fas duas afirmacdes ¢ correta, mas vamos presumir que seja ‘primeira, uma vez que a majoria das pessoas neste pais é negra. Nesse caso, as pessoas negras que sfo cristas, nao s6 es lo sendo coniventes com a natureza até agora irrelevante do cris- ismo — conforme é apresentada pelas Igrejas —, como tam- ermitem que uma minoria nao-simpatizante, que nfo tem in- eresse em tornar-o cristianismo relevante para o povo, permane- no controle das atividades das Igrejas. Essa é uma situacao in- 6 Brerevo o que ou @ ‘por um jover leige 7 sustentavel e, se permitirmos que continue por muito mais temp as Igrejas, primeiro temos de cons 5 0 niimero ja reduzido de pessoas que vao & igreja aos domi fe eles dentro desse modelo branco € a partir: dai diminuird ainda mais. -lo num modelo ” aig que apreciamos, amamos, compreen- Outro ponto importante a ressaltar é a tendéncia dos crs Grrelevante para nés. S6 posso salientar aqui que € em fazer das interpretagdes religiosas uma tarefa para especi el que todos os brancos que esto em cargos de contro- tas. O resultado dessa postura é a apatia geral, num mundo que jas tenham sido eleitos por outras pessoas brancas. E afasta rapidamente de qualquer identficacto com o misticismo. Ho alguns conseguem seus cargos porque eles convencem em dia os jovens gostariam de sentir que podem interpretar 0 cri ‘ue tém direito a voto, para que eles os elejam para ess tianismo e tirar dele mensagens relevantes para sie para sua reall: j Est mais do que na hora de os negros aprenderem ome, if 3 -m om dade, sem serem reprimidos por limitagdes de ortodoxia. & por ei ‘tao consagrado de angariar votos para colocar outros ne- sa razdo que a Igreja Catélica, com suas dtizias de dogmas, Precis ho controle das Igrejas em que tenham algum interesse se ajustar depressa a um mundo em transformacao, ou estaré cor S6bvio que os negros assim eleits terao ce cumprr seu man- endo o risco de perder sua clientela jovem. Em varios aspectos, expectativas claramente explicitadas pelo mesmo are. tessa afirmativa se aplica a todas as Tgrejas do mundo cristéo. BN coincou ne pode a ea ‘Antes de sugerir algumas mudancas no interior da Igreia, EBegunda cuestao que merece bastante atenca permitam-me resumir 0 que considero minhas principais criticas mnecessidade de uma compreensao esta ads ae emis rn 8 inda do que muitos, a ela , vem desprezando: a Teologia Negra. Hé uma certa ver. 1. Ao se dirigir a um povo necessitado, ela enfatiza demais quando se diz que muitas pessoas podem afirmar uma mes- ie eeteemieet ns religiao de “oferecer a outra Boia de modes diferentes porque a encaram de angulos ife- aca s. Mas 0 cristianismo nao Sr mn 2, Sea desenvolvimento ¢mpedido peta burocraci pela ins abstato«dstante dos problemas do povo, Pane ace coe titucionalizacao; 4 do a0 povo, & necessdrio que tena significado para ele en 3. Manifesta em suas estruturas uma aceitagao tacita do si 0 especitica, Se se trata de uma gente oprimida, o cris: tema, ou seja, ser “branco equivale a um valor positivo”’; nismo tem de ter algo a dizer sobre a opressao que ela soft 4. B limitada por um excesso de especializagao. Assim, a Teologia Negra constitui uma pera eee ‘A questao mais importante que talvez devéssemos enfocar amo diretamente ligada a uma situacao. Procura relacionar 0 é conseguir a conquista do controle dentro dessas Igrejas, contro- aro dle hoje com Deus, dentro do contexto especifico do sofri le que por direito cabe a nds. Para isso, precisamos estar de acor- 0 do negro e de suas tentativas de sair dele. Ela enfatiza de do que de fato temos um propésito comum, um objetivo comum, tro modo as obrigacdes morais do homem: em vez da necessida- um problema comum. Do mesmo modo, é preciso que concorde- de se evitar a ofensa a falsas autoridades, nao perdendo os d nos que, por viverem em umia aotiedade privilegiada'e por per- Mentos, no roubando comida quando se esta com fome e nao tencerem a um sistema corrupto, 0s cristaos brancos, nossos equi- valentes, embora irmaos em Cristo, nao provaram ser irmaos na Africa do Sul. Devemos convir também que, de modo técito ou ex- plicito, deliberada ou inconscientemente, 0s cristéos brancos no interior da Iereja a impedem de assumir seu cardter natural no con- texto sul-africano e, portanto, impedem que ela seja relevante is para grandes pecados no in- situagao do negro. srior da sociedade, deixando assim de ensinar as pessoas a “so- “Muitos clérigos negros dizem que os brancos se encontram erem pacificamente”. no poder dentro das Igrejas porque elas seguem modelos ociden- __Se 08 ministros religiosos negros quiserem impedir que o cris- tais que os brancos conhecem melhor. Entdo, para sermos capa mo entre em conflito com os negros, em especial com 0s jo- Brorevo © quo ot 78 : 7. Racismo branco e eS ae, Consciéncia Negra batalha sem fé, ¢ se a nossa {6 em ‘Gao de ve-lo por intermédio dos olhos daqueles contra quem esti wos lutando, entao sem dtivida ha algo de muito errado nessit relacdo. au Por fim, gostaria de relembrar aos ministros negros, € na ver dade a toda a gente negra, que Deus ndo costuma descer do cét para resolver os problemas das pessoas aqui na Terra. O Instituto Abe Bailey de Estudos Inter-raciais patrocinow wma io de estudantes que teve lugar na Cidade do Cabo, em janeiro 1. A idéia ora fazer um encontro de lideres estudantis de todas incipais organizacbes nacionais de estudantes, desde a Associa- dos Estudantes Africinderes (ASB), de direita, até a NUSAS e ISO, de esquorda. Steve e Barney foram convidados a participar conferencistas, e seus trabalhos foram publicados mats tarde no int Perspectives on South Africa (Perspectivas dos estudan- ‘sobre a Africa do Sul, editado por Hendrik W. van der Merwe wid Welsh e publicado por David Philip, Cidade do Cabo, 1972). texto que segue é de Steve. ismo branco e Consciéncia Negra abrangéncia do poder branco na Africa do Sul ___ “‘Nenhuma raga possui o monopélio da beleza, da inteligen- ‘cia e da forca, ¢ ha lugar para todos nés no ponto de encontro da vitdria."" Nao creio que Aimé Césaire estivesse pensando na Afri- ‘ca do Sul ao pronunciar essas palavras. Os brancos neste pais en- vyeredaram por um caminho sem retorno. A pratica do racismo bran- 80 Escrovo 0 que eu duh co € tao flagrantemente exploradora em termos mentais e ffsicow que nos perguntamos se, aqui, os interesses dos negros os dow brancos nao se tornaram mutuamente excludentes a ponto de ell: minarem a possibilidade de haver “‘lugar para todos nés no ponto de encontro da vitoria”. ‘A busca do homem branco pelo poder levou-o a destruir com absoluta crueldade tudo o que se coloca em sew caminho. Num es» forgo de dividir 0 mundo negro quanto as suas aspiragdes, 0S po» deres constituidos desenvolveram uma filosofia que o estratifica fe proporciona um tratamento preferencial para certos grupos. Mais que isso, eles criaram varios casullos tribais, na expectativa de in- crementar os sentimentos hostis entre as tribos e desviar as ener gias dos negros para a conquista de falsas “liberdades” fixadas pelo governo. Esperava-se ainda que os negros pudessem ser en- cerrados nesses varios casulos de repressao, denominados pelo eu- femismo de “bantustoes”. Entretanto, em algum momento os po- deres constitufdos tinham de comecar a definir 0 campo de ativi- dade dessas instituicoes do apartheid. ‘Desde o infcio a maioria dos negros desconfiou que se tratava de uma promessa vazia e, agora, ‘les perceberam que foram enganados. Do mesmo modo que o Con setho de Representantes dos Nativos se transformou num fracas so politico que deixou seus criadores embaracados, posso antever que vird o tempo em que esses organismos pelegos provardo set fnuito onerosos, nao apenas em termos de dinheiro, mas também porque a historia que os nacionalistas esto tentando vender per- derd a credibilidade. Enquanto isso, os negros comegam a perce- ter a necessidade de uma unido em torno da causa de seu sofri- mento — sua pele negra — e de ignorarem as falsas promessas pro- venientes do mundo branco. 'A legislagao cada vez mais rigorosa, que vem sendo regis: trada nos cédigos sul-africanos, esta convencendo as pessoas do mal inerente ao sistema de apartheid. Nem toda a propaganda fei- tana Rédio Bantu nem as promessas de liberdade a ser concedida a algum bantustao desértico conseguirao, algum dia, persuadir os hegros de que o governo tem boas intengbes, ao menos enquanto estiverem experimentando manifestagdes da falta de respeito pe- Ja dignidade do homem e por sua propriedade, como as que tém ocorrido durante as remogdes em massa de africanos das areas ur- tanas. Os tormentos desnecessérios infligidos aos africanos pela policia, tanto nas cidades como dentro das cidades segregadas, € timpiedosa aplicagao desse flagelo do povo — as leis de passe — ‘branco © Consciéncia Nogra tes constantes de que o branco esté por cima e de bnegros so apenas tolerados — com as maiores restrigdes. ‘preciso dizer que qualquer pessoa que sofra uma crueldade ada (@ injustificaca) deverd por fim se perguntar: “O que perder?”” E é isso que os negros comecam a perguntar a se a iss0 0 fato de que as fileiras da oposicao foram ati- 440 ca0s € & confusdo. Todos os partidos coals aver as exigéncias bisicas da politica. Eles querem 0 po- a0 mesmo tempo, querem ser justos. Nunca lhes ocorre que mais garantida de ser injusto ¢ impedir 0 acesso da po- agdo nativa ao poder. Por isso, finalmente chegamos & conclu- de que nao hé uma diferenca real entre o Partido Unido e 0 tido Nacionalista. Se houver alguma diferenca, é mais prova- © Partido Unido esteja a direita dos nacionalistas. Basta ar para o seu famoso slogan ‘“Supremacia branca para a total da Africa do Sul”, para perceber até que ponto a busca do pode obscurecer até mesmo caracteristicas supostamente , tais como a nogdo de “jogo limpo” dos ingleses. Ha mui- smpo 0s africanos descartaram o Partido Unido como uma gran- de politica. Em seguida, os mesticos fizeram 0 mesmo. Se jo Unido estiver conseguindo algum voto novo é exatamente estar se tornando mais explicito em sua politica racist, Eu até que a medida mais inadidvel na politica branca da Africa do il € uma fusao entre o Partido Unido e 0 Partido Nacionalista. Onamoro entre 0 Partido Progressista e os negros foi brus- mente interrompido pela legislacdo. Alguns negros argumentam , naquele momento, os progressistas desperdigaram sua inica jortunidade de conseguir alguma aparéncia de respeitabilidade: or nao terem preferido antes se dissolver do que perder seu elei- torado negro. Apesar disso nao consigo deixar de sentir que os pro- _stessistas safram dessa prova mas purificados. Eles nanca repre entaram uma esperanca verdadeira para os negros e, no fundo, ‘Sempre foram um partido branco, lutando por uma maneira mais duradoura de preservar os valores brancos neste extremo sul da Africa. Nao demoraré muito para que 0s negros relacionem em ter~ ‘mos concretos sua pobreza & sua negritude. Devido a tradicao im- “posta ao pais, os pobres serao sempre os negros. Nao é surpreen- ‘dente, portanto, que os negros desejem se ver livres de um siste~ “ma que tranca a riqueza do pais nas maos de uns poucos. Sem di- ‘vida Rick Turner estava pensando nisso quando declarou, em seu 82 Ezcrove 0 que eu q artigo “The Relevance of Contemporary Radical Thought’ (A Jevancia do pensamento radical contemporaneo), que ‘qualquer’ vyerno negro sera provavelmente socialista”. Falemos agora daqueles que ha mais tempo gozam da coll fanga do mundo negro — os iberais, que incluem grupos radical eaRerdistas. O maior erro que 0 mundo negro }4 cometeu (0h presumir que qualquer pessoa que se opusesse ao apartheid efi Trmavaliada. Durante muito tempo o mundo negro vem concentrate do toda a sua raiva apenas no partido do governo, e nao na estrus tua global de poder. Num certo sentido até o vocabulério politica de que os negros se servem € uma heranca dos liberais. Assim, G campreensivel que as aliancas com esse setor tenham se dado com tanta facilidade. ‘Quem sdo os liberais na Africa do Sul? Aquele estranho gr: po de nao-conformistas que explicam sta participagao em termos hegativos: aquele grupo de pessoas bemvintencionacias que tém uma porgdo de nomes: liberais, esquerdistas etc. Sao os que alegam nso verem responsaveis pelo racismo dos brancos e pela “atitude de- SGmana do pats em relagio ao negro”. Sao as pessoas que decia tam sentir a opressao com a mesma intensidade que os negros @ que, por esse motivo, também deveriam se envolver na luta do ne- fro por um lugar ao sol. Em resumo, sA0 as pessoas que dizem que tém a alma negra dentro de uma pele branca. (Os liberais comecaram a agir com a maxima eficiéncia. Es: tabeleceram como dogma politico 0 principio de que todos os gru- pos que se opusessem ao status quo teriam de ser nao-racizis e” tua estrutura. Afirmavam que aqueles que defendiam um princi pio de nao-racismo nao podiam de modo algum adotar o que cons Travam diretrizes politicas racistas. Chegaram até mesmo a defi- tir para as pessoas negras 0 objetivo por que deveriam lutar. ‘Com esse tipo de influéncia atrés deles, a maioria dos lideres negros tendia a dar demasiada importancia aos conselhos dos T- berais, Na verdade, durante muito tempoa tarefa da lideranga era “aealmar o povo” enquanto se dedicavam a uma negocia¢ao in- frutifera com o status quo, Toda a sua ado politica era na realida de um curso programado da arte da persuasio suave, por meio de protestos e boicotes limitados, e 0 resto poderia ser deixado por vonta da consciéncia perturbada do imparcial povo inglés. E claro que essa situacao nao podia perdurar. Uma nova es- pécie de Iideres negros comecava a ter uma visio pessimista do P wolvimento dos liberais numa luta que eles consideravam essen- co « Conscisncia Negra 83 ste sua, quando os movimentos politicos dos negros eram ‘ou entao perseguidos até a extingao. ‘De novo o campo fi- ire para que os liberais continuassem o trabalho de “lutar eitos dos negros”’ 1ca ocorreu aos liberais que a integracao, na qual insis- mndo-a como tim modo eficaz de se opor ao apartheid, era nna Africa do Sul. S6 podia ser artificial, porque estava sen- ’ dois partidos cuja formacao global fora orientada a mentira de que uma raga era superior, € as outras es, £ imprescindivel que haja uma reforma em todo 0 sis ‘Africa do Sul, para podermos esperar que brancos @ ne- idéem as maos em oposi¢ao a um inimigo comum. Da ma “como estao as coisas, tanto os negros quanto os brancos par m de um circulo integrado organizado as pressas, Jevando con- ‘as sementes que destruirao esse mesmo circulo — seus com- de inferioridade e superioridade. (0 mito da integracao proposta pela ideologia liberal precisa sr derrubado e morto, porque leva as pessoas a acreditarem que estd sendo feito. Na realidade, porém, os circulos artificial- Gntegrados sao um soporifero para os negros e fornecema uma ta satisfacdo para os brancos de consciéncia culpada. O mito eia na premissa falsa de que, jé que neste pais é muito diffci nir pessoas de racas diferentes, entao o simples fato de se con- lir essa reuniao é em si mesmo um grande passo para a liber- cao total dos negros. Nada poderia ser mais enganador. {Quantas pessoas brancas estao lutando pela mudanca que elas erem para a Africa do Sul motivadas por uma preocupacao ver- dadeira e nao por um sentimento de culpa? Obviamente é uma su- yosicdo cruel imaginar que nao ‘existam brancos sinceros; entre- ito, os métodos adotados por alguns grupos muitas vezes suge- “rem a falta de um compromisso real. A esséncia da politica ¢ dirigir- “ke a0 grupo que exerce o poder. A maioria dos grupos dissidentes tem consciéncia da forca que ‘est nas méos da estrutura branca de poder. Fles conseguem citar depressa as estatisticas que mos: tram como 0 orgamento para a defesa € grande. Tém conhecimen- to da eficdcia com que a policia e o exército sao capazes de contro- “jar multidoes de negros que protestam — seja de modo pacifico, ‘ou nao, Sabem até que ponto a policia de seguranca se infiltrou mno mundo negro. Por isso estdo inteiramente convencidos da im- poténcia do povo negro. Por que, entao, persistem em falar aos hnegros? Jé que tém consciéncia de que 0 problema deste pais € 0 84 Brorovo 0 que eu quero racismo branco, por que nao se dirigem ao mundo branco? Por que teimam em falar aos negros? ‘Num esforgo de responder a essas perguntas, chegamos & pe- nosa conclusao de que 0 liberal esta de fato acalmando a prépria consciéncia ou, na melhor das hipéteses, quer provar sua identifi- cacao com o negro, mas apenas até onde isso néo provoque uma ruptura de seus lacos com parentes do outro lado da fronteira ra cial. Sendo branco, ele possui um passaporte natural para 0 con- junto de privilégios exclusivos dos brancos, do qual nao hesita em extrair aquilo que Ihe convém, No entanto, uma vez que se identi- fica com os negros, ele se movimenta dentro de seus cftculos bran- cos — praias, restaurantes e cinemas 86 para brancos — com a cons- ciéncia menos pesada, sentindo que nao € como 0s outros. Mas no fundo de sua mente existe 0 constante pensamento de que tudo esta bem para ele assim como est4, € que, por isso, nao deve se preocupar com mudancas. Embora nao vote nos nacionalistas (de qualquer maneira, agora sao a maioria), se sente seguro sob a pro- tecao oferecida por eles e, inconscientemente, repele a idéia de mudanca. {AS limitagoes que acompanham o envolvimento dos liberais na luta do negro tém sido as maiores responséveis pela falta de progresso. Devido a0 complexo de inferioridade, os negros tendem ‘a levar a sério o que os liberais t@m a dizer. Ao mesmo tempo, @ arrogancia em assumir “‘o monopélio da inteligéncia e do julgamen- to moral” faz.com que esses autonomeados curadores dos interes: jem a estabelecer 0 padrao e o ritmo para a rea- lizagdo das aspiracdes dos negros. ‘Nao estou zombando dos liberais e do envolvimento deles. Nem estou sugerindo que s4o eles os principais responsaveis pela mé situacao do negro. Apenas tento ilustrar que, num sistema que obriga um grupo a gozar de privilégios e viver & custa do suor do outro, é impossfvel uma total identificacao com o grupo oprimido. ‘A Sociedade branca, como um todo, tem uma dfvida tao grande para com os negros que nem mesmo um tinico membro deve con- tar com o perdao face a condenacao total que com certeza vird do mundo negro. Nao que os brancos gozem de privilégios apenas ‘quando apéiam o partido governante. Na verdade eles j4 nasce- ram com privilégios e so alimentados e educados dentro de um sistema de impiedosa exploracao da energia do negro. O liberal branco de 20 anos de idade que espera ser recebido de bragos aber- tos certamente est superestimando a capacidade de perdio das bbranco # Conseléncia Negra 85 negras. Por mais que as motivacdes de um liberal sejam s, ele precisa aceitar que, embora nao tenha escolhido nas~ “com privilégios, os negros tem de suspeitar de seus motivos. " Oliberal deve lutar por si mesmo e para si mesmo. Se é um | auténtico, precisa entender que também nao passa de um jo e que tem de lutar pela propria liberdade e nao pela li dagueles vagos “eles” com quem na verdade nao pode que se identifica. O que tentei mostrar € que na Africa do Sul o poder politico pre esteve com a sociedade branca. Os brancos sao culpados apenas por estarem na ofensiva, mas porque, com algumas ma- ‘hdbeis, vém conseguindo controlar as reagées dos negros ite As provocagoes. Assim, além de darem pontapés no negro, dizem a cle como reagir. Hé muito tempo 0 negro ouve paciéncia os conselhos sobre a melhor maneira de enfrentar /agressdes. Com uma dolorosa lentidao, ele agora comeca a dar tras de que é seu direito e seu dever reagir ao pontapé da mo- que achar melhor. ‘Consciéncia Negra ___“Nés, mesticos, neste momento especifico da evolucao his- t6rica, conseguimos apreender de maneira consciente e em todas as suas dimensées a nocao de nossa singularidade, a nocao exata de quem somos, do que significamos e de que estamos prontos pa- ra assumir as responsabilidades provenientes desta tomada de cons- -ciéncia em todos os niveis e em todos os campos. A peculiaridade de nosso lugar no mundo nao pode ser confundida com a de ne- ‘nhuma outra pessoa, A peculiaridade de nossos problemas, que nao ‘devem ser reduzidos a formas subordinadas de nenhum outro pro- ‘blema. A particularidade de nossa histéria, cheia de desgracas ter- riveis que nao pertencem a nenhuma outra historia. A especifi dade de nossa cultura, que tencionamos viver e fazer viver de um modo ainda mais real.” (Aimé Césaire, 1956, em sua carta de de- missio do Partido Comunista Francés.) Mais ou menos na mesma época em que Césaire escrevia es- ‘sas palavras, surgia na Africa do Sul um grupo de jovens negros zangados que comecavam a “aprender a noo de (sua) singula- ridade” e que estavam ansiosos por definir quem eram e 0 que sig- nificavam. Eram os elementos que tinham se desapontado com a 86 Escreve 0 que eu quero direeao imposta ao Congresso Nacional Africano pelo grupo da ““velha-guarda” que pertencia a lideranca. Esses jovens questio: nayam varios aspectos, entre eles a atitude de “ir devagar” adota- da pela lideranga ea facilidade com que essa mesma lideranca acei tava coalizdes com organizacdes que nao eram dirigidas por ne- gros. A “Carta do Povo", adotada em 1955, em Kliptown, era uma prova desse questionamento. Num certo sentido, esses eram os pri- meitos sinais verdadeiros de que os negros na Africa do Sul come- avam a se conscientizar da necessidade de agir sozinhos ¢ de de- senvolver uma filosofia baseada nos negros e dirigida por eles. Em outras palavras, lentamente a Consciéncia Negra ia se mani- festando. Pode-se dizer que, na frente politica mais ampla, 0s negros na Africa do Sul ndo tém demonstrado nenhum sinal evidente de um novo modo de pensar desde que seus partidos politicos foram banidos, e nem foi dada uma verdadeira oportunidade para que os sinais de desapontamento em relacdo ao mundo branco se cristal zassem numa abordagem positiva. Por outro lado, os estudantes ‘negros iniciaram uma reavaliacdo das aliancas entre negros e bran- cos. O surgimento da SASO e a politica rigida de nao-envolvimento com 9 mundo branco levaram a novas linhas de pensamento. ‘Tratava-se de um desafio a velha tradicao sul-africana de que a simples oposi¢ao ao apartheid era uma qualidade suficiente para que os brancos fossem aceitos pelo mundo negro. Apesar dos pro- testos © das acusacdes de racismo por parte de estudantes bran: cos liberais, os estudantes negros permaneceram firmes em sua recusa ao princfpio de aliancas profanas entre negros e brancos. ‘Um representante da Confederacao Nacional dos Estudantes da Africa do Sul (NAFSAS), um novo grupo de centro-direita, rece- bbeu uma amostra desse novo modo de pensar quando um estudan- te negro Ihe disse: ‘Nos mesmos vamos nos liderar, seja para 0 mar, para'a montanha ou para o deserto; nao nos envolveremos ‘com estudantes brancos”. ‘Aimportancia da posi¢ao da SASO nao se encontra na orga nizagao por si mesma — pois ela tem as limitacdes naturais de ser ‘um organismo de estudantes cujos quadros se alteram com freien ccia, Sua importancia reside antes na brecha que essa nova aborde: gem criou no pensamento tradicional, fazendo com que os negros, abrissem os olhos e refletissem. Ela anunciou uma nova era, em que os negros comegam a cuidar dos préprios interesses e a ver mais claramente a magnitude de sua responsabilidade. sncia Negra ‘Ochamado para a Consciéncia Negra € 0 apelo mais positivo surgiu de qualquer grupo do mundo negro durante muito tem: Esse chamado é mais que uma rejei¢ao reaciondtia dos bran- negros. Em itima instancia, constitui a compreenséo dos de que, para se safrem bem nesse jogo de poder politico, pprecisam utilizar o conceito de poder grupal e doté-lo de um fundamento, Uma vez que se trata de um grupo deserdado jobrecido histérica, politica, social e economicamente, dispoe | mais consistente fundamentacao para, a partir dela, agir. A filosofia da Consciéncia Negra, portanto, exprime 0 orgu grupal e a determinagao dos negros em se erguer e conseguir muto-realizacao desejada. Na esséncia desse modo de pensar es- ja compreensao de que a mente do oprimido & a arma mais pode- nas maos do opressor. Uma vez que ela seja manipulada e jontrolada com eficécia pelo opressor, a ponto de o oprimido acre- que ele é responsabilidade do homem branco, entdo nada que faca amedrontaré realmente os poderosos senhores. Por iss0, sar segundo a linha da Consciéncia Negra faz com que 0 negro considere um ser completo em si mesmo e nao como extensa0 Juma vassoura ou uma alavanca a mais de qualquer maquina. \0 final desse processo, ele nao mais permitiré que tentem avilté- ‘como ser humano. Quando chegar a esse ponto, saberemos que “2 pessoa real que esta dentro do negro esté comerando a trans- parecer. "_ Venho falando da Consciéncia Negra como se aleancé-la fos- ‘Se uma tarefa facil. Mas embora neste momento possa ser uma afirmacdo exagerada, a verdade € que varios grupos negros aos "poucos se tornam cada vez mais conscientes de si mesmos. Gra- dualmente, estdo comecando a se libertar das nogdes que os apt ‘sionaram e que so a conseqtiéncia do controle de suas atitudes ‘pelos brancos. Devagar esto rejeitando 0 ““argumento de moral dade” que os impedia de agir sozinhos e agora aprendem que a exclusio dos brancos das instituicdes negras pode Ihes trazer mui tos beneficios. Claro que nao nos surpreende o fato de que os brancos nao tém muita consciéncia dessas forgas que estdo surgindo, uma vez, que tal consciéncia é essencialmente um processo de introversao. Esté se tornando uma prética comum neste pafs as pessoas con- ssultarem os jornais, para verificarem 0 que dizem os “Ifderes ne- ‘gros” — expresso que para eles significa os Iideres das varias ins fituicdes do apartheid. Embora muitas vezes alguns individuos se 88 Becrove 0 que eu au aproveitem desses organismos para dizer algumas verdades, cer- tamente ndo podem servir de pardmetro para se conhecer a opi- nido dos negros sobre qualquer assunto. O crescimento da conscientizacao entre os negros sul- africanos muitas vezes ¢ atribuido a influéncia do movimento ne- gro nos Estados Unidos. Para mim, contudo, tal desenvolvimento parece ser conseqiiéncia da independéncia conquistada em t4o pou- co tempo por tantos paises africanos. Na verdade, lembro que quan- do seguia 0 curso secundério, o Dr. Hastings Kamuzu Banda ain- da militava e era o her6i de um amigo meu. Havia uma declaracdo ‘sua muito citada: “Este é um pais dos negros; qualquer branco que nao goste dele deve fazer a mala e ir embora”. Naquele estagio, ‘© mito da invencibilidade do branco fora desnudado. Num momento em que companheiros africanos falavam desse modo, como pode: riamos ainda alimentar idéias de uma servidao continua? Sabiamos gue 0 branco nao tinha nenhum direito de estar 14; queriamos eliminé-lo de nossa mesa, tirar dela todos os enfeites que ele colo- cava, decoré-la no verdadeiro estilo africano, nos acomodar ¢ en- to convidé-lo a se juntar a nds sob nossas proprias condigdes, se cle quisesse. Bra o que Banda estava dizendo. O fato de que mui- tas vezes se usa uma terminologia americana para exprimir nos- ‘sos pensamentos acontece simplesmente porque todas as idéias no- vvas parecem receber muita publicidade nos Estados Unidos. Para se adquirir uma consciéncia de nacionalidade e difundi- lana Africa do Sul, € preciso lutar contra alguns fatores, Primei- ro, ha os tradicionais complexos, depois 0 vacuo existente no pas- sado do nativo e, por fim, a questao da dependéncia negro-branco. Os tradicionais complexos (inferior superior, negro-branco) so cria- ‘oes propositais do colonialista. Por meio do trabalho dos missio- narios e do estilo de educacAo adotado, os negros foram convenci- dos a ver o homem branco como uma espécie de Deus, de cuja pa- lavra nao se podia duvidar. Como diz Fanon: “O colonialismo nao se satisfaz apenas em manter um povo em suas garras e esvaziar a mente do nativo de toda forma e contetido; por uma espécie de ldgica pervertida, concentra-se no passado do povo oprimido e 0 distorce, desfigura e destréi”. No final de tudo, os negros nao tém nada em que se apoiar, nada que os anime no momento presente € muito a temer no futuro. A atitude de alguns camponeses africanos que sao contra a educac4o muitas vezes é mal compreendida, até mesmo pelo inte- Jectual africano. No entanto, as razbes apresentadas por essas pes- @ branco Consciéncia Negra 89 ‘tefletem a consciéncia da dignidade e do valor que possuem. jideram a educacao a maneira mais rapida de destruir a es- a da cultura africana. Queixam-se com amargura da destrui- do padrao de vida, do desrespeito aos costumes e do fato de eles que nao seguem a tradic4o cacoam constantemente uma vez que tenham freqiientado uma escola. Na tra- africana, a falta de respeito pelos mais velhos ¢ um pecado € imperdoavel. No entanto, como se pode impedir que a a perca o respeito pelo pai, se os professores brancos sabi- Ges ensinam a ela que nao deve levar em conta os ensinamentos gua familia? Como pode um africano manter 0 respeito por sua radicao, quando na escola toda a sua cultura é sintetizada numa palavra: barbarismo? __ Para acentuar ainda mais 0 peso da educacio de inspiracao nca, a histdria inteira do povo negro é apresentada como uma lamentacdo de sucessivas derrotas. Por mais estranho que ,, agora todo mundo aceita que a historia da Africa do Sul jomeca em 1652. Sem diivida, essa nogdo s6 serve para sustentar j mentira reiterada de que os negros chegaram a este pais quase ‘mesma época que os brancos. Desse modo, se quisermos nos ‘ajudar no processo de conscientizacao, como negros temos de va- prizar nossa historia. Precisamos reescrevé-la e contar sobre os eréis que formaram 0 niicleo da resisténcia contra os invasores cos. H4 mais fatos a revelar e a enfatizar nas tentativas bem- edidas de construcdo nacional por parte de pessoas como Sha- , Moshoeshoe e Hintsa* Nossa cultura tem de ser definida em termos concretos. De- ‘vemos relacionar 0 passado com 0 presente e demonstrar uma evo- o hist6rica do africano moderno. E preciso rejeitar as tentati- ‘yas dos poderes estabelecidos de projetar uma imagem truncada de nossa cultura. Essa nao é a totalidade de nossa cultura. Delibe- ‘radamente eles paralisaram nossa cultura no estgio tribal, para " perpetuar o mito de que os africanos eram quase canibais, sem am- _ bicdes auténticas na vida e preocupados apenas com sexo e bebi- a. Na verdade, o vicio generalizado que muitas vezes se encontra znas cidades africanas segregadas conseqiéncia da interferéncia ‘do homem branco na evolucdo natural da verdadeira cultura nati ‘ya. “Onde quer que exista colonizagao, a cultura nativa comeca a apodrecer, e no meio das ruinas v-se 0 nascimento de algo que ¢ CChefes tribais famosos dos zulus, basothos e xhosas, respectivamente, 90 Esorevo 0 que eu quaro condenado a existir dentro dos limites permitidos pela cultura eu- ropéia.” E através da evolugao de nossa cultura genuina que nos: sa identidade poderd ser redescoberta na totalidade. E necessério restituir ao povo negro a énfase que davamos 0s relacionamentos humanos; salientar para eles que na era pré- ‘Van Riebeeck tinhamos muita consideracao pelas pessoas, por sua propriedade e pela vida em geral, a fim de minimizar 0 dominio da tecnologia sobre o homem e de reduzir 0 materialismo que len tamente penetra no cardter do africano, “Haverd alguma maneira de meu povo usufruir dos benefi- cios da tecnologia sem ser devorado pelo materialismo e sem per- der a dimensao espiritual de sua vida?", pergunta o Presidente Kaunda e, a seguir, falando de uma tipica comunidade tribal afri cana, afirma: Essas pessoas que dependem da natureza e com ela vi ‘vem no mais fatimo relacionamento tém consciéncia da atua: ‘cdo dessas forcas: o pulsar de suas vidas se harmoniza com co pulsar do Universo. Podem ser pessoas simples e iletradas, ‘seus horizontes podem ser bastante estreitos, mas acredito ‘que habitam um mundo mais amplo que o do ocidental sofis- ticado, que ampliou seus sentidos fisicos por meio de artifi- ios inventados, muitas vezes pagando o preco de eliminar a dimensao do espiritual. Os negros da Africa do Sul, a fim de dar os passos necessé. rigs na nova diregao que esto concebendo, precisam considerar ‘com muito cuidado como usar em seu favor o poder econémico que possuem. Na situacdo de hoje, o dinheiro proveniente do mundo negro tende a fluir apenas para a sociedade branca. Os negros com- pram nos supermercados dos brancos, nas quitandas dos brancos, nas lojas de bebidas e nas farmacias dos brancos e, por fim, 05 que podem usam bancos cujos proprietérios sao brancos. Nem € preci: ‘80 dizer que eles vo para o trabalho nos trens de propriedade do ‘governo ou em Onibus de propriedade de brancos. Dessa forma, ‘8 uisarmos 0 pouico que temos para melhorar nossa sorte, o resul- tado s6 pode ser uma conscientizacao maior do poder que temos ‘como grupo. A campanha ‘Compre dos Negros”, promovida por alguns individuos na érea de Johannesburgo, nao deve ser ridicu- larizada. @ branco ¢ Conscidncia Negra 91 Dizem muitas vezes que os adleptos da Consciéncia Negra es- ‘se encerrando num mundo fechado, preferindo chorar um no 9 do outro e, assim, eliminando qualquer didlogo titil com 0 to do mundo. Entretanto, sinto que os povos negros do mundo, jeitarem o legado do colonialismo ¢ da dominacao branca € construirem em torno de si mesmos seus prdprios valores, o3 ios padrdes e perspectivas de vida, finalmente estabeleceram base sélida de cooperacéo mitua significativa na batalha mais, la do Terceiro Mundo contra as nacdes ricas. Cabe aqui citar palavras de Fanon: “Adquirir autoconsciéncia nao é fechar a & comunicacao [...]. A consciéncia da nacionalidade, que no nacionalismo, € 0 tinico fator que nos dard uma dimensao inter- tacional”’. Esse é um sinal animador, pois esté claro que a luta pe- © poder entre negros e brancos na Africa do Sul nao é mais que am microcosmo do confronto global entre o Terceiro Mundo e as s na¢des brancas do planeta, que com o passar dos anos se ma- ifesta cada vez com maior intensidade. Assim, nos dias de hoje néo podemos deixar de receber com tisfacao o desenvolvimento de uma perspectiva positiva no mun- negro. As feridas infligidas a ele e os insultos da opresso, acu- dos através dos anos, inevitavelmente provocariam uma rea- géo dos negros. Agora, quando pessoas como Barnett Potter afir- ‘com aparente satisfacdo e com um sentimento sédico de triun- {fo que 0 erro do negro se encontra em seus genes — enquanto 0 estante da sociedade branca responde “Amém!” —, podemos ouvi- ‘Jos sem nenhum tipo de raiva revanchista. Temos forca de vonta: de suficiente para atravessar esse tempo de provagao. Através dos "anos, obtivemos grande superioridade moral sobre o homem bran- ‘Co; vamos olhar enquanto o tempo destréi seus castelos de cartas e saberemos, entdo, que todas essas brincadeiras ndo passavam {de tentativas desesperadas de pessoas mediocres e assustadas que ‘queriam se convencer de sua capacidade de controlar indefinida- mente a mente e 0 corpo dos nativos africanos. No julgamento da BPCISASO, o juiz Boshoff fee a seguinte afir- 0: “[..] Biko, sob 0 pseudinimo de ‘Frank Talk’, escreveu um ‘com 0 ittulo “O medo: um importante fator na politica sul- em que de.fato condenou a sociedade branca [..). A reivin- io dos brancos pelo monopélio do conforto e da seguranca havia sempre tao exclusiva que 0s negros viam nos brancos 0 maior obs- p em sua caminhada em direedo & paz, @ prosperidade e a uma dade sadia”, "Esse comentério foi feito no final de 1976, enquanto Steve escre- 0 artigo em quesido em 1971. Naquela ocasido, a teoria da Cons- Negra ainda estava sendo desenvoluida por meio de discussdes itos. Neste artigo Steve tentava provar que, desde que o branco che- como colonizador na Africa Austral, ele criou ¢ depois preservou ara si wma posiedo especial, privilegiada. Essa posigdo foi criada e com- ada pela violencia e pelo medo, mas 0 uso desses mélodos eram em ‘mesmo conseqiténcia do medo que o branco tinka da popuagio negra, Escrevo 0 que eu quero O medo: um fator decisivo na politica sul-africana Na Africa do Sul, parece que buscar uma légica nas atitudes do governo branco é pura perda de tempo. Mesmo que nao hou- 94 Escrevo o que eu quero vesse nenhum outro exemplo, a usurpagao constante da liberdade das pessoas negras por si s6 j4-denota um total desprezo por esse setor da comunidade. Sempre parti do princfpio de que as pessoas negras em ne- nhum momento deveriam se surpreender com as atrocidades do governo. A men ver, elas sA0 uma conseqtiéncia légica da condi ‘¢ao de minoria colonizadora que os brancos ocupam, tendo, assi O direito de ser os senhores supremos. Se eles puderam ser crucis, bastante para intimidar os nativos pela forca bruta e se instalar como governantes perpétuos numa terra estrangeira, entao qual- {quer outra atitude que tenham contra esse mesmo povo negro se toma légica em relacao a crueldade inicial. Esperar justiga por parte deles, em qualquer momento, ¢ muita ingenuidade. E quase um dever para com eles préprios e para com seu “eleitorado” mostrar que ainda dominam os negros. $6 hé um modo de mostrar essa dominagao: quebrando sem piedade a espinha dorsal da resistén- cia do povo negro, por mais insignificante que ela sej Basta olhar para a enorme forca de seguranca que a Africa do Sul possui. As pessoas que nela trabalhiam sempre tém de rela~ tar a seus senhores algo que justifique seus empregos. Nao basta dizer: “Estive em Pondoland, e os nativos se comportam bem. Es tao calmos e parecem satisfeitos”. Nao é 0 suficiente, pois os mal- feitores tém consciéncia da crueldade de seu sistema e, portanto, nao esperam que 0 nativos estejam satisfeitos. Dessa forma, os rapazes da seguranca sao enviados de volta a Pondoland, para des- cobrir quem é o porta-voz que declara que as pessoas estdo satis- feitas e para surré-lo até fazé-lo admitir que esté insatisfeito. Nes- se momento, ele 6 banido ou encaminhado a julgamento por ter violado alguma lei. Em alguns processos 0 Estado constr6i sua acu- sacao em evidencias tao infantis que tenho a impressao de que ele € capaz, até mesmo, de prender um grupo de meninos brincando de esconde-esconde e acusélo de alta traicao. E nese contexto que devemos encarar os intimeros julgamen- tos politicos neste pais. E como se o Estado achasse que algo esta- va perigosamente errado, caso no perfodo de um ano néo fosse rea- io nenhum julgamento politico importante. Parece que alguém seria acusado por seu superior por nao realizar 0 seu trabalho. O mais estranho é que as pessoas sao presas por quase nada, para serem julgadas por violacao das leis mais odiosas, como por exem- plo o Decreto sobre Terrorismo, tum fator decisive, 95 E também nesse contexto que precisamos avaliar a recente de banimento e prisao domiciliar imposta ao Sr. Mewa Ram- 1. Nenhum tipo de argumento, da parte de quem quer que se- ‘convencera de que Ramgobin tinha preparado algo sinis- Para todos os que o conheciam, Mewa era a tiltima pessoa que significar uma séria ameaca a alguém — muito menos pa- ho- , entre forcas de seguranca e informantes. Mas, como foi di- | légica é uma palavra qué essa gente nao conhece. Aimé Césaire disse uma vez: Quando ligo meu rédio, quan- que 0s negros foram linchados nos Estados Unidos, digo, ‘mentiram para nés: Hitler nao morreu, Quando ligo meu ri- pe ouco que na Africa o trabalho forcado foi instituido e regula- do por leis, digo que certamente mentiram para nds: Hitler 9 morreu"” Para que o quadro esteja completo, talvez devamos acrescen- apenas o seguinte: “Quando ligo meu radio, quando ougo que guém foi espancado e torturado na floresta de Pondoland, digo mentiram para nds: Hitler nao morreu. Quando ligo meu ra- , quando ouco que alguém na cadeia escorregou num pedaco sabao, cai e morreu, digo que mentiram para nos: Hitler nao tu, € € provavel que se encontre em Pretéria’. __ Procurar casos de crueldade dirigida contra os que cafram "em desgraga com a Policia de Seguranga talvez seja procurar lon- demais. Nao € preciso tentar provar que 0s negros na Africa do Sul tem de lutar para sobreviver. Isso se revela por si mesmo ‘em muitos outros aspectos de nossas vidas. S6 a existéncia numa ‘cidade segregada ja torna um milagre alguém atingir a idade adul- ta. Vemos af uma situacdo de caréncia absoluta, na qual um negro ‘mata outro para sobreviver. E esse 0 fundamento do vandalismo, do assassinato, estupro e pilhagem que continuam a ocorrer, en: ‘quanto a verdadeira causa do mal — a sociedade branca — toma 0] em praias exclusivas ou relaxa em seus lares burgueses. Enquanto alguns negros que se dio ao trabalho de abrir a bo- ‘ca, num fraco protesto contra 0 que est ocorrendo, sao periodica- ‘mente intimidados com visitas da Policia de Seguranca e eventuais, ‘ordens de banimento e prises domiciliares, o restante da comuni- dade negra vive mergulhado num medo total da policia. Em ne- ‘nhum momento um negro comum pode ter certeza absoluta de que no esta infringindo uma lei. Ha tanta’ leis que governam a vida € 0 comportamento dos negros que as vezes sentimos que basta 96 Erezeve 0 que eu quero 6 policial folhear ao acaso o cédigo, para que encontre uma lei na qual pode enquadrar uma vitima, ‘A filosofia por trés da acdo da policia neste pafs parece ser: “Atormenté-los! Atormenté-los!"”E precisamos acrescentar que es- a8 palavras sto interpretadas de um modo bem extravagante. As- sim, até mesmo jovens policiais de transito, pessoas em geral co- nhecidas por seus bons modos, de vez em quando acham correto dar tapas em negros adultos. Algumas vezes parece dbvio, aqui, que o grande plano é manter os negros completamente intimida- dos ¢ perpetuar a imagem da “super-raca” do branco, se nao em termos intelectuais, ao menos quanto & forca. Os brancos, agindo por intermédio de sua vanguarda — a Policia Sul-Africana —, che- garam a perceber a verdade da famosa regra: “Se nao consegue fazer com que alguém o respeite, faa com que tenha medo de voce”. Sem dtivida 05 negros nao podem respeitar os brancos, a0 menos nao neste pais. Em tudo o que € feito em nome do branco ‘hd uma aura to evidente de imoralidade e crueldade nua que ne- nhum negro, por mais intimidado que seja, jamais poderd ser obri- gado a respeitar a sociedade branca. No entanto, apesar de seu evi- dente desprezo pelos valores cultivados pelos brancos e apesar do prego que é pago pelo conforto e pela seguranca dos brancos, acre- dito que os negros foram intimidados com sucesso pelo tipo de bru- talidade que emana desse setor da comunidade. Z # esse medo que corrdi a alma do povo negro da Africa do ‘Sul — um medo alimentado deliberadamente pelo sistema, por meio de uma multidao de funcion4rios do governo, sejam eles emprega- dos do correio, policiais, funciondrios do Departamento de Inves- tigaedes Criminais, soldados uniformizados, membros da Policia de Seguranca, ou até um eventual fazendeiro ou comerciante bran- co que gosta de atirar. & um medo tao determinante nas atitudes dos negros que 08 impede de se comportarem como gente — quanto ‘mais como gente livre. O medo transparece claramente em sua pos- tura, desde a atitude de um empregado para com seu patrao até aatitude de um negro que esté sendo atendido por um branco nu- ‘ma loja. Como essas pessoas podem estar preparadas para resistir a uuma opressio global exercida contra elas, se nas situacdes indi- viduais nao conseguem fazer com que sua condicao de seres hu- ‘manos seja respewada? Essa é uma pergunta que muitas vezes ocor- rea visitantes de outros continentes, sensfveis o bastante para per- ceberem que nem tudo vai bem na terra do sol e do leite. jo: um fator decisive 97 Entretanto, esse € um tipo perigoso de medo, porque é apenas ical. Ble esconde uma raiva imensa que muitas vezes ameaca et. B, debaixo dessa raiva, acha-se um 6dio claro contra um. ‘que nao merece absolutamente nenhum respeito. Ao contré- das antigas colénias francesas ou espanholas, onde as oportuni- de assimilagao ndo impediram que os negros aspirassem a ser 9s, na Africa do Sul a brancura sempre foi associada a brutali- € a intimidacao da policia, as batidas policiais na madrugada de transgressdes a lei do passe, a uma intimidacao geral ¢ fora das cidades segregadas — motivos suficientes para que Fem negro aspire realmente a ser branco. A reivindicacao dos pelo monopélio do conforto e da seguranca foi sempre tao exclusiva que os negros véein nos brancos o maior obstaculo em sua ida em direcdo a paz, a prosperidade e a uma societiade sa- ‘A associagdo da brancura com todos esses aspectos negativos faz com que tenha sido tao maculada que ¢ impossivel reconhecé-la, ‘Na melhor das hipsteses, os negros a véem como um fator que justi- fica 0 desprezo deles, o dio, a vontade de vé-la destrutda e substi- ‘tuida por uma aspiracao que tenha um maior contetido humano. Na pPior das hipsteses, eles invejam a sociedad branca pelo conforto que ‘ela usurpou, e no centro dessa inveja se encontra o desejo — ou me- Thor, a determinacao secreta — presente no mais profundo da mente da maioria dos negros que pensam assim — de chutar os brancos para fora daquelas confortaveis cadeiras de jardim (que podem ser ‘vistas quando se passa de dnibus, fora das cidades) e reivindicalas [Bara si mesmos. Dia a dia, mais nos convencemos de que Aimé Cé- aire nao podia estar certo quando disse: “‘Nenhuma raga possui 0 ‘monopélio da verdade, da inteligencia e da forca, e ha lugar para to- dos nés no ponto de encontro da vitéria” ‘Talvez algumas pessoas se surpreendam por eu falar dos brancos em geral, quando na verdade apenas um setor especifico = isto é, 0 governo — poe em pratica essa vendeta injustificada contra os negros. ‘Ha brancos que vao negar que tenam qualquer responsabi- lidade pelo tratamento desumano dispensado os negros pelo pais, Essas sfo as pessoas governadas pela légica durante quatro anos meio, mas pelo medo na época da eleicao. O Partido Nacionalis- ta talvez tenha muito mais votos de ingleses que imaginamos. To- dos os brancos, coletivamente, reconhecem nele um forte baluar- te contra 0 exagerado swart gevaar*. Nao devemos subestimar 0 Swart gevaar: em africiner, “perigo negro". 98 Escrevo 0 que eu quero medo profundo que a sociedade branca nutre em relacdo ao ne- ‘gro. Os brancos sabem — até demais — exatamente o que eles vém fazendo contra 0 negro, ¢logicamente encontram motivos para que ele esteja zangado. Entretanto, a inseguranca deles nao é maior que sua ambicio desmedida pelo poder e pela riqueza, e por isso se preparam para reagir contra essa raiva em vez de dissipé-la por meio da abertura e do jogo limpo. Esta interacdo entre o medo ¢ a reagdo estabelece assim um circulo vicioso, que itensifica tanto ‘© medo quanto a reaco. E isso o que torna totalmente impossivel uma coalizo significativa entre negros e brancos. E isso também 0 que faz os brancos agirem como grupo e, por isso, se tornarem culpados como grupo. De qualquer modo, mesmo que entre os brancos houvesse di- ferencas fundamentais quanto ao modo de ver os negros, apenas o fato de os brancos descontentes continuarem a desfrutar dos be- neficios do sistema jd bastaria por si s6 para condené-los no tribu- nal de Nuremberg. Oucamos 0 que Karl Jaspers escreveu sobre ‘ conceito de culpa metafisica: Existe entre os homens, porque so homens, uma soli- dariedade pela qual cada um tem uma parcela de responsa- bilidade por toda a injustica e por todo o mal cometido no mundo, e em especial pelos crimes cometidos na sua presen- Ga Ou os que ele nao pode ignorar. Se eu nao fizer o possivel para impedi-los, entdo serei ctimplice deles. Se eu nao arris- quei a vida para impedir o assassinato de outros homens, se eu permaneci em siléncio, irei me sentir culpado, num senti- do que nao pode ser entendido de modo adequado nem juri- dicamente, nem politicamente nem moralmente [...] O fato de eu ainda estar vivo depois de esses atos serem praticados esa em mim como uma culpa que nao pode ser expiada. Em algum lugar, no centro das relagdes humanas, um mandamento absoluto se impde: no caso de um ataque crimi- noso ou de condicdes de vida que ameacem o bemestar fisi- co, aceite a vida para todos juntos ou para ninguém. Assim, se 08 brancos em geral nao gostam do que acontece com 0s negros, eles tém nas mos o poder para fazer com que isso pare imediatamente. Nos, por outro lado, temos todas as razdes para junté-los e culpé-los em conjunto. um falor decisive. 99 |_Nao hé chivida de que os negros também sao culpados por itirem que essa situacao exista. Ou, para irmos mais a fundo questo, podemos salientar que ha policiais negros agentes yServico Especial que sa0 negros. Referindo-me primeiro ao til- pponto, preciso declarar categoricamente que nao existe e nem le existir um policial negro. Qualquer negro que apéie ativamen- o sistema perdeu 0 direito de ser considerado parte do mundo : venden sua alma por trinta moedas de prata e, ent, des- que na verdade nao € aceito por essa sociedade branca & qual ria se juntar. Esses sao lacaios incolores dos brancos, que vi- ‘yem num mundo marginal de infelicidade. Sao uma extensdo do ‘inimigo em nossas fileiras. Por outro lado, o resto do mundo negro ‘continua reprimido exclusivamente devido & sua impoténcia. A impotencia gera uma raga de mendigos que sorriem para 0 inimigo e, por outro lado, o xingam na inviolabilidade de seus ‘banheiros; que gritam “Baas” voluntariamente durante o dia e nos 6nibus, a0 voltarem para casa, chamam o branco de cachorro. Mais Juma vez, 0 conceito de medo est no amago desse comportamento ambivalente dos negros subjugados. Esse conceito de medo agora adquiriu uma dimensao dife- rente, Muitas vezes ouvimos alguém dizer sobre uma prisdo ot um banimento: “Onde ha fumaga, ha fogo”; ou se a pessoa costuma dizer 0 que pensa: ‘Nao me surpreende. Ele estava pedindo por isso” Num certo sentido, isso é quase divinizar a Policia de Segu- rranca; eles ndo podem errar; se foram capazes de desbaratar a cons- piracao de Rivonia*, que poderd fazer com que tenham medo de alguém a ponto de bani-lo, a menos que haja alguma coisa — algo que nao sabemos? Esse tipo de légica, que pode ser encontrada fem graus variados entre os africanderes, os ingleses ¢ as comuni- dades negras, ¢ perigosa porque nao enfoca a questéo central e reforca uma acao irracional por parte da Policia de Seguranca. ‘A verdade nisso tudo 6 que o governo e suas forcas de segu- ranga também sao governados pelo medo, apesar de seu imenso poder. Do mesmo modo que qualquer individuo que vive morto de ‘medo, ocasionalmente eles recorrem a acdes irracionais na espe- anca de que uma demonstracao de forca, mais que o uso adequa- do da intelizéncia, possa amedrontar satisfatoriamente os que re- sistem a eles. Essa 6 a base das operacdes de seguranca na Africa * Conspiracio de RivOnia: caso famoso, pelo qual Nelson Mandela foi condenado. wry 100 eereve 6 que ou quero do Sul, na maioria das ocasides. Se eles sabem que hd uns trés mis- siondrios que so perigosos para seus interesses, mas cuja identi- dade é desconhecida, preferem deportar uns oitenta missiondrios e esperar que os trés estejam entre eles, em vez de usar 0 cérebro € descobrir quem sao esses trés. Essa foi também a base para a prisao de umas 5 mil pessoas durante os chamados reides “Pogo"”, em 1963. E, é claro, as leis que asseguram o poder da Policia de ‘Seguranca so tdo vagas e amplas que permitem todos esses ab- surdos. Portanto, conclui-se que o sistema sul-africano de seguranca 6 orientado para a forca, em vez de para a inteligéncia, Podemos acrescentat ainda que, neste pafs, esse tipo de mentalidade se es- tende desde a seguranca nacional até o estilo de rigbi que os bran- cos adotam. Tornowse 0 seu estilo de vida. Assim, ninguém se surpreenderé se for muito dificil aceitar ‘que “hé lugar para todos nés no ponto de encontro da vitéria”. O sistema tripartite de meco — em que os brancos temem os ne- _gros, 0S negros temem os brancos e 0 governo tem medo dos ne~ gros e procura diminuir o temor dos brancos — torna dificil um entendimento entre os dois segmentos da comunidade. O fato de viverem separados acrescenta ao problema uma dimenséo diferente e talvez mais séria: faz com que as aspiracdes dos dois grupos se- jam diametralmente opostas. A estratégia que os brancos vém usan- do até agora é quebrar a resisténcia dos negros de maneira siste~ mitica, até eles aceitarem as migalhas da mesa dos brancos. Mas 1nés ja mostramos que rejeitamos, sem sombra de duivida, essa es- tratégia e, assim, 0 palco agora se acha pronto para um interes- sante desenrolar dos acontecimentos. Frank TALK Pogo: organizacao ilegal, sla militante do banido Congresso Pan-Africanista, wT) 9. Vamos falar sobre os bantustdes Oconceito de “bantusties”” ou “pdtrias” africanas independen- ‘tesfautGnomas, éa pedra fundamental da politica do governo naciona- ista para os “nativos”. O governo se baseia na teoria de que a Africa ‘Sul éformada por muitos grupos étnicos que a coexisténcia pact- fica 86 pode ser alcancada dando a cada grupo a possibilidade de se desenvolver a seu modo, em sua prépria drea. Introduzida na pritica ‘no inivio dos anos 60, essa politica fentou voltar atras no tempo e “re- patriar”, devolvendo a suas alegadas “‘péirias” povos em grande parte {44 destribatizados. Depots de um quarto de século, 0 custo em termos de sofrimento humano é incomensurdvel,brincipalmente para as pes ‘soas “rejeitadas”, arrancadas de comunidades jd estabelecidas, com wma economia de subsistencia, ¢ removidas para dreas empobrecidas totalmente incapazes de sustenti-las. Néo é nenhuum exagero dizer que essa politica & uma forma de genocidio lento, ‘Além do mais, o fato de alguns dos “bantustoes” terem recebido 42 “independéncia” (em 1987, Transkei, Bophuthatsuana, Venda, Cis- ei e, mais recentemente, KuaNidebele, alvavés de imposigdo contra @ vontade manifesta de seu povo) significa 0 sucesso (pelo menos tem- porério) do verdadeiro modo de pensar que esté por ts dessa polttia: 4 idéia do velho Império Romano de “‘dividir para conquistar”, De 11m modo bastante cruel, quanto mais bem-sucedido o bantustao (e Kiwa- ‘aulu, sob 0 Chefe Buthelezi, é um exemplo de sucesso, deste ponto de vista), tanto mais ameaca ¢ fragmenta a unidade dos negros ¢ a sua resistencia (veja 0 Capitulo 3). 102 Eeerevo 0 que eu que Na década de 1970, a tinica resistencia articulada e coerente a essa politica veio do movimento de Consciéncia Negra — dai, por exem- plo, o grande nitmero de prisdes de iideres da BPC no segundo ‘semes- Ire de 1976, para prevenir o protesto em massa que a organizacao es ave planejando contra a inaugueracao de Transkei como em “pats in dependente”. Hoje essa resistencia estd muito mais generalizada e oft caz, reunida na organizagéo que lhe serve de abrigo, a Frente Unida Democrdtica, mas é exercida nas diferentes formas que lhe sdo br6- -prias pelos sindicalos negro e pelos jovens. Apesar disso, ainda conti- nuam as remogies forcadas de comunidades, muito embora o governo insista em declarar 0 contrério; e o fim das desgracas provocadas por essa politica s6 vird quando 0 priprio apartheid for derrubado, Este capitulo deve ser lido juniamente com o Capitulo 12. Escrevo 0 que eu quero Vamos falar sobre os bantustdes ‘JA se completaram agora quase dez anos desde que a idéia do bantustao foi introduzida na pratica pelo governo nacionalista, co- ‘mo uma medida duradoura para a solucao do “‘problema dos nati- vos”. Sem ciivida a idéia de uma segregacao territorial na Africa do Sul é antiga. Foi em 1913 que Sauer, um membro supostamente liberal do Ministério do Governo daquela época, sugeriu pela pri- meira vez que partes do pais fossem reservadas para atender 4s as- piracdes da populacao nativa. Nos muitos anos que se seguiram, 0 percentual reservado para os nativos sofreu grandes variacées, até que em 1936 estabeleceu-se a parcela atual de treze por cento. Os nacionalistas, sob a ‘‘competente”’ orientacao de seu ted- rico Verwoerd, converteram a politica patente de discriminacao e segregacao desumanas na politica do eufemistico “desenvolvi- mento em separado”’, que “garantia”’ o eventual crescimento até atingir a soberania completa de oito bantustdes ou patrias, que se- riam Estados aut6nomos para servir as varias “nagdes”” que com- pdem a populacao nativa da Africa do Sul. A principio, a idéia do desenvolvimento em separado foi in- teiramente rejeitada por toda a populacao, inclusive por elemen- tos do grupo africdnder. Foi desaprovada pelos liberais, pelos pro- gressistas, pelo Partido Unido, e, naturalmente, também pelos ne- falar sobre o¢ bantustoes 103 3. Foi naturalmente considerada pelos negros como uma gran- ude, feita de propésito para diminuir 0 entusiasmo com que im comecado a entrar na luta politica mais ampla por seus di- tos no pais em que tinham nascido. Aqueles que participaram idéia foram condenados por todos como traidores e capachos ‘brancos, ¢ ninguém os levou a sério. Ficou claro que haviam liberadamente entrado num conluio maldoso com o inimigo. ‘Nas fileiras dos brancos a idéia também foi muito criticada ‘considerada extremamente imoral. No entanto, quando os ele- entos verlizte* do setor africander comecaram a mostrar interesse essa ideologia, muita gente resolveu prestar mais atenco em. significado, Tal atitude foi incentivada especialmente pelo ata- dos verligle contra o que chamavam de “apartheid mesquinho”” Tepercussio tipica da politica oposicionista neste pais, es. ‘ses verligte receberam grande apoio da imprensa inglesa apenas ‘devido 2 sua pequena diferenca em relacdo & linha nacionalista fer- enka. Durante 0 processo, muitos encontraram mérito no ponto de vista verligte de desenvolvimento separado, basicamente por- ‘que diversos jornais haviam mudado sua politica numa tentativa de apaziguar o movimento vrligte. Com tal contexto em mente, tornou-se necessério que nés, hegros, reapresentssemos em termos muito fortes os argumen- ‘tos contrrios & idéia dos bantustdes. Existem dois pontos de vista fem rela¢do aos bantustdes. O primeiro é o da total aceitacao, na esperanca de que qualquer exigéncia feita pelos negros por meio ‘de uma negociacio pacifica ira levar o sistema da estrutura de po- der branco a fazer maiores concessdes. O segundo € o de que, en- quanto estratégia, a filosofia dos bantustdes pode ser aproveitada Para a obtencdo de nossos objetivos globais. Ambos os pontos de vista sao perigosamente limitados. O primeiro exige pouca aten- ‘¢40, pois € evidente que se trata de uma traigaio e 86 pode ser acei- fo por pessoas que j4 venderam sua alma ao branco. O segundo igera muita confusao, parte da qual é, na verdade, uma aceitacdo inconsciente da idéia do bantustao em si pelas massas, que néo con- ‘seguem perceber as nuangas do debate em torno dessa chamada estratégi Por que somos contra a idéia do bantustao? Os negros rejei- tam tal abordagem por muitas razdes, mas nenhuma € tao impor- tante quanto o fato de que ela nao passa de uma solucao apresenta- dda pelas mesmas pessoas que criaram o problema, Numa terra que por direito é nossa, encontramos pessoas que vém nos dizer onde = Verligte: liberal; em oposicdo a vevkrample: conservador. 104 Becrevo 0 que ou qh ficar e que poderes vamos ter, sem sequer nos consultar. Fi com que a ideia toda pareca ser a nosso favor, enquanto traball contra nossa existéncia; o exame superficial de alguns aspectos d sa politica mostra isso muito claramente. Geograficamente, ou seja, quanto a distribuicdo das terras, bantustoes representam uma fraude gigantesca que nao pode reek ber apoio moral de ninguém. Vemos que 20 por cento da popula detém o controle de 87 por cento da terra, enquanto 80 por cen “controlam” apenas 13 por cento. Para tomar essa sitwacao ail mais ridicula, nem uma tinica das chamadas ‘“nagdes bantustas' sui um territ6rio continuo, Todas elas sao formadas por pedacinh dispersos da terra mais improdutiva. Em cada area, as tegioes 1 produtivas sao ilhas controladas por brancos, nas quais se situal fazendas ou outros tipos de indistria de brancos. Quanto ao aspecto econémico, os negros receberam um tr tamento injusto. De modo geral, as areas onde se localizam os bal tustdes sao as menos desenvolvidas do pafs, muitas vezes inteit mente impréprias, seja para a agricultura, seja para a criacao dk gado. Nenhum bantustao tem acesso ao mar*, e em todos o dird to sobre os minérios ¢ estritamente reservado ao governo da A\ ca do Sul. Em outras palavras, os direitos dos bantustoes se lin tam a profundidade de 6 pés abaixo da superficie da terra’* ‘Soma-se a essas observacoes 0 fato de que os orcamentos op racionais concedidos aos bantustdes para projetos de desenvolvimet to sio mantidos num nivel muito baixo. Em todos os bantustoes § controle da industria e de seu crescimento est4 encerrado nas mad da cooperativa de investimentos bantu a qual, embora criada sei fins lucrativos, é famosa pela exploragdo dos africanos que de jam tornar-se comerciantes e industriais em todos os bantustoey ssas chamadas indiistrias da fronteira, que esto comecando a sur gir nos limites dos bantusties, sto orientadas para a exploracao di forca de trabalho dentro dos bantustées. A maioria € subsiciai pelo governo e seus produtos sao isentos de impostos. Apesar di sas Vantagens, sempre pagam salérios baixos que correspondent} a cerca de um terco do que normalmente pagariam nas reas tf banas. Além disso, é importante notar que essas induistrias loca zadas em regides de fronteira muitas vezes estao fora dos limite Isto €, a um grande porto. Este assunto fo e continua a ser objeto de negociagdes entre o governo da Als cca do Sule 0 dos bantustbes ¢ poderd softer alteracbes segunco entendiments falar sobre os bantustéee 105 fficos dentro dos quais a maioria dos acordos de Conselhos triais operam; e uma vez que os operérios negros nao pos- m sindicatos para defender seus direitos, eles ficam virtualmen- rcé de empregadores que nao tém nenhuma obrigacdo de ar saldrios de acordo com os indices vigentes nas outras do pais. Do ponto de vista politico, os bantustdes so a maior fraude inventada por politicos brancos (com a possivel excegao da Politica federal do Partido Unido). As mesmas pessoas que )culpadas pela sujeicao e pela opressao dos negros querem que itemos que agora podem conceber meios para os negros saf- idessa situacao. A verdade é que as intencdes de tal politica tras. Os motivos reais da implantacao dos bantustées sio tes: | 1. Criar um falso sentimento de esperanca entre os negros, de modo a desencorajar qualquer outra tentativa de eles definirem suas aspiracdes de maneira coletiva; 2. Oferecer uma direcao nova, mas falsa, para a luta do povo negro. Dificultando a obtencao até mesmo dos 13 por cen- to da terra, os poderes estabelecidos dividem nossas ‘“lu- tas’’ em oito lutas diferentes por oito liberdades falsas ha ‘muito tempo estipuladas. Como conseqiiéncia, esperam que ‘esquecam os 87 por cento da terra que esto nas maos dos brancos; _ 3. Enganar 0 mundo exterior, levando as pessoas a acredita- Tem que existe alguma validade na teoria de miiltiplas na- ges, de modo que a Africa do Sul pode agora voltar 20 esporte, ao comércio, 2 politica internacionais com a cons- | ciéncia tranqiila; | 4, Incentivar ao maximo a competicao e a hostilidade entre as tribos, o que ceriamente ocorrerd, de tal modo que a _ forea e a resistencia coletivas do povo negro possam ser fragmentadas, _ Assim, a questo que surge imediatamente é saber se 08 li- dos bantustdes nao percebem a improdutividade e a fraude as nesse projeto. Temos alguns homens nesses bantustdes #seriam excelentes Iideres, se ndo tivessem decidido colocar 19 na mao dos opressores. Alguns deles argumentam que Zo desistindo, mas continuando com a luta a partir de den- 106 Exerave que eu qh tro. Nao ha nenhum modo de se atestar a veracidade dessas tensdes. Talvez nao seja sequer necessério comprové-la, em esp cial porque, ndo importa como se encare a questio, a verdade ‘que a participacdo no estabelecimento dos bantustdes engana ap ppulago negra de maneira bastante perigosa. Concentremo-nos agi nos méritos e nos deméritos de se usar o préprio sistema para I tarmos contra ele e deixemos de lado esses lideres dos bantust0 que acreditam sinceramente na polttica do apartheid. Afinal, « mo disse certa vez um escritor, nao existe nenhuma maneira d evitar que imbecis se dediquem a causas intteis. Hoje, na Africa do Sul, a participacdo de alguns elemento na politica dos bantustdes levou parte do povo negro e tambi observadores politicos do mundo inteiro a reconsiderarem os bi tustoes, acreditando que algo pode ser obtido por meio de uma ut) lizagao'sistematica da alternativa dos bantustdes. Segundo 0 a gumento deles, todas as outras formas de protesto, de discord cia e oposicao esto proibidas para os negros, e entaio podemos de mascarar 0 blefe do governo aceitando 0 que ¢ oferecido, para cot seguirmos nossos objetivos. O que a maioria das pessoas nao et xerga € que 0 inimigo sabe muito bem o que nés queremos e 4 a teoria dos bantustées foi concebida exatamente para impedir q obtenhamos aquilo que queremos. Os autores do sistema sao aqu les que melhor o conhecem e eles nos dao qualquer concesso 4 possamos exigir, de acordo com um plano preestabelecido por eles Quando criaram essas plataformas fantoche, esses telefones dh mentira, eles sabiam que alguns oportunistas poderiam querer t los para promover a causa dos negros e, por isso, fizeram todot (08 arranjos necessérios para conseguir controlar esses “ntativos a Diciosos”. Matanzima e Buthelezi* podem gritar até arrebentar os pul mes, tentando falar com Pretéria por esse telefone de mentira Ninguém est4 ouvindo em Pretoria, porque o telefone é um brit quedo. As verdadeiras linhas diretas entre Pretoria e a Zululdiy dia, entre Pretoria e 0 Transkei estdo muito ocupadas dia e noite com Torlage e Abrahams** contando para o sistema deles todos 0s passos que Matanzima e Buthelezi provavelmente darao daqul aa tres meses e qual a melhor maneira de o sistema responder a talf assos. * Kaiser Matanzima, lider do Transkei, ¢ Gatsha Butheles, de Zululéndia, ‘++ Na época, os “comissarios” do Kwazulu ¢ do Transkel, respectivamente 0¢ falar eobro os bantustdes 107 0 mais doloroso é que Matanzima e Buthelezi, talvez mais qualquer um, tém uma percepgao clara das limitagdes que os im. Pode até ser verdade que eles sejam extremamente dedi- a0 progresso do povo negro ¢ talvez a sua libertacao. Com inte freqiiéncia manifestam um espfrito de luta caracteristico Juma coragem e uma determinacao verdadeiras. Mas, se alguém lutar contra o inimigo, entre os dois revélveres oferecidos por nao aceitaré o que esta descarregado, para depois desafié-lo duelo, Os lideres dos bantustdes inconscientemente esto ajudando o ctimplices na total sujeieao do povo negro deste pais. Dando impressao, como esto fazendo agora, de que esto agindo, eles to confundindo os negros a tal ponto que acreditam que algu- ha coisa importante estd para acontecer. Como conseqiténcia, os rs esto sentados nas laterais do campo, aplaudindo entusias is enquanto Matanzima e Mangope™ jogam. A situacao esta sa também devido ao modo com que a imprensa dos brancos era as possibilidades abertas a esses lideres. Sem diivida es- jesma imprensa sabe muito bem que é vantajoso para os bran- desviar a atencao dos negros. A imprensa dos brancos conhe- muito bem as limitacdes da teoria dos bantustdes; que est lon- e de ser aquilo que os negros querem, mas continua a exaltar a em de Matanzima e de Buthelezi a fim de atrelé-los ao cami- ho que jé escolheram e de fazer com que as massas acriticas acre- que uma grande vitoria estd prestes a ser conquistada. Além , 20 divulgar amplamente os pronunciamentos dos lideres dos ites ¢ atribuindo conotacdes bastante liberais a esses pro- neiamentos, a imprensa dos brancos confundiu 0 mundo exte- ;, levando-o a pensar que na Africa do Sul nao apenas existe erdade de expresso, como 0s lideres dos bantustdes esto cons- indo ativamente para derrubar 0 governo branco, sem que remo faca nada, Assim, para a Africa do Sul branca é extremamente impor- fante ter alguém como Buthelezi falando e dando a impressio que dado. [sso resolve muitos problemas de consciéncia que a Afri- do Sul tem hé tanto tempo. Afirma:se por af que Buthelezi e prensa dos brancos sao os melhores embaixadores que a Afri do Sul ja teve Lucas Mangope, de Bophuthatswana 108 Escrevo 0 que eu quero Para mim, como uma pessoa negra, € muito doloroso ver um homem que poderia facilmente ter sido meu Ifder tratado tao mal pelo mundo branco cruel e explorador. Torna-se evidente que tu: 0.0 que fizermos dentro do contexto dos bantustdes provavelmente ser explorado pelo mundo branco para o seu auto-engrandeci- ‘mento. Quando um negro concorda com 0 governo, é um nativo exemplar, que valoriza a condigdo de ser guiado pelos brancos, Quando usa as plataformas dos bantustoes para atacar aquilo de que nao gosta, representa o tipo de lider militante negro que, ni Africa do Sul, pode falar livremente e se opor ao sistema. Absolve pais da acusagao de ser um Estado policial. Os escritérios de in: formagdes da Africa do Sul em todo o mundo tém longos relaté: rios sobre as atividades e os pronunciamentos dos lideres dos ban- tustdes, para enfatizar 0 grau de imparcialidade e eallidade que se encontra neste pais. ‘Nao, 0 negro tem de aprender a recusar o papel de fantoche num jogo de brancos. Esse tipo de politica exige que tomemos nos sas prOprias iniciativas e que saibamos agir de acordo com o nosso préprio ritmo, e nao segundo o ritmo criado para nés pelo sistema, ‘Nenhum lider de bantustao pode me dizer que est4 agindo por sua pr6pria iniciativa ao seguir a politica dos bantustdes. Neste esti: gio de nossa hist6ria, nao podemos permitir que nossa luta seja tribatizada através da criacdo de politicos zulus, xhosas e tswanas pelo sistema. Esses casulos tribais chamados “patrias” nao sdo nada mai que campos de concentracdo sofisticados, onde as pessoas negras tém permissao para “‘sofrer pacificamente”. As pessoas negras pre cisam pressionar constantemente os lideres dos bantustoes, para que saiam do impasse politico criado pelo sistema. Acima de tudo, nés, negros, deveriamos ter sempre em mente que a Africa do Sul é a nossa terra e que ela nos pertence integral: mente. E preciso destruir a arrogancia que faz com que os bran cos venham de longe, da Holanda até aqui, para transformar nos: so pafs numa espécie de Balcas, deslocando-nos de um lugar para ‘outro, Abusam de nossa bondade, e nossa hospitalidade é voltada contra nés. Os brancos, que ao chegarem a este pais eram apenas nossas visitas, agora nos empurraram para um canto que equivale a treze por cento de nossas terras e agem como maus anfitrides no restante do pais. Temos de corrigir esta situacao. Abaixo os bantustoes!!! Frank TAL 10. A Consciéncia Negra e a busca de uma verdadeira humanidade Historicamente, a “Teologia Negra” é um produto norte-ameri- 2, broveniente da situagdo dos negros nos Estados Unidos. No ini 'dos anos 70, sew expoente mais representativo era o Dr. James H. professor de teologia no Semindrio Teoldgico da Uniao, em No- York, ¢ autor de Black Theology and Black Power (Teologia ¢ Poder Negro) — (Seabury, 1969) e de God of the oppres- @eus dos oprimidos) — (Seabury, 1975; SPCK, 1977) Em meados de 1970, 0 UCM nomeou Sabelo Stanley Ntwasa ssecretario itinerante para o ano de 1971, com o encargo especifi- ide incentivar a reflexao e a producto de textos sobre a Teologia Ne- O livro Black Theology: the South African voice (Teologia Ne- # a voz da Africa do Sul), editado por Basil Moore (C. Hurst and , London, 1973), € 0 resultado dos esforcos feites naguele ano, ¢ abalho que se segue, escrito por Steve, € talvez a contribuicao mais ite para o livro — na opinido de quem aqui escreve, 0 melhor que ele produziu, Consciéncia Negra e a busca de uma ladeira humanidade Talvez seja conveniente comecar examinando por que € pre- 'pensarmos coletivamente sobre um problema que nunca cria- 110 ‘mos. Ao fazer isso, nao quero me ocupar desnecessariamente Coif ‘as pessoas brancas da Africa do Sul, mas para conseguir as rel postas certas precisamos fazer as perguntas certas; temos de dew Cobrir o que dew errado — onde e quando; e precisamos verificit ‘s€ nossa situagao é uma criagao deliberada de Deus ou uma inv (40 artificial da verdade por individuos 4vidos pelo poder, cuja mo tivacdo é a autoridade, a seguranca, a riqueza ¢ 0 conforto. Fi outras palavras, a abordagem da Consciéncia Negra seria irrelt vante numa sociedade igualitéria, sem distincao de cor € sem ey ploragdo. Bla é relevante aqui porque acreditamos que uma sith cao anémala é uma criacéo deliberada do homem. ‘Nao ha dtivida de que a questao da cor na politica da Afri do Sul foi introduzida originalmente por razdes econdmicas. 0% deres da comunidade branca tinham de criar algum tipo de ban ra entre 08 negros e os brancos, de modo que os brancos pu sem gozar de privilégios & custa dos negros ¢ ainda se sentirel livres para dar uma justificativa moral para a evidente exploragii que incomodava até as mais empedernidas consciéncias dos bral cos. No entanto, diz a tradicao que, sempre que um grupo de p soas experimenta os agradaveis frutos da riqueza, da segura e do prestigio, comeca a achar mais confortével acreditar nt mentira dbvia € aceitar como normal que 86 ele tenha direito privilégio, Para acreditar seriamente nisso, o grupo precisa s¢ (0 vencer da veracidade de todos os argumentos que sustentam @ mentira, Portanto, nao é de estranhar que na Africa do Sul, dept de séculos de exploracao, as pessoas brancas em geral tenham ¢) gado a acreditar na inferioridade do negro, a tal ponto que, em 120 problema racial tenha comecado como conseqiiéncia da nancia econdmica demonstrada pelos brancos, agora transfornid se num problema sério em si mesmo. As pessoas brancas aK desprezam as pessoas negras, nao porque precisam reforgar atitude e, assim, justificar sua posigao privilegiada, mas porque) fato acreditam que o negro é inferior e mau. Esse € o fundamél sobre 0 qual os brancos atuam na Africa do Sul e é isso 0 que fl com gue a sociedade sul-africana seja racista. ‘O racismo que encontramos nao existe apenas numa base dividual; ele também ¢ institucionalizado, para que pareca Wl modo de vida sul-africano. Embora ultimamente tenha havido i tentativa frégil de encobrir os elementos abertamente racist sistema, ainda € verdade que esse mesmo sistema é sustentado existéncia de atitudes antinegro na sociedade. Para dar uma ¥ mia Nogra © a busea de wma verdadeisa humanidade 11 mais longa 4 mentira, € necessario que se negue aos negros guer oportunidade de provar acidentalmente que sao iguais aos . Por tesa razlo, hé reserva de emprego, falta de treina- nto em tarefas especializadas e um circulo restrito de possibili- 8 profissionais para negros. Absurdamente, o sistema retru- afi mando que 0s negros sao inferiores porque entre eles nao onomistas, nao hd engenheiros etc., embora os negros tenham © impossibilitados de adquirir esses conhecimentos. Para dar autenticidade & sua mentira e demonstrar a retidfio as pretensbes, os brancos vem desenvolvendo esquemas de- para “resolver” a questio racial neste pais. Desse modo, ado um pseudo-Parlamento para os “"mesticos”, e varios “Es- Dantus” estao em vias de ser estabelecidos. Estes sto tao pendentes e afortunados que nao precisam gastar nem sequer entavo em sua defesa, pois nao tém nada a temer da parte ica do Sul branca, que sempre viré socorré-los em caso de essidade. E imposstvel nao ver a arrogancia dos brancos e seu 20 pelos negros, mesmo em seus esquemas de dominagao 10s e bem planejados. A estrutura a poder branco vem obtendo sucesso total em irunir os brancos em torno da defesa do status - modo habilidoso com 0 espantalho imaginario ae =, conseguiu convencer até os liberais obstinados de que ha ‘a temer na idéia de o negro assumir seu lugar legitimo no le- do barco sul-africano. Assim, apés anos de siléncio, podemos a voz familiar de Alan Paton dizendo, I longe, em Londres: alvez valha a pena tentar-se o apartheid”. “A custa de quem, iton?””, pergunta um inteligente jornalista negro. Por isso os jeos em geral se apéiam mutuamente — embora se permitam desavencas moderadas — quanto aos detalhes dos esque: de dominacao. Nao ha dtivida de que nao questionam a vali- dos valores brancos. Nao enxergam nenhuma anomalia no ide estarem discutindo sozinhos sobre o futuro de 17 milhoes os — numa terra que € 0 quintal natural do povo negro, + propostas de mudanca provenientes do mundo negro ncaradas com a maior indignacdo. Até mesmo a assim cha- oposi¢ao, o Partido Unido, tem a ousadia de dizer aos mesti- que eles esto querendo demais. Um jornalista de um jornal como 0 Sunday Times, de Johannesburgo, descreve um es- nte negro — que est apenas dizendo a verdade — como um N militante impaciente. Tacrovo 0 que ou q ‘Nao basta aos brancos estar na ofensiva. Acham-se de tal do mergulliados no preconceito que nao acreditam que os n possam formular os préprios pensamentos sem a orientacao @ tutela dos brancos. Assim, até mesmo os brancos que véem tos erros no sistema tomam para si a responsabilidade de conti lar a reacdo dos negros provocago. Ninguém esta sugerindo q nao & responsabilidade dos brancos liberais se opor a tudo 0 4 ha de errado. No entanto, parece coincidéncia demais que os lib ais — poucos como so — nao apenas estejam determinando 0 dus operandi dos negros que se opdem ao sistema, como tamb se achem em sua lideranea, apesar de envolvidos com 0 siste Para nds, seu papel define a abrangéncia da estrutura do p\ branco: embora os brancos sejam o nosso problema, so out ‘brancos que querem nos dizer como lidar com esse problema, fazem isso procurando desviar nossa atencao de intimeras maj ras. Dizem-nos que a situacao € mais a de uma luta de classes 4 uma luta racial. Eles que procurem Van Tonder no Free Stal € digam isso a ele. Nés acreditamos que sabemos qual € 0 probl ma e vamos continuar figis a nossas conclusdes. Quero aprofundar um pouco mais nessa discussdo porque « na hora de acabar com essa falsa coalizao politica entre negro ‘brancos enquanto estiver fundamentada numa andlise errdnei nossa situago, é preciso lutar para acabar com ela, Quero acalh com ela por outra azo: porque, no momento, constitui o mal obstaculo a nossa uniao. Ela acena aos negros avidos por liberd decom promessas de um grande futuro, para o qual ninguém 1 Ses grupos parece trabalhar com muito afinco. Os brancos liberais apontam 0 apartheid como o problem fundamental da Africa do Sul. Argumentam que, para lutarm@ contra ele, é necessério que formemos grupos nao raciais. Ent esses dois extremos, proclamam, encontra-se a terra do leite ¢ (J mel pela qual estamos trabalhando. Alguns grandes fildsofos sideram a fese, a antitese e a sintese os pontos cardeais em to dos quais gira qualquer revolucdo social. Para os liberais, a tese © apartheid, a antftese € 0 nao racismo, mas a sintese é muito definida. Querem dizer aos grupos que encontram na integra a solugao ideal. A Consciéncia Negra, no entanto, define a sit cdo de maneira diferente: a tese na verdade é um forte racismo pi parte do branco e, portanto, sua anttese precisa ser, ipso facto, de Orange, parte da Africa do Sul. (N. 7.) te solidariedade entre negros, a quem esse racismo branco pre- ide espoliar. A partir dessas duas situagdes, entao, podemos ter anca de chegar a algum tipo de equilfbrio — uma verdadei- humanicade, onde a politica de poder nao tenha lugar. Tal and- define a diferenca entre a velha e a nova abordagem. O fracas- dos liberais se encontra no fato de que sua antitese ja € uma ver- liluida da verdade, cuja proximidade da tese vai anular 0 equi- fio pretendido. Isso explica o malogro das comissdes do Sprocas* @ nao conseguiram nenhum progresso, porque ja esto procu- ido uma “alternativa’” aceitavel para os brancos. Todos os que am as comissdes sabem o que esta certo, mas todos eles pro- n 0 modo mais conveniente de se esquivar da responsabilida- ¢ de dizer o que esta certo. Enxergar essa diferenga 6 bem mais importante para os ne- 0S que para os brancos. Precisamos aprender a aceitar que ne- jum grupo, por melhores intencdes que tenha, poder4 um dia en- aro poder aos vencidos, numa bandeja. Precisamos aceitar que ites dos tiranos so determinados pela resisténcia daqueles oprimem. Enquanto nos dirigirmos ao branco** mendigan- ‘com 0 chapéu na mao, nossa emancipacio, estaremos the dan- iis autorizacao para que continue com seu sistema racista e essor. Precisamos nos conscientizar de que nossa situacao re- ta de um ato deliberado da parte dos brancos, e nao de um en- r nem milhares de sermées morais podem persuadir 0 ‘orrigir” esse estado de coisas. O sistema nao concede a no ser que seja exigido, porque formula até seu método go com base no fato de que o ignorante aprender, a crianca ‘transformaré em adulto e, portanto, as exigéncias comecarao r feitas. O sistema se prepara para resistir as reivirtdicacdes aneira que Ihe parecer adequada. Quando alguém se recusa er essas exigéncias e prefere ir a uma mesa-redonda mend © sua libertacdo, esta atraindo o desprezo daqueles que tém sobre ele. Por esse motivo precisamos rejeitar as téticas de endigos que estamos sendo forcados a usar por aqueles que que- n aplacar nossos senhores cruéis. E aqui que a mensagem e 0 da SASO: “Negro, vocé est por conta propria!” se torna re- Excrevo 0 que eu quel) Negra @ a busca do uma vordadeira humanidade O conceito de integracao, cujos méritos sao muitas vezes elo» giados nos circulos de brancos liberais, esta cheio de suposi¢oes nao questionadas que seguem 0s valores brancos. E um conceit@ ‘que hd muito tempo foi definido pelos brancos e que os negros nul ca examinaram. Baseia-se na suposicao de que o sistema caminhi muito bem, exceto por um certo grau de m4 administracao exereh da por conservadores irracionais da cipula. Até mesmo os que al gumentam em favor da integracao muitas vezes se esquecem de escondé-la sob sua pretensa capa de harmonia. Dizem uns as oll; tros que, nao fosse pela reserva de empregos, haveria um exoe: lente mercado a ser explorado. Esquecem que estdo se refering ‘a seres humanos. Consideram os negros apenas alavancas adici” nais para algumas mdquinas industriais complicadas. E esta a ii tegracao do homem branco — uma integragéio baseada nos val” res de exploracao, em que 0 negro competiré com o negro, um ttl lizando 0 outro como a escada que 0 conduziré aos valores bral: E uma integracao na qual o negro tera que provar a si mesm ‘em termos desses valores antes de merecer a aceitacio e a assirily acdo final, e na qual os pobres se tornarao mais pobres, 03 rico ‘mais ricos, num pais em que os pobres sempre foram negros. Ni ‘queremos ser lembrados de que somos nés, 0 povo nativo, que #0 ‘mos pobres e explorados na terra em que nascemos. Estes sa col ceitos que a abordagem da Consciéncia Negra quer arrancar d mente dos negros, antes que nossa sociedade seja conduzida aos por pessoas irresponsaveis provenientes do contexto cultut da Coca-Cola e do hambiirguer. ‘A Consciéncia Negra é uma atitude da mente e um modo d vida, o chamado mais positivo que num longo espaco de tempo ¥} ‘mos brotar do mundo negro. Sua esséncia é a conscientizacio pi parte do negro da necessidade de se unir a seus irméos em to! da causa de sua opress4o — a negritude de sua pele — e de tral Iharem como um grupo para se libertarem dos grilhdes que os pret dem a uma servidao perpétua. Baseia-se num auto-exame que 0 levou finalmente a acreditar que, ao tentarem fugir de si mes! imitar 0 branco, esto insultando a inteligencia de quem quer 4 0s criou negros. A filosofia da Consciéncia Negra, portanto, @ pressa um orgulho grupal e a determinagao dos negros de se vantarem e conseguirem a auto-realizacao desejada. A liberdai é a capacidade de autodefinicao de cada um, tendo como limitag de suas potencialidades apenas a prdpria relacéo com Deus e ‘oambiente natural, e no 0 poder exercido por terceiros. O ney ® portanto, explorar por conta prépria o ambiente em que vive star suas potencialidades — em outras palavras, conquistar a lade por quaisquer meios que considerar adequados. Na es- desse pensamento esté a compreensfo dos negros de que ‘mais poderosa nas maos do opressor é a mente do oprimi- dentro de nosso coracao estivermos livres, nenhuma cor- ie feita pelo homem poderd nos manter na escravidao; mas se sa mente for manipulada e controlada pelo opressor a ponto de @F com que 0 oprimido acredite que ele é uma responsabilidade em branco, entao nao haverd nada que o oprimido possa ara amedrontar seus poderosos senhores. Por isso, pensar ndo a linha da Consciéncia Negra faz.com que o negro se veja um ser completo em si mesmo. Torna-o menos dependente livre para expressar sua dignidade humana. Ao final do pro- Para que a Consciéncia Negra possa ser usada de modo van- .como uma filosofia a ser aplicada a pessoas que esto numa .como a nossa, é necessério observar alguns aspectos. Co- ) pessoas existindo numa luta continua pela verdade, precisa: ‘examinar e questionar velhos conceitos, valores e sistemas. nido encontrado as respostas certas, iremos ento trabalhar pa- que todas as pessoas sejam conscientizadas, a fim de que te- 0s a possibilidade de caminhar no sentido de por em pratica ‘Fespostas. Nesse proceso, precisamos desenvolver nossos jos esquemas, nossos modelos e estratégias, adequados para falores e crencas fundamentais. Em todos os aspectos do relacionamento entre negros e bran- agora e no passado, vemos uma tendéncia constante por par- erior. Nossa cultura, nossa historia, na yerdade todos os as- tos da vida do negro foram danificados até quase perderem sua no grande choque entre os valores nativos e a cultura Os missiondrios foram os primeiros que se relacionaram com os da Africa do Sul de um modo humano. Pertenciam a van- la do movimento de colonizagao para “‘civilizar e educar” os s € apresentar-Thes a mensagem crista. A religido que trou- n era completamente estranha para 0 povo negro nativo. A ito africana em sua esséncia nao era radicalmente diferente 116 Ercrovo © que ov qi do cristianismo. Nés também acreditavamos num s6 Deus, ffl mos a nossa comunidade de santos por meio da qual nos reli névamos com nosso Deus, € nao considerévamos que era comp vel com nosso modo de vida prestar a Deus um culto separado d varios aspetos de nossa vida. Por isso o culto nao era uma fung especializada que se expressava uma vez por semana num pi especial, mas aparecia em nossas guerras, ao bebermos cer em nossas dancas, em nossos costumes em geral. Sempre que africanos bebiam, primeiro se relacionavam com Deus derra do um pouco da cerveja como simbolo de sua gratidao. Qual algo ia mal em casa ofereciam a Deus um sacrificio para apazig Joe para reparar seus pecados. Nao havia inferno em nossa gido. Acredit4vamos na bondade inerente do homem e, por i tinhamos certeza de que todas as pessoas, ao morrerem, se jl ‘vam a comunidade dos santos — portanto, mereciam nosso respel Foram os missionarios que confundiram as pessoas com nova religido. Assustaram 0 nosso povo com suas historias sol o inferno. Descreveram 0 Deus deles como um Deus exigente q queria ser adorado, ‘‘sendo...”. As pessoas tinham que por de li suas roupas e seus costumes, para serem aceitas na nova religi Sabendo que os africanos so um povo religioso, os missiond incrementaram sua campanha de terror sobre as emogbes das soas, com seus relatos detalhadlos a respeito do fogo eterno, dil rancar de cabelos e do ranger de dentes. Por alguma légica est nha e distorcida, argumentavam que a religiao deles era cient ca, e a nossa uma supersticdo — apesar da discrepancia biolég que estd na base da religiao deles. Para o povo nativo essa reli fria e cruel era estranha e provocava freqiientes discussdes nl 08 convertidos e os “‘pagaos”, porque os primeiros, tendo assi lado os falsos valores da Sociedade branca, foram ensinados cularizar e a desprezar aqueles que defendiam a verdade de § religido nativa. Depois, com a aceitacao da religio ocidental, no sos valores culturais foram por Agua abaixo! Embora eu nao deseje questionar a verdade fundamental estd no centro da mensagem crista, ha um forte argumento em vor de wm reexame do cristianismo. Tem provado ser uma giao muito adaptavel que nao procura acrescentar nada as ore existentes, mas — como qualquer verdade universal — encont um modo de ser aplicada a uma situacao especifica. Mais que nil ‘guém, os missiondrios sabiam que nem tudo o que faziam era est cial & propagacao da mensagem. Mas a intencao basica ia mil ciéncia Negra e a busca de uma verdadeira humanidade ur m da mera propagacao da palavra. Sua arrogéncia e seu mono- sobre a verdade, sobre a beleza eo julgamento moral os fize- ‘desprezar os habitos e as tradi¢des dos nativos e procurar in- lir seus proprios valores nessas sociedades. Aqui temos, entdo, o argumento em favor da Teologia Ne- Como nao quero wiscutir a Teologia Negra a fundo, basta que a que ela procura relacionar mais uma vez Deus e Cristo com gro'e seus problemas coticianos. Ela pretende descrever o Cris- omo um Deus lutador, e ndo como um Deus passivo que per- que uma mentira permaneca sem ser questionada. Ela enfrenta blemas existenciais ¢ nao tem a pretensdo de ser uma teologia bsolutos. Procura trazer Deus de volta para 0 negro e para a dade e a realidade de sua situacdo. Este € um aspecto impor- te da Consciéncia Negra, pois na Africa do Sul existe um gran- limero de pessoas negras cristas que ainda se encontram ato- em meio & confusdo, uma conseqiiéncia da abordagem dos ios. Portanto, todos os sacerdotes e ministros religiosos tém o dever de salvar 0 cristianismo, adotando a aborda- ida Teologia Negra e, assim, unindo o negro outra vez a seu Para os negros. No tempo dos missiondrios, essa mesma si gao tensa jé existia. Sob o pretexto de cuidarem da higiene, de -m bons modos e outros conceitos vagos, as criangas eram a desprezar a educagéo que recebiam em casa € a ques- ir os valores e os habitos de sua sociedade. O resultado foi o esperava: as criancas passaram a encarar a vida de um mo- nte dos pais e perderam o respeito por eles. Ora, na so- de africana, a falta de respeito pelos pais € um pecado grave. entanto, como se pode impedir que a crianca perca esse res- quando seus professores brancos, que sabem tudo, a ensi- Na desconsiderar os ensinamentos da familia? Quem pode re- it € conservar o respeito pela tradicao, se na escola todo o seu iente cultural é sintetizado numa s6 palavra: barbarismo? Podemos, assim, ver a logica de colocar os missionérios na de frente do processo de colonizacao. Uma pessoa que con- fazer um grupo de individuos aceitar um conceito estranho, ela mesma € um perito, transforma esses individuos em ites perpétuos, cujo progresso nesse campo $6 pode ser ava- por ele; o estudante precisa sempre se dirigir a ele para ob- Grientacao e promocao. Ao serem obrigados a aceitar a cultura

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