You are on page 1of 14
ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE Sessao solene de promulgacao da Constituigao da Republica Federativa do Brasil Estatuto do Homem, da Liberdade, da Democracia Deputado Uxysses GumManizs (PMDB—SP) Excelentissimo Senhor Presidente da Repiiblica, José Sarney. Excelentissimo Senhor Presidente do Senado Federal, Humberto ‘Lucena. Excelent{ssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal, Mi- nistro Rafael Mayer. Senhores Membros da Mesa da Assembléia Nacional Constituinte. Eminente Relator Bernardo Cabral. Preclaros Chefes do Poder Legislative de nagies amigas. Insignes Embaixadores, saudados no Decano D. Carlos Futno. Excelentissimos Senhores Ministros de Estado. Excelentissimos Senhores Governadores de Estado. Excelentissimos Senhores Presidentes de Assembléias Legislativas. Dignos Lideres Partidérios, Autoridades civis, militares e religiosas, registrando 0 comparecimen- to do Cardeal D. José Freire Falcdo, Arcebispo de Brasilia, e de D. Luciano Mendes de Almeida, Presidente da CNBB. Discurso proferide pelo Constituinte ULYSSES GUIMARAES, Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, na Sessfio solene de promulgac4o da Constituigio da Reptblica Federativa do Brasil de 1988. R. Inf. legis! Brasilia 0. 25 . 100 out./dex. 1988 5 Prestigiosos Senhores Presidentes de Confederagdes. Senhoras e Senhores Constituintes. Minhas Senhoras ¢ meus Senhores. Dois de fevereito de 1987: “ecoam nesta sala as reivindicagées das tuas. A Nago quer mudar, a Nagio deve mudar, a Nagao vai mudar”, Sao palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assem- bléia Nacional Constituinte. Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange @ Constituigio, a Nagdo mudou, A Constituigo mudou na sua elaboragdo, mudou na definigéo dos Poderes, mudou restaurando a Federacio, mudou quando quer mudar 0 homem em cidadio e s6 é cidadéo quem ganha justo ¢ suficiente salério, Ig ¢ escreve, mora, tem hospital ¢ remédio, lazer quando descansa, Num Pais de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da populacdo, cabe advertir: a cidadania comega com o alfabeto. Chegamos! Esperamos a Constitui¢ao como 0 vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. Nao nos desencaminhamos na longa marcha, nao nos desmoralizamos capitulando ante pressées aliciadoras e comprometedoras, nfo desertamos, nao caimos ne caminho, Alguns a fata- lidade derrubou: Virgflio Tavora, Alair Ferreira, Fabio Lucena, Antonio Farias e Norberto Schwantes. Pronunciamos seus nomes queridos com sau- dade e orgulho; cumpriram com o seu dever. A Nasiio nos mandou executar um servigo. Nés o fizemos com amor, aplicagao ¢ sem medo. A Constituic&o certamente nao € perfeita, Ela propria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a cla, discordar, sim, Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afronté-la, nunca, Traidor da Constituico € traidor da Patria. Conhece- mos o caminho maldito: rasgar a Constituigo, trancar as portas do Parla- mento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, 0 exilio, © comité A persisténcia da Constituigao € a sobrevivéncia da Democracia. Quando, apés tantos anos de lutas e sacrificios promulgamos 0 Esta- tuto do Homem, da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposigéo de sua honra: temos édio & ditadura. Odio e nojo. Amaldigoamos a tira: nia onde quer que ela desgrace homens ¢ nagées, principalmente na Amé- rica Latina. Assinalarei algumas marcas da Constituiggo que passard a comandar esta grande Nacao. 6 R. Inf, legisl. Brosilia. a. 25 =, 100 out,/dex. 1988 A primeira € a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilizagio. Sem cla, o dever e as instituigées perecem. Sem a coragem as demais vir- tudes sucumbera na hora do perigo, Sem ela néo haveria a cruz nem os evangelhos. A Assembléia Nacional Constituinte rompeu contra o stablishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Nao ouviu o refrao saudosista do yelho do Restelo, no genial canto de Camées. Suportou a ira e perigosa campanha mercendria dos que se atreveram na tentativa de aviltar legis- ladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privi- légios © especulagdes. Foi de audécia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto fordneo ou de elaboragao interna. © enorme esforco € dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de um milhdo de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuidas, relatadas e votadas no Tongo trajeto das Subcomissdes a Redacio Final. A participacdo foi também pela presenca, pois diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam, livremente, as onze entradas do enorme complexo atquitetOnico do Parlamento, na procura dos gabinetes, Comis- soes, galerias e saldes. HA, portanto, representativo ¢ oxigenado sopro de gente, de rua, de praca, de favela, de fabrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de indios, de posseiros, de empresdrios, de estudantes, de aposen- tados, de servidores civis e militares, atestando a contemporancidade ¢ autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Come 0 caramujo, guardaré para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperanca ¢ reivindicagdes de onde provei A Constitui¢fo € caracteristicamente estatuto do homem. E sua mar- ca de fabrica. © inimigo mortal do homem € a miséria, Nao hd pior disctiminagio do que a miséria. O Estado de Direito, consectério da igualdade, nao pode conviver com estado de miséria, Mais miserével do que os miseraveis & a sociedade que nfo acaba com a miséria, Tipograficamente ¢ hierarquizada a precedéncia e a preeminéncia do homem, colocando-o no umbral da Constituigdo ¢ catalogando-the o ntime- 10 nao superado, s6 no artigo 5°, de 77 incisos ¢ 104 dispositivos. Nao Ihe bastou, porém, defendé-lo contra os abusos originarios do Estado ¢ de outras procedéncias. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos ¢ servicos, cobréveis inclusive com o mandado de injun- ao. Tem substancia popular e crista o titulo que a consagra: “A Consti- tuigio Cidada”. R. Inf. legisl Brosilia a. 25 n. 100 out./dex. 1988 7 Vivenciados ¢ origindrios dos Estados ¢ Municfpios, os Constituintes haveriam de ser figis 4 Federagio. Exemplarmente o foram. No Brasil, desde © Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: © Estado contra o Pais, quando o Pafs 6 a geografia, a base fisica da Nagio, portanto, do Estado. E elementar: nao existe Estado sem Pais nem Pais sem a geografia. Esta antinomia € fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social, econémico, ambiental ¢ de costumes, nao uma ilha. A civilizagio e a grandeza do Brasil percorreram fotas centrifugas n&o centripetas. Os bandeirantes no ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca, mas exata, de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios © marcharam pata o oeste ¢ para a Histéria, na conquista de um continente. Foi também indémita vocagio federativa que inspirou o génio de Jus- celino Kubitschek, que plantou Brasilia Ionge do mar, no coragao do ser: to, como a Capital da interiorizagio e da integragio. A Federaco ¢ a unidade na desigualdade, 6 a coesio pela autonomia das Provincias. Comprimidas pelo centralismo, hé o perigo de serem empurradas para a secessio. Fa irmandade entre as regides. Para que nfo se rompa o elo, as mais prdspetas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, niio haveré na Unido Estado forte, pois fraco é o Brasil. As necessidades basicas do homem est&o nos Estados e nos Munici- Pios. Neles deve estar o dinheiro para atendé-las. A Federacio é a governabilidade. A governabilidade da Nagdo passa pela governabilidade dos Estados e dos Municipios. O desgoverno, filho da pentitia de recursos, acende a ira popular, que invade os pagos municipais, arranca as grades dos paldcios e acabaré chegando a rampa do Palécio do Planalto. A Constitui¢do reabilitou a Federacdo a0 alocar recursos ponderdveis as unidades regionais e locais, bem como a arbitrar competéncia tributéria para lastrearthes a independéncia financeira, Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e nfo a do principe, que € unipessoal e desigual para os favorecimentos 0s privilégios. Se a Democracia € 0 governo da lei, no 86 ao elaboré-la, mas tam- bém para cumprica, so Governo 0 Executivo e 0 Legislativo. 8 R. inf. legis!. Brasilia a. 25 mn. 100 out,/dex. 1988 © Legislativo brasileiro investiu-se das competéncias dos parlamentos contemporaneos. E axiomitico que muitos tém maior probabilidade de acertar do que um s6. © Governo associativo ¢ gregitio é mais apto do que o solitétio. Eis outro imperativo de governabilidade: a co-participagdo e a co-respon- sabilidade. Cabe a indagacdo: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortale- ceu-se 0 unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuicdes cometidas a0 Congresso Nacional? A resposta viré pela boca do tempo. Fago votos para que essa regéncia trina prove bem. Nés, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honré- los. A Nacio repudia a preguica, a negligéncia, a inépcia. Soma-se nossa atividade ordingria, bastante dilatada, a edigéo de 56 Ieis complementares @ 314 ordindrias. Nao esquegamos que, na auséncia de lei complementar, 0s cidadios poderao ter o provimento suplementar pelo Mandado de In- juncao. A confiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem pertinéneia, o slogan: “Vamos votar, vamos volar”, que intesra o folclore de nossa pratica constituinte, reproduzido até em horas de diverstio e em programas humoristicos. Tem significado de diagndstico a Constituicao ter alargado 0 exerci cio da Democracia, em participativa além de representativa. Eo clarim da soberania popular ¢ direta, tocando no umbral da Constituicio, para ordenar 0 avango no campo das necessidades sociais, © povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, 0 povo é © superlegislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo Parlamento. A vida piiblica brasileira seré também fiscalizada pelos cidadios. Do Presidente da Reptiblica ao Prefeito, do Senador ao Vereador. A moral 6 0 cere da Patria. A corrupgio é 0 cupim da Repiblica. Repiiblica suja pela corrupgio impune tomba nas maos de demagogos, que a pretexto de salvé-la, a tira- nizam. Nao roubar, nio deixar roubar, por na cadeia quem roube, cis o pri- meiro mandamento da moral publica, Pela Constituigdio, os cidadios so poderosos e vigilantes agentes da fiscalizagio, através do mandado de segutanga coletivo: do dircito de rece- ber informacdes dos Srgios pablicos; da prerrogativa de petigéo aos Pode- res Piiblicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder: da obtengdo de certiddes vara defesa de direitos; da aco popular, que pode ser proposta por qualquer cidadao, para anular ato lesivo a0 patri- ménio ptblico, a0 meio ambiente e ao patriménio histérico, isento de custas R, Inf. legisl. Brosilia 0. 25 n. 100 owt./dex. 1988 9 judiciais; da fiscalizagéo das contas dos Municfpios por parte do contri- buinte; podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas jun- to a Comissdes das Casas do Congreso Nacional; qualquer cidadao, par- tido politico, associagio ou sindicato sio partes legitimas ¢ poderao denun- ciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da Unido, do Fstado ou do Municipio. A gratuidade facilita a efetividade dessa fis- calizacao. A exposigéo panordimica da lei fundamental que hoje passa a reger 2 Nagiio, permite conceituéla, sinoticamente, como a Constituigéio Coragem, a Constituigdo Cidada, a Constituicéio Federativa, a Constituigaio Represen- tativa e Participativa, a Constituigéo do Governo Sintese Executivo-Legis- lativo, a Constituic Nao € a Constituigdo perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformév. Ela prépria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por mai ria mais acessivel, dentro de cinco anos. Nao € a Constituigde perfeita, mas seré Gil, pioneira e desbravadora. Seré luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgragados. E caminhan- do que se abrem os caminhos, Ela vai caminhar e abri-los. Seré redentor © que penetrar nos bolsées sujos, escuros e ignorados da miséria. Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil € 0 quinto Pais a implantar © instituto moderno da seguridade, com a integragdo de agdes relativas & saiide, & previdéncia ¢ A assisténcia social, assim como a universalidade dos beneficios para os que contribuam ow no, além de beneficiar onze milhdes de aposentados, espoliados em seus proventos. E consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espago ao meio ambiente do que a que vamos promulgar. Senhor Presidente José Sarney: Vossa Exceléncia cumpriu exemplar- mente o compromisso de Tancredo Neves, de Vossa Exceléncia e da Alian- ga Democrética ao convocar a Assembléia Nacional Constituinte. A Emen- da Constitucional n° 26 teve origem em Mensagem de seu Governo, vin- culando Vossa Exceléncia a efeméride que hoje a Nagao celebra. Nossa homenagem ao Presidente do Senado, Humberto Lucena, atuan- te na Constituinte pelo seu trabalho, seu talento ¢ pela colaboragao fraterna da Casa que representa. Senhor Ministro Rafael Mayer, Presidente do Supremo Tribunal Fede- tal. Satido o Poder Judicidrio na pessoa austeta e madelar de Vossa Exce- Tencia. © imperative de “Muda Brasil”, desafio de nossa geragao, nao se processard sem 0 conseqiiente “Muda Justica”, que se instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuiczo do Poder chefiado por Vossa Exceléncia. 10 R. Inf, legisl, Brasilia a. 25 n, 100 out./dez. 1988 Registro a homogencidade ¢ o desempenho admirdvel ¢ solidario de seus altos deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, con- déminos imprescindiveis de minha Presidéncia. © Relator Bernardo Cabral foi capaz, flexivel para o entendimento, mas irremovivel nas posigdes de defesa dos interesses do Pafs. O louvor da Nagao aplaudiré sua vida publica. Os Relatores Adjuntos, José Fogaca, Konder Reis ¢ Adolfo Oliveira, prestaram colaboracdo unanimemente enaltecida. © Brasil agradece pela minha voz a honrosa presenga dos prestigiosos dignitarios do Poder Legislative do Continente Americano, de Portugal, da Espanha, de Angola, Mocambique, Guiné-Bissau, Principe ¢ Cabo Verde. Os Senhores Governadores de Estado e Presidentes das Assembléias Legislativas dio realce singular a esta solenidade historica. Os lideres foram o vestibular da Constituinte. Suas reunides pela manhd e pela madrugada, com autores de emendas ¢ interessados, discipli- naram, agilizaram e qualificaram as decisées do Plenério. Os Anais guar- darfo seus nomes e sua benemérita faina. Cumprimento as autoridades civis, eclesidsticas ¢ militares, integrados estes com seus chefes na missio, que cumprem com decisio, de prestigiar a ostabilidade democratica. Nossas congratulagGes a imprensa, ao rédio e A televisfio. Viram tudo, ouviram © que quiseram, tiveram acesso desimpedido as dependéncias ¢ documentos da Constituinte. Nosso reconhecimento tanto pela divulgacio como pelas criticas, que documentam @ absoluta liberdade de imprensa neste Pais. ‘Testemunho a coadjuvacio diuturna e esclarecida dos funciondrios ¢ assessores, abragando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e Adelmar Sabino. Agora conversemos pela tiltima vez, companheiras e companheiros Constituintes. ‘A atuagdo das mulheres nesta Casa foi de tal teor que, pela edificante forca do exemplo, aumentard a representacio feminina nas futuras eleicdes. Agradeco aos Constituintes a eleig&o como seu Presidente ¢ agradeco ‘0 convivio alegre, civilizado e motivador. Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filésofo: o segredo da felicidade ¢ fazer do seu dever 0 seu prazer. Todos os dias, quando divisava, na chegada a0 Congresso, a concha céneava da Camara rogando as béngaos do céu e a convexa do Senado ouvindo as stiplicas da terra, a alegria inundava meu coracio. Fra como ver a aurora, © mar, 0 canto do rio, ouvir os passarinhos. R. Inf. legisl, Brasilia a, 25 nm. 100 out./dez. 1988 ny Sentei-me ininterruptamente nove mil horas nesta cadeira, em 320 sessdes, gerando até interpretagdes divertidas pela ndo saida para lugares biologicamente exigiveis. Somadas as das sess6es, foram 17 horas didrias de labor, também no gabinete ¢ na residéncia, incluidos sabados, domin- gos e feriados. Politico, sou cagador de nuvens. Jé fui cagado por tempestades. Uma deles, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de gloria. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereci. Que o bem que os Constituintes me fizeram frutifique em paz, éxito e alegria para cada um deles. Adeus, meus irmdos. F despedida definitiva, sem 0 desejo de reen- contro. Nosso desejo é o da Nacao: que este Plendrio nao abrigue outra Assembléia Nacional Constituinte. Porque antes da Constituinte, a ditadu- ra j4 teria trancado as portas desta Casa. Autoridades, Constituintes, Senhoras ¢ Senhores. ‘A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inéreia ou anta- gonismo do Estado. © Estado era Tordesilhas, Rebeliada, a sociedade cmpurrou as fron- teiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo. O Estado, encarnado na metrépole, resignara-se ante a invasao holan- desa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreicio nativa de Tabocas ¢ Guararapes, sob a lideranga de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarao e Jodo Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminéncia da sociedade sobre o Estado: “Desobedecer a El- Rei, para servir a El-Rei”. O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os machados € os punhos de Placido de Castro ¢ scus scringuciros. O Estado autoritario prendeu e exilou, a sociedade, com Teotdnio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, nfo os facinoras que 0 mataram. Foi a iedade, mobilizada nos colossais comicios das Diretas-J4, que pela transico ¢ pela mudanga derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: A Nagio quer mudar. A Nagao deve mudar. A Nagao vai mudar. A Constituigéo pretende ser a voz, a letra, a vontade politica da sociedade rumo & mudanca. Que a promulgacao seja nosso grito: — Mudar para vencer! Muda Brasil! 2 R. Inf, legisl. Brasilia a. 25, 100 out./dez. 1988 Senador Avonso ARrNos PFL-RD Senhores Constituintes: Permiti que o mais idoso dos representantes do povo com assento nesta Assembléia agradega, de todo coragdo, a honra que s6 por aquele titulo Ihe foi concedida, de falar em nome dela, nesta data em que a palavra do Brasil, ao se elevar neste recinto, ressoa em todo o mundo. A experiéncia histérica brasileira em matéria constituinte € bem anti- ga. Provém da Conspiracio da Inconfidéncia, ocorrida em 1788 na Capi- tania de Minas Gerais. © Tiradentes, heréi ¢ mértir daquele grande episddio, inspirava-se em um livro francés dedicado ao estudo da Constituicio dos Estados Unidos da América, elaborada havia apenas um ano. A primeira Constituinte brasileira foi convocada pelo Principe Regente D. Pedro antes da Independéncia, por decisio de 3 de junho de 1822, € eleita pela grande maioria das Provincias. Discurso pro proferido pelo Consiitulnte AFONSO ARINOS na Seasfo solene é¢ pro- mulgagho da Constituigso da Reptiblica Federativa do Brasil de 1988. R. Inf. legisl. Brasilia a. 25 nm. 100 out./dex. 1988 13 Desde a stta instalagao, a 3 de maio de 1823, revelou-se o insandvel conflito entre a Assembléia, expresso da soberania nacional, e o Principe Regente, aferrado & tradiggo absolutista da monarquia dos Bragangas. Do dissfdio crescente resultou a dissolugdo da Assembléia, pela tropa militar, na noite de it de novembro de 1823, a chamada noite de agonia. Esta agonia da coagio militar sobre a representagao popular infelizmente néio foi a tnica na nossa histéria. A Constituinte caiu com honra, enfrentando as ameagas e acusando energicamente o Principe, inclusive com pregagdes em prol da Reptblica. principal redator do projeto foi o Deputado Anténio Carlos de Andrada, que tomou por modelo, nao mais a Constituigdo dos Estados Unidos, porém aquelas das monarquias continentais da Europa Ocidental. Esse mesmo modelo francés da Carta outorgada pelo Rei Luis XVIII, em 1814, na fase da Restauragdo pés-napoleénica, foi embutido na Carta brasileira outorgada a 25 de margo de 1824, pelo jé Imperador Pedro I. Foi redigida por pequena comissao de brasileiros ilustres, componentes do chamado Conselho de Estados, no qual figuravam diplomatas como Maciel da Costa, Marqués de Queluz; escritores como Mariano da Fonseca, Mar- qués de Maricd, autor das famosas Méximas; ou provectos juristas como Car- neiro de Campos, Marqués de Caravelas, o principal redator do documento. ‘A Constituinte republicana de 1891, na qual predominou o génio de Rui Barbosa, voltou ao modelo americano, que nunca funcioncu a conten- to no Brasil nem em nenhum outro sistema presidencialista na América Latina, devido & impossibilidade da criagdo, por costume ¢ néo pelo texto, de um 6rgo moderador ¢ constamtemente renovador como é a Suprema Corte dos Estados Unidos, Gnico pais do mundo em que o sistema presi- dencial funciona a contento. Rui Barbosa, no declinio da vida, rendeu-se a esta verdade. A terceira Constituinte, de 1934, que encerrou o longo Governo Provi- sbrio de Getilio Vargas, seguiu-se A pressio de varios setores sociais que a reclamavam desde a Revolucéo Paulista de 1932. O texto do projeto foi preparado por uma Comissio presidida pelo Ministro do Exterior, Melo Franco, ¢ composta de outros grandes nomes como Assis Brasil, Anténio 14 R. Inf. tes @. 25, 100 cut./der. 1988 Carlos de Andrada, Jodo Mangabeira, Osvaldo Aranha ¢ Oliveita Viana. © jurista Carlos Maximiliano, comentador da Constituigao de 1891, foi © relator geral. Concessdo perigosa da Comissio foi a elei¢go do Presidente da Repiblica pela Camara dos: Deputados, 0 que assegurou a Vargas a descjada continuagdo no poder eo preparo politico esmerado da Consti- tuico fascista de 11 de novembro de 1937 que morreu com a morte do fascismo no mundo. A quarta Constituinte brasileira foi a de 1946, época em que a vitéria democratica na Segunda Guerra Mundial determinou um grande movimento constitucional em toda parte. Na Europa surgiram nove Constituigées; na América Latina, doze; nos paises arabes ¢ na Asia, cinco. Ao todo, vinte e seis reordenagées juridicas estatais. Iniciow-se, nesta fase, um movimento sem precedentes no processa geral de elaboracéo constitucional, movimento este que continua a se manifestar até hoje. Como jé acentuamos em outra oportunidade: “Tem sido observado, pelos autores de Direito Constitucional Comparado, um fenémeno realmente marcante... O Direito, nas novas Constituigdes, pare- ce evoluir, em conjunto, para tornar-se mais um corpo de normas tedricas e finalisticas, e cada vez menos um sistema legal vigente ¢ aplicdvel. Por outras palavras: nunca existiu distancia maior entre a letra escrita dos textos constitucionais e a sua aplicagao”. Hoje poderiamos juntar algo de mais grave, que € 0 seguinte: a aplica- bilidade dos textos depende, paradoxalmente, da sua aplicagio. Esta situagio andmala manifesta-se fortemente no texto de 1988, confirmando-se aqui aquilo que Oliveira Viana chamou de idealismo consti- tucional. £ importante insistir neste ponto. A garantia dos dircitos individuais é cada vez mais eficaz © operativa nas Constituigdes contempordneas, mas a garantia dos direitos coletivos ¢ sociais, fortemente capituladas nos textos, sobretudo nos pafses em desenvolvimento ¢, particularmente, nas condi- ges do Brasil, torna-se extremamente duvidosa (para usarmos uma expres- R. Inf. legis! Brosilia a, 25 on, 100 out./dez. 19% so branda), quaisquer que sejam as afirmacSes grificas existentes nos documentos, como este que estamos, hoje, comemorando. Afirmar o contré- rio € ingenuidade, ilusio, ou falta de sinceridade, quem sabe de coragem. Direito individual assegurado, direito social sem garantia: eis a situagio. © Mandado de Injungio vai ser o instrumento dessas experiéncias. © desejével € que o Supremo Tribunal Federal, preservando suas tradi- ges de competéncia, diligéncia e integridade, se esforce para encaminhar soluges vidveis e realistas, ou para oferecer interpretagies aceitéveis as dificuldades, bem como rumos para o enfrentamento gradual dos problemas que vao aparecer entre a Jetra do texto e sua implementagdo. Recordemos, ainda uma vez, que este problema no é s6 nosso, no Direito Constitucional moderno. Tudo decorre do desajustamento entre 2 generosidade da aspiragdo politica ¢ a dificuldade da sua implementagio juridica, Somos, pois, a quinta Assembléia Constituinte brasileira. Lancemos um olhar retrospectivo sobre seus trabalhos, que hoje se encerram, em to consagradora ceriménia. A idéia da Constituinte ja se manifestava desde o final da década de 70, através de otganizagdes depois transformadas em partidos politicos. Em 1984, formou-se a Alianga Democrdtica, que indicou 0 nome do saudo- so Tancredo Neves para a Presidéncia da Repdblica. Em 1985, jé eleito pelo Colégio Eleitoral, o Presidente Tanctedo visitou o presente orador, no Rio, eo convidou para presidir uma Comisso incumbida de redigir 0 Anteprojeto da Constituigéo. Formada ela, com personalidades eminentes nas dreas juridica, politica, literéria, cmpresarial, trabalhista ¢ cientifica, iniciou seus trabalhos em agosto de 1985. Com o dramiético falecimento do Presidente Tancredo Neves, assumiu o Presidente José Sarney, que manteye a conyocacao. Na sede do Rio, a Comissao se organizou em varias subcomissées inter- nas e formou comités regionais, fora do Rio, que muito adiantavam sua tarefa. Concluidos os trabalhos em setembro de 1986, foi o texto final entregue ao Presidente Sarney, que preferiu nfo remeté-lo A futura Assem- bléia, embora Ihe dedicasse belo e generoso discurso. 77 R. Inf. legisl. Brasilia a. 25 mn. 100 out./dex. 1988 A Constituinte foi eleita em novembro de 1986 ¢ instalada em feve- reiro de 1987. Em junho desse ano, foi ctiada a Comissio de Sistematiza- do presidida pelo mesmo constituinte que chefiara a Comissio lembrada por Tancredo Neves. Aos admirdveis ¢ dedicados membros dessa Comissio coube © preparo final do Projeto da Constituigdo, conclude no més de novembro e remetido ao plendrio, que o discutiu, enriqueceu-o e finalmen- te 0 aprovou por consagradora maioria. Cumpre realgar, finalmente, a colaborago direta do pove no processo politico, no s6 através de centenas de propostas remetidas & Comissio de Sistematizagio, vindas até do exterior, como também pela agdo de grupos variados de brasileiros, que atuavam diretamente: sindicatos, empre- sdrios, militares, professores, mulheres, indios e negros, Era estimulante ¢ comovente sentir a mobilizagao direta do povo, desejoso de colaborar na obra de seus representantes. Senhores Constituintes: Conclufda esté vossa tarefa preferencial, mas outro dever se abre 20 vosso cuidado € esforgo. Este dever indectindvel & sustentar a Constituigao de 1988, apesar de quaisquer divergéncias com sua feitura; € colaborar nas leis que a tornem mais rapidamente e mais eficazmente operativa, apesar das dificuldades referidas; é colaborar na sua defesa contra a onda que se avoluma e propaga no seio do povo, e que visa a atacéla tio desa- bridamente, que esses ataques passaram a envolver toda a classe politica, Hoje se esté falando dos politicos como se constitufssem um grupo especi- fico de aproveitadores hedonistas e mal intencionados. F indispensavel determonos sobre este aspecto da atualidade nacio- nal, pois ele envolve graves conseqiiéncias. Comecemes por lembrar que Ago Politica corresponde exatamente & agio de governar as coletividades sociais e nacionais integradas no Estado. Se hi Estado (e ele existe desde a antigilidade grega), ha necessariamente Politica, Na Grécia antiga o Estado era a cidade, como a Atenas de Aristé- teles ou a Esparta de Licurgo; ¢ a Politica era o governo da cidade. Em Roma, 0 Estado abarcou todo o mundo conhecido, e o governo fez politica R. Inf, feoisl, Brosilio a. 25 n, 100 out./dex. 1988 W durante séculos, primeiro com os Reis, depois com a Repiblica, depois com 0 Império. Na Idade Média nao havia Politica porque néo havia Estado, nem propriamente comunidade social, senfio que populagio escassa de senhores e servos disseminados em volta de castelos em terras que nfo eram terti- térios. Com o Renascimento renasce o Estado, ¢ com ele a Politica, a terr{- vel “politica” ditatorial doutrinada por Maquiavel para os Médicis de Flo- renga. Senhores Constituintes, pensemos seriamente neste movimento, talvez nao intencional, mas seguramente orquestrado, que visa a desmoralizar a classe politica. Lembremos aos brasileiros de boa fé que Politica é exata- mente Governo, e que por detrés da campanha insidiosa que atinge a milhdes de brasileiros de boa fé, pode haver a intengfo de acabar nao com a Politica, que nfo acaba nunca, nem pode acabar, mas acabar com as liberdades que esto garantidas na Constituiggo que elaboramos, como nunca estiveram garantidas em nenhuma outra. Derrubar a Constituigéo, exccrar os politicos, é derrubar liberdade para entregar a Politica atual a outra politica, isto é, a outto tipo de governo nao declarado, que teria em méos a sorte ¢ 0 destino do povo, & com ele o proprio futuro da Patria. O desprezo @ Politica nfio € a sua supressiio, pois ela se confunde com o Governo. Que haveré por detrés de tudo isso? Seré que estamos ameagados de outro tipo de “politica”, ou seja, as ditaduras civis e militares que tém sido a agonia secular da nossa Repablica? Senhores Constituintes de hoje, senhores Congressistas de amanha: Vosso dever fazer Politica, isto €, defender ¢ praticar a Constituigao Brasileira em vigor, acreditar nela, convocar a Nagao para defendé-la, se estiver em risco, reagir contra esses riscos disfargados. Em suma, praticar e defender a Liberdade. Fazer Politica, é honrar nosso mandato, sustentar ‘nosso trabalho, enobrecer a meméria do nosso tempo. 18 R. Inf, legisl, Brasilia o, 25 9, 100 out,/dex. 1988

You might also like