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14.

04. 30.
que velha que nada,
vidas itinerantes: em busca na medida! almas das ruas
do “respeitável público” A Kombi chega aos 60 anos e começa trocar o As personagens que dão vida às ruas.

.33
mercado automobilístico para se tornar quartos,
De cidade em cidade: a vida daqueles que levam
bibliotecas e casas.

.16
alegria e diversão.

.07 altos voos, com os pés


esportistas sedentários pequenos partidos, no chão
grandes dificuldades Aviões em miniatura: brincadeira para
Esportistas que não suam a camiseta. Um panorama sobre os partidos políticos gente grande.

10. 35.
pequenos em Santa Maria.

18.
notas de uma vida errante
no buraco da jogatina (des)agradável
Do glamour dos salões de jogos aos cubículos sub-
terrâneos da cidade: descubra onde as pessoas
.22 .36
vão jogar as máquinas caça-níqueis hoje.
imperadores de um reino talentos tipo exportação
.12 de aluguel De Santa Maria para o sucesso: a trajetória de
Memórias de ontem e de hoje no Imperial Hotel.
pessoas que passaram por aqui e que alcançaram
mar de apostas
25.
o reconhecimento nacional e internacional.

38.
Entre uma aposta e outra, a FDP visita o pôquer.

13. meu corpo, meu útero,


alice no país de tim burton
meu sangue
aumente seu pênis em .26
duas semanas .39
muito prazer, sexo luiz fortes: uma história
Pensar, falar, fazer: práticas sexuais menos comuns orquestrada
02 revelam desejos de muitos, coragem de poucos.
fora de pauta no 8 / junho de 2010
A revista Fora de Pauta chega ao seu núme-
ro oito buscando manter a linha editorial criada
em 2001: tratar de diferentes assuntos com viés
jornalístico interpretativo e opinativo, primando
pelo desenvolvimento de pautas e enquadramen-
tos de interesse público que não costumam estar
presentes nos veículos de comunicação tradicio-
nais. Já quanto ao seu visual, não é possível di-
zer o mesmo, pois a nova marca e o novo projeto
gráfico, desenvolvidos em conjunto com a Facos
Agência – ficam aqui os agradecimentos – confe-
rem identidade à revista e reiteram sua proposta

Edição 08 / junho de 2010


editorial.
Editar uma revista-laboratório com o ob-
jetivo da Fora de Pauta é o sonho de grande par-
te dos profissionais do jornalismo. Busca-se, com
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) ela, conciliar liberdade de escolha de pautas sem
Centro de Ciências Sociais e Humanas (CCSH) a pressão do mercado; liberdade de redação, sem
Curso de Comunicação Social - Habilitação Jornalismo a necessidade de estabelecer limites rígidos para
Laboratório de Jornalismo Impresso III com a literatura; liberdade de interpretação,
Professor responsável: Marília Denardin Budó sem a perseguição do fantasma da objetividade;
DRT/RS 12238 liberdade de opinião, sem a limitação a matérias
Editor: Marília Denardin Budó informativas.
Revisão de texto: Felipe Viero, Gabrielli Dalla Mas quanto maior é a liberdade, maior
Vechia, Isabel da Silveira, Ivan Lautert, Laura
também é a responsabilidade. O produto aqui
Gheller, Luiz Henrique Coletto, Milena Jaenisch,
Juliana Frazzon apresentado é o resultado de uma série de es-
Diagramação: Camila da Costa, Letícia Gomes, colhas perante dilemas de diversas ordens. Como
Maiara Avarez, Paolla Wanglon, Paula Pötter, apresentar em palavras assuntos que a moral do-
Ramon Pendeza minante destinou ao silenciamento? Qual postura
Revisão de diagramação: Charles Almeida, Daniel deve ser adotada na interpelação de entrevista-
Isaia, Eduardo Covalesky, Henrique Coradini, João dos em assuntos sobre os quais os preconceitos
Pedro Amaral, Manuela Ilha, Sarah Quines, Saul socialmente construídos costumam sobrepor-se?
Pranke Como conciliar liberdade de informação e direitos
Edição de imagens: Andressa Quadro, Gabriela
de personalidade dos atores e fontes envolvidos
Loureiro, Nandressa Cattani, Rafael Salles
Projeto gráfico: Facos Agência numa reportagem? Como falar de condutas proibi-
Imagem de capa: Paolla Wanglon das pela lei sem adotar uma postura acusatória?
Imagem de contra-capa: Marcelo de Franceschi Essas escolhas poderão ser avaliadas pelo
Tiragem: 250 leitor a partir de agora. Fica o convite para o en-
Impressão: Imprensa Universitária vio de e-mails com sugestões, críticas e comentá-
Data de fechamento: junho de 2010 rios que auxiliarão no constante aprimoramento
foradepauta.facos@gmail.com da revista.
03
fora de pauta no 8 / junho de 2010
vidas itinerantes: em busca do “respeitável público”
Por: Isabel Silveira e Milena Jaenisch Fotos: Marcelo de Franceschi

Mesmo com tantas outras tes tínhamos muita responsabili-


formas de lazer dos dias atuais, dade com eles, o transporte era
o amor pela arte circense conti- complicado e gastávamos muito
nua atravessando gerações. Esse para alimentá-los”, explica Lu-
é o caso do Circo Metropolitano, ciano.
fundado pelo artista circense Antes de se instalar em
Adão Fermino, 65, na década de uma cidade, o responsável pelo
1960. Ele é um dos raros circos circo tem que ir uma semana
itinerantes no Rio Grande do Sul antes para ver terreno, pedir au-
e percorre as cidades gaúchas torização na prefeitura e alvará
atraindo o “respeitável públi- dos bombeiros. É necessário um
co”. engenheiro para avaliar a luz,
Luciano Fermino, 34, li- pois deve-se pedir para que ela
dera com o pai o Metropolitano. e a água sejam ligadas. Depois
A família tem mais duas com- de tudo pronto, é necessária a
panhias, uma em Santa Catari- fiscalização dos bombeiros. São
na e outra no Paraná, que são necessários três dias para se ins-
lideradas pelos outros dois filhos talar e um para se desinstalar. O
de seu Adão. Ele também é o circo tem também um engenhei-
apresentador do espetáculo, e ro fixo, responsável pelo grupo.
Adão é o palhaço Linguiça. Ge- O circo está em atividade
ralmente, o circo fica dez dias há 25 anos e já está sendo repre-
em cada cidade. A escolha do sentado também pela terceira
próximo destino depende sem- geração, com a filha de Luciano,
pre da região; se ela está fraca, Ellen Fermino, 9. A menina faz
eles mudam. “A rotina nunca é trapézio, argola e contorcionismo
Sinônimo de alegria, o circo sempre repre- a mesma, mudamos sempre de juntamente com a mãe e sob os
sentou o encanto, o sonho, a magia. É uma das cidade e compromissos. Atual- olhares da irmã mais nova Tayla,
mais antigas e completas manifestações popu- mente, são cinco famílias que 2. “Eu aprendi a fazer as coisas
lares e artísticas. Geralmente é uma companhia trabalham conosco, e são con- brincando. Meus colegas da es-
itinerante que reúne artistas de diferentes espe- tratados. A lei que proíbe ani- cola disseram que vão vir no cir-
cialidades como malabarismo, acrobacia, con- mais de circo no Rio Grande do co me ver e pegar autógrafo de
torcionismo, equilibrismo e ilusionismo sob uma Sul mudou nossa rotina, mas mim”, diz a menina que começou
grande lona colorida, apresentando-se de cidade acredito que melhorou depois a se apresentar no picadeiro com
em cidade. que tiramos os animais, pois an- Ellen, 9 anos: a terceira geração cinco anos de idade.
04 circense.
fora de pauta no 8 / junho de 2010
Ellen chega a passar por 25 escolas dife- parte dos municípios e estados, o que acarreta o diz o apresentador do espetáculo. O circo itine-
rentes em um ano. As escolas são obrigadas a re- pagamento de altos impostos, além do aluguel e rante, hoje já tão raro, precisa superar limites e
ceber as crianças de circo. A professora Lisiane da percentagem cobrada nos ingressos, todos os inovar para manter o interesse do público pelo
Silveira teve um aluno circense, do 4º ano do En- problemas são superados ao abrir as cortinas. “O espetáculo de alegria e de sonho.
sino Fundamental, e conta que é um desafio tan- sorriso de uma criança, não tem dinheiro que pa- Roda-gigante, montanha russa e carrosel: a ro-
to para o professor quanto para o aluno. “É uma gue, é muito gratificante. Você está lá, de palha- tina itinerante continua
grande riqueza, e ao mesmo tempo, um desafio. ço, e ao ver e ouvir a risada inocente das crianças,
Em pouquíssimo tempo, cerca de uma ou duas se- isso nos dá reconhecimento ao nosso trabalho, dá Não são apenas os circenses que vivem
manas, o professor precisa detectar o nível em força e ânimo porque não é fácil a nossa rotina”, como nômades. Luzes, gritos e correria: o parque
que o aluno se encontra dentro do ano que ele
está frequentando. E o aluno vai adaptando-se ao
que lhe é apresentado. A riqueza deve-se à inte-
ração cultural que o aluno desperta na turma.”
Em relação às moradias dos integrantes do
circo, os ônibus são casas em quatro rodas. Há
tudo o que eles precisam: quarto, cozinha, ba-
nheiro, caixa d’água. Mas também possuem uma
casa fixa. Luciano diz que eles possuem uma casa
em Lajeado, mas que não conseguem ficar muito
tempo, porque para eles o circo significa mais do
que uma forma de viver, é amor. “Temos circos
pequenos, mas com atrações diversificadas. Nos-
so trabalho é agradar ao público. Para mim, tra-
balhar com o circo é muito gratificante, porque
nos dias de hoje, em que há tantas preocupações,
conseguimos trasmitir alegria e fazer com que o
público esqueça de tudo na hora do espetáculo.
Ser um Circense é um dom”, afirma Luciano.
A maquiagem e os figurinos são feitos pelos
próprios artistas. Cada um se arruma no próprio
ônibus, que é o camarim de cada um. As roupas
são confeccionadas e bordadas pelos circenses ou
ainda compradas em lojas especializadas de São
Paulo.
“Os treinamentos e ensaios são feitos ge-
ralmente antes dos espetáculos, para aquecer”,
explica Luciano. Segundo ele, o treinamento é
mais intenso quando crianças, em torno de 40 mi-
nutos ou uma hora por dia, depois é deixado mais
ao natural, pois o próprio espetáculo é o ensaio.
Apesar da constante falta de incentivo por

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de diversões chegou à cidade. A temporada de es- Santos, 49. O cenário foi o parque de diversões do
tadia é aguardada, já que nunca se sabe ao certo pai de Tânia, no qual Cleomar trabalhava. Hoje
quando ela acontecerá. Para quem anda de roda eles têm três filhos, dois homens e uma mulher,
gigante ou de montanha-russa, lá de cima pode entre 18 e 23 anos, que se criaram em meio à fas-
não imaginar o que é envolvido até tudo estar cinação dos parques. De acordo com Cleomar, os
pronto para fazer a diversão do público. filhos gostavam do dia-a-dia que tinham, mesmo
Clécio Scherer, 58, é um exemplo de quem tendo que trocar de colégio a cada 30 dias. E é
sabe o que é passar a vida pelas estradas. Moto- com um sorriso de orgulho estampado que ele, o
rista há 39 anos, passou pelo menos vinte destes único da família a manter a vida itinerante, conta
puxando carretas de um ou de dois eixos, que que os três filhos possuem ensino médio completo
comportam os atrativos dos parques. Isso implica e já estão encaminhados profissionalmente.
ficar até 30 dias sem ver os familiares na cidade Em uma volta de carrossel, é possível ob-
de Cruz Alta, e a saudade bate, especialmente servar a diversidade de pessoas que frequentam
do casal de filhos. Mesmo assim, o simpático mo-
torista gosta da vida que leva, afinal, foi dessa
forma que conseguiu conhecer tantas pessoas e
localidades diferentes.
Os desenhos que colorem os brinquedos
manifestam a alegria por meio da arte. Carros,
palhaços, pessoas dançando e bichinhos são al-
gumas das ilustrações realizadas por Zigomar de
Paula Guedes, 36. O ilustrador reúne tudo o que
está na moda da gurizada e transforma na arte
dos parques. O trabalho começa pela noite, pois
as ilustrações são copiadas em lâminas transpa-
rentes, e, por meio de um retroprojetor, ele risca
o desenho nos painéis para, no outro dia, realizar
a pintura propriamente dita. A rotina artesanal é
realizada de terça à sexta-feira há 15 anos, de ci-
dade em cidade, o que gerou cansaço no artista,
que também ajuda a cuidar da parte elétrica dos Clécio: nas estradas há 39 anos.
brinquedos. Zigomar pretende parar em breve
com a vida nômade que leva, principalmente por um parque de diversões. Crianças, adolescen-
causa do filho Lucas, de um ano e dez meses, e tes, adultos com bebês de colo, idosos, todos
da esposa Suelen Goulart Guimarães, 26. Os três em busca de entretenimento. Aos que ficam de
moram em um trailer que lembra uma residência coadjuvantes nesse cenário, aos trabalhadores
fixa, já que na entrada possui um varal com rou- que viajam longas distâncias e que possibilitam o
pas estendidas e algumas cadeiras expostas. espetáculo acontecer, resta amenizar a saudade
Histórias de amor também acontecem nos com a felicidade observada nos rostos e com as
bastidores de parques de diversões. Foi o caso de boas lembranças levadas de cada lugar.
Cleomar Antônio Radaelli, 83, e Tânia Crisel dos

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craques do
sedentarismo
Por: Henrique Coradini e João Pedro Amaral Fotos: Marcelo de Franceschi Ilustração: Rodrigo Bitencourt

Esportes de contato, de força ou que fazem suar? Que nada! Santa Maria
mostra-se um polo de esportes em que os músculos não são prioridade.
– Eu já deixei até de f... pra jogar futebol físico, podem ser julgadas como brinca-
de mesa. deiras de criança ou simples hobbies por
– Mas então isso faz tempo, hein, ô Beti- quem é leigo. Entretanto, são sim consi-
nho! deradas esportes.
Foi neste clima de descontração que a É o que afirma o coordenador do
Fora de Pauta foi recebida no salão da Associa- Curso de Educação Física (Bacharelado)
ção Atlética Banco do Brasil (AABB) de Santa Ma- da UFSM, Rosalvo Luis Sawitzki. Segundo
ria, onde se reúnem amigos que têm em comum ele, existem vários conceitos de espor-
a paixão pelo futebol de mesa. Com os ouvidos te, mas um dos mais difundidos é aquele
atentos ao jogo Riograndense F.C. x Gaúcho de que o define como uma atividade física
Passo Fundo e os olhos grudados no certame de ou mental que tem regras uniformes no
seus botões, os praticantes do esporte, a maioria mundo inteiro. “Da mesma forma como
já veteranos, demonstravam levar os seus jogos ela [a prática esportiva] é jogada no Ja-
tão a sério quanto um técnico à beira do grama- pão, ela é jogada aqui”, afirma Rosalvo.
do. Então, atividades baseadas mais em es-
Futebol de mesa é apenas um dos espor- forço mental e/ou coordenação motora
tes “sedentários” – ou que aparentam sê-lo – que também podem ser consideradas espor-
coleciona adeptos, e até títulos, em Santa Ma- tes.
ria. Essas atividades, que não priorizam o esforço Em termos de esporte, Santa Ma- Embate de artilheiros: na mesa, Riograndense, de Glênio (à direita), e Vasco, de

07
Beto (à esquerda) jogam de igual para igual.

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ria foi muito além dos “grandões”, como futebol, esporte sedentário também demanda um bom clusão mostra-se em uma partida típica das reuni-
vôlei e basquete. Por trás disso, os esportes se- preparo físico. Por conta do peso dos bolões, em ões dos enxadristas: um jogo entre um jovem de
dentários não só vêm reunindo muitos adeptos, torno de 11 kg, as partidas dispensam as sessões 16 anos e um octogenário.
como apontando nomes no cenário nacional e até de academia da atleta. Tanto no xadrez, como na bocha e no bo-
mundial – além dos títulos que vêm sendo con- Prima mais pobre do curling (espécie de lão, não é estranha a presença de marmanjos.
quistados. bocha jogada no gelo que ficou famoso nos úl- Porém, vê-los jogando ioiô pode causar impacto,
timos Jogos de Inverno), e mais adequada às al- por ser essa prática geralmente associada a brin-
tas temperaturas brasileiras, a bocha também já cadeiras infantis. Quando se pensa em ioiô, não
trouxe títulos do outro lado do Atlântico. O santa- há como não se lembrar dos simplórios modelos
mariense João Carlos Oliari chegou a ser campeão da Coca-Cola. Mas poucos sabem que existem tor-
mundial, em 1994 na Suíça, com o time brasileiro neios organizados, e ioiôs de alta tecnologia. No
de bocha, além de colecionar títulos citadinos, Brasil, há até uma “segunda ABI”, a Associação
estaduais e nacionais. Tal qual um Cabañas das Brasileira de Ioiô, órgão não oficial que divide a
canchas, Carlos abandonou o esporte por motivos sigla com a Associação Brasileira de Imprensa.
de saúde. Um problema na coluna, muito menos Orlando Fonseca Júnior é um dos poucos
grave do que o tiro que o futebolista paraguaio representantes santa-marienses do esporte. Ele
levou na cabeça, é bem verdade. Mesmo possuin- começou no ioiô em 2003. Logo em seu primeiro
do uma coleção de títulos de causar inveja aos campeonato, um torneio regional realizado em
“gigantes” e aos “imortais”, João Carlos não dei- Porto Alegre em 2005, Orlando ficou em sexto lu-
xa a fama subir à cabeça. “Era só um hobby”, gar, jogando ao som da música Get Down, do nem
afirma sem demonstrar arrogância alguma. tão saudoso Everlast. Após esse torneio, Orlando
Diferente dos barulhentos treinos de bo- passou a ser figurinha carimbada em eventos den-
cha e bolão, quem entra nas silenciosas reuniões tro e fora do estado – fosse participando deles ou
dos enxadristas santa-marienses, no Sebo Café, apenas os acompanhando, já que, depois de um
não imagina que se presencia um treino intensivo tempo, o ioiô deixou de ser um esporte para ser
de um esporte. Todos os dias, por volta das 18 também um círculo social. Hoje Orlando Fonseca
horas, enxadristas da cidade reúnem-se no sebo é um dos moderadores do fórum online da ABI.
para treinar. Quando o local fecha antes de sa- As amizades formadas por meio desses es-
Sem suar a camisa ciada a vontade de jogar, os enxadristas vão para portes foram troféus conquistados por todos os
a sede do Santa Maria Xadrez Clube, na Casa de jogadores “sedentários”, a exemplo dos protago-
A figura da estudante de Administração Ra- Cultura de Santa Maria. O Clube, criado em 1921, nistas do diálogo do início da reportagem, Beto
íssa Patias é mais próxima de uma protagonista da é uma das associações de xadrez mais antigas do Ribeiro e Glênio Moraes, botonistas. Eles são ape-
novela Malhação do que do estereótipo atribuído Brasil, criada sete anos antes do primeiro campe- nas dois dos vários amigos que se reúnem na AABB
a jogadores de bolão. “Quando a gente fala em onato brasileiro. para jogar futebol de mesa. Apesar da informali-
bolão, todo mundo associa a velho”, admite Raís- O xadrez não demanda um bom preparo dade dos encontros, os jogos são levados a sério.
sa. Ela chegou a ficar em 4º lugar no campeonato físico, por isso é um esporte que pode ser prati- Beto, por exemplo, anota todas as estatísticas de
mundial de bolão na Alemanha, em 2008, alcan- cado por todos. “No futebol, tu pegas uma crian- suas partidas desde a década de 1970. Na sema-
çando uma média jamais conquistada por atletas ça e ela fica no banco, dá uma certa frustração; na da apuração de nossa reportagem, ele estava
brasileiros de sua categoria. já no xadrez, não. No torneio, todo mundo joga” prestes a fazer o décimo milésimo gol da carrei-
Apesar de o bolão priorizar a capacidade explica o presidente do Santa Maria Xadrez Clube ra. O gol 10.000 foi feito no dia 10 de abril pelo
de concentração e a coordenação motora, esse e professor de xadrez João Batista Cezar. Essa in- botão-zagueiro vascaíno Alan numa partida que

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acabou 1x1, justo contra Glênio. Quase dez vezes jogar bocha muitas vezes. Já para João Batista tanto atividades mentais e motoras como exer-
mais que o baixinho Romário – isso que Beto nem Cezar, aconteceu o inverso: ele levou o xadrez cícios físicos. “O excesso de atividade física é
precisou jogar em categorias inferiores. Beto re- para o serviço. Ele incentiva crianças em festivais prejudicial, bem como a não prática também. O
cusou o desafio de um dos repórteres, preferindo de xadrez e já participou de campeonatos em ou- equilíbrio é fundamental”.
fazer história com um oponente à altura dele. tras cidades, como em Caxias do Sul, no Festival Equilíbrio que boa parte dos atletas in-
O futebol de mesa é jogado no Brasil de Pan-Americano de Xadrez. Contudo, o professor terpelados afirmaram alcançar. Em sua maioria,
várias maneiras, e o Rio Grande do Sul tem uma de xadrez diz que a maior dificuldade é a falta de os atletas afirmaram também praticar esportes
regra específica, a regra gaúcha, baseada em um apoio e patrocínio. A administração pública teria “grandões”. Mesmo estando um tanto quanto
toque para cada jogador. Por causa disso, os cam- prometido realizar um torneio grande em maio fora de forma, Orlando fez questão de nos mos-
peonatos dos quais eles participam normalmente deste ano. “Os caras conseguem pa-
restringem-se ao Estado, como o campeonato em trocínio para balonismo, pra mim um
Uruguaiana em que Beto esqueceu, na rodoviária, esporte de elite, e para o xadrez, es-
seu artilheiro e seu celular. “Ele ligava no celu- porte de inclusão, não”. – diz João.
lar para ver se o botão atendia”, diz Glênio aos Já Orlando é menos afeito a sa-
risos. O bom humor dos “técnicos” entrega o tom crifícios. Quando contamos a história
descontraído dos encontros. De fato, eles consi- do jogador de futebol de mesa, res-
deram o futebol de mesa uma terapia: “A gente pondeu rindo que nunca deixou o ioiô
vem pra cá, brinca, conversa” – fala Glênio. atrapalhar sua vida pessoal, profissio-
nal e sexual. O verdadeiro gasto que
Em nome do Esporte ele tem na prática desse esporte é o
preço do equipamento: o ioiô preferido
Deixar de f... é apenas um dos diversos sa- dele custa 150 dólares. Porém, Orlan-
crifícios que esses atletas sedentários já fizeram do não se importa: “Cento e cinquenta
por seus esportes. Raíssa deixou de fazer as úl- dólares não é caro para um hobby”.
timas questões da prova do 3º ano do PEIES para
jogar a final do campeonato estadual. “Marquei Sedentarismo também é saúde
as respostas todas na C e ‘voei’ para cá [Clube
Dores]” – confessa. Afora esse sacrifico, Raíssa Apesar da imagem pejorativa
treina de duas a três horas por dia, com direito que o sedentarismo possui, não é só
a um intensivo quando um campeonato se apro- de esforço físico que se plenifica o
xima. Já no que se refere aos gastos, ela tem os bem-estar. Os diversos casos de mor-
custos de viagens e equipamentos pagos pelo Clu- te no futebol estão aí para provar que
Através do ioiô, Orlando mantém contato com praticantes do Brasil inteiro.
be Dores. Atualmente, entretanto, Raíssa divide esforço físico não é, necessariamente,
as canchas do Clube Dores com os operários, pois sinônimo de saúde. Praticar ioiô enquanto se olha trar uma lesão na panturrilha (tal qual um tro-
elas não foram aceitas pela Confederação Brasi- televisão ou jogar futebol de mesa escutando a féu de guerra) advinda de uma de suas aventuras
leira de Bolão e Bocha (CBBB) e estão passando partida do seu time é, sim, um exercício benéfico desportivas. Apesar de o ioiô ser um esporte bem
por reformas. que desenvolve a parte cognitiva do cérebro. menos perigoso, o próprio Orlando já testemu-
João Carlos, mesmo considerando a bo- Mas também é fundamental não se deixar nhou uma manobra desastra que custou o dente
cha como um hobby, já deixou de fazer coisas levar pelos prazeres do sedentarismo. A falta de de um amigo. Mas ele nem se importa: são con-
importantes em prol do sedentarismo esportivo. esforço físico pode ser prejudicial. Segundo o tratempos inevitáveis na vida de um atleta, seja
Ele confessa que colocou o serviço de lado para professor Rosalvo Sawitzki, o ideal seria praticar ele sedentário ou não.

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fora de pauta no 8 / junho de 2010
no buraco da jogatina
Por: Gabriela Loureiro Ilustração: Rodrigo Bitencourt

“Só o jogo não reconhece remitências: com anos atrás, aconteciam shows de punk e hardcore. doso tenta, inutilmente, dissipar a fumaça dos ci-
a mesma continuidade com que devora as noites As pichações se sobressaem por todos os lados, e garros dos jogadores, que se apinham na pequena
do homem ocupado e os dias do ocioso, os milhões assinaturas nos pilares e nas paredes remetem ao sala para jogar nas máquinas. Onze pessoas estão
do opulento e as migalhas do operário, tripudia movimento Anarquista. disputando os sete computadores adaptados ao
uniformemente sobre as sociedades nas quadras Uma lâmpada pendurada no teto ilumina sistema de jogatina, enquanto uma senhora, com
de fecundidade e de penúria, de abastecimento e o local de aparência decadente, com pedaços seus quarenta anos, troca notas, retira o dinheiro
de fome, de alegria e de luto.” (*) de madeiras e painéis espalhados pelos cantos. ganho das máquinas, serve cafezinho ou suco de
No centro de Santa Maria, entre o movimen- Saindo da sala, há um ambiente aberto e escuro. laranja e joga conversa fora com os clientes.
to incansável de milhares de passos, encontra-se Dobrando à direita, existem duas portas antigas, Os clientes se conhecem entre si, e algumas
um submundo pouco conhecido. Para desbravá-lo, uma de frente para a outra, com as fechaduras senhoras torcem umas pelas outras. A amizade e
é preciso “cair em um buraco”, como em Alice no corroídas pelo tempo e pelos trancamentos. Se a socialização, aliás, são dois motivos apontados
País das Maravilhas, e penetrar em um mundo de dobrar à esquerda, chegará a um botequim co- por duas senhoras como fundamentais para se ir
fantasias. Porém, esse buraco não é tão fabuloso mum, com paredes azul-celeste, televisão pen- “à jogatina”.
quanto o do filme. durada na parede, mesa de sinuca, variedade de – A solidão é difícil, a gente se aposenta, é
A entrada é uma porta delgada que abre cervejas baratas e um vidro de ovos de codorna viúva, os filhos mudam-se e vão trabalhar... A gen-
espaço para uma escada pouco comprida, de de- em conserva. te precisa de alguém pra conversar, diz M., que
graus irregulares, que, em analogia aos objetos tem jogado menos ultimamente devido à perse-
de Alice, parece dizer “me reforme”. Quando se Como uma reunião de amigos guição da família.
chega ao final da escada, depara-se com uma sala Cada um tem também o seu próprio “man-
que realmente parece com a de uma reforma que Até então, o ambiente corrobora com a tra da sorte”. W., um homem com seus trinta anos,
foi interrompida há algum tempo. É um daqueles ideia atual de transgressão e obscuridade liga- por exemplo, recita para a máquina “Vem pro ti-
porões de casas antigas, que perdeu o significado da a jogos de azar. Entretanto, quando se entra tio! O titio te ama!”. Ele refere-se aos animais
depois da reformulação de sua parte superior. em uma das primeiras portas antigas, depara-se que aparecem no jogo. No monitor da máquina,
Dois pilares de concreto sustentam as duas – quem diria – com um ambiente familiar. Lá, cin- existem cinco colunas e três linhas, totalizando
lojas de comércio que estão hoje onde, há 50 anos, co máquinas “caça-níqueis” e duas “videobingo” quinze animais que aparecem em cada aposta.
era a residência dos Gai, uma família tradicional estão dispostas entre quatro paredes pintadas de Cada animal possui um valor e se eles aparecem
de Santa Maria. Mas o que se vê na primeira sala roxo que se encerram em um cubículo. A única um ao lado do outro, o jogador ganha créditos.
do porão são os resquícios de um bar onde, quatro janela do local está fechada. Um ventilador rui- Dependendo do cenário (o qual o jogador pode
10 fora de pauta no 8 / junho de 2010
escolher), os animais variam, como em um jogo co ou acessível ao público, mediante o pagamento
infantil. Dentre os temas: pantanal, Halloween e de entrada ou sem ele”. E por que as máquinas
Amazonia King (vulgo Tarzan), W. escolheu o pri- caça-níqueis são consideradas jogos de azar? Por-
meiro e torcia para que o elefante – animal de que, ainda de acordo com o artigo, jogos de azar
maior valia – aparecesse. Um senhor de calças e são “o jogo em que o ganho e a perda dependem
moletom do Internacional, aparentes 50 anos, a exclusiva ou principalmente da sorte”.
duas máquinas de distância de W., brinca com o Quanto a isso, não há do que duvidar:
próprio azar e com o de seu companheiro, dizendo qualquer um que já tenha jogado nas máquinas
“a essa hora o elefante tá no circo!”. de caça-níqueis sabe que basta apertar alguns bo-
tões mecanicamente para ganhar – ou perder – as
Distração que vicia apostas.
As operações para apreensão de máquinas
– Ah, eu era viciada, era uma distração pra caça-níqueis e de fechamento de bingos lideradas
mim, um hobby, porque eu morava sozinha, não pela Polícia Federal intensificaram-se em 2004,
tinha o que fazer de tarde, aí comecei a ir, um dia quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva
sim e o outro também, desabafa Dona A., 76 anos, editou a Medida Provisória 168, determinando o
que descobriu a máquina caça-níquel em 2007 fechamento de bingos em todo o país. Então, de
através de uma amiga, mas parou de jogar em salões luxuosos repletos de equipamentos, com
2009, quando os estabelecimentos que dispunham o ar glamoroso do gambling de Hollywood e com
de tais aparelhos pararam de funcionar à tarde. grandes janelas de vidro abertas durante o dia,
Acostumada a jogar o jogo do bicho há pelo as máquinas caça-níqueis foram parar em cubícu-
menos 50 anos, não tardou muito para Dona A. se los, escondidos em ruínas, que só abrem durante a
viciar também no “caça-níquel”: noite. O próximo passo seria a extinção dos jogos
– Eu comecei colocando dois reais e usava de azar?
o crédito que vinha. Aí comecei a botar cinco, ou É o que espera grande parte dos juristas
vai ou desce! mais renomados do país, que pensam que o “O
Ela afirma que nunca gastou mais que vinte jogo, o grande putrefator, é a diátese cancero-
reais em uma tarde, porém, quando se começa a sa das raças anemizadas pela sensualidade e pela
jogar, é muito fácil perder dinheiro. Existem casos preguiça; ele entorpece, caleja, desviriliza os po-
de pessoas que ganham dois mil reais em uma jo- vos, nas fibras de cujo organismo insinuou o seu
gada, mas também em que a pessoa perde muito germe proliferante e inextirpável” (*). Do outro
mais, inclusive o autocontrole. lado do níquel, estão idosos que não veem male-
fício algum em gastar seus merecidos tostões no
Na ilegalidade jogo, como Dona A., “Eu acho que foi a maior in-
justiça que eles fizeram, porque era uma distração
É por isso que as máquinas caça-níqueis es- para os velhinhos aposentados. Em vez de ficar em
tão entrando em extinção: trata-se de um jogo de casa assistindo TV, que só passa bobagem, iam lá
azar. A Lei de Contravenções Penais (nº 3.688), de jogar e se divertir!”. Basta aguardar para ver qual
1941, no artigo 50 (Das contravenções relativas à será o futuro das máquinas e se a jogatina é uma
polícia de costumes) decreta que é proibido “Es- questão política ou cultural.

11
tabelecer ou explorar jogo de azar em lugar públi- (*) Frases de autoria de Ruy Barbosa

fora de pauta no 8 / junho de 2010


mar de apostas
Por: Rafael Salles Ilustração: Rodrigo Bitencourt

Cada jogador recebe duas cartas, e mais péu para descansar os olhos ou um mp3 player lidade de ser viciante, afinal, envolve dinheiro.
cinco são dispostas na mesa. Na primeira rodada, para se distrair. É, isso mesmo, se distrair. Apesar Muitos jogadores passam de seis a oito horas por
são viradas três das cinco cartas. Nas próximas de o pôquer exigir atenção extrema, o clima fica dia em uma mesa real ou virtual. Angelo explica:
rodadas, o outro par. Ganha quem fizer a melhor tenso quando uma aposta é alta ou um blefe está “o pôquer é um esporte que exige muita paciên-
combinação das suas duas cartas com as da mesa, prestes a ser percebido. cia. Jogadores bons são os que esperam a mão
ou quem convencer seus adversários de que é ca- Ah! O blefe. Havia me esquecido dele. Ele, certa para fazer uma aposta”. Talvez seja por isso
paz disso. Simples? Não. É pôquer. inclusive, originou o nome pôquer, vindo do ale- que um player que joga em todas as mãos é cha-
Nacionalmente, o pôquer é legalizado so- mão pochen, que quer dizer, adivinha o quê? Sim, mado de maniac. Certo, chega de gírias. Sobre
mente dentro de clubes, onde não há exploração isso mesmo, blefar. Dizem que o truco espanhol, as apostas, Vinicius Caponi, um dos fundadores
financeira do esporte. Na cidade de Santa Maria, carteado muito popular na fronteira castelhana, do Poker Residencial, diz que “qualquer jogo não
existem dois grandes clubes de pôquer. Um de- não pode ser jogado sem a mentira. O blefe nada se torna muito atrativo se não tiver alguma retri-
les é o Poker Residencial, que organiza jogos por mais é que tentar fazer com que o adversário buição”.
meio da sua comunidade no Orkut e do seu site. acredite que você tem um bom jogo, por inter- Bom, mas, então, a que estaria atribuída
O outro, o All In Texas Club, possui torneios que médio de uma aposta alta, tendo cartas ruins. É a habilidade do jogador? “O jogo é de muito ra-
variam a modalidade e a premiação, dependendo a mentira do pôquer. Muitos dos sharks do pôquer ciocínio, estratégia e leitura do adversário. Até
do número de competidores. O clube abriu suas são jogadores que conseguem notar um blefe. mesmo estratégia psicológica. Isso induz muitos
portas dia 18 de abril deste ano, amparado por Como? Sharks? Acho que chegou a hora de passear jogadores a pensarem de maneira errada” diz Vi-
uma sociedade de jogadores santa-marienses que por algumas gírias do jogo. nicius. Carlos Martins, também jogador, exempli-
ultrapassa 300 membros. Os jogadores são qualificados por suas ha- fica: ”durante toda rodada, fico calculando pro-
Como todo clube, os ambientes de pôquer bilidades. Um fish seria um mau jogador, aquele babilidades. O importante é não perder a lógica
são mantidos por regras. São normas de condu- que acaba por enriquecer mais ainda os sharks... e saber a chance que cada jogador tem de fazer
ta singelas, mas que fazem muito sentido para Ahn? Sacou? Sharks são os melhores jogadores, o melhor jogo”. Angelo salienta uma das quali-
os jogadores. No All In..., por exemplo, não é aqueles que ganham a maioria das mesas. Exis- dades do bom jogador: “o bom jogador é quem
permitido fumar ou se levantar durante o jogo, tem também os Whales. As baleias do pôquer são sabe jogar com o que tem para apostar”. Leo-
ou até mesmo comemorar de forma exagerada: os jogadores com o Bankroll mais alto. São os que nardo Rocha, outro jogador, completa com uma
“Gostamos de manter um clima de amizade e têm mais grana acumulada. Eles entram nas me- comparação: “assim como no xadrez você joga
respeito entre os jogadores”, diz Angelo Frazzon, sas e conseguem fazer apostas altas. Muitos fish com as peças, no pôquer você joga com as cartas
presidente do clube. e sharks perseguem whales pela possibilidade de e também com o seu adversário”.
dobrar seu dinheiro em uma rodada. É uma guerra Existem as mais variadas modalidades de
Nadando com peixes e tubarões em alto mar. Bom, chega disso. pôquer, desde o Texas Hold’Em, o mais popular,
até o Strip Poker, o mais interessante por envol-
Jogadores de pôquer geralmente Entre o esporte e a jogatina ver gente nua e garrafas de uísque. Mas melhor
carregam alguns costumes. Quase não falar de sexo, isso fica para a reportagem
todos andam com seus óculos O pôquer é recriminado pela suposição de da página 26.
escuros. Alguns ainda ser um jogo de azar. Angelo discorda: “o pôquer é
usam um cha- 95% raciocínio lógico e somente 5% sorte”.
Talvez, então, seja a possibi-
assunto: aumente seu pênis em uma semana
Por: Paolla Wanglon

Eu sei que parece bobagem. Mas a gente A verdade é que todo cuidado é pouco. Se
nunca sabe o que pode acontecer. Nunca se sabe tem alguém dizendo tudo isso por aí, um fundo de
o que é verdade e o que não é. E, por via das dú- verdade há de ter. E se muita gente repete, deve
vidas, prefiro duvidar. Me chamam de pessimista; ser porque não é só o fundo.
mas acho que prefiro presumir que o copo está Na superfície também. Boiando. Como
vazio do que ficar com sede depois. aquele dedo humano que acharam na lata de re-
A menos que a sede envolva certo “refri- frigerante. Milagre ainda estar inteiro, na verda-
gerante gaseificado à base de cola”. Nesse caso, de. Não sabia que o tal refrigerante é tão ácido
prefiro o copo vazio. A menos que seja para limpar que dissolve até ossos? Ossos, aliás, que as gali-
o motor do meu carro, como os próprios motoris- nhas que dão a carne para os hambúrgueres de
tas de caminhão fazem. É verdade. Mais barato e redes de fast-food não têm. São só carne, macia
mais eficiente do que um solvente industrial. Isso e lucrativa.
sem contar aqueles pobres meninos que morre- O lucro, que sempre move as coisas. Única
ram. Aqueles que comeram bala de menta e be- razão pela qual um príncipe nigeriano mandaria
beram o refrigerante depois. Dizem que a mistura e-mails em massa pedindo ajuda financeira a des-
é explosiva e fatal. conhecidos para investir em um negócio bilioná-
Fatal, também, é a gripe suína, H1N1, rio. E o retorno é garantido. Conto os dias para
gripe A, como queira chamar. Foi especialmen- receber minha parte.
te desenvolvida pelos governos do mundo, numa Mas perco a conta da quantidade de crian-
tentativa de controle populacional que não pode ças desamparadas com doenças terminais que ne-
ser comparada a nada antes visto. Sobraremos cessitam desesperadamente de ajuda financeira.
poucos no mundo: quem não morrer com a do- É uma benção poder ajudá-las reencaminhando
ença morre com a vacina. Vacina? Está mais para e-mails para a minha lista de contatos.
veneno. Aliás, pretendo ter filhos um dia. Bom que
Veneno outro é esse óleo de canola. Al- não sou homem, senão não poderia ter escrito
guém já viu um pé de canola? Acho que não. É esta crônica e ainda querer tê-los. Ficar com o
apenas mais uma tentativa dessas indústrias de notebook no colo não é nada bom para a conta-
lucrar ao máximo. Criam esse produto sintético gem de esperma. Mas, se eu fosse homem, pode-
e ainda colocam no rótulo que é mais saudável ria, pelo menos, aproveitar os ótimos descontos
do que outros óleos que vêm de plantas de ver- em terapia de aumento de pênis.
dade. Enviar 13
fora de pauta no 8 / junho de 2010
que velha que nada, na medida!
Por: Arnaldo Recchia e Hilberto Prochnow Filho Fotos: Divulgação e arquivo pessoal Inês Calixto e Franco Hoff

VW Kombi completa 60 anos de estrada e não cansou ainda.


Foi por meio de alguns desenhos de um Que nada! A Kombi ainda é fabricada e bem ven- - Todos os dias era aquele tira e coloca co-
holandês visionário que ela surgiu. A ideia era dida no Brasil, um dos poucos países em que esse bertor, muito complicado – conta Cezar.
um carro que fosse multiuso. Uma perua sobre o sucesso comercial vigora. Mas o destino quis que um amigo do me-
chassi de um VW Fusca. No final dos anos 1940, Se no mercado automobilístico o primeiro cânico tivesse o desejo de ter um trailer e com-
esses rabiscos foram encontrados na agenda do carro nacional da VW pode gerar algumas dúvi- prasse um carro para esse fim. Foi aí que surgiu a
importador Bom Pen. Era a primeira concepção das, no coração de seus proprietários só existem VW Kombi 1961.
da sessentona Kombi. certezas. A Kombi passa por um processo de per- - Meu amigo desistiu de fazer o trailer, aí
Sair do papel e chegar às ruas não foi fá- sonificação pelos brasileiros. São estabelecidas eu negociei com ele, falei que, ‘pra mim’, seria
cil. Os primeiros protótipos eram desengonçados, relações de extremo afeto com seus carros. muito útil – lembra.
sem estabilidade e sem segurança. Eis que no dia O mecânico pegou a estrutura externa,
internacional da mulher, em 1950, ganhava as a carenagem da van, e suspendeu ela na ofici-
ruas a primeira VW Kombi. na. Transformou o interior num quarto fixo, sem
Um carrinho (carrão, depende do ponto ter mais que tirar tudo de dentro cada vez que
de vista) simpático, econômico e com muita per- precisasse sair de carro. Assim, há dez anos, seu
sonalidade. Seu nome foi concebido a partir da Cezar passa as noites com uma Kombi. Porém, o
expressão “veículo multiuso”, em alemão Kombi- carro-quarto tem os dias contados. O projeto de
nationfahrzeug. construir uma casa vai pôr fim nessa relação, mas
No Brasil, a moça, que está completando não de forma definitiva.
sessenta anos em 2010, começou a ser montada - Eu construí uma sala, uma cozinha e um
em 1953. Mas, cinco anos mais tarde, saía da li- banheiro. Vou fazer a parte de cima da casa, e
nha de montagem, em São Paulo, o primeiro mo- ela (a Kombi) vai ser minha biblioteca, porque eu
delo da Volkswagen (VW) totalmente nacional. tenho muitos livros, vou precisar dela – projeta.
O utilitário caiu no gosto dos brasileiros. Ter uma Kombi-quarto e transformá-la em
Por causa das condições precárias das rodovias e Antiga linha de montagem da VW Kombi.
biblioteca não parece ser o bastante para o casal
ruas, os veículos sofriam no país, mas a Kombi de fotógrafos Inês e Franco. Eles estão em busca
mostrou-se forte e resistente, robusta de tal for- Cezar Müller é um mecânico, de 62 anos, de um sonho-aventura: cruzar o país em busca de
ma que seu modo de fabricação foi precisamente que vive em São Pedro do Sul, região central do troca de conhecimentos. Para isso, criaram Alice,
o mesmo durante quase cinquenta anos. Essa es- Rio Grande do Sul. Ele passou por um divórcio no uma Kombi-casa.
tabilidade industrial provou que a van tinha um ano de 2000. Sem ter para onde ir, decidiu morar Uma van 2006, bicombustível, com nome
projeto muito bom, entretanto, colocou a VW em na oficina em que trabalhava. Dormia dentro de inspirado nas histórias do professor britânico
xeque. Como manter a Kombi no mercado para um DKW. Um carro pequeno e apertado e, além Lewis Carroll, autor do livro “Alice no país das
enfrentar as minivans, cheias de tecnologias, ou disso, era o carro de trabalho, o que gerava trans- maravilhas”, de 1865.
as vans atuais, que são bem maiores que a deles? tornos. - Procurávamos um carro para o nosso so
14 fora de pauta no 8 / junho de 2010
nho, encontramos Alice. Penso que a escolha te-
nha sido recíproca. Alice é um carro charmoso,
simples, pequeno por fora e grande por dentro
– explica Franco.
O projeto do casal chama-se “Histórias
de Alice”. O objetivo é viajar pelo interior do
Brasil a bordo de uma VW Kombi customizada,
oferecendo oficinas de fotografia digital básica,
encenação de histórias com marionetes e até ci-
nema alternativo. O carro que será utilizado pos-
sui tudo o que eles vão precisar. Além do básico,
como cama e suporte para barraca, Alice conta
com um sistema de chuveiro e frigobar.
Todas as aventuras deles serão contadas
pela Kombi, que escreve em primeira pessoa no
site www.historiasdealice.com.br.
Essa trupe pretende sair de São Paulo e
seguir pelo interior de Minas Gerais, em direção
à nascente do Rio São Francisco, e seguir todo
o curso fluvial até chegar ao Norte/Nordeste do
Alice, a Kombi blogueira. Siga as “Histórias de Alice” no twitter @sigaalice.
país. A última etapa deve ser o Sul, na terra de
Franco, que é gaúcho de São Lourenço do Sul.
Eles não têm a precisão de afirmar quan-
to tempo vão levar nessa viagem. Porém, o fim
da aventura estará selado quando Alice receber
a edição da revista Fora de Pauta, que conta sua
história.
Viajar pelo Brasil inteiro e conhecer outras
tantas histórias tão estranhas e sinceras quanto
os seus sessenta anos: apenas mais um desafio
para a VW Kombi que, de velha, não tem nada.

“Atualmente somos o utilitário que melhor alia


versatilidade, charme e baixo custo. Basta dar
uma olhadinha nos meus detalhes” Alice, em
seu site sobre os 60 anos da VW Kombi.

Inês e Franco no interior da Kombi na qual vão viajar o país.


15
fora de pauta no 8 / junho de 2010
pequenos partidos,
grandes dificuldades
Por: Marcelo de Franceschi e Murilo Matias Fotos: Marcelo de Franceschi

O vai e vem dos partidos pequenos e os problemas das chamadas siglas nanicas em âmbito municipal.
O Brasil possui 27 partidos políticos regis- sete partidos constituíram diretórios, enquanto Abrangência da consulta:
trados no Tribunal Superior Eleitoral. Em Santa 17 estão em comissão provisória. Municipal - SANTA MARIA - RS
Maria, 24 desses partidos estão presentes, de Partido Tipo do Orgão Inicio Vigência Fim Vigência
uma forma ou de outra. A maioria deles são des- Os lanternas da votação DEM Diretório 20/10/2007 20/10/2010
conhecidos, pois têm pouca representatividade e PCB Comissão Prov. 28/09/2003 28/09/2006
também uma duração muito curta. A causa disso é Nas últimas eleições municipais, 20 parti- PCdoB Diretório 12/09/2009 12/09/2011
a maneira como eles se formam na cidade. dos colocaram-se à disposição do eleitorado, sen- PMN Comissão Prov. 15/03/2009 31/12/2010
Existem duas situações nas quais os par- do que 14 em condição de comissão provisória. PR Comissão Prov. 26/08/2009 Indeterminado
tidos podem se estabelecer em um município ou Como não seria possível conversar com todos, a PSDB Diretório 13/09/2009 01/03/2011
região: por diretório ou por comissão provisória. reportagem da Fora de Pauta fez um mapea- PDT Comissão Prov. 11/11/2009 11/05/2010
O diretório exige 45 representantes registrados, mento do último pleito e, a partir dessa análise, PMDB Diretório 28/10/2007 28/10/2009
e que estes cumpram uma série de requisitos le- procurou integrantes dos três partidos que obti- PT Diretório 09/12/2007 09/12/2010
gais para que possam ser aceitos como tais. Já veram os piores índices de voto na disputa pela
PHS Comissão Provi. 05/10/2007 04/05/2009
a comissão provisória tem prazo de dois anos e Câmara de Vereadores. Excetuando-se o Partido
PPS Comissão Provi. 01/12/2009 01/06/2010
funciona como uma ponte para que, ao término Verde (PV) e o Partido Trabalhista Nacional (PTN),
PP Diretório 08/08/2009 08/08/2011
desse prazo, estabeleça-se o diretório, o que, na que não apresentaram candidato, o Partido Tra-
PRB Comissão Provi. 02/02/2009 Indeterminado
maioria das vezes, não acontece. Essa estrutu- balhista Cristão (PTC), com 109 votos, o Partido
PSDC Comissão Provi. 05/11/2008 04/05/2009
ra acaba configurando um jogo de “vai e volta”, Humanista da Solidariedade (PHS), com 88 votos,
com muitos partidos funcionando como legendas e o Partido da Mobilização Nacional (PMN), com
PSC Comissão Provi. 02/10/2009 Indeterminado
de aluguel para grupos e interesses pontuais e 33 votos, foram os lanternas da votação. PSL Comissão Provi. 16/03/2004 27/02/2009
transitórios, pois, ao término do período de dois Coincidentemente ou não, as direções es- PSOL Diretório 18/03/2008 18/03/2010
anos, as forças partidárias dessas siglas se disper- taduais ou nacionais do PHS e do PMN não soube- PSTU Comissão Provi. 14/06/2008 31/12/2009
sam. Tempos depois, o partido ressurge com no- ram informar sobre os representantes dos partidos PSB Comissão Provi. 08/01/2010 09/01/2011
vos líderes e nova comissão provisória, para logo em Santa Maria. Talvez o pífio resultado eleitoral PTB Comissão Provi. 12/03/2007 Indeterminado
depois acabar novamente. A realidade é tão com- tenha solapado, pelo menos por hora, o interesse PTC Comissão Provi. 15/04/2008 15/11/2008
plicada que alguns dos diretórios estaduais desses dos dois pequenos partidos na cidade. PTdoB Comissão Provi. 12/02/2009 Indeterminado
partidos não sabem ao certo a situação em que Já o PTC está se rearticulando, agora com PTN Comissão Provi. 30/06/2004 24/07/2009
eles se apresentam no município. Para se ter uma um novo grupo de líderes. A antiga base se des- PV Comissão Provi. 30/07/2008 30/06/2009
ideia do cenário político de Santa Maria, apenas fez, e agora o partido será comandado pelo Pastor Fonte: http://www.tse.jus.br/internet/partidos/orgao_blank.htm
16 fora de pauta no 8 / junho de 2010
Delenir Rosa de Quevedo, antes filiado ao Partido
Democrático Trabalhista (PDT), que se disse sur-
preso com o convite da direção estadual: “Eu me
surpreendi quando fui convidado. Acredito que é
pelo nosso trabalho pelas pessoas mais necessi-
tadas. Eu, como presidente de partido, acho que
um presidente não pode ficar sentado pensando
só em si e em cargos e sim pôr o pé no barro e
ver a situação de cada bairro, de cada habitante,
desenvolver um projeto para eles. O PTC vai nos
dar condição para isso”.
O Partido Trabalhista Cristão, segundo
Delenir, seria registrado no dia 5 de maio. A ex-
pectativa era que fossem filiadas 800 pessoas, es-
tando o foco no público cristão. A ideia é atrair
presidentes de bairros e montar uma base sólida
do partido na cidade, inclusive estabelecendo-se
na condição de diretório já nas próximas eleições
municipais. Questionado sobre o vai e vem das
siglas, um dirigente do PTC, que preferiu não se
identificar, afirmou que muitos partidos pequenos Dia 17 de abril houve a reunião para a instalação da comissão provisória do Partido da Pátria Livre no plenarinho da
estavam sendo utilizados para negociatas, caso Câmara de Vereadores.

que não seria repetido no “novo” PTC.


Conforme seu presidente municipal, o PTC
define-se como um partido da esquerda conser- O nascimento de mais um nanico
vadora e tem por objetivo trabalhar pelo social, dos partidos no Brasil. O PPL é um partido muito
independentemente da escolha religiosa de cada Mais um partido político está surgindo na bem definido, temos uma orientação ideológica e
cidadão. Para o futuro, as projeções são ambicio- esfera nacional e também em Santa Maria. O Par- programática que significa o seguinte: considera-
sas: eleger dois vereadores e apresentar candida- tido da Pátria Livre (PPL) já é uma entidade regis- mos que a questão mais importante para o Brasil
to próprio à prefeitura nas eleições de 2012. trada em cartório e busca a obtenção do registro é romper com a dependência que o país tem. A
Já o Partido Republicano Brasileiro – com no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para funcio- principal tarefa hoje é efetuar a independência
450 filiados na cidade, todos da Igreja Universal – nar como um partido político. nacional”.
é o único partido nanico que possui representante O partido, lançado no dia 19 de abril em Questionado sobre a viabilidade do partido
na Câmara de Vereadores. O Pastor Jorge Ricardo Santa Maria, estabeleceu-se em comissão provisó- e sua colocação entre tantas outras siglas, Rem-
se elegeu com 1.713 votos, estando coligado ao ria. O próximo passo é buscar filiados e conseguir pel é enfático: “Nós não temos nenhuma preten-
bloco de apoio do deputado federal Paulo Pimen- militantes suficientes para realizar um congresso são e nem temos vocação para ser uma legenda
ta (PT-RS) – derrotado nas últimas eleições para municipal para, então, eleger o diretório munici- de aluguel. Nosso crescimento, não nos interessa
a prefeitura. Esperava-se, portanto, que o PRB pal. Principal expoente do PPL na cidade, o ve- que seja artificial. Queremos que seja solidamen-
se colocasse como um partido de oposição, mas reador independente Werner Rempel comenta as te, discutindo muito com os nossos filiados, fa-
rapidamente o partido migrou para a base aliada diretrizes da sigla: “Podemos ser um partido que zendo com que todos percebam qual é a nossa
vai contribuir decididamente para a construção linha política”.
17
do prefeito eleito, Cezar Schirmer (PMDB).

fora de pauta no 8 / junho de 2010


(des) agradável
Por: Andressa Quadro e Nandressa Cattani

Uma câmera, um fotógrafo e uma boa fotografia. Se imaginação e conhecimento.


ela é boa, significa que é bonita, imediatamente pensamos, A noção de estética chega até a fotografia na contem-
sem ao menos termos analisado a foto em questão. Pense- poraneidade e se transforma num paradigma desconcertan-
mos mais profundamente e usemos de exemplo uma foto te. Há o predomínio de uma nova categoria de beleza: o
desse ensaio. A beleza de algo em uma fotografia é resulta- feio, o registro verdadeiro e fiel da crueldade do mundo
do do modo como ela é representada pelo olhar do fotógra- real. É como se fosse impossível separar a arte da vida, do
fo e de como as pessoas interpretam essa representação. cotidiano, da natureza, do ser humano. Tudo o que pode ser
Mas uma mesma imagem é esteticamente agradável a pejorativo pode e deve ser fotografado. O que seria da his-
todas as pessoas e na mesma intensidade? O estudo acerca tória e, consequentemente, do nosso conhecimento acerca
da estética passou pelos livros de grandes filósofos como do mundo se não fossem as horríveis representações, mas
Platão e Aristóteles, mas foi somente no livro Crítica da belas fotos, da 2ª Guerra Mundial ou das crianças passando
faculdade de julgar (1790), de Immanuel Kant, que pôde fome na África?
ser vista de outro ângulo. Não o ângulo do fotógrafo, que Aceitar que uma imagem presencialmente feia torne-
passaria a existir somente três décadas depois (1833), mas se bela quando capturada pela lente de uma câmera pode
o do homem, enquanto simples admirador das belas artes. ser ainda mais complexo do que as definições de Kant, mas
Conforme os valores kantianos, a beleza diz respeito a jul- não menos importante. Mesmo a realidade sendo, muitas
gamentos pessoais, e os indivíduos, diante de uma obra de vezes, perturbadora ou desagradável, em uma fotografia
arte, demonstram diferentes reações. Tais reações são ex- ela nos remete a outro sentido pela arte que envolve. Seja
plicadas pelo juízo de gosto, ou seja, o prazer ou despra- na composição das cores, no preto e branco, nas formas, na
zer que cada um sente ao observar uma determinada obra. textura ou na informação à que ela nos remete. O trágico,
Foto: Amarello Rodrigues

Quando duas ou mais pessoas analisarem esse ensaio foto- o bizarro, o estranho é esquecido quando os contextuali-
gráfico, por exemplo, cada uma irá esboçar as mais variadas zamos ou fixamos o olhar em algum elemento que reflete
expressões, que nada mais são, na verdade, que resultados a sensibilidade do fotógrafo em gravar aquele momento,
de sentimentos comuns a todos os homens: sensibilidade, criar aquela estética e mexer com os nossos sentidos.
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fora de pauta no 8 / junho de 2010
Foto: Nandressa Cattaani
Foto: Andressa Quadro
Foto: Andressa Quadro
Foto: Marcelo De Franceschi Foto: Andressa Quadro
Fotos: Andressa Quadro

Foto: Nandressa Cattani


imperadores de um reino de aluguel Por: Charles Almeida e Manuela Ilha Fotos: Acervo/Museu Gama d’Eça, Manuela Ilha e Maurício Martini

Passado e presente se misturam em um império que se mantém em pé, suportando a violência do tempo e da vida.

A região da antiga estação ferroviária arquiteto Luiz Gonzaga Binato de Almeida, ex-
de Santa Maria, conhecida no passado pelo flu- professor da UFSM e professor da Ulbra Santa
xo constante de viajantes e pela prosperidade Maria, as principais influências arquitetônicas da
comercial, também abrigava a maior parte dos construção, contudo, são da art decó, movimen-
locais de hospedagem na cidade. Com a suspen- to vigente na década de 1930. Essa tendência,
são progressiva dos trens de passageiros, a área segundo ele, destaca em seus traços formatos ge-
passou por um declínio econômico, tornando-se ométricos, linhas verticais definidas, volumes e
reconhecida pelo abandono público, por roubos, ornamentações. Após as constantes ampliações,
assaltos e prostituição. A rede hoteleira padeceu o hotel tem hoje 37 quartos, alugados especial-
do mesmo destino e perdeu seu prestígio. mente para mensalistas a preços populares. O
Um dos estabelecimentos sobreviventes foi pernoite custa R$15,00, e a mensalidade varia de
aberto, em 1930, pelos recém-casados Elvira Sti- R$180,00 a R$220,00, sendo o valor mais elevado
val Benetti e Alfredo Benetti. Nesse ano, o casal dos sete quartos com banheiro privativo. Como
fixou-se na Rua Manuel Ribas, 1767, construindo registro de uma época onde o fluxo de hóspedes
um prédio baixo, com alguns quartos, que abrigou era alto, o prédio se estende para os fundos em
Movimento de passageiros na Estação a hospedaria. Ao empreendimento que começou formato de “L”, reservando um espaço para lazer,
Férrea de Santa Maria, em 1913. O
intenso trânsito de viajantes foi estí- tímido – mas que possuía pretensão de grandeza, com um grande pátio que abriga alguns bancos e
mulo ao desenvolvimento os hotéis da visto a localização estratégica próxima à estação folhagens.
região da Avenida Rio Branco.
ferroviária – chamaram Imperial Hotel. Após 80
anos de funcionamento e várias transformações, Caprichos que não saem da memória
o hotel mantém, da época áurea, a fachada im-
ponente, fustigada pelo tempo, e o ambiente fa- Albino Pozzobon, empresário aposentado e
vorável para o convívio e a amizade. um dos mais antigos moradores da Rua Sete de
A exuberante fachada data da década de Setembro, morou por três anos em hotéis da Ave-
1950, o que pode ser identificado nos anúncios nida Rio Branco. Nesse período, ele ainda dava os
das publicações lançadas no centenário de San- primeiro passos, ou melhor, andava os primeiros
ta Maria, comemorado em 1958. Conforme o quilômetros, na profissão de motorista. Em 1960,
22 fora de pauta no 8 / junho de 2010
depois de estar hospedado um ano no Hotel Tupi, italiana e a inteligência do falecido marido são
alojou-se no Imperial, sob a rígida e eficiente di- as poucas e repetidas lembranças que a memória
reção de Alfredo Benetti. Do hotel, Pozzobon re- fragilizada pelo tempo permite dona Elvira recor-
corda da limpeza, da organização, dos bons servi- dar. As mãos trêmulas encontram-se constante-
ços de quarto e da vontade de trabalhar do casal mente, enquanto os pensamentos tentam conec-
proprietário. “O hotel era de primeira linha, eles tar-se, criar sentidos. Um pouco de insistência e
tinham aquele saboroso café colonial. Certamen- ela se lembra do piano que tocava para o marido.
te estava entre os melhores hotéis da época, jun- Instrumento vendido para financiar uma das am-
tamente com o Glória, o Pirajú e o Jantzen. O Be- pliações do Imperial Hotel.
netti era muito trabalhador”, lembra Pozzobon. Enquanto dona Elvira busca alguma lem-
Alfredo Benetti faleceu em 1986, e então brança do passado, seu sobrinho-neto Lucas passa
dona Elvira, que até então cuidava da organiza- em disparada empurrando uma motocicleta pito-
ção e da limpeza controlando as camareiras ou rescamente colorida. Lucas, atual administrador
mesmo realizando o serviço, passou a administrar do hotel, visto as limitações da proprietária, logo
sozinha o Imperial Hotel. “Eu era muito capricho- começa a soldar peças de ferro a alguns metros.
sa, tinha que ser, tratar bem os hóspedes, por- É que ele aproveitou o espaço do antigo restau-
que o hotel não fica na avenida grande, fica ao rante para acomodar as ferramentas de uma ofi-
lado”, explica dona Elvira, 96 anos. Seu capricho cina mecânica, prestando alguns serviços como
no comando do hotel, os pratos típicos da cozinha de solda.
Do falecimento de Benetti para os dias de
hoje, a paisagem ao redor do hotel, assim como Arlindo, Érico, Olavo e
Vasco (da esquerda para
os serviços oferecidos na rede hoteleira local, so- à direita) celebram a ami-
freram transformações. Nesse período, pararam zade, a grande imperatriz
do hotel.
de circular os trens vindos de todas as partes do
estado, o que trouxe mudanças no público do es- diferentes idades, residentes no Imperial Hotel,
tabelecimento. Antes, viajantes que precisavam mobilizam-se para cozinhar uma sopa e acomodar
de um “poso” para tomar outra composição no as visitas. Arlindo, Vasco, Érico e Olavo, em torno
dia seguinte e ferroviários que mantinham quar- da roda de chimarrão, falam da vida, das mulhe-
tos alugados para os dias em que não estivam via- res, do tempo e do Imperial. Lembram-se do que
jando. Agora, mensalistas, operários, solteiros, talvez não tenham visto, de um hotel garboso,
desempregados, com diferentes perfis. Uns que sempre muito limpo e organizado para receber
não querem atender suas portas, outros que dão os viajantes.
um dedo para uma prosa, e outros ainda que se Arlindo justifica seu título simbólico de
reúnem semanalmente para saborear uma sopa e “diretor social” do hotel, ao distribuir as funções
jogar conversa fora. para que o prato principal da janta seja servido
a contento, e trata de apresentar seus vizinhos.
Vasco, ex-cozinheiro do bispado, é quem coman-
Sob o véu da parreira, histórias da a cozinha. Mantém sob controle, ao redor da
Fruto da dedicação de uma vida inteira, o Imperial Hotel panela, batatas, couve, cenouras, carne. Além do
mantém-se em funcionamento desde a década de 1930, Na quarta-feira, 7 de abril, o espírito de chef, o jovem Olavo, estudante em preparação
mesmo com o abandono e a desvalorização da região.
hospitalidade revive no Imperial. Quatro homens, para o vestibular de Direito da UFSM, também dá
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fora de pauta no 8 / junho de 2010
alguns palpites na preparação da sopa. O de passageiros. A decisão pelo desenvolvimento
consultor de vendas de uma empresa de coleta de da indústria automobilística e pela construção de
resíduos especiais, Érico, dedica-se mais a man- rodovias gerou paulatinamente o esvaziamento
ter a conversa viva. dos vagões, processo que afetou diretamente a
Enquanto a sopa toma forma, Olavo relata saúde do hotel.
as surpresas que teve ao chegar à hospedaria, há
um ano e meio. Conta que nas três primeiras noi- Saudades da viação
tes de hospedagem acordou de madrugada banha-
do de suor. Nessas ocasiões, havia tido o mesmo Longe da sopa, no segundo andar do hotel,
pesadelo. “Era um vulto, assim, que aparecia em onde mora há sete meses, o ex-maquinista da via-
um ambiente nebuloso, chegava perto de mim e ção férrea, Evaristo de Moraes, é o mais arguto na
pedia: ‘acende uma vela pra mim, acende uma crítica ao abandono das ferrovias. O senhor de 85
vela pra mim’”. Intrigado, Olavo, que diz não anos é um homem elegante, que mantém o cabe-
acreditar em espíritos, comentou com vizinhos lo bem penteado e a postura sempre ereta. Em
sobre seus pesadelos. Descobriu então que um seu quarto, onde recebe as poucas visitas, osten-
senhor de idade havia falecido no seu quarto na ta sobre a geladeira um enorme retrato em que
semana anterior, e que ficara morto sobre o ca- aparece vestindo seu uniforme de maquinista die-
tre, por vários dias. Desfeito o mistério, Olavo re- sel. Relembra, com algum esforço, cenas de seus
solveu arriscar e não atendeu ao estranho pedido; tempos de ferrovias, mescladas com avaliações
felizmente o pesadelo não voltou. do sistema brasileiro de transportes. Diz que vai
Outras histórias cabreiras vão surgindo. se mudar, mas não sabe quando. A mala, contudo,
Um tal Cezar, que ficou dias sentado na mesma aparenta estar sempre pronta, encostada em um
posição, após ter sofrido um acidente vascular canto de sua cama.
cerebral (AVC), até ser levado ao hospital, sob Novamente ao pátio, a prosa chega ao seu
os esforços dos hóspedes. Um outro morador, que final. A sopa também. As visitas se despedem.
cumprimentou a todos, foi ao banheiro e tirou sua Algumas recomendações de cuidado, afinal de
vida com um tiro. E ainda, o misterioso caso de contas, caminhar pela Avenida Rio Branco à noi-
um cadáver que foi encontrado com marca de tiro te tornou-se perigoso com o passar das décadas.
O ontem e o hoje de Evaristo – seus tempos no comando das
máquinas a diesel estão nas memórias e no retrato. num dos quartos, sem que a polícia tenha desco- Essa região aguarda com ansiedade o projeto de
berto a origem do incidente – latrocínio, homicí- revitalização da avenida, que promete devolver
dio ou suicídio? Histórias nefastas que ofuscam o aos moradores os espaços de lazer, sobretudo o
brilho da antiga coroa do Imperial Hotel. canteiro central da via. O lado negativo desse
No estalar de pratos, sob a parreira que processo, contudo, é a crescente especulação
cobre o pátio feito véu, já armados com pães e imobiliária. Por suas características atrativas ao
colheres, anfitriões e visitas conversam sobre po- desenvolvimento do comércio e à construção de
lítica. Fala-se do presidente de agora, e dos es- arranha-céus, a região vem sendo cobiçada por
tadistas que passaram. Getúlio não conta porque empreiteiros da construção civil. Os prédios anti-
deu cabo da própria vida. Juscelino Kubitschek gos, datados do começo do século XX, podem não
é execrado pelo endividamento da nação para resistir às cifras propostas por construtoras, sob o
construir Brasília. Aliás, Juscelino é um dos res- risco de ruir a memória arquitetônica da cidade e
ponsáveis históricos pela desativação dos trens as lembranças do tempo da Estação.

24 fora de pauta no 8 / junho de 2010


meu corpo, meu
útero, meu sangue
Por: Maiara Alvarez Foto: Paolla Wanglon

– Virou mocinha! Que lindo! humor com qualquer relaciona-


Eu, assim como a maioria das meninas mento... Enfim, és uma completa
quando entram na adolescência, ouvi essas frases desgraça.
de alguém. A experiência, de tom vermelho es- Eu nunca achei tão ruim
curo (e que de linda não tinha nada), era nova e, aquele sangue negro a cada 28
como qualquer outra, gerou indagações, medos e dias, mas confesso que não me pa-
incômodos. Até onde você, minha querida compa- recia algo atrativo. Nunca me fizes-
nheira de visitas mensais, iria interferir na minha tes sofrer grandes cólicas, embora
vida? Porém, com o tempo e o seu consequente meu humor andasse de montanha-
poder de adaptação, acabastes por entrar no rol russa desde dias antes da sua che-
de coisas comuns. gada até você ir embora. O que me
Felizmente, não cheguei a fazer parte de incomodava era o cheiro e a quan-
uma maioria imensurável de mulheres que se sen- tidade. Nossa, quanto sangue! Mas
te molestada com o seu martírio mensal. Creio o pior era a umidade que ficava na-
que o problema é que o teu mal ultrapassa as quele pedaço de algodão cheio de
fronteiras da cólica ou do inchaço e vira tabu. produtos químicos.
Tu, antes celebrada e até considerada sagrada, já Porém, pesquisando e con-
não tens mais permissão de entrar em qualquer versando abertamente, descobri
rodinha de conversa. que há inúmeras maneiras de tornar o nosso rela- mente faz parte de mim como deveria ser. Mas
Conforme amadurecia, fui percebendo que cionamento mais fácil. No meu caso, escolhi usar isso não se deve graças ao coletor, ou cup, como
os seres humanos que carregam o símbolo fálico um coletor menstrual. Uma taça feita de silicone, muito é chamado (ele merece certo crédito, mas
não têm a mínima noção da revolução que causas totalmente esterilizável e inserida na vagina, que não o creia tão “grande”!). Foi algo muito mais
periodicamente no corpo feminino. Para eles, é coleta meu sangue. Agora conheço sua real cor, interno e profundo do que o tanto do canal vagi-
normal que signifiques apenas duas palavras: TPM quantidade e cheiro. Não és tão horrível quanto a nal que o cup é capaz de atingir. Foi uma aceita-
e sangue. E sujo. Sangue sujo. É assim, dessa ma- sociedade de massa e seus tampões e absorventes ção pessoal. Sem preconceitos e tabus. Sem no-
neira tão preconceituosa (e mentirosa!), que vejo me faziam acreditar. E nem me custa tanto por jinhos, é o meu sangue, do meu útero. Contudo,
muitas pessoas resumirem você, menstruação. As mês lidar com você. Vamos combinar, até gostas- sinto lhe informar, amiga, que sua fama continua
alegações são várias: o cheiro é ruim, as dores te da ideia e concordaste comigo o quanto é mais daquelas. Falar abertamente sobre você ainda
e cólicas são de matar, as mudanças de apetite higiênica. será privilégio de algumas comunidades virtuais e
acabam com qualquer regime, as mudanças de Você, bendita menstruação, agora simples- alguns sites, e não de um café da tarde.
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fora de pauta no 8 / junho de 2010
muito prazer, sexo.
Por: Laura Gheller e Luiz Henrique Coletto Fotos: Wandeclayt Modelos: Geanine Escobar, Wandeclayt M. e Andréia Pinheiro

bruços e agora tinha consciência de que estava bre as práticas sexuais e a sociedade, poderíamos
presa. O grito ecoou no silêncio da casa vazia, e dizer que tudo aquilo que os seres humanos pra-
então ouviu passos rápidos em sua direção; sem ticam entre quatro paredes (e noutros lugares)
pensar, gritou novamente, quase na mesma hora é um grande iceberg; o nível do mar é o espaço
em que a bofetada acertou seu rosto. Com o sus- limítrofe: aquilo que é socialmente aceito sobre
to, calou-se. o sexo e a sexualidade está visível; todo o resto,
Não sabia se ela tinha notado, mas ele a a maior parte do iceberg, está submerso nas pro-
havia prendido em uma tábua sobre três cavale- fundezas do mar, em algum lugar dos imaginários,
tes: um acima dos seios, um na barriga e outro dos quartos de motéis e dos nossos lares.
acima dos joelhos. Estava presa pelos dois torno- Da antiguidade até o século vinte, pro-
zelos, com as pernas ligeiramente abertas; pela fundas mudanças ocorreram de forma paulatina,
cintura, no cavalete do meio; e pelos braços, es- culminando com a revolução feminista e a de cos-
tendidos pelas laterais do primeiro cavalete. Ela tumes sexuais – que modificaram a percepção das
não movia um músculo... sociedades acerca do sexo e da moral.
Os trechos acima, do conto O Sequestro, São seis e quarenta da noite: encontramos
foram retirados do sítio Contos BDSM. Ao fim, re- nossa entrevistada pessoalmente após e-mails e
vela-se que o sequestrador era o próprio marido. telefonemas. O frio acompanha os primeiros dias
A esposa, depois de receber açoites com chicote da Feira do Livro de Santa Maria, e nos faz optar
de couro, de ter cera quente derramada pelo cor- por um café como ambiente para a entrevista.
po e de ser penetrada com um vibrador, “cede” Valentine*, 24 anos, conversou conosco sobre a
ao desejo sexual de seu “algoz”. No fim, a “víti- intimidade dela.
ma” revela que, desde o princípio, soubera que Outra fria noite, agora de sábado, e Ber-
Era uma porta alta de madeira – e estava era o marido a “torturá-la”. nac*, 46 anos, e Juliette*, de 53, estão em Santa
entreaberta. O corretor já deve estar aí, pensou. O imaginário da humanidade está repleto Maria para fotografar com um amigo. Residente
Empurrou um pouco a porta e olhou para dentro. de definições de cunho moral sobre o que é certo em Porto Alegre, o casal está junto há mais de
A escuridão era total. Decidiu então ligar para o e errado, normal e anormal a respeito do sexo. dez anos e é praticante de BDSM (bondage e sado-
telefone do corretor. Para sua surpresa, a cada Desde uma concepção reprodutora, as práticas masoquismo) há alguns. Numa conversa de duas
toque da chamada no ouvido, um telefone tocava sexuais estariam fadadas, por essa visão, ao ob- horas, desnudam-nos um universo ora secreto,
dentro da casa. Não vou entrar aí – pensou – já se jetivo de perpetuar a espécie. Entretanto, o sexo ora exibido – um jogo entre o íntimo e o voyeur,
virando para voltar ao carro. Foi então que sen- e seus meandros passaram por transformações que depende dos espaços sociais destinados às
tiu uma mão puxando-a pela cintura e outra mão diversas de acordo com as culturas e os tempos práticas menos aceitas socialmente.
cobrindo seu rosto. O cheiro do éter entrou-lhe históricos.
pelas narinas e não viu mais nada. O risco consensual, a dor prazerosa
As perguntas começavam a se formar na Somewhere over the… iceberg
sua mente enquanto ela tentou se mexer uma, Cordas, algemas, cera quente, relho...
duas, três vezes. Sabia que estava deitada de Caso quiséssemos fazer uma metáfora so- uma série de acessórios faz parte do universo sa-
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domasoquista – e fetichista em geral. A dor que é ela pode estar suspensa” afirma Valentine. Relações afetivas
infligida por meio desses objetos constitui parte Um recurso comum entre vários prati- – Oi, tc d onde?
fundamental do prazer a ser obtido. As técnicas cantes iniciantes é a palavra de segurança (sa- – SM, e tu?
de amarração com corda, por exemplo, imobi- feword): quando é dita, significa que o dominado – Tmb. Q proc?
lizam totalmente aquele que se deixa amarrar está em seu real limite. “No caso do masoquis- – Quero ser fistado**.
(comumente denominado submisso); quanto mais ta, ele vai tentar ir sempre além do limite dele. – Blz, tmb curto. (...)
movimento, mais justas ficam as cordas; além Mesmo sentindo dor, ele vai querer que tu conti-
disso, pode haver suspensão – a pessoa é amarra- nues. Por exemplo: está doendo? Sim. Quer que O diálogo acima se encaixa muito facil-
da, e as cordas são suspensas em ganchos. eu pare? Não.” A palavra de segurança, portanto, mente em chats nos quais as pessoas procuram
A estética, para muitos, é elemento fun- deve estar fora do contexto, jamais “pare” ou por parceiros sexuais e/ou afetivos. Não é exata-
damental. Algo como estética produzindo pra- “está doendo”. mente o caso de Bernac e Juliette, nem de Valen-
zer, e prazer produzindo estética. É o exemplo “Há práticas que causam lesão física. Por tine e seu parceiro, juntos há seis anos: “A gente
do shibari, palavra de origem japonesa. “Difere exemplo, quem gosta de ser queimado, isso pode meio que foi descobrindo as coisas juntos, então
do bondage no aspecto estético. Bondage impli- causar lesão. Tu tens que ter absoluta confiança muitas coisas que acontecem hoje nenhum dos
ca restrição, tu podes usar qualquer coisa para no parceiro, de que tu vais infligir uma lesão, e dois fazia antes ou sabia. Foi com o tempo, com
amarrar. Já o shibari exige um preparo mais inte- ele não vai depois te acusar de tê-lo machucado. a curiosidade e com a intimidade entre os dois”,
ressante, uma coisa mais estética. Usamos cordas Pressupõe uma confiança grande”, relata Juliet- afirma Valentine.
que sejam de textura macia o suficiente para não te. Fica claro que o ato consensual é como um As práticas sexuais, portanto, são parte da
machucar a pele”, explicam Bernac e Juliette. contrato feito entre dois adultos que gozam de relação, e não o centro dela. A fixação num ele-
O bondage é das práticas que mais exige todas as suas capacidades, em que os limites es- mento específico como única forma de obtenção
entrega do submisso ou dominado. Mais que isso, tabelecem-se pelos parceiros, em parte antes do de prazer pode desencadear, em alguns casos,
presume total confiança entre os envolvidos. “No ato, em parte durante – no teste dos limites. De uma situação patológica. De acordo com o site do
bondage, eles têm um lema: para praticar, eles qualquer maneira, é uma dor prazerosa assumida Projeto Sexualidade (ProSex), do Instituto de Psi-
tomam o cuidado de ter sempre uma faca e uma e desejada por ambos – ou pelos vários parceiros quiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de
tesoura por perto... Digamos que o lugar pegue envolvidos numa play (festa), expressão que indi- Medicina da Universidade de São Paulo (IPqHCF-
fogo, tu vais ter que soltar a pessoa rápido, pois ca sessão com várias pessoas. MUSP), os transtornos de preferência sexual são
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fora de pauta no 8 / junho de 2010
práticas que produzem um comportamento que o anel peniano são componentes para a prática da
gera sofrimento clinicamente significativo ou pre- humilhação e para a produção de dor.
juízo ao funcionamento social ou profissional da É na conjunção das fantasias com os aces-
pessoa. É preciso cuidado, entretanto, para não sórios que se constituem as práticas. Restringir
“patologizar” o assunto. Muitas práticas serão para dominar; humilhar para dominar; ser humi-
vistas, de alguma forma, como negativas porque lhado para ter excitação. “No meu caso, bastante
há uma construção cultural nesse sentido. Bom corda, coleira, corrente. Objetos de sex shop –
exemplo é que o próprio sexo anal (também co- vibradores – a gente não usa muito”, revela Va-
nhecido como sodomia) era crime em vários esta- lentine. Disso, constituem-se as diversas práticas
dos norte-americanos ainda na década de 1960. – que sempre dependem da vontade expressa dos
“Não é porque as pessoas têm essas práti- envolvidos. A chuva dourada, que consiste em uri-
cas menos usuais que não haja sentimento, não nar no dominado, é uma das práticas comuns na
haja amor” pontua Valentine. Essa constatação humilhação. Outra prática, conhecida por alguns
joga luz sobre o sexo de um modo mais simples como travestismo fetichista, consiste em vestir-
do que o tema costuma suscitar: as relações e os se com roupas do sexo oposto – muito comum no
sentimentos existem, e isso independe das práti- caso de dominadoras e submissos. “Uma vez, par-
cas sexuais em si. No íntimo, cada casal ou grupo ticipei de uma play. O meu submisso não sabia o
de parceiros vai estabelecer (pela descoberta, que eu ia mandá-lo fazer. Então comprei um cal-
pelo desejo) aquilo que dá prazer – da penetração çado com saltinho e, numa sex shop, uma roupa
ou do sexo oral ao spanking ou à chuva dourada. de doméstica. Ele disse: ‘não acredito que você
Valentine e seu parceiro gostam de humilhação, vai me fazer isso’. Era algo que teve significância
chuva dourada e inversão (em que a mulher do- para ele, pois ele realmente se sentiu humilha-
mina e, eventualmente, penetra o homem, com do”, conta Juliette.
acessório ou com o próprio dedo, conhecido como O spanking também faz parte do repertório
fio terra). “Assim como ele precisava não ter pre- da humilhação. Usam-se chicotes e palmatória,
conceito com isso, eu também. Então, conforme por exemplo: um misto de acessórios para produ-
foi evoluindo o relacionamento, isso também foi zir dor e prazer – este a partir daquele. “Bater é
acontecendo”, complementa. uma coisa que eu gosto muito. Também produzo o
material, como a palmatória. A parte das cordas
Acessórios protagonistas também, que está relacionada com o shibari”,
explica Bernac.
Estar dentro de um universo sadomaso-
quista abre portas para um mundo de práticas – e Preconceito: prática do passado ao presente
acessórios. São brinquedos que, mais do que co-
adjuvantes, conduzem a produção do prazer pre- “Ele não era tão preconceituoso, mas
tendido. Espartilho, cordas, ball gag, fita adesiva não era de conhecer sadomasoquismo. Então, às
(silver tape) e algemas são alguns dos itens que vezes, eu tentava fazer alguma coisa diferente,
podem ser utilizados para as práticas de restri- mas não dava muito certo. A única coisa que a
ção, em que se restringe a respiração, os movi- gente se acertava era que ele meio que me do-
mentos, etc. do dominado. Já as velas, o chicote, minava, me batia”. A fala acima, de Valentine,
a palmatória de couro, a presilha para mamilos e revela o quão restritas as práticas podem ser. En-

28 fora de pauta no 8 / junho de 2010


contrar parceiros fora das relações pode ser mui- Por dentro das fantasias...
to complicado. “Se as pessoas fazem comentários Uma das formas mais comuns das pessoas exercerem a sexualidade é por meio das fantasias. Enquanto
irônicos ou depreciativos a respeito dessas práti- parte da imaginação, elas são ilimitadas: pode-se experimentar práticas que são proibidas socialmente,
cas, simplesmente sei que não posso compartilhar mas livres em pensamento. O universo das fantasias é muito vasto. Abaixo, alguns exemplos de fantasias
isso com elas”, afirma Juliette. e práticas que aparecem ao longo do texto (ou não).
A possibilidade de outras experiências no exemplo prática
sexo vem acompanhada, quase sempre, de uma
“Sonho que estou espiando meu vizinho enquanto ele se
postura de vida diferente. “Eu sempre me indig- Voyeurismo masturba sem fazer ideia de que o estou vendo.” Mulher,
nava e me indigno com o machismo. Aqui eu ainda 23 anos.
não posso usar todas as roupas que quero, não
Gang bang (grupal) “Estou sozinho no trabalho e surgem quatro rapazes. Eles
posso falar de coisas que acho interessantes, não dominação, sodomia me prendem e dizem que farei tudo o que eles dese-
posso rebater muitos comentários” relata Valen- (sexo anal) jam.” Homem, 29 anos.
tine, que nasceu no interior do Estado.
“Fantasio que meu marido me pede para acariciar a bun-
O escritor João Silvério Trevisan, ao re- Inversão (com cinto da dele. Vou penetrando-o com o dedo, e noto que isso
constituir a história da homossexualidade no Bra- peniano)
o agrada. Então coloco uma prótese amarrada a minha
sil, relata o seguinte sobre nossos antepassados cintura e o penetro.” Mulher, 32 anos.
silvícolas: “A verdade é que, entre os indígenas,
Bondage e sadoma- “Imagino que meu marido me amarra na cama com
os códigos sexuais nada tinham em comum com o
soquismo (BDSM), cordas e veda minha boca com uma fita. Então começa a
puritanismo ocidental daquela época; por exem- spanking (surra) e uso derramar cera quente em mim, enquanto bate com um
plo, davam pouca importância à virgindade e até de silver tape relho em meus pés.” Mulher, 34 anos.
condenavam o celibato.” Revelador dos fatores
“Levo meu escravo para uma festa com vários amigos.
culturais e religiosos que se imiscuíram no Brasil Travestismo fetichista
Mando-o colocar uma roupa de enfermeira. Coloco nele
dos últimos séculos foi o choque entre uma mo- numa play (festa),
uma mordaça com uma bola no meio e o mando obede-
ral europeia cristã e uma moralidade “brasileira” ball gag (mordaça) e
cer aos desejos dos convidados. No final da festa, todos
chuva dourada (urina)
formada de forma muito plural. Séculos depois, urinamos nele.” Homem, 29 anos.
já pós-feminismo e pós-flexibilização dos costu-
Podolatria (gosto “Sonho que estou rodeada por 10 homens masturbando-
mes, parecemos ainda viver sob a influência de pelos pés) e bukkake se. Um deles lambe meus pés enquanto se masturba.
valores machistas e homofóbicos que refreiam as (ejaculação coletiva Na hora final, todos gozam sobre meu corpo e rosto.”
possibilidades de viver de forma mais aberta o na face/corpo) Mulher, 30 anos.
sexo e a sexualidade. “Estou transando com minha namorada e então começo
A insatisfação, a frustração e o obscuran- Fist fucking (pene-
a penetrar meus dedos em sua vagina. Vou lubrificando
tração do punho na
tismo é, muitas vezes, o resultado. A rigidez so- e colocando mais, até que meu punho está todo dentro
vagina ou no ânus)
cial quanto ao sexo impede que se dialogue sobre dela.” Mulher, 27 anos.
ele; produz certo clima de transgressão no mero E mais...
falar sobre; e impede, por fim, que as pessoas Safeword: palavra de segurança usada em práticas de restrição para indicar o limite do submisso/dominado;
Feet fucking: inserção do pé na vagina ou no ânus;
experimentem-se e solucionem seus problemas Scat: atração por fezes (visual ou mesmo palatal);
sexuais com médicos, psicológicos e mesmo ami- Milking: “ordenhar pela próstata”; fazer ejacular repetidas vezes, sem orgasmo, estimulando a próstata (prática
gos e familiares. BDSM).

* Os nomes são fictícios e foram retirados de contos do escritor francês Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como o Marquês de Sade (1740-1814).
** Conjugação aportuguesada de “fistar”: vem do inglês fisting, que consiste na introdução da mão ou do punho (fist) na vagina ou no ânus.

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fora de pauta no 8 / junho de 2010
almas das ruas
Por: Felipe Viero e Gabrielli Dala Vechia Fotos: Ramon Pendeza

A Fora de Pauta foi às ruas conhecer os personagens que fazem dos espaços públicos um lar. Pessoas que não só dão alma às ruas,
como disse João do Rio, mas que são almas pela invisibilidade com que são tratadas pela sociedade e, por consequência, pela própria
mídia.
Vestindo uma camisa encardida e com a uma peça para viver cujo aluguel era compatível preferiram conduzir a vida sob as regras da rua.
barba por fazer, o porto-alegrense Victor Santheni- com seus ganhos como coletora de materiais reci- Para chegar ao mocó do casal, basta seguir
to discorre com eloquência sobre a época em que cláveis e cozinheira do Café Cristal, ela achou que pela Avenida Rio Branco até a Rua Manoel Ribas.
ocupou o posto de 3º Sargento da Aeronáutica, nos a vida ia bem.  Mas a pequena mulher, de cabelos Ali, dobrar à esquerda e ir até a próxima quadra,
tempos da Ditadura Militar. O período, que durou negros e feições que não denunciam seus 38 anos, no entroncamento com a Sete de Setembro. Na
nove anos, oito meses e dezessete dias, chegou ao não pensou que dividir espaço com um depósito Sete de Setembro, depois de cruzar os trilhos, pas-
fim quando um membro do Serviço Nacional de In- de papelão pudesse deixá-la desabrigada à mínima sa-se pela Borges do Canto e pela Avenida Itaimbé.
formações (SNI) encontrou no sobrenome materno faísca. Finalmente, à direita, está a Rua Marechal Deodo-
de Victor – Gregorovtsen – uma ameaça comunista. Essas memórias sem-teto de Victor, Arlindo ro da Fonseca.  Ali desemboca uma rua ainda sem
Do sargento para o homem de 52 anos que, even- e Lisiane estão, agora, protegidas pelas paredes nome, resultado da construção de um túnel inaca-
tualmente, dorme nas ruas de Santa Maria, pouco descascadas do Albergue Municipal Nossa Senhora bado, onde, num terreno às margens do Cadena,
se manteve: duas filhas bem sucedidas e o amor Medianeira e se confundem com as histórias dos, está o mocó.
pela cachaça. aproximadamente, cem mora-
Enquanto uma trajetória acaba na rua, dores cambiantes do local. Com
outras começam. Mesmo com o corpo castigado regras que, muitas vezes, não
pela poliomielite, Arlindo Mendonça, hoje com 48 lembram em nada o ambiente das
anos, saiu da casa dos pais, em Santa Maria, para ruas, como a obrigatoriedade do
viver nas ruas da capital paulista há mais de três banho e da abstinência às drogas,
décadas. A curiosidade em conhecer os estádios o abrigo propõe-se a oferecer teto
Beira Rio e Maracanã foi maior que a necessida- e comida a quem não os possui.
de de viver sob um teto. A afamada curiosidade Respeitando, claro, o direito cons-
também serve de justificativa para o fato de ter titucional de ir e vir dessas pesso-
deixado o lar uma segunda vez, agora para juntar- as, garante o coordenador do local
se a uma tribo indígena, a convite de um pajé, em Sérgio Bandeira.
Auquidauana, cidade do Mato Grosso do Sul, onde Amparados por tal direito,
passou nove anos estudando o poder curativo das Gilmar da Silva Ramos, 42, e Deise
plantas. Silva Bastos, 33, vieram, foram e
Já para Lisiane Almeida da Rosa, morar nas não voltaram mais. Os dois se co-
ruas não foi uma escolha voluntária, mas sim de- nheceram na única noite em que
corrência de uma fatalidade. Quando encontrou se encontraram no Albergue, mas
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Mocó, na gíria empregada pelos moradores prio nome já diz”. Vendeu tudo o que tinha, deixou e um pedaço de concreto, que funcionam como
de rua, é o nome dado à habitação feita de lona, os oito filhos com os familiares do marido falecido bancos. Há ainda um fogareiro adaptado, onde
estacas e demais objetos adquiridos ou por traba- e foi embora. eles preparam as refeições, um móvel com frutas
lho, ou por doação. Para muitas pessoas, uma mo- Morou na rua e também passou pelo Alber- e potes e um espaço com baldes e galões de água.
radia improvisada. Para Gilmar e Deise, um lar.  gue, mas não quis permanecer ali. Não gostava de “Sabe aquele cara que é estátua lá no Calçadão?
Gilmar, conhecido como sapo em função da não poder sair na hora em que quisesse e nem do Foi ele quem nos deu o sofá, ele mora aqui perto e
destreza com que pulava muros para fugir da po- fato de, no período em que estava lá, ser a úni- vem aqui às vezes”.
lícia, já teve dois relacionamentos, quatro filhos ca mulher do abrigo. Quando conheceu Gilmar, de Fome eles não passam. “A gente pede comi-
e um bar, localizado na Vila Maringá. Problemas quem é companheira há dois anos, foi com ele bus- da ou ganha catando latinha ou capinando”. Quan-
relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas o car um novo lugar para viver.   do chove, eles mudam-se para as marquises do an-
fizeram divorciar-se, abandonar o negócio próprio O mocó onde eles vivem é subdividido de tigo depósito vizinho e deixam os móveis, que são
e deixar a casa para trás: “A juíza disse, tu és ho- forma semelhante a uma casa convencional. Em- cobertos com lonas. Quanto ao álcool e às drogas,
mem, tu se vira”.   baixo de uma estrutura de lona, há uma parte o consumo diminuiu por parte dos dois, embora
E foi isso que ele fez. Desde 1999, Gilmar fechada, que é o quarto do casal, e outra parte, continue existindo. O banho pode ser tomado na
vem se virando como pode, sem ter uma residên- visível, com alguns colchões, que é o quarto para Gare da Estação Férrea, em horários comerciais,
cia fixa. Já morou no chamado Condenado, edifício hóspedes ou outros moradores. “Agora tem um ou na Avenida Rio Branco, que possui um local com
abandonado de quinze andares localizado na Ave- menino com a gente. Ele brigou com a família, saiu banheiro.
nida Rio Branco. Nesse lugar, relembrou as rodas de casa e pediu para ficar aqui.” Ao ar livre, fica Apesar da displicência com que encaram a
de chimarrão com a ex-esposa, viu uma mulher co- um sofá de três lugares, duas cadeiras, uma tábua ausência de quatro paredes e um teto, os planos
meter suicídio e um jovem perder futuros são bem elaborados. Vic-
a vida ao brincar de roleta russa.   tor espera que o Ministério Públi-
Dormiu também em esqui- co reveja a sua cassação do cargo
nas, em dias como o Natal e o Ano de militar e lhe pague os atra-
Novo, quando pensava apenas em sados, corrigidos de acordo com
beber o máximo possível para que o cargo que ele poderia ocupar
a experiência de passar tais datas hoje se tivesse seguido a carreia;
sozinho fosse esquecida. No Al- Arlindo espera criar uma associa-
bergue, não gostou dos horários, ção de amparo aos indígenas sem
das regras, da hierarquia entre os teto; Lisiane espera voltar a ter
moradores e, sobretudo, do fato dinheiro para alugar sua própria
de ter objetos pessoais furtados.   casa, ou mesmo outra peça, para
Deise é conhecida como poder levar os dois filhos para
Cigana em função de, antes de morarem com ela; já Cigana es-
passar a morar na rua, ter sido pera um filho, o primeiro do rela-
mãe de santo. Ela era casada, cionamento com Sapo, que deve
tinha carro e casa próprios. Com nascer em seis meses: “Nome eu
o falecimento do marido, entrou ainda não sei, sei que vai ser ou
em depressão, teve outro relacio- um sapinho ou uma rã”. No mocó,
namento e passou a usar drogas, no Albergue ou sob um teto co-
hábito que ainda mantém: “O mum, o futuro a Deus pertence.
crack é mesmo uma droga, o pró- Ou, no caso, à Olorum.

31
fora de pauta no 8 / junho de 2010
notas de uma vida errante Por: Sarah Quines Ilustração: Rafael Balbueno

Fosse um cão qualquer, desses que vagam início de outono. Em frente ao posto de informa- As orelhas são contempladas com dois topes, nas
por aí, não chamaria a atenção. Tivesse a com- ções turísticas, jaz deitada uma figura conhecida cores roxo e amarelo, em formato de uma mar-
panhia de pulgas e carrapatos, na coceira de to- de muita gente. Gorda, Baleia, Batatinha são al- garida.
das as horas, para dividir os dias monótonos nas gumas das alcunhas usadas para se referir à vira- ***
vagas caminhadas, seria só mais um entre tantos lata mais famosa da cidade. Já se passaram dez anos desde que Gorda
neste mundo cão. Basta, no entanto, uma volta Tão conhecida quanto o chafariz da Praça veio perambular pelas primeiras vezes no calça-
pela 1ª quadra da Rua Dr. Bozano – ou calçadão. Saldanha Marinho, e mais notada do que o core- dão. De lá para cá, muitos foram os cochilos – de
Apenas uma. Lenta, rápida, com sacolas, livros e to; Thalia – como a cantora mexicana das novelas deixar a língua de fora. A cena? A desproporcio-
pastas, ou um galão de cinco litros de água nas no SBT – passa seus dias – e noites – vagando pelo nal língua caída para o lado, o corpo estirado de
mãos, para perceber, num instante, essa criatura centro da cidade. Entre um cochilo na porta da barriga para cima e as patas imóveis no ar. Não
errante. joalheria Gaiger, deitada no piso de mármore e raro se encontra Gorda nessa pose aparentemen-
Não é de hoje que se faz presente no ce- refrescada pela brisa do ar condicionado da loja, te letal.
nário das coisas vivas do centro da cidade. Junto e uma volta até a área dos hippies, vive Thalia, Enquanto a outra Baleia, a de Gracilia-
com os hippies e suas pulseiras-colares-brincos- já incorporada à paisagem do centro. no Ramos, sonha com seu mundo cheio de pre-
anéis, com os indígenas e seu artesanato de on- O corpo é robusto. Ao contrário do cachor- ás, a Baleia do calçadão saboreia um resto de
ças de madeira e cestas de vime, com o engraxa- ro magro típico de rua, Thalia mostra sua exu- cachorro-quente. Milho, ervilha, pão e salsicha.
te que carrega sua caixa de trabalho vestido em berância num porte avantajado – que Terminado o lanche, Gorda se espreguiça, levan-
bombachas azul-marinho e com os senhores sen- em muito lembra uma grande ta e segue com seu vagaroso passo,
tados nos bancos que conversam sobre o lance no e gordurosa coxinha de ga- contrapondo-se aos pés que cir-
jogo da noite anterior – lá está ela. Seja no meio linha, daquelas recheadas culam ligeiros, rumo a seus des-
dia da primeira segunda-feira do mês, em que com catupiry. tinos, sempre atrasados.
um turbilhão de pessoas cruza o calçadão numa
cadência apressada, seja no meio da tarde de um
sábado chuvoso e deserto – lá está ela.
***
- Olha, só! Será que tá morta?
- Não sei...acho que tá respirando...
- Mas não tá se mexendo...

Cerca de um minuto depois e envolta por


um círculo de curiosos, o motivo da aglomeração
mexe a cabeça, para o alívio de todos, e volta
a dormir apática à movimentação gerada ao seu
redor.
É apenas mais um domingo ensolarado de

32 fora de pauta no 8 / junho de 2010


altos voos, com os pés no chão
Por: Eduardo Covalesky e Daniel Isaia Fotos: Marcelo De Franceschi e Eduardo Covalesky

“Se Santos Dumont visse esses aviõezinhos, Corsino mexer no meu avião”, diz João, sem tirar
ele se mataria”. Essas palavras são de um homem os olhos (e as mãos) da recente aquisição.
apaixonado por suas máquinas voadoras, mas que Na oficina, Corsino exibe sua coleção de
se contenta em pilotá-las do solo, observando-as aeromodelos. Por todo canto, pedaços de asas,
de baixo. Adão Corsino é o presidente do Clube de hélices, parafusos, motores, e até mesmo aviões
Aeromodelismo de Santa Maria (CASM) e adepto quebrados estavam espalhados. Tudo isso sem fa-
da atividade desde 1981. Em sua casa, mantém lar no arsenal de ferramentas, e até mesmo num
uma oficina na qual trabalha diversas horas di- maçarico, destinados à montagem e manutenção
árias em seus brinquedos “de gente grande” – e das máquinas. “O aeromodelismo é isso aqui, faz
também nos aeromodelos dos associados e amigos parte do hobby”, explica o presidente – admitin-
do clube, principalmente dos novatos. É o caso do o costume de permanecer na oficina até altas
de João Carlos Martins Filho, que entrou em con- horas da madrugada. Adão gosta tanto da ativida-
tato com o aeromodelismo há pouco tempo e já de que nem mesmo o aniversário de sua esposa o
investiu uma boa grana em um modelo Tucano impediu de receber nossa equipe de reportagem:
(acompanhe essa história nos quadros abaixo). “É “Ela já está acostumada”, explica.
uma cachaça: se eu tenho uma horinha, venho no

Os voos em Santa Maria

O ponto de encontro dos sócios do Clube


de Aeromodelismo de Santa Maria é um campo
localizado na Faixa Nova de Camobi, na entra-
da para a Vila Maringá. Foram construídas duas
pistas perpendiculares, na grama, para permitir
decolagens e pousos com qualquer direção de
vento (esses procedimentos devem ser realiza-
dos sempre contra ele). Uma biruta, posicionada
próxima a uma das cabeceiras, indica a direção
do vento. O forte sol é amenizado pela sombra
de alguns eucaliptos que, além de proteger os
carros, proporcionam um local agradável para a
confraternização entre os pilotos.
33
fora de pauta no 8 / junho de 2010
Os finais de semana são sagrados para os no começo; a gurizada já sai voando de cara”.
pilotos: tão logo começa a tarde, os carros co- As falhas mecânicas ou humanas não são
Clube de Aeromodelismo de meçam a estacionar, carregando diversos mode- incomuns no aeromodelismo. Elas não aconte-
Santa Maria – CASM los parcialmente desmontados. Em poucos minu- cem apenas aos novatos, por imperícia; mesmo
tos, o som da conversa entre os amigos começa os experientes, como Sandro Bernardon, piloto
O clube conta atualmente com 54 sócios, que a ser acompanhado do ruído dos motores sendo de caça AMX na Força Aérea Brasileira (FAB), pre-
se reúnem todos os finais de semana no cam- testados, e o aroma de mato mistura-se com cisam aprender a conviver com avarias em seus
po de aeromodelismo para praticar. À noite, o cheiro de combustível – o que os praticantes modelos, causadas pelas quedas. Após realizar
realizam um jantar de confraternização. Para adoram. Pais de família passam a semana inteira uma série de acrobacias, o motor do seu avião
se associar, é necessário pagar uma joia e a esperando a chegada do sábado e do domingo; falhou quando estava em procedimento de apro-
mensalidade de R$ 20. a frustração é grande quando o clima não aju- ximação para pouso, acabou perdendo sustenta-
da. Desapontamento que só é superado, segundo ção e caiu “de bico”. Após a queda, Sandro re-
Corsino, por problemas técnicos nos modelos: “A colheu seu modelo e avaliou os danos. “Isso aqui
Da decolagem à queda maior desilusão é quando você trabalha a se- eu arrumo em poucas horas, semana que vem ele
mana inteira no avião e, na hora ‘H’, ele não já está voando de novo”. Bernardon trabalha na
O primeiro voo de um Tucano da Força Aérea
voa; ou quando ele falha no ar e cai”. Por isso o FAB, e nos fins de semana, sempre que pode, está
Brasileira é precedido de muitos ajustes, pre-
próprio presidente fornece assistência aos nova- presente na pista da vila Maringá. Enquanto está
ocupações e investimentos. A ânsia de vê-lo
tos, ajudando na montagem dos aeromodelos e com a cabeça a cem metros de altura e com os
decolar pode ser breve e transformar-se na
também nas primeiras tentativas de pilotagem: pés no chão, comenta: “Aeromodelismo deses-
agonia de vê-lo cair. Da montagem ao resgate,
“Quanto mais velho o aluno, pior o desempenho tressa, é bom para aliviar a cabeça dos outros
confira a história de um aeromodelo.

João faz o acabamento da asa do Tucano para É no “hangar” da casa de Adão Corsino que Mas o hobby requer ajustes até a hora de
que a mecânica funcione: “Isso aqui é uma os iniciantes acertam seus aviões: “Esse Tu- decolar. Qualquer pane pode resultar na ne-
cachaça. Às vezes eu venho para a oficina e cano aqui, se fosse meu, já estava voando”, cessidade de investir mais tempo e dinheiro.
fico até de madrugada”, diz empolgado com alfineta o experiente aeromodelista. É o que deixa João apreensivo. Para regular
o primeiro avião os ajustes no ar, o comando do primeiro voo
é de Adão.

34 fora de pauta no 8 / junho de 2010


problemas”. piloto com onze anos de prática.
Pilotar implica riscos. Em poucos segun- Tantas manobras e acrobacias incentivam
dos, um aeromodelo no qual se investiram meses a organização de competições pelo mundo. O
de tempo e dinheiro pode, simplesmente, acabar Brasil conta com uma Confederação para regu-
espatifado no solo. Talvez por esse motivo seja lamentar e direcionar a atividade no país, ou
tão apaixonante o sentimento de controlar esses até mesmo credenciar as lojas autorizadas para
aviõezinhos com perícia e trazê-los ao solo com a venda dos equipamentos. Mas o CASM não é
segurança. Alguns pilotos gostam justamente filiado a ela. O presidente Corsino explica que o
dos desafios, como Rodrigo Farcili, que tem um Clube de Aeromodelismo de Santa Maria partici-
modelo-escala do avião acrobata Extra, com 35% pava de competições, mas hoje funciona com o
do tamanho da aeronave original. O modelo em objetivo de divertir e integrar os pilotos. Uma
tamanho real é utilizado nas competições de Air das razões para essa mudança foi a proibição de
Race, em que os pilotos vencem obstáculos com voos livres em alguns encontros competitivos, o
aviões de alta manobrabilidade. Entre tantas que limitou a diversão dos praticantes.
manobras arrojadas que realiza, sua preferida é A brincadeira não é para criança. O inves-
pairar próximo ao solo utilizando apenas a força timento é alto, mas o prazer de ver os modelos
da hélice frontal. Um procedimento de grande voarem compensa o tempo gasto na construção
apelo estético – mas que expõe seu modelo a um do modelo de aviação. Apesar das decepções
grande risco, já que qualquer movimento em fal- de uma queda, a opinião é unânime: “Vale a
so pode ser desastroso. Nada que assuste esse pena”.

Três meses de trabalho depois, o Tucano de- O motor apaga, e Corsino perde o controle “É normal, João. É o teu primeiro avião, isso
cola sob os aplausos dos aeromodelistas. No do aeromodelo, para tristeza de João. Os faz parte”, consolam os amigos. Apesar dis-
comando de Corsino, todos observam o avião, pilotos começam as buscas pelo Tucano, no so, João pretende dar um tempo para os avi-
inclusive João, até que os procedimentos de mato fechado, e João encontra o avião com ões. “O Corsino devia pagar indenização por
pouso são iniciados. Começa o problema. a base da asa quebrada. danos morais”, brincam alguns, já acostuma-
dos com os acidentes do hobby.

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fora de pauta no 8 / junho de 2010
talentos tipo exportação
Por: Ivan Lautert e Juliana Frazzon Fotos: Matheus/Arquivo Pessoal; Leonardo/Patricio Orozco-Contreras; Murugappan/Letícia Nascimento
O que os três personagens dos relatos a seguir têm em comum? Além de reconhecido talento em suas respectivas áreas
de conhecimento, todas elas passaram por – ou permaneceram em – Santa Maria. Seja nas ciências exatas ou nas ciên-
cias humanas, cada qual se destacou ao mesmo tempo em que ia traçando sua história de vida.

Leonardo Brasiliense Murugappan Ramaswami


A expressão serena não denota, nem de Qual o maior sonho de um fã de computa-
perto, o quão sinuosa foi sua trajetória profissio- dores? Eliminando-se, possivelmente, uma conta
nal. Em 1997, formou-se em Medicina pela UFSM gold no World of WarCraft, estaria na ponta da
e, já durante a faculdade, começou a escrever. língua de muitos deles a vontade de trabalhar
Estudava psicanálise e tinha em mente fazer mes- no Vale do Silício, a Meca da tecnologia. Muru-
trado, doutorado e ingressar na vida acadêmica, gappan Ramaswami concretizou esse sonho. Ele
além de ter um consultório. Perto da formatura, formou-se em Engenharia Elétrica pela UFSM em
deparou-se com a obrigação de optar entre a psi- 1987 e viajou, então, para os Estados Unidos para
canálise e a literatura. Como optou pela segunda, fazer mestrado em uma das principais faculda-
vislumbrou, num concurso público, uma profissão des de microeletrônica do mundo, a University of
para sustentar-se. Então, aos 25 anos, era técnico Florida. “No primeiro semestre foi complicado,
do Tesouro Nacional e escrevia minicontos – gêne- bilidade precocemente, exceto uma que sua mãe demorei a me adaptar. Mas depois comecei a me
ro que conheceu com Drummond, no livro Contos constatou: com apenas quatro anos de idade, sa- destacar e consegui um estágio que me ajudou
Plausíveis, e que caiu ao seu gosto. bia de cor os nomes dos atores que estrelavam os muito a chegar às empresas do Vale do Silício”.
Sem que ele buscasse isto, veio o Prêmio filmes da Sessão da Tarde. Porém, Leonardo acre- Ramaswami começou por baixo, mas traba-
Jabuti de Melhor Livro Juvenil em 2007, pela dita que possíveis dons precoces “têm um grande lhou em grandes empresas do ramo, como Toshi-
obra Adeus conto de fadas. Na época ele tinha 34 perigo: a pessoa ficar presa a algo só porque ela ba e Sony. Nesta última, participou daquilo que
anos e, hoje, acredita que as pessoas passaram sabe fazer bem. Um dia ela resolve parar com pode se comparar a um orgasmo nerd: trabalhou
a prestar mais atenção nele a partir dali, e tudo aquilo, e todo mundo fica enchendo o saco: mas no desenvolvimento dos chips gráficos que foram
melhorou da noite para o dia. O escritor, médico tu sabes fazer isso tão bem!”. A opção dele pela usados no videogame Playstation 2. “A realidade
e funcionário da Receita Federal Leonardo Brasi- literatura foi bastante decisiva e corajosa, já lhe do trabalho não tem muito a ver com o jogo. Mas
liense ganhou o prêmio literário mais importante rendeu o eminente prêmio mencionado. Mais que participar do projeto e ver o resultado é muito
do Brasil como num golpe de sorte, imaginando isso, lhe propicia prazer, pois pode praticar o que bom”, explica o tímido Muru.
que seria algo que nunca iria acontecer... realmente gosta e não pretende deixar de fazer Tímido? Bom, é preciso relativizar o ter-
Ele não acredita ter possuído alguma ha- tão cedo. mo para o contexto do mundo da microeletrôni-

36 fora de pauta no 8 / junho de 2010


ca. Segundo o que Muru explica, existem muitas
pessoas superdotadas na sua área de atuação, e
o que lhe tornou um profissional disputado entre
os colegas foi a sua capacidade de comunicação
e “marketing pessoal”. “Muitos dos que estudam
as (ciências) exatas tornam-se tão introspectivos
que passam a ignorar o mundo real. Eu não sou
assim!”, afirma. No entanto, resolvemos insistir:
“Não mesmo?”. Muru dá uma risada acanhada e
confessa: “Bem, às vezes, quando converso com
a minha namorada, não presto atenção no que
ela está falando, penso em alguma ideia nova que
possa ter tido. Mas aí ela me chama a atenção, e
eu volto à Terra”.
Quando questionado sobre como era sua
vida nos Estados Unidos, ele afirma que vivia con-
fortavelmente e que pôde economizar bastante.
Mas então... por que voltar? Saudades da família Matheus Palharini
e da namorada. Os pais têm uma loja de conve-
niências em Santa Maria, que reúne quase todos Pense rápido! Tente criar a imagem mental coturnos surrados e com cabelos até a altura da
os parentes, e Muru sentia muita falta do conví- do personagem que descreveremos nas próximas cintura (pra falar a verdade, ele cortou faz um
vio familiar. Por isso, em 2006, resolveu voltar ao linhas. Matheus Palharini tem 23 anos, cursou tempo, mas mantenhamos a magia). A aparência
Brasil e tirar umas férias prolongadas para matar Engenharia Mecânica e Engenharia Química pela funesta e engraçada rendeu-lhe o apelido de pri-
as saudades de casa. O plano era ficar apenas um UFSM. Foi aprovado, há dois anos, em primeiro lu- mo Itt, o personagem cabeludo da Família Adams.
ano, mas ele nunca mais voltou. gar geral no concurso nacional da Petrobrás, con- Mas de assustador ele tem pouco, só as camisetas
Hoje em dia Murugappan tem 43 anos, correndo com Doutores e Mestres ainda antes de mesmo.
uma namorada e a família ao seu lado. Trabalha graduar-se. Ele veio da cidade de Não-Me-Toque, Ele não pôde assumir a vaga conquistada
como consultor para várias empresas, realizando polo internacional de tecnologia agrícola, a qual no concurso da Petrobrás justamente por não ser
workshops e treinamentos para fábricas de mi- costuma chamar de Não-Metrópole. É autodidata formado. Hoje Matheus faz mestrado em Enge-
croeletrônica. Já na hora da despedida, tocamos em uma penca de coisas (de guitarra até inglês nharia Petroquímica na UFRJ e pretende, um dia,
no assunto genialidade. Ele renega o rótulo e diz: e línguas do Tolkien). Ah, sim! Ele toca em uma trabalhar na exploração do pré-sal, mas afirma
“É difícil dizer que sou superdotado quando eu banda de Black Metal chamada Lenhador e – por sentir falta da simplicidade da vida no interior do
trabalhei lá [no Vale do Silício] com os melhores incrível que pareça – tem uma namorada. Rio Grande do Sul: “Aqui as coisas são mais cha-
do mundo”. Então nós chateamos: “Lá pode ser Essa suruba de interesses se condensa num tas. Tudo é mais complicado. Festa no Rio Grande
que não, mas e aqui?”, e ele admite: “Bom, acho alemãozinho sempre vestido de preto, com cami- é uma cachaça, salsichão e piadas sobre trago!”,
que aqui sim!”, sorri Murugappan, misturando ti- setas de bandas de metal extremo (estampadas diz abatido.
midez e confiança. com ilustrações as mais horrendas imagináveis),
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fora de pauta no 8 / junho de 2010
alice no país de tim burton
Por: Letícia Nascimento Gomes Ilustrações: Divulgação

Estou confusa, achei que os animais só


falavam comigo porque eu era um desenho, mas
agora sou um filme e eles continuam a fazê-
lo. E é tão real. E é tão colorido. Queria que o
mundo fora do buraco fosse como aqui, onde cada
lugar tem uma cor: no castelo da Rainha Branca,
tudo é branco, e no da Vermelha, tudo parece
avermelhado. Que cor seria a minha casa?
Bem, poderia ser azul; se bem que azul...
não. Eu lembraria dessa floresta e dessas listras
de azul fluorescente intenso flutuando no ar junto
com uma boca cheia de dentes branquíssimos.
Espera aí, dentes brancos? Ah, é você gato. Agora
já o vejo. Por que teima em aparecer por partes?
Esse gato de Cheshire está sempre me
Desde pequena é a mesma coisa. Sigo um dando sustos. Mas ao menos não me confunde
coelho branco, caio num buraco quase infinito de como faz o Chapeleiro Maluco. Eu sei que ele é
tão longo e pronto: estou na maluquice do País maluco e que já devia esperar isso dele, mas fico
das Maravilhas. Isso é tão real que, às vezes, até zonza. Toda essa conversa que não entendo,
esqueço que é um sonho. além das charadas sem respostas. Nunca consigo
Muito grande, muito pequena. De que decifrá-las, aposto que nem ele consegue. Março está sempre a atirar objetos nas pessoas; o
tamanho sou, ou deveria dizer de que tamanho Mas, ao menos, divirto-me vendo as cores vivas coelho branco sempre a correr, e a Rainha Branca
estou? Mas meu tamanho não é esse. Grande assim mudando em seu rosto: laranja, rosa, vermelho. anda como se deslizasse – e mesmo assim parece
só posso ser outra pessoa. Se é para ser outra Todas mudam de acordo com o humor, só não sei estar num cabide. Será que ela pôs o vestido sem
pessoa, não quero voltar para casa. A Lagarta já como ele faz isso. tirá-lo?
me avisou que não sou a Alice, ou ao menos não a Se bem que esquisitices de que não Não gosto que fiquem mandando em
certa; eu já desconfiava que não fosse mais Alice entendo, não faltam nesse mundo; a lebre de mim. Versos? Deixe-me ver, eu até sei, mas não
– desse tamanho não podia ser mesmo. consigo lembrar-me de nenhum direito. Sabe de
Quando eu sonhava ser um desenho, uma coisa? Não tenho que fazer tudo o que me
havia mais personagens; agora, acho que eles mandam. Agora sou grande e, para mim, esse País
diminuíram. Até parece que a Rainha Vermelha das Maravilhas é tão real que não sei mais se é
está misturada com a Rainha de Copas – vai ver um sonho. As criaturas desse mundo podem até
estou confundindo essas rainhas. Pode ser a dizer que não sou a Alice certa, mas agora eu sei
minha idade; como estou mais velha, devo estar que sou. Se é para ser alguém, eu quero ser eu.
com preguiça de sonhar com muita gente. Quero ser Alice.
38 fora de pauta no 8 / junho de 2010
luiz fortes: uma história orquestrada
Por: Ramon Pendeza Fotos: Ramon Pendeza

Qual seria a melhor maneira de escrever sobre um homem com cheiro de cedro nas velhas e delicadas mãos? Em uma dessas noites
outonais, aficionado pela lua, a observava e lembrava de Moonlight Sonata, de Ludwing. Uma luz! Por que não traçar o perfil daquele
homem em três partes, em alusão aos três movimentos da obra de Beethoven, um dos maiores gênios da música?
Diferentes sons um robusto relógio de pêndulo e ainda uma es- rosto. Senti que ele esperava a pergunta desde o
pécie de sinalizador usado pela viação férrea em início da entrevista...
Anos 70 - Luiz Fortes levava seus filhos à tempos passados, o senhor de 78 anos, paciente e
escola para que, além das disciplinas obrigató- contraditoriamente apressado, falou durante al- Do sofá ao banco do carona
rias, estudassem piano. Tempos difíceis aqueles! gumas horas sobre sua vida e sobre a paixão por
Sem dinheiro para comprar um piano, restou a pianos. Com 35 anos de profissão, o santa-ma- Anos atrás decidi comprar um piano e, atra-
Luiz o aluguel de um instrumento para que suas riense calcula ter consertado cerca de 500 instru- vés de um anúncio nos classificados de um jornal
crianças pudessem evoluir no estudo. O piano alu- mentos, tendo prestado serviços para artistas e qualquer, vim a conhecer Luiz Fortes. “Eu coloco
gado literalmente quebrou o galho – ou deveria orquestras famosas, inclusive internacionais. “Foi a isca e espero algum peixe beliscar”, brinca Luiz
dizer o tampo? –, o que fez com que Luiz buscasse um bom negócio! Santa Maria não tinha ninguém se referindo aos anúncios.
conhecer melhor o instrumento para que pudesse que trabalhasse com esse instrumento”, gaba-se Eu, o peixe, conheci os
ele mesmo consertá-lo. Luiz pelo acaso ou ironia do destino que fez com pianos que Luiz coloca-
Pé na estrada... de ferro! Luiz, filho de que ele abrisse um negócio exclusivo na cidade. ra à venda em sua casa
ferroviário, fora criança de uma época romântica Ainda hoje, além de Luiz, apenas um de seus fi- na época. Não encontrei
de Santa Maria, na qual a estação de trens era lhos e também um neto sabem consertar pianos o que procurava, o que
ponto de chegada e de partida de muita gente, na região. me levou a uma viagem
um lugar onde, ao entardecer, os jovens iam em “Vivi momentos de alegria, principalmen- de Pampa à outra casa de
busca de um flerte ou de apenas uma ilusão ves- te nas horas de entregar um piano. Este momen- pianos do Luiz, em Porto
pertina. O ruído dos vagões e o tic-tac das má- to quase sempre é a concretização de um sonho Alegre. Esse convívio um
quinas foram supostamente os sons mais ouvidos acalentado por muitos anos”, desabafa o homem pouco mais longo e próxi-
desde a infância até meados de 1970, quando o que não tira os olhos das anotações deste que es- mo é o que dá a credibili-
então representante de insumos agrícolas, pres- creve, demonstrando um ar de insegurança com dade necessária para este
tes a se aposentar, fazia uma de suas últimas relação a sua exposição em uma revista. Luiz, último movimento.
longas viagens. Luiz chegava em São Paulo para porém, já ouviu músicas tristes. Sentado entre Luiz gosta de ler.
fazer curso e estagiar em uma fábrica de pianos. dois pianos, com outro tom de voz – mais baixo Em seu curto tempo de descanso, lê jornais e re-
Daquele momento em diante, o som em seu ou- e distante – e agora desviando o olhar, o senhor vistas. Seu maior interesse é a política. Luiz gosta
vido deixara de ser enferrujado e mecânico e se comenta a perda da esposa e de um filho. Há anos de música. (Sério?) Prefere o popular ao erudito.
tornara amadeirado e harmonioso. ele mora apenas com uma funcionária, que cuida Luiz gosta de contar histórias. Eu ouvi algumas
da casa e de sua agenda, mas não reclama de naquela viagem (mas não contaria todas). Luiz é
O piano e o pêndulo solidão. Então ressona o pêndulo. Detectando um um bom negociante. Ele me fez pagar, além do
leve mal estar, olho a minha volta mais uma vez piano, metade das despesas com gasolina da via-
Em uma sala ampla e de tons pastéis, de- e questiono Luiz sobre garrafas de vinho e de uís- gem. Ah! E eu voltei de ônibus. Mas valeu a pena.
corada com objetos antigos como um gramofone, que expostas sobre a lareira. O sorriso volta a seu Luiz resume-se em uma palavra: BRAVO!
39
fora de pauta no 8 / junho de 2010

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