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(Os mas media desemnperham papel terminante nas soiedds actus. Mas 0 desenvolvimento dos meios de ‘eomunicasao no torna a sociedade mals transprenteeconsciente ds ‘Os mass media tendem a reprodusir 0s scontecimentos em tempo real, acentuae que retoma Walter ‘ua paradoxal con post. Gianni Vartimo ensina Filosofia na Universidade de Turim e tem iris obras Dublicadas sobre a filosofia alema ds sé ‘eulos XIX e XX, Entre as seus livros pu- bicatos em Portugal destacam-se "AS Aventuras da Diferenga, "O Fi da Mo- {emiade”¢ "iurodugo a Nite" eb t50N.972.700185 LOO ANTROPOS A SOCIEDADE TRANSPARENTE gianni vattimo RELOGIO D'AGUA BS “her Rua Sylvio Rebelo, 15 1000 Lisboa — Tel. 8470775. (© Garza Eitore, 1989, “Tilo: A Sociedade Transparent “Titulo Original: La SocietéTransparente Autor: Gianni Vatimo ‘Tradutor: Hossein Shoojesabel Santos Cap: Femanto Mateus (© Relogio D'Sgua, 1992 Composigio: Religio D’Agua, Etres Depo Legal at (no sentido de Lessing, ou de Hegel, ou tam, ‘bém de Comte ou de Marx); 0s mass media, que teoricamente ornam possivel uma informagdo «em tempo real» sobre tudo ‘aquito que acontece no mundo, poderiam com efeito parecer uma espécie de realizagao concreta do Espirito Absoluto de Hegel, isto é, de uma perfeita autoconsciéneia de toda hu ‘manidade, a coincidéncia entre aquilo que acontece, a histria a consciéncia do homem. Vendo bem, eiticos de inspiragao hhegeliana e marxista como Adomo raciocinam pensando neste ‘modelo, e basciam o seu pessimismo no facto dele (por culpa «do mercado, afinal) néo se realizar como poderia, ou realizar- «se de maneira perversae caricatural (como no mundo homo- logado, ¢talvez também «feliz» por meio da manipulagao dos desejos, dominado pelo «Grande Irmo»), Mas & liberia das muitas culturas e das muitas Weltanschauungen tomada possivel pelos mass media desmentiu precisamente o ideal de luma sociedade transparente: que sentido tera a liberdade de informasio, ou mesmo apenas a existéncia de varios canais de ‘dio € de televisto, num mundo em que a norma fosse a re. 12 ago da possibliadcs de infornayao sobre a ealiiade nos ‘con mis varias aspecos tora cada sez menos conebive "pps a de ua realidad, Resize se, talve, no mando don mas media, uma profeca de Nstsche: no fm mundo verdadero transforma seem aul. Se temos uma iia a tealilage esta, na nossa condiggo de exstencia tado- mesa, pode ser entedida como o dado objective duc (st abaixo,e ara am, das imagens que nos slo dads pelos Inna Come onde poseramossleangar uma tal eae “cm sit Realidade, pars nds, € mas o resultado do crza nen, da comtaminagdo> (0 sentido latino) das mlplas en, inerpreages, reconstrugds que, em concorncia re si ou, seja como for, sem qualquer coordenagdo central, rect ae ‘Ntese que pretendo propor é que na socedade dos media, conver de um ideal de emaneipagio modelo ela aocons” ‘ncia completamente defnde, onforme oprete cone eno de quem sabe com esto a coisas (na ele 0 Esprto Noluto de Hegel ou ohomem nao mais esrave da eclogia Come 0 pensa Mann), abe can aur deal de mancipe: (So qe emanes nasa bese a oslo, a luraidase, por Simo desase do peri principio de realitade>.O homer, hoje pode fnalment tomar-se conscinte de que a perfeta literdae nd € de Espinosa, no €—como sempre soon ‘nti concer a extra necesdria do real adep- tarse ela. A imporincia do ensino filosico de atores de mede a poder ornare reonhecies «Pronto algum uma manfesagio brat de medina cist emancipadr da itragio dss aconaliates locas wan todavia apenas o de garaniracadn wma dela om mais “onvpet reconecimentoe satentidade> como sea emar- “ipagio consis em manifesta nalmente ago qu cada tm ¢«verdaderamente» (ands em tenmos metatscos, esi hsianos: negre, mulher, homessexal, protestant, ct. O ‘cntidoemancipador da iberagio ds dierengase dos sda Ictos» consist mais 0 efio global de desenmizamenta qi scompanha o primero efeto de entificageo, Se aloo mea ‘hale, finalmente, nam mundo de dialeetos entre outos, se profeso 0 meu sistema de valores — religions, ex€icos, Polisco, éiicor neste mindo de cular pris, tre hi concn nena da irate, ong ita, de todos estes sistemas, comeya elo me i aguilo que Nicosche, mura pégina de A Gata Ciencia ‘chama 0 «continuar a sonhar sabendo que se sonha». E pos- “vel uma coisa ssi? A essncia agua que Nitsce cha iow ssuper-homem (ov ultrhomem), 0 Uebermensck 15 cst toda aqui: é a tarefa que ele aribui a humanidade do futu- 1, precisamente no mundo da comunicagao intensificada, ‘Um exemplo daquilo que significa 0 efeito emancipador da ««confusio» dos dialectos pode enconirar-se na descrigo da experiéncia estética que dé Wilhelm Dilthey (uma descrigao {que € decisiva também para Heidegger, no meu entender). Ele ppensa que o encontro com a obra de arte (como aliés 0 préprio conhecimento da histéria) € uma forma de fazer a experiéncia, na imaginagdo, de outras formas de existéncia, de outros mo- dos de vida diferentes daquele em que de facto nos encontr ‘mos na nossa quotidianidade concreta. Cada um de nés, ama- ddurecendo, restringe os seus préprios horizontes de vida, es- pecializa-se, fecha-se dentro de uma esfera determinada de afectos, interesses, conhecimentos. A experéncia estética faz- -Ihe viver outros mundos possiveis, ¢ mostra-Ihe assim tam- bbém.a contingéncia, a relatividade, 0 carécter nlo definitivo do ‘mundo «real» no qual se encerra, ‘Na sociedade da comunicagdo generalizada e da pluraidade das culturas, 0 encontro com outros mundos e formas de vida 6 alvez menos imaginésio do que era para Dilthey: as «outras» possibilidades de existéncia que actuam sobre 0$ nossos olhos, sio aquelas que se representam pelos miiltiplos «dit lectos», ou ainda pelos universos culturais que a antropologi © a etnologia tomam acessiveis. Viver neste mundo méltiplo significa fazer experiencia da liberade como oscilagdo conti- rua entre pertenga e desenraizamento, ‘E.uma liberdade problemitica, no s6 porque este efeito dos media nio € garantido, € apenas uma possibilidade a reconhe- cer € a cultivar (os media podem também ser, sempre, a voz do «Grande Irmiio»; ou da banalidade estereotipada, do vazio de significado...); mas também porque nés mesmos no sa- bbemos ainda muito bem que aspecto tem — custa-nos a con- ceber esta oscilagdo como liberdade: a nostalgia dos horizon- tes fechados, ameagadores e trang 16 po. continua anda radicada em nds, como indvios como Mcledale.Filésofos nilsas como Nietsche e Heidegger (tht também pragmatstas como Dewey ou Wiigenstein), 20 (Maren quo set no euncid necessariamente com auilo Joc eativel fino, permanente, mas tem antes a ver com 0 MMontciment, o consenso, odilogo interpre, esfor aes porno tomar capazes de aleangar esta experéncia de Fogo mun poser como chance de um novo thn ese (alver:iament)hamsos. 17 Ciéncias humanas e sociedade da comunicagéo A relagdo ene ciéncias humanas € sociedade da comunica- io a nossa sociedade caracterizada pela intesificacdo da voc deinformagdes pela tendencial denticagio(elevisio) ‘enire aeontecimento e noticia — € mais estrito e orgnico do ‘que geralmente se scredita, Se é de facto verdade em gerl que as cléneias, na sua forma medema de cincias experimentas © <1écnicas» (manipuladoras dos dados naturas) consttuem ‘nais © seu abjecto do que exploram um «real» jé constituido © ‘orenado, sso 6 vilido especialmente para as ciéncias huma- his, Estas ndo so apenas uma nova forma de enfrentar um fendmeno «externa», 0 homem ¢ as suas institugses, dado «dese sempre: mas tomnaram-se possveis, n0s seus méiodos e tw seu ideal cognitive, pela transformagéo da vida individual e ‘soca, pelaconstuigdo de um modo de exist socal que, por sua vez € drectamenteplasmado pelas formas da comu- nicagiio moderna. Nao seria concebivel uma sociologia como iene, € mesmo tendencialmente como previsio de grandes ‘omportamenteseolectives ou ainda somente como tipolopia clas diferengas destes comportamentos, aio apenas se n0 sulsistisse @ possibilidade de recalher as informagaes neces- sivas (Que supSem, porasto, um certo modo de eomunica- (io), mas, antes de mais, sem que alguma coisa como um 19 ‘comportamento colectivo se possa determinar como facto; uma possibilidade que se toma efectiva apenas num mundo {Mm que a comunicagdo social superou certosniveis. Também, ¢ sobretudo, um saber como o da antropologia nao seria pos, sivel sem o facto elementar do encontro com civiizagées © grupos humanos diferentes — encontro que s6 se verificou de {forma determinante com as viagens e descobertas modemas. (Ox ainda, para voltar& sociologia: também uma descrgao da Sociedade que ndo se identifique com a descrigao, catalogagso «© comparagio de regimes politicos (como era a Pola aristo. {élica), nfo € concebivel antes de, mais uma vez no quadro da ttansformagao social modema, se ter consttuido alguma coisa como a «sociedade», aquilo a que Hegel chamava a sociedade civil, distinta do Estado e das formas de organizagao politica do poder. Observar-se-& que o aparecimento e desenvolvi- mento de uma sociedade civil distinta do Estado no si imediatamente, um fenémeno do qual se veja a relagio directa ‘com os fenémenos da comunicagio e com os novos meios de informagio disponibilizados pela modema técnica, Porém, é possivel mostrar — por exemplo, referindo os estudos de Habermas sobre a opinido pablica”) — que mesmo no devit da sociedade civil, com ambitodiferenciado relativamente 20 Estado, tem um papel fundamental a opinio piblica, a ideia feral de uma esfera pablica, ue esté certamente ligada n0s ™mecanismos da informagao e da comunicagdo social. ‘Uma primeira abordagem do nosso tema pode ser, portan- to, a constatago — que naturalmente deveria ser corroborada Por mais vastos aprofundamentos ¢ apresentagses de factos — de que as chamadas aciéncias humanas» (um termo que no ‘nosso discurso, como na cultura actual, continua incompleta ‘mente determinado em relacdo aos seus limites e 20 seu fbi to de compreensio), desde a sociologia & antropologia ou & Drépriapsicologia — as quais surgem, defacto, apenas na ‘moderidade —, sio condicionadas, para além de uma 20 Islagio de determina reciproca ela consti da soce- tine moderna come socedade da Comuniago, As clenias hmanas so, a0 mesmo tempo efeitoe melo dealteror de- ‘cnvolvimento da sociedade da comuniaydo generalizata. timbora nose poss pretender dar uma detinigao exaustiva sn isha en ade da cog sis terms que permanecem ingeterminadosexactament devido A sua peculierevidencin no dscurso da nossa cultura pede geramente convie-se que chareemaclncias hima rasa Yodosagules saberes que fazem parte (u tendem a fa tor parte: por exemplo a pstologs) do fmbito daquela que Kantchamou antopologia pagnstica iso 6 que dio urna cscrigao spostvan, nfo flosstico-transcendenta, do ho- tnemy no a parr do que ele € por natureza, mas dagulo ue te fe des portato as insiuigdes, ds formas sibel ‘as, dcaltura, Uma ta definigio ds eiéncias humanas deixa Ceriamente mutts problemas em aber, e antes de mais ne expt opt en rele "ago que agi nos interesa no uma defini eps yologleamenis Cautira Gan clocias Wmanas, fat & ‘agi destas fons de saber Guaqur que sjam os ies ‘cos do seu fmbilo) com asociedade da comunicagio ge Ivan Asi, se spusrmos muito em ge es Ciencias humanas so aquelas que descrever eposlvamente> unio qu o homer faz de sna clara ena sociedade nto Povereos também conv que «propria ie de uma al des {rao €essencialmente condicionada pelo desenvalvimento, At Forma visiveleavessvel a andlsescomparativs, de uma tl positvidade do fendmeno hsmano; 0 que, na forma mais (viene sed exactamente com o deseavovinents da soe- Shue moderoa ns seus aspects comunicatvon. Tova, ilar de sociedade da comuncagao comport tm- ‘mma outa hipoteve que slargae complica primeira que Topusemos acerca Ga ago entre inciashumangs este 21 ‘dade da comunicagio; isto €, a hipstese de que aintensificago {dos fenémenos comunicativos, 0 aumento da circulagao das informagées até d simultaneidade da reportagem televisiva em directo (¢& ealdeia global» de McLuhan) ndo seja apenas um aspecto entre outros da modernizacao, mas seja de algum mo- do.0 centro € o préprio sentido deste processo, Esta hipstese refere-se obviamente as teses de McLuhan, segundo 6 qual tuma sociedade € definida e caracterizada pelas tecnologias de ue dispde, no em sentido genérico, mas no sentido espect fico de tecnologias da comunicado; eis porque falar de uma ‘, mostrando que ele funciona para compreender, thorexempio, acentralidade que assumem nas sociedades tar. ‘ho industriis&s tecnologias informdteas, que slo como «0 io dos 6rgios», o lugarem que o sistema teenol6gico tem oto» ou ciberneta, 2 sua drecslo, também entendida ‘omo tendencal direogio de desenvolvimento, Outro campo ‘imaue parece poder servir esta descriggo unitria do mundo trcnol6gieo como mundo das cincias ociaise dainformiti i, como hipétese unificante,€ a definigao da «contempora- 23 or neidade» do mundo contemporineo: o qual, na perspectiva ‘Que propusemos, nfo assume um tal termo segundo banais eriterios de proximidade «cronol6gica» (contemporineo € aquito que nos € temporalmente mais préximo), mas mais co ‘mo mundo em que se desenba e se comega a realizar concre- tamente a tendéncia para a redugdo da hist6ria no plano da si- ‘ultaneidade, através de técnicas como a da reportagem tele~ visiva em directo, Mesmo sem querer seguir até as suas extremas, ¢ vertigi osas, consequéncias esta definigio da contemporaneidade, {que comporta certamente um reajustamento radical da pr6pria ‘nogdo da historia, poder-se~4, porém, reconkecer a racionali- dade de um outro aspecto ligado a esta hipétese: ou seja, ‘mostrar que & luz dela os ideais sociais da modernidade se ‘mostram unitariamente descritiveis como guiados pela utopia dda absoluta autorransparéncia. Pelo menos a partir do Tumi- nismo, tomou-se evidente que o facto de submeter as realida des humanas — as instituig6es sociais,a cultura, a psicologia, ‘a moral —a uma andlise cientfica nfo € apenas um programa epistemol6gico que se proponha perseguir imeresses cognit vos estendendo o método cientifico a novos imbitos de esti- do; € uma decisdo revolucionaria, que s6 se compreende em relagdo a um idea! de transformagao da sociedade, Ni, po- rém, no sentido de considerar o Saber sobre © homem e as stituigdes como um meio para agir com mais eficécia com vista & sua modificaglo, O Aupkidrung nd € apenas uma etapa ‘ou um momento preparatério da emancipagio, mas é a sua Dropria esséncia. A sociedade das cincias humanas é aquela fem que o humano se toma finalmente objecto de saber rigoro- 80, vilido, verificdvel. A importincia de que se revestem, no programa de emancipagdo iluminista, aspectos como os da li- berdade de pensamento e da tolerincia nfo é motivada apenas ‘ou principalmente por uma geral reivindicacio de liberdade, de que estes momentos fazem parte, mas também e ainda 24 ‘nis, pla conseigneis de que uma Sociedade livre € aquela em {ive ofhomem se pode tomar consciente de si numa sesfera Hblica>, a da opinido pOblica, da livre discussi0, ete, nio ‘nusca por dogmas, preconceitos, superstigdes. O wcients- tio» positivist, que se concretiza na reivindicagdo de wma [hss ao esto posiivo do saber sobre o homem, no 6 Frnatinenteredutvel a uma sobrevalorizagdo, quanto aos mé- tovos, da eincia da natureza cua aplicagdo também ao ambi {o social e moral devera sssegurar uma maior certeza e eficé- Cia ete tipos de saber, mas compreendese, pelo menos no tie diz respeito a Comte, se o viemos do ponto de vista da nalogia com o programa hegeliano da «realizado» do ‘pio absolto, da pena autotansparéncia da rao, Fate ideal de autotransparéncia, que atribui 8 comunicacio sociales cineias humanas um careter no 36 instrumental, tins de algum modo final e substancial, no programa de tianeipagio, enconira-se hoje largamente na teoria social {este pont de vst, € emblemdico o pensamento de autores ‘ono gen Habermas e Karl Otto Apel, ambos diversamen- te lizados& heranga do marxismo crio, da hermenéutic, da {iosolia da Tinguagem, mas sobretudo movidos por uma po- tleronainspiragdo neokantiana que se associa a uma certa ‘eipretagéo da psicandlise. Apel ©, por exemplo, consti 1- {isu sua vio da soeiedade eda moral em tomo do ideal (que ‘ksenpeta a fangBes de imperativo categsrico kantiano) da covmmidade iimitada da comunicago» — um temo que se lana de Peirce eo qual ee atribui a fungfo de uma mets- ‘opr que torna possVeis todos os nossos miliplos jogos Iinpuisticas, Referindo-se a0 conhecido aforismo de Wit jenstein, segundo 0 qual nunca se pode jogar um jogo lin- Isto socio, Apel considera estar implicio «qualquer {ho de fingusyem, e portanto em qualquer acto de pensamen- inn invitiel asst de esponsabidade eaivament ‘eas Hinguisticas; esta responsabilidade, porém, liga os fa- 25 ma nr i eee eres ee teetenetcr es i préprio; também neste caso, o falante que inventa as regras eae eh rs Ease ictemnwann ans event someetimneie rose cee ie ee es eta nett ceeaige ergo SOS, eidiers Ritter eee fee aati tefl gecigen cian ain ates Gomera Sieve ms Siete ag Eine ae eure reece fits eetnre ete ts i ceectme tet nas ch mei opt ei Recess tde ie cornsie iterative Socal apes 26 uietia destes dois momentos, com vista a uma sfntese ¢ & tina ransposigio, realiza-se «no preciso momento em que a {Comunidade da comunicagio, que constitu o sujeito transcen- ial da ciéneia, setorna ao mesmo tempo o objecto da cién- ‘it: no plano das ei€ncias sciais no sentido mais lato do ter tno. Agora toma-se evidente que, por um lado, o sujeito do ppossivel consenso com a verdade da ciéncia no é uma Vonsciéncia em geral» extramundana, mas sim a sociedade histrico-real; mas que, por outro, a sociedade histsrico-real ho pone ser adequadamente compreendida se for considerada ‘orn objecto virtual da ciénca, incluindo a ciéncia social € se su tealidade hist6rica for sempre reconhecida, de modo 20 fnchto tempo empfrico e normativo-eritico, em referéncia 20 aI realizar na sociedade, da comunidade iimitada da co- nicagfior ©), observar que aqui a expressio «sociedade de comu- io», a que atribuimos inicialmente um sentido generica- Ineate desertivo, toma-se um ideal normativo, com a intro- Ulugio do termio acomunidade> que, além de retomar Peirce, ‘cvoca também uma ideia de maior organicidade e de imediati ‘dade prépria da comunicago, assinalando uma das direc- {Goes de significado em que certamente Apel se move, um ideal ‘\ctipo «compenetrativa» romfintico, que continua a ser mui- (as vues dominante nas teorias contemporaneas da comuni- ‘ago @. A sociedade da comunicagio ilimitada, aquela em {jue se realiza a comunidade do socialismo I6gico, € uma so- ‘Tedade transparente, que precisamente na liquidagdo dos ‘luiculos e das opacidades, mediante um procedimento que ‘ Tonma largamente past de uma certa ideia de psicandlise, ‘também a reduzir radicalmente 0s motives de conflto. ‘As posigdes de Apel sio significativas nio s6 porque atr- Jwyein um pape essencial as ciéncias humanas na realizagio de tins sociedade da comunicagao entendida como ideal norma {ivo. mas também porque mestram sem equivocos 0 que esta 27 ccontido neste ideal como sua caracterstica essencial, isto 6, a autotransparéncia (tendencialmente) completa da sociedade, sujeito-objecto de um saber reflexivo que, em certo sentido, realiza aquele absoluto do espirito que em Hegel era um puro fantasma idcol6gico, um absoluto que, na sua «idealidade», ‘mantinha com o real Concreto aquela relacdo de transcendénci «plat6nica tipica das esséncias metafisicas com todas as suas sages, em grande sentido, também repressivas (na me- ddida em que permaneciam necessariamente transcendentes) Uma verificagdo da importineia deste ideal da autotransparén- cia na cultura contemporinea pode encontrar-se na estrutura conceptual que rege a grande investigagao de Sartre sobre a razio dialéctica, onde o problema é precisamente o de caracte- rizar os meios concretos segundo os quais o saber em si da sociedade se constitui em formas nio alienadas, enquanto cfectivamente participadas por todos os membros daguela so- ciedade: Sartre pensa naturalmente na revoluglo, enquanto Habermas e Apel pensam na capacidade emancipadora das ‘igncias sociais; mas o ideal de autotransparéncia é 0 mesmo. Portanto, o ideal da autotransparéncia, a direc¢a0 para a qual aponta hoje a relagdo entre a sociedade da comuni- cago e ciéncias soviais? Estaremos finalmente em condigdes «de realizar um mundo em que, como diz Sartre em Questdo de ‘Método, 0 sentido da historia se dissolva naqueles que a fa- zem em conereto? ) De facto, uma tal possiblidade parece 20 alcance da mio: bastaria que os mass media, que so 0s mo- ddos em que a autoconsciéncia da sociedade se transmite a to- dos os seus membros, ndo se deixassem jf condicionar por ideologias, interesses de sectores, etc, ¢ 3 tomnassem de al- ‘guma forma «érgdos» das ciéncias sociais, se sujeitassem a medida criica de um saber rigoroso, difundissem uma ima- ‘gem «cientifica» da sociedade, precisamente aquela que as cigncias humanas esto jem condigées de constr. Se medimos a situagdo actual com a bitola de uma seme- 28 ‘hnte expectativa, isto é, do ideal normativo da autotranspa- ‘ncia, encontramo-nos perante um conjunto de factos paro- loxais: os mesmos factos, por exemplo, que encontram 0s hhstoriadores do mundo contemporineo, Como escreve Nico- Jn Tranfaglia (©, «paradoxalmente, no momento em que © ‘note desenvalvimento da comunicagto e da troca de infor ‘nugbes cultura ¢ poiticas, tomavam possfvel um projecto de historia autenticamente mundial, o declinio da Europa e 0 ‘useimento de mil outros centros de histéria anulavam essa jwssibilidade e levavam a historiografia ocidental e europeia 2 ‘Confrontarem-se com a necessidade de uma transformagio }ofunda na prépria concepgao do mundo». Em geral, 0 de- sonvolvimento intenso das ciéncias humanas e aintensificagio «lh connicago social no parecem produzir um aumento da \wlotransparéncia da sociedade, mas, pelo contrério, parecem fuincionar em sentido oposto. Tratar-se-4 apenas — como as- ‘ume muitas vezes uma sociologia critica talvez demasiado sulervientemente herdeira de esquemas da Zivilisations-Kri ik sos primérdios do século XX — do facto de que o desen- volvimento teenol6gico tem uma intrinseca tendéncia para de- sompenhar as fungdes de apoio ao poder tal como é, tornan- ‘lose fatalmente escravo da propaganda, da publicidade, da do e intensificagio da ideologia? E, no entanto, a Iiypossibifidade de fazer verdadeiramente uma histéria uni- Versi, por exemplo, perante a qual se encontram os historia- ‘lows ds contemporaneidade, no parece ligada principalmente I limites deste tipo, mas a razBes opostas; hd uma espécie de ‘ropa ligada A prépria multplicago dos centros de hist6ria, ‘ato ¢, dos lugares de recolha, unificagdo e transmissio das linlormagées. A ideia de uma histéria mundial, nesta perspec: tiva, tevela-se aquilo que de facto sempre foi: a redugo do {quo dos acontecimentos humanos sob uma perspectiva uni- ‘uvit que € também sempre Fungo de um dominio, seja ele ‘iominio de classe, domtnio colonial, ete. Algo do género, 29 provavelmente, seré vido também para o ideal deauiotans- paréncia da sociedade: ele funciona apenas do ponto de vista Ge um suit central, que se tra port cada vex asim pensével a medida que, no plano técnico, se toraria «poss tel» realiziloefecivamente & talvez esto destino do hepe- anism, do Auftrung, ou daguela que Heidegger chara & metaisica, na sociedade eontemporinea: tomando-se eect do ponto de vst da dsponiildade extita- ‘mente téenic,aautotansparéncia da socedade, como mostra {{sociologiaexitiea de Adomo, revels, por um ado, como ideal de dominio endo de emancipagd; por outro —aquilo due, em contaparda, Adorno novia —desenvolvem-se n0 Proprio interior do sistema da comunicagio mecanismos {caparecimento de novos centos de histras) que toa de- Tinitivement impossivel a reaizagio da autotransparénca Creio que a luz desta hipsese, deve repensar seo desen- wolvimento da debut, muito sigmificnvo na eltra do séulo XX, sabre o «carter cenifico» ov no das cigncias hum nase da historiografia Esabido que este debate, no dectrs0 do qual as préprias ciéncias humanas definiram pela primeira ver a sua fisionomia espectica, foi marcado nas sua origens pela dstngo(formulada por Windelband) entre eigncias na- {urais nomotéicas e cincias humanasidcorréficas (ou, em Dilthey cineias da atirezee ciénias do espirito, com & oposigto entre explicaso easaleecompreensfo»). Bexde as dorigens, e ada vez mis as iitimas déeadas, esta contapo- Siglo parece insatisfatria: nfo 36 porque no se podiam dei- ‘ar as cigncias do esptito em poder de uma compreensio auase exclsivamenteinutiva esimpatéica; mas também e Sobretido porque as propris ciéncias da natureza Se revel ram eala vez mais como determinadas, na sua constitu, por modelos interpretativos de tipo histérico-cultaral dos Guais acaba por fazer parte também o pre‘enso tipo eneutra> da explicagao causal, Porém, qualquer que seja o estado das 30 nas cigneias da natureza, 0 certo & que nas ciéncias hu- ‘nunas se impuseram modelos de racionalidade, desde 0 cen- {ilo no ideal-tipo weberiano ao de Cassirer que se serve da {wfercncia & rogdo histérico-normativa de estilo (retomada por Wallin) ©, ou a do «modelo zero» de Popper ®), nos quais ‘ovidente @ carécter por Sua ver. intra-historico dos modelos itcrpretatives de que as ciéncias humanas se servem. Este ‘nici intra-histrico exclu o facto de que as ciéncias huma- nis possam pensar-se como totalmente reflexivas, isto 6, en- {junto capazes de reflectir a realidade humana fora de esque- ‘hs interpreiativos que, sendo por sua vez factos hist6ricos, ‘vio tepresentam uma enovidade> relevante, e também por is to mio S80 um puro espelho daquilo que se trataria de c cr abjeetivamente. Néo $6: nesta tomada de consciéncia que tw pale chamar hermenéutica, as ciéncias humanas reconhe~ {otum 0 caricter histérico, limitado e afinal ideol6gico, do {v6prio ideal da autotransperéncia, como do de uma hist6ri ‘universal a que antes se fez referéncia, O ideal da comunidade Hlinitada da comunicagdo de Apel c Habermas € certamente ‘woxlelado no da Comunidade dos investigadores e dos cientis- {ava que fazia referéncia Peirce ao falar de socialismo logico. Mav ser legitimo modelar 0 sujeito humano emancipado, € almente a prépria sociedade, pelo ideal do cientista no oratério, cuja objecividade e desinteresse so coman- ilo por um interesse teenoldgico de fundo, que s6 pensa a watureza com abjecto uma vez.que a representa como um I~ yt ile possivel dominio — implicando assim uma série de heals, de expectativas, de motivagdes que hoje slo largamen- te ojccto de erftica? Vim vez de avangar para a autotransparéneia, a sociedade ‘J ciGneias humanas e da comunicago gencralizada avangout va aula que, pelo menos em geral, se pode chamar a «fa- Filaio do mando». As imagens do mundo que nos si0 for~ las pelos media e pelas ciéncias humanas, embora em 31 planos diferentes, constituem a prdpria objectividade do muan- do, ¢ no apenas interpretagbes diferentes de uma «realidade» de algum modo «dada». «Nao nos fizeram, apenas interpreta. ses, segundo o dito de Nietzsche, que escreveu também que «0 mundo verdadeiroafinal tomou-se fabula» ©). Nao tem, decerto, sentido negar pura e simplesmente uma «sealidade unitéria» do mundo, numa espécie de recaida nas formas de idealismo empirico ingénuas, Mas tem mais sentido Feconhecer que aquilo que chamamos a realidade do mundo» alguma coisa que se constiui como «contexto» das miltiplas fabulagdes — e tematizar 0 mundo nestes termos & precisa ‘menie 0 dever € o significado das ciéneias humanas, "Neste sentido, se bem que por vezes possa parecer vazio de contetido, o debate metodolégico que ocupa um largo espaco ras cincias humanas de hoje constitui um momento nao $6 instrumental e preliminar, mas central esubstancial: contribui pelo menos para as desdogmatizar, para as tomar «fabulasy ‘onscientes de tal. O recente sucesso que, no debate de histo tiadores € socidlogos, obteve a nodo de narratividade, € 0 inguérito sobre os modelos aret6ricos» e narratol6gicos da historiografia, entra perfeitamente neste quadro, de um saber ddas ciéncias humanas que liquida criticamente 0 mito da transparéncia. Nao jé a favor de um cepticismo totalmente re- lativista; mas a favor de uma disponibilidade menos idcol6gica para a experiéncia do mundo, o qual, mais do que 0 objecto de saberes tendencialmente (ias sempre apenas tendencial- ‘mente) «objectivos», €o lugar da produgdo de sistemas sim- bélicos, que se distinguem pelos mitos precisamente enguanto ‘io chistoricos» — isto 6 narragBes que mantém eriticamente as distincias, que se sabem colocadas em sistemas de coorde~ nadas, que se sabem ¢ se apresentam explicitamente como, ‘aransformadas», nunca pretendendo ser «natureza». O problema da criticidade do pensamento — uma vez que «ete, embora apenas no sentido especifico de que se falou,te- 32 lu reconhecido o processo de fabulizagio do mundo — co liv se maturalmente de forma urgent: e pan jd exitem pou ‘os pontos de referencia claros: antes de mais, que a lopicn ase na qual se pode dsorevereavalaecritcamente 0 ser das ciéneias humanss, ea possivel everdade> do mundo ‘in comunicagio mesiatizada, € uma logica ehermenéutica>, si procura a verdade come continuidade, «correspond ‘islog entre 0s textos, eno como conformidade do ‘inmciad a um mitic estado de coisas. E esta lgica 6 tanto ‘ns igorosa quanto menos se deixa impor come definitivo, tn certo sistema de smbolos, um certa enaragiow, Neste, 0 ‘cana chermenéutica» conserva também a sun referencia & ‘seal do suspeito> (segundo uma outa expressio de Nie- ‘vce 36 G1 a padermos iad nos sobre a possiblidade 4 eam das loge ing un ean thine estavel,podemos, porém, explicitaro carter pur is sartages fazlo agi come elemento de Hberagao da ‘vider da narrages monolépicas, dos sistemas dagmaticos dono. ‘ atoransparénca aque o conjunto dos media eciacias mis os condi, por ora, parce ser apenas ext, a saber, “exyusigdo da plraidade, dos mecanismos e das armagBes icrnas ca construgdo da nossa cultura © sistema media “encias humanas funciona, quando funciona, com ema Jivioapenas enqeanto nos coloca num mundo menos unité- ‘menos cero, panto também menos trangulzador que 0 ‘lomo, E-0 mundo para o qual Nietzsche imaginara, como ‘nwo seta humano capaz de oviver sem neuros, a figura " Uiebermensch, do super-homem; € a0 qual a Flos “nesponeo com agua ie se pode cham je com rao «Siem hermenéuten 33 © mito reencontrado Um dos problemas mais urgentes que se coloca & conscién- «ia contempordinea, na medida em que se torne consciente da {hulizagio> do mundo operada pelo sistema media-ci€ncias weiss, € redefinir a sua posigio relativamente a0 mito, so- Inetoxlo para no vira concluir (como muitos fazem) que uma hvescoberta do mito pode representar a resposta adequada 20 Jwoblema aque significa pensar» na condigio de existéncia Jnwlomodera. ‘Nao hd, na filosofia contemporiinea, uma satisfat6ria teoria ‘ly mito — de sua esséncia e das suas ligagées a outras formas ‘ ‘com o mundo. Por outro lado, é verdade que o ter- ‘io a nogdo de mito, ainda que no precisamente definidos, ‘iculam largamente na cultara corrente: desde as Mitologias, ‘le Roland Barthes, nasceu, ou consolidou-se, uma tendéncia jv para analisar em termos de mitologia a cultura de massa ‘os seus produlos; enquanto que na base, remota mas nem Jor 890 menos eficaz, das Reflexions sur la vialence, de So- ‘el, se continua a pensar na presenga, € na necessidade, do ‘nilo em politica, como tinico agente capaz de mover as mas- 1s; € até Claude LévieStrauss, que, aig, trata 0s mitos muito lvemicamente, como antropsiogo, escreve numa pagina da |wopologia Estrutural que «nada se asserelha mais 20 pen- 35 samento mitico que a ideologia politica. Na sociedade hodier- 1a, de certo modo esta limitou-se a substituir aquele> (10), Se ‘bem que Lévi-Strauss ndo possa ser acusado de usar o termo ‘mito de modo impreciso, uma afirmagio deste género, mesmo vinda dele, refere-se mais ao uso comum, ilo técnico, do ter- 'mo mito; entra, portanto, naquela imprecisio da nogio a que faziamos referéncia, De facto, quando na posterior Mitologia, Lévi-Strauss aplica um conceito mais especifico de mito as suas possiveis sobrevivencias no mundo de hoje, ele refere ainda, como elementos € formas da experiéncia em que o mi to, embora dissolvido, sobrevive, a misica e a literatura (1D, Mas ndo éa este sentido mis limitado e t€enico do termo mito ‘que se alude quando se fala de presenga do mito na nossa cul- ‘ura; mas antes a um sentido mais vago que, aproximadamer te, entende o mito com base nestas caracteristicas: ao contrétio do pensamento cientifico, 0 mito no é um pensamento de- monstrativo, analitco, etc., mss narrativo, fantéstico, envol- ‘vido nas emogGes c, globalmente, em menores ou nenhumas pretensGes de objectividade; tem a ver com a regio ea arte, ‘com o rito © a magia, ¢ a ciéncia nasce, pelo contririo, em ‘oposigio a ele como desmitificasio, «desencanto do mundo». ( saber racional sobre a realidade, «onde quer que procure cconstituir-se como consideragdo teorética e explicagio do mundo, vé-se oposto nao tanto 2 realidade fenoménica ime- data, como & transfiguracio mitica desta realidade. Muito an- tes do mundo se apresentar 3 consciéncia como um complexo de «coisas» empfricas e de propriedades empiticas, apresen- tou-se como um conjunto de poténcias ¢ de acces miticas» (22, Nesta Gltima ctagdo, do livro de Cassirer de 1923, que € talvez a thima grande teorizagio filoséfica do mito no nosso século, surge claramente um elemento que esté implicito © é essencial A moderna teoria do mito: a ideia de que ele € um sa- ber «anterior» a0 cienifico, mais antigo, menos maduro, mais ligado a aspectos infants ou adolescentes da histdria da mente 36 Inunana, Também Lévi-Strauss, que decerto nfo tem uma ‘concepeie puramente evolucionista do mito como destinaco a \lescnvolver-se no logos, ¢ que se apresenta aliés como um ‘uwlical ant-historicista, Considera de algum modo o pensa- ‘neato mitico como um passado para a nossa cultura, de tal ‘nwalo que se preocupa em indicar ou o seu sucedineo na ‘cologia politica, ou os seus tragos residuais na mésica e na eat ‘Ovando explicitamos estes conteidos implicitos na posiglo de Cassire e também na de Lévi-Strauss — para nfo falar em Weber — podemos experimentar um certo mal-esta. [Na base deste mal-estar est um facto evidente: a modema \woria floséfica do mito, até a mais recente, a de Cassirer, foi \«nipre formulada no horizonte de uma concepgao metas ‘volutiva, da histéria; ora, exactamente este horizonte de filo- in da histria jé se perdeu hoje em dia, Por consequéncia, lumém a teoriafilos6fica do mito jé ndo pode formular-se de ‘neve preciso; eo uso comum do termo mito registae exprime ‘ta confusfo te6rica: por um lado, 0 termo continua a signi- Fone una forma de saber no actual, muitas vezes considerado is primitivo, mas ainda assim caracterizado, relativamente lw saber cientfico, por uma menor objectividade — ou, pelo ‘nn, Por uma menor eficécia tecnol6gica. Por outro lado, Ju kevido A crise que, em Filosofia, sofreram os metafsicos. ‘volucionistas da histéria (e, juntamente, o proprio ideal de ‘cionslidade cientifica), seja devido a outras causas menos \wsrieas © mais ligadas a hist6ria politica, a concepgio do mito ‘nino pensamento primitive parece indefensével. Estas con- Ines e contradigoes podem surgir quando se procura recen- ras atitades que hoje mais largamente condicionam 0 uso ‘io conceito de mito —atitudes que proponho descrever com Inne em certostipos de ideats que, geralmente, nao se encon- lin expnessos teéricae praticamente no estado puro, mas es- {io igualmente presentes e sfo caractersticos da situagio cul 37 {ural em que nos movemos. Estas atitudes predominantes po- dem resumir-se sob ués ttulos: arcaismo, relativismo cultural, irracionalismo mitigado. Todos trés, como veremos melhor, sfo caracterizados por incoeréncias ¢ confusdes que derivam do problema de filosofia da hist6ria por resolver que esta na base de toda a concepgiio do mito: nascem da recusa da meta- fisica da historia que regia a anterior teoria do mito, mas ndo Cconseguem formular-se em termos teoricamente satisfat6rios porque nfo elaboraram uma nova concepgaofiloséfica da his- ‘ria; puseram simplesmente o problema de [ado Descreveria como arcafsmo uma atitude que se poderia também chamar «atitude apocaliptica». Trata-se da descon- fanga difundida na cultura cientifico-tecnolégica ocidental, cconsiderada como modo de vida que viola e destr6i a auténtica relagio do homem com si préprioe com a natureza, e que esté inelutavelmete ligada, também, 20 sistema de exploragio ca- pitalista © as suas tendéncias imperialistas, Pode ver-se na preferéncia da vanguarda aristca do inicio do século pelas ‘miscaras africanas um sinal do valor profético que a arte teve muitas vezes, como neste caso, relativamente a movimentos dda cultura e da sociedade mais gerais. Aquilo que na vanguar- dia artistic hist6rica era principalmente um interesse por mo dos de representagio do real nfo comprometidos com a tradi- gio das linguagens aristicas hereditirias, embora amplamente ‘misturado, pelo menos em certas posticas (surrealismo, ex- pressionismo), com uma profunda polémica contra a cultura burguesa, tomou-se hoje uma atitude gera: a m4 consciéncia dda inteligentsia liberal relativamente a0 chamado terceiro- ‘mundo exprime-se decerto também nas suas posigées acerca do mito. Em geral,alfs, sem esta inspirago, em sentido lato, politico, ndo se compreenderia nem a popularidade de que, ‘como moda cultural, goz0u a antropologia estrutural, nem tal vyez, mais em geral, 0 facto de que nos anos da sua maior di- fusio a nivel de cultura comum o estruturalismo — certamente 38 ‘no apenas anropolégico — ena podido surge como ume ws teres ede exquerdays na base de tad iso, havin & Nici de que tanto o estilo poramente estatural dos mits ¢ ins eultaras eselvagens», como a gral consideragio do ho- ‘en em termes nio hstoriistas (eestudar os homens como Tovmizas diaia Lévi-Strauss contra Sarre) eram um modo ‘he lquidar a ieotogi eurcentica do progresso com toss 35 ‘us plicagdes imperalistas ecolonalstas favor de um jesamento que recuperase os valores «auténticos» de uma Felto do home com a natareza no mediada pela object ‘ago centficaesttamente igada —como mostaraacrtica ‘leFrancoforte, mas também o Lukes de Histériae Cons: "iene de Classe —&organizagcapitalista do trabalho. A "164 ma conslencinrelativamente ao imperiaismo © formas de nccolonalismo niramse, ras recente Ione, a8 preacupagoes ecolgicas pelas consequencias de- \istors que a ene, teeralogia, explora captalista nda aos armmentos tem sobre a natureza externa e & won natureza fisea do homer. [De todos estes factors nasce aquele que proponho chamar «veatsmo em rela 20 mit: no s6, dete pono de vista, 0 ito no 6 uma fase primitiva esuperada da nossa Shlral mss antes ma forma de saber mais autntca, nfo Jevastada peo fanatismo puramente quanstativo e pela men- Inside objetivante prada eiéncia moderna, d tecnologia hs eapitalsmo. Espera-s, de um reaovado contacto com © hilo quetna forma dos mitos das coutrs» cultaras (os ‘stuladas pelos antropélogos nos poves selvagens ainda ‘sistenis) quer na forma dos mito antigos da nossa rag {ws mitos grees, revisitados com métodos e mentaidades snnapoldgieas por figlogosehistriadores de formagio es- lista) — uma possve sida das deformagSes ¢conta- ses da actual evilizagaocientifico 4ecnologica. Parece-me “rane pare da popoardae de Netsche e Heidegger na 39 recente cultura europeio-continental se pode atribuir —tam- tbém através. de equivocos interpretativos nos quais no me detenho — a estas inspiragGes. A critica da civilizagdo cienti- fico-técnica e interesse pelo pensamento arcaico, que se en contra, de formas diversas, em Nietzsche e em Heidegger. ‘fo assumidos como ponto de partida para tentar uma recupe= ragdo do mito: ainda que nem Nietzsche nem, sobretudo, Heidegger justifiquem uma tal empresa, De resto, seria dificil indicar posigies filoséficas ou pro- ‘gramas culturais que explicitamente se proponham um regres- so a0 saber mitico; se se excluir uma parte daquele movimento ue, em Ilia © em Franga, aparece sob o nome de «nova di- reiti», e que retoma a polémica anticaptalista do nazismo e do fascismo misturando-a com temas saidos do movimento de 68. Mas o arcafsmo, como alids as outras duas atitudes «ideal tipicas» que agora descreverei, nfo dé lugar a verdadeiras po- sighes doutrinais acabadas, pelas razGes que jd apontei: nasce como consequéncia da crise do historicismo metafisico mas ‘no prope uma altemativa,e assim esté destinado a continuar teoricamente mudo, ou, seja como for, nfo enunciado em te- ses precisas. Quando nio amadurece em programas de res- ‘auragdo da cultura tradicional, e em consequentes posiges politicas «le dreita», este arcaismo pode também dar lugar, € 60 caso de muita da cukura liberal europeia recente, a puras atitudes de critica «ut6pica» da civiizagdo cientfico-tecnol6: fica e do capitalismo. Admite-se aqui que nio tem sentido, ¢ € als politicamente perigosoe inaceitivel, procurar resturar a cultura «tradicional»; mas o saber mitico, no comprometido com o racionalismo do Ocidente capitalists, continua a ser um pponto de referéncia, pelo menos negativo, para recusar a mo- dernidade e os seus errs. A segunda atitude que, na nossa cultura actual, condiciona e «qalifica a presenga do mito, dando-Ihe uma actualidade espe- cifica, € 0 relativismo cullural. Segundo esta posiglo, os 40 \vinipios eos axiomas fandamentsis que definem aracions- (itu os esters de verdade,aéticae que tomar, em geral, ost expeiécia de uma determinada humanidade hist Wh dum ealtara, nfo so objeto de saber raion, de de- nto, je que dele depende qualquer possibilidade de tomonstrar'o que quer que sea. Uma expresso de tal pos- tho. que se trmou muito poptlar no debate epistemolopico tities anos, pode considera a tora dos paradigmas vlthomas Kan, pelo menos na su formulagdo origindria Ny Mis também a hermeneutca que se relama de Heidegger {sultan vezs consierada ma tora deste tpo, ainda que tu boas mazes para areditar que para ela, as cols se pas- sh de forma diferente. No relativism cultural no 36 falta ules Mea de uma racionalidadeunvoca luz da qual se lnm considerar amitcas» cetas formas de saber; mas Tine, esobretudo, a ein de que os «principio primeiros> Mie os quis se constr um universo cultural expecifico nfo Inabjete de saber racionil, demonsiratvo,detxaabeta a Wit partes considerar mais come objeto de um ster de tipo to ambém a racionalidade cintfca que constitu du- Tine titosséelos um valor dreetivo para a cultura enropeia (ntact, um mito, ua erengaparifhada em cuja bse se Wikula.aorganeagao desta cultura; € asim (como eseeve, tar cremplos Odo Marquart (14 € também um mito, wma (ningactura nfo demonstrada nem demonstével, a propia ede que a histéra da razio oidentalé a historia do afs- tinea do mit da Enimyhologserung : "None do arealsto, relativism cultural nfo aribul vague (ea) superondade ao saber miico relaivamente Henticoipice da modemidade em geal nega apenas que Ia uma oposigd entre estes dis tpos de saber jf que am Jot so fundados em presupostos que to cardcier de mito renga no Jemonstada, mas mais imediatamente viv sn gmpre estas crengas-basepréprias de qualquer un- aL ‘verso cultural slo chamadas mitos, como porém vimos fazer a ‘Marquart; mas € um facto que, no relativismo, o interesse pelo mito est vivo como no arcaismo; nfo porque se procure descobrir, no mito, um saber mais auténtico, mas porque 0 estado dos mitos de outras civlizagdes nos pode ensinar o ‘método correcto para conhecer também a nossa, jé que tam- bém ela tem uma estrutura fundamentalmente mitice, Como se vé bem pelo uso do ferme no texto citado de Marquardt, aqui ‘mito equivalea saber nfo demonstrado, imediatamente vivido. 6, portanto, assumido ainda muito condicionado pela sua bara simples opoxgdo ts caracterisicasprpras do saber Por outro lado, na terceira das atitudes, da qual me parece depender hoje a consideragao do mito, aquela a que chamaria irracionalismo mitigado ou teoria da racionalidade limitada, © mito € entendido num significado um tanto mais especifico, Aue aligs se liga ao sentido etimal6gico origindrio da palavra, Mito significa, defacto, como se sabe, narraglo, Nesta forma ele opGe-se, ou distingue-se do saber cientifico no por uma simples inversdo das caracteristicas deste Gltimo — a de- ‘monstratividade, a objectividade, etc. — mas por um seu as pecto especifice positive: a estrutura narrativa. Podemos ‘efectivamente chamarteoria da racionalidade limitada quele ‘conjunto de atitudes culturais que consideram o saber mitico, ra sua qualidade essencialmente narrativa, como uma forms de pensamento mais adequada a certos fimbitos da experién- cia, sem contestar, ou sem por explicitamente em questio, a validade do saber cientiico-positivo para outros campos da experiéncia odemos encontrar exemplos desta posicio em pelo menos 'u@s campos: a) na psicandlise, na qual a vida interior tende ser considerada, tanto no seu funcionamento normal como na situago terapEutica, como estrutura de narragGes; ou mesmo, como acontece na psicandlise de origem junguiana, referindo- 42 1 necessariamente a certas «hist6rias» basilares, a certos ‘nits arquétipos, que a formam ndo como principios abstrac- ‘ws, jogos de forgas, et, mas precisamente como histérias, ‘io se deixam refert,afinal, a modelos esiruturais de que mn apenas simbolos, alegorias, ou aplicagées (neste senti- ‘io, cteio, Hillman fala também de politeismo) (15); b) na \coria da bistoriografia, em que 0 modelo da narratividade € ‘hla vez mais relevante — nfo apenas enquanto revela os ‘welos retéricos sobre os quais se consti a historiografi, ‘hss sobretudo enquanto descobre, na pluralidade deste mo- ‘ilos, a base para negar a unidade da hist6ria, e para reco: hnhecer sua irredutivel pluralidade — a qual, na medida em ‘ivenio reflecte jé uma realidade-norma, se distingue cada vez ‘harsdificilmente dos mitos; ¢) na sociologia dos mass media: Ijin a aplicagao origindsia da nogdo de mito aos movimentos ‘nassas (revoluciondrias) proposta por Sorel foi substtut- ‘ls (ito significativamente, ceio) pela andlise em termos de ‘nijologia dos contedidos e das imagens distribuidas por cine- ‘ns, televisdo, literatura e artes vrias de consumo. Traem qualificarse estes diversos mados de pensar no mi ‘oem termios de aplicabilidade a vérios campos da experién- is, como imacionalismo mitigado ou teorias da racionalidade Hnitada na medida em que tém em comum um pressuposto ‘i. aids, remonta a Platio (16), segundo o qual certos cam: [pov experigncia nfo se deixam compreender mediante a a ‘ou método cientifico, e exigem, pelo ‘trisio, umn tipo de saber que no pode qualificar-se sendio x mitco ‘Como disse no inicio, julgo que estas vérias atitudes (que ‘uo ispiram apenas determinadas posig@es relativamente a0 ‘iio, mas que encontram nele um dos seus contetidos mais wctersticos) nascem todas, mais ou menos directamente, da Jisolugito das filosofias metafisicas da hist6ria, sem porém “osm (ou digeri) esta dissolugdo suficientemente; € que 43 Por isso mesmo apresentam equivocos ¢ contradigdes que as tomam teoricamente insatisfat6rias. O arcafomo para comesar pelo primeiro, ndo s6 ndo se coloca 0 problema da histéria, ‘como ndo consegue dar lugar a uma posigio praticvel relati- vamente ao mundo modemo, que no seja, o que € significa tivo, a proposta da restauracio da cultura «tradicional», por parte da direta. O tradicionalismo da direita que representa a ‘inica saida politica visivel, do arcafsmo, € significativo por- ‘que revela, quando levado ao extremo, a sua debilidade te6ri- a que consiste em transformar simplesmente 0 mito do pro- reso num mito das origens, as quais, apenas enquanto tal, Seriam mais autenticamente humana e dignas de constituir ou ‘fim de uma revoluezo politica ou, pelo menos. o ponto de referéncia para uma critica da modemidade. Idealizar como condigdo perfeita o tempo das origens € tio vvago como idealizar o fututro como tal (como feze faz ainda o ideal secularizado do progresso, do desenvolvimento, etc.) E ino s6:relacionamo-nos com as origens mediante 0 processo ‘que delas surge, e chega até nés; o arcafsmo pretend sim plesmente por de parte 0 problema constituido por tal proces: S0, € antes de mais 0 seguinte: se & das origens que ches precisamente a condigdo de mal-estar,alienagio, etc.,em que nos encontramos, enti por que remontar a elas? Sao proble mas deste tipo, problemas de filosofia da histéria, que 0 a ‘cafsmo pde de parte sem os ter suficientemente debatido, quando, na verdade, eles nio se tornaram de modo algum desactuais pelo facto de ter passado 0 tempo das metaffsicas evolucionistas da historia, ‘O mesmo se pode dizer do relativism cultural. Ali, aqui ‘ainda mais evidente que o problem da historicidade nfo est nem colocado nem resolvido, mas foi simplesmente «ignora «do»: 0 relativismo cultural nfo presta grande atengo nem : a) 20 contexto efective em que a tese da pluralidade iredutivel ‘dos mundos culturais € enunciada; nem: b) & efectiva impos 44 iad solar os mando altars um do our —e no 1 Como em a, plo noso aniverse, de nbs anropélogos¢ ‘Sitoss do mi que consrsios 2 ea. O problema que ts vezes se cloea aos antrop6logos que tabalham sna Mets oda relaydo entre els, expocntes de uma eulara (it, mites wees colonialist, eos seus inforadors ind tn apenas unvaspeto do problema hermenéutico mais (ite que o felatvisto clea mio se cols. O ext das ats elturas acon sempre num context. qu tora inywosivelcartfiilmente fsa, a pretensio de as represen (icon objets separados; cls so, pelo conti, intero- ‘onde um dilogo que, no ean, ama ve econhesio, tio problema do horizon comum em que de facto ‘eincce,tomando inl separa pressuposta pel ela ‘vn. Este horizonte comum € 0 problems da ilosofia da tra, que nose pode idee Fament. Poe fim, a eoria nacionliadefimtada— ist 6 a dea difundida em vias (nas epundo squats o mito caqeano saber naratvo seria Vip de pensamentoadequado'a certs campos da expe- nts (eutra de massa, a vida interior, a historiograia)— them ela detea depart o problema dedefinira pra s Ii hist no em consizcia de se fundar mma cia \taciio da distingao entre natur- ¢ Geisteswissenschaften; isinaque se tomou cada ver mais problematic eduvidoss Vi que ara camino conelencia de que tami 2 "cea € uma empresa soci portant, qe os més ‘betivantes das ici da matureza So um momento 0 in- ‘iw um context que, como tal, nara de leno diet Cp ds efecis hstricosocias. ° vation pause formas diverts —que deerto poderiam J nasamplamenteinvestigadas— as Us attades comentes itn etal a propio do mito poem de parte com de- shu ressao problema da propria eontextuaizasohists- inv ldiaem onde elas mess, como posgdes eicas, 45 situam. © arcafsmo pretende volta s origens¢ ao saber mii ¢o sem se perguntar que €o periodo intermédio» que nos Separa daquele momento inicial o relavismo cultural fala de universos culturais separados e autGnomos, mas nlo diz a_| dual destes universos pertence a propria cova relativista a ‘acionalidae limitadando tem uma tori explicita acerca da possbildade de dstinguir verdadeiramente entre campos re Servados ao saber mitico e campos em que vale asacionalida de cientifica, A todos estes problemas, a metafsica da histria de tipo idealist ou postvista dava una resposta,concebendo ahistria como um tnico processo de Auftldrung e de eman papi da razo, O processo de emancipagio da rao, po rém, foi além daguilo que idealismo eposiivismo esperavam variados povos culturas tomaram a palavra na cena do mun do, ¢ tomou-se impossivel arediar que a histéria seja um processo unitrio, com uma inka coniaua rum a um tes. A realizaglo da universalidade da histéra tomou impossvel a histéria universal. Com iss, também a ideia de que 0 curso histérico pudesse pensar-se como Aufldrung, lbertagio da razio das sombras do saber mfco, perdeu a sua legitimidade, -Adesmificagao foi reconhecia ea prpria como um mito "Mas a descoberia do cardcter mtico da desmitficacio lei tima verdadeiramente as aitudes em relago a0 mito que acima descrevemos? Desmitificar a desmitificago nfo significa restaurar 0s i retos do mito: pelo menos porque ene os mitos a que deve ‘mos reconhecetlegtimidade existe também o da razio e do seu progresso. A desmitifcagao, ov aideia da histria como processa de emancipagio da razio, no é algo que se poss exorcizar to faclmente, Nietzsche mostara ja que quando se descobre que também o valor da verdade €uina erenga basea da em exigéncias vii, poranto um «erro», ndo se restauran simplesmente os eros recedentes:continuara sonhar saben ddo que se Sona, como diz a passagem jf eitada de A Gaia 46 léncia, nfo equivale decerto ao sonhar puro e simples. Isso ile com a desmitificagio: se quisermos ser fiis A nossa ex poviencia hist6rica, teremos de ter em conta que, uma vez re Vel a desmitficagao como um mito, a nossa relagdo com © Into no emerge ingénua, mas fica mareada por esta expe ‘iéncia, Uma teoria da presenga do mito na cultura de hoje de- \e voltar a partir deste ponto. A palavra de Nietzsche em A (Guia Ciencia nao 6 apenas um paradoxo filos6fico, é a ex- Iwesso de um destino da nossa cultura: este destino pode Huinlém indicar-se com outro temo, secularizagdo, Nesta pa- |iva exprimem-se os dois elementos indicados pela divisa de \ Gia Ciéncia: saber que se sonha e continuar a sonhar. A ‘ecularizagdo do espfrito europeu da idade moderna nio é lpenas a descoberia ea desmitificagao dos erros da religido, ‘hus também a sobrevivéncia, em formas diversas e, num eer- lo sentido, degradadas, daqueles . se pode supor que Heidegger pense numa sconclusio» \vesperiéncia do desenraizamento estético numa recuperaga0 | lamiidridade e da evidéncia, como se o destino da obra de 37 arte fosse transformar-se, afinal, num simples objecto de uso. Ostado do desenraizamento —- tanto para Heidegger como para Benjamin — é constitutive ¢ nio provisério. E isto ¢ precisamente aquilo que constitui o elemento mais radical ‘mente novo nestas posig0es estéticas relativamente a reflexaio tradicional sobre o belo — e também da sobrevivéncia desta twadigo nas teorias estéticas do nosso século. Desde a doutri- nna de Aristteles da catarse a0 livre exercicio das faculdades dde Kant, a0 belo como perfeita correspondéncia entre interior exterior em Hegel, a experiéncia estética parece ter sido ‘sempre descrita em termos de Geborgenheit — de seguranga, de , © \ experiéncia estética como experiéncia que envolve profun- tenticamente 0 sueito,criador ou espectador. Estabili- Perenidade da obra, profundidade e autenticidade da ‘sporiéncia produtiva fruidora so certamente coisas que id » poxlemos esperar na experiéncia estética da modernidade ‘ada, dominada pela poiéncia (e impoténcia) dos media, ‘ outraa nostalgia pela eteridade (da obra) e pela autenticida. \ (la experigncta), € preciso reconhecer claramente que o vel & tudo aquilo que resta da criatividade da arte na época \s vomunicag0 generalizada. E 0 shock é definido por dois Hspectos que caracterizdimos seguindo as indicagdes de Benja- ‘wn e de Heidegger: antes de mais e fundamentalmente, ele ‘no € mais do que uma mobilidade e hipersensibilidade dos wwivose da ineligéncia, carateristica do homem metropoli esta excitabilidade e hipersensibilidade corresponde (wi arte j6 ndo centrada na obra mas na experiéncia, pensada 63 pporém em termos de variagOes minimas e continuas (segundo ‘© exemplo da percepgio do cinema). Sao elementos que, em: ‘bora sem desenvolver as suas dltimas consequ2ncias, a est6t a oito-novecentista muitas vezes teorizou' aids, Heidegger assinala-os, por exemplo, de modo polémico, na teoria da are de Nietzsche. A segunda caracterstica que consttui 0 shock como ‘nico residuo da criatividade na arte da modernidade avangada ¢ aquela que Fieidegger pensa sobre a nogao de Stoss: isto 6,0 desenraizamento € a oscilagdo que tém a ver com a angaistia ‘a experigncia da mortalidade. O fendmeno que Benjamin des creve como shock, nio diz respeito apenas as condig@es percepedo, nem & apenas um facto a confiar & sociologia cs arte; mas € sim o modo em que se realiza a obra de arte como Conflito entre mundo e terra O shack-Stoss &0 Wesen, acs séncia, da arte nos dois sentidos que esta expresso tem 1) terminologia de Heidegger: ou seja, 0 modo em que se di ngs, na modernidade avangada, a experiéncia estética;¢ 6 também, aquilo que nos surge como essencial para a arte 10! court, isto €, 0 seu acontecer como relagio entre fundagio « pperda de fundamento, na forma da oscilagio e do desenraiz ‘mento; afinal, como exercicio de mortalidade. ‘Acabard assim por se propor uma apologia demasiado cexpedita da cultura de massa, resgatada, parece, de todos 0s aspectos alienantes tio eficazmente caracterizados por Adi pela sociologia critica? O equivoco desta sociologia, hoje dia, aparece-nos baseado no facto de nio ter distinguido a Ccondigses de alienagio politica prdprias das sociedades de o ‘ganizagdo total, dos elementos de novidade implicitos ni ondigdes de existéncia tardomodernas. O resultado dese ‘equivoco € que a perversidade da massificagio ¢ da organi ‘¢d0 total foi condenada em nome de valores humanistas cu} Alcance crftico estava exclusivamente ligado ao seu anacronis ‘mo; efeetivamente, eram valores inspirados, em mom 64 snteriores, naguela metafisica cujo resultado, como bem viu ‘Heidegger, foi preeisamente a organizagao total da sociedade. Hoje estamos talvez em condigbes de reconhecer que os ele wentos de superfcialidade e precaridade da experiéneia est ‘Hal como se realiza na sociedade tardomoderna nio so ne- ‘sariamente sinais e manifestagdes de alienagdo, ligadas a0s vspectos desumanizantes da massificacio. ‘Contrariamente ao que durante muito tempo —e com boas ‘uvoes, infelizmente — acteditou a sociologia critica, a massi- Hieacao niveladora, a manipulagdo do consenso, os erros do ‘ultarismo ndo sdo 0 tinico resultado possfvel do advento da inunicaglo generalizada, dos mass media, da reprodutibili- lise. Ao lado da possibilidade —que deve ser devilida poli- licamente — destes resultados, abre-se também uma possibi- Ifa altemativa: 0 advento dos media comporta também (cctivamente uma acentuada mobilidade e superfiialidade da inca, que contrasta com as tendéncias para a generali- vo do dominio, ao mesmo tempo que dé lugar @ um espécie «enfranquecimento» da prépria noglo de realidade, com © ‘nsequente enfraquecimento também de toda a sua coacgao. | sociedad do especticulo» de que falaram os situacionistas » € upenas a sociedade das aparéncias manipuladas pelo ler; € também a sociedade em que a realidade se apresenta n earactersticas mais brandas e fluidas, e em que a expe- \iéncia pode adquirir os aspectos da oscilago, do desenraiza- ‘nento, do jogo. ‘\ ambiguidade que muitas teorias contemporineas consi cn caracteristica da experiencia esitica ndo € uma ambi Junkie proviséria: isto é, através do uso mais livre e menos vatizado da linguagem que se dna poesia, nfo se trata s tornarmos — como sujeites — mais donos da lingua join em geral. Neste caso a ambiguidade poética € apenas ‘cio para produzir, final, uma mais plena apropriacao da ‘injasizem por parte do sujeito; portant tata-se também de 65 um desearaizarento instrumental, que visa um reenraizamen to conclusivo que fica prisioneiro se nfo da categoria de obra, certamente da de sujeito, que Ihe € correspondente. A expe: tiéncia da ambiguidade é, pelo contrrio, constiutiva da art ‘com a oscilacdo e o desenraizamento; so estas as Gnas vias através da quais, no mundo da comunicagdo generalizada, arte pode configurar-se (nde ainda, mas talvez finalmente) co: ‘mo criatividade eliberdade. 66 Da utopia & heterotopia ‘A mais radical transformagdo que se veificou entre as anos vessenta € hoje no que diz respeito &relagio enire ate vida otdiana pareve-me poder deserever-se Como uma passagem ‘la utopia & heterotopia, Os anos sessenta (e decerto, princi- vlmenteo ano sessenta e oo; mas tata-se de um movimento "ve apenas culmina na contestagao daquele ano, estando vivo ‘lel 0 imediato péx-guerra) conhecem uma grande difusto ‘le perspectivas orientadas para um resgate estético da exis- \encia, que nega, mais ou menos explicitamente, a arte como ‘ywmento xespecializado», como «domingo da vida» no sen: nko de que falava Hegel. Autopia apresenta-e obviamente na vn forma mais explicit e radical no marxismo; mas tem tam- ‘ean uma verso sburguesam, que se pode indicar na ideologia design que se impSe largamente, por exemplo, através da pslaridade de Dewey (37) na flosofia e na eitca europei anos cinquenta. Tamiém Dewey, como 0s tedricos € 05, vticos marxstas (de Lakes aos mesires de Francoforte, até Maeuse) tem ascendéncias hegelianas. Para Dewey, a expe- ‘iencia do belo est ligada & percepgao de um fulfilment que tem tudo a perder ao ser separado da concreta vida quotidiana: « lium campo da arte em sentido espectfico, le alude, t0- ‘Invi, uma sensagdo mais geral de harmonia que tem as suas Iuizes no uso dos abjectos, no estabelecimento de equilfbrios 67 satisfatérios entre individuo e ambiente. Quanto as vérias for- mas de marxismo, elas tém em comum a ideia de que a de- ‘marcagdo da arte ¢ a especificidade da experiéncia esttica sio aspectos da divisio do trabalho social que se deve eliminar com a revoluglo ou de algum modo com uma transformagio da sociedade no sentido da reapropriaga0, por parte de todos, da esséncia inteira do homem. Em Lukécs esta perspectivi actus principalmente a nivel de metodologia critica (realismo no é puro reflexo das coisas como sio, mas representagao di Epoca e dos seus conflitos com uma referéncia implicita a ‘emancipagio e & reapropriaga0); em Adomo (8) a promesse de bonheur consttutiva da arte dé-se sobretudo como insti negativa e desmascaramento da desarmonia do existente ‘com a correativa reavaliaglo da arte as suas sedes canénicas modemnas; mas tumbeéim, € sobretudo, 0 esbogo de uma experiéneia estética de ‘nassa como tomada de palavra por parte de muitos sistemas sle reconhecimento comunitirio, de méltiplas comunidades «que Se manifestam, exprimem, reconhecem em modelos for ‘ais e em mitos diferentes. Deste modo a esséncia «modem» sluexperigncia esitica, que Kant descrevera jé na Critica da azdo, desenvolveu-se em todo 0 seu alcance mas foi também redefinida: 0 belo € experiéneia de comunidade; mas @ com hiade, preeisamente quando se realiza como facto «univer- sal», sofre um processo de multiplicagao, de pluralizagao ir- reprimivel. N6s vivemos numa sociedade intensamenteestet ‘iva exactamente no sentido «kantiano» da palavra; isto &, em © belo se realiza como instituigio de comunidade; mas em 1 exactamente devido a esta intensificagdo parece ter-se dis- wlvido © outro aspecto da universalidade de Kant, a identti- ‘do, pelo menos tendencial e exigencial, da comunidade es- letlea Coma comunidade humana fou! cour. Também na estética esperamos aquilo que, com diversas vwoxlidades e carga dramdtica, acontece na ciéncia, que sem te parecera (refiro-me ainda aqui ao modo em que Habermas lula dela: 0 agir teleol6gico supe um mundo «objectivor, ‘ino) 0 lugar do dar-se do mundo como abjecto tnico; espera ‘ns que o mundo nao seja uno, mas méltipte, aquilo que ‘hamamos 0 mundo € talvez apenas o ambito «residual», € 0 onte regulador (mas com que problemas) em que se art n os mundos. E verosimil que a experiéncia estética da waciedade de massa, a vertiginosa proliferagao de wbelezas» \quefazem mundos, Sea profundamente modificada pelo facto mbém 0 mundo unitério de que a ciéncia acreditava poder lar se terrevelado uma multiplicidade de mundos diversos. indo ¢ possivel falar de experigncia estética como pura ex- nessividade, pura colorago emotiva méltipla do mundo, co- 73 ‘mo se fazin quando se pensava que este mundo-base era de slguma forma dado, «encontrvel» com os métodos da cién cia. Isso deixa certamente em aberto 0 problema da redefi iio da extetcidade,e tora tlvez possvel edefni-la» delim tando-a e dstinguindo-a: também aqui, parece estarmos pe rante uma realizago imprevista, ¢talvee adistorcida» (4), da opin ( desenvolvimento da experiénca estética como experéncia da comunidade e nfo como avaliagdo de estruturas dé-se, to davia, apenas no mundo da cultura de massa, do historicis0 difundido, do fim dos sistemas unitérios. E por iseo que no se trata de uma realizado pura e simples da utopia, mas de uma sua realizagio distorcida ¢ eansformada: a utopi extética 56 se realiza desenvolvendo-se como heterotopia. Vivemos ‘experiéncia do belo com reconhecimento de modelos que fa 2em mundo e que fazem comunidade apenas no momento em ‘que estes mundios e estas comunidades se dio explictamente como miltiplos. Nisso encontra-se talvez também um fio ‘condutor normative, capaz de responder quelas preocupa «es que sublinham que se o belo € de alguma forma sempre apenas experiéncia de comunidade, nio teremos jé qualquer

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