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Lilian do Carmo de Oliveira Cunha

Luiz Fernandes de Oliveira


Roma Gonçalves Lemos (orgs.)

Diferenças étnico-raciais
e formação docente:
um diálogo necessário

Rio de Janeiro, 2016


1ª edição
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE:
UM DIÁLOGO NECESSÁRIO
© Lilian do Carmo de Oliveira Cunha, Luiz Fernandes de Oliveira,
Roma Gonçalves Lemos (organizadores)

1ª Edição

Direção editorial
Hamilton Santos

Revisão
Cecília Mattos Setúbal

Projeto gráfico e diagramação


Paula Barrenne

Crédito da capa
Lilian do Carmo e Roma Gonçalves

Imagens de capa
Diego Felipe, Luiz Fernandes de Oliveira e Kelly Madaleny

CIP – BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

Diferenças étnico-raciais e formação docente: um diálogo necessário /


organização Lilian do Carmo de Oliveira Cunha, Luiz Fernandes de Oliveira, Roma
Gonçalves Lemos. - 1ª ed. - RJ: Editora Selo Novo, 2016.

420 p. : il. ; 21 cm.

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-85-93429-00-2

1. Educação - Educação Étnico-Racial. 2. Segregação Racial na Educação.
3. Discriminação Racial. 4. Igualdade na Educação. 5. Preconceitos 6. Racismo.
7. Brasil. I. Cunha, Lilian do Carmo de Oliveira. II. Oliveira, Luiz Fernandes de.
III. Lemos, Roma Gonçalves.

CDU 370.19 CDD-379.260981

Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Desigualdade: Relações étnico-raciais: Escolas:


Políticas públicas.

Rua Joaquim Meier, 51 / 102 - CEP 20930-430 - RJ - Brasil


Tel. (21) 2201-8645 - CNPJ 26.593.482/0001-24
CONSELHO EDITORIAL

Amauri Mendes Pereira – UFRRJ


Edson Borges – UNILAB
Janssen Felipe da Silva – UFPE
Joselina da Silva – UFRRJ
Kelly Russo – UERJ
Mônica Regina Ferreria Lins – UERJ
Núbia Regina Moreira – UESB
Ricardo Cesar Rocha da Costa – IFRJ
Rosana Batista Monteiro – UFSCAR
Tânia Mara Pedroso Müller – UFF
SUMÁRIO

PREFÁCIO..................................................................................................................7

INTRODUÇÃO..........................................................................................................15

A FORMAÇÃO DOCENTE PROMOVE UMA


EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA? REFLEXÕES SOBRE
AQUELES “QUE SE EDUCAM ENTRE SI”................................................................29
Fabiana Ferreira de Lima, Gudrun Klein, Úrsula Pinto Lopes de Farias

TECENDO OUTRAS HISTÓRIAS: FORMAÇÃO


DOCENTE, LITERATURA E A EDUCAÇÃO INFANTIL
NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS.................................................53
Cecília de Campos Saitu, Kelly Xavier Madaleny, Roma Gonçalves Lemos

DIFERENÇAS CULTURAIS E FORMAÇÃO


DOCENTE NA BAIXADA FLUMINENSE....................................................................83
Jacqueline de Oliveira Duarte Ferreira, Luiz Fernandes de Oliveira

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


E A PRÁXIS DOS PROFESSORES DOS ANOS FINAIS
EM ANGRA DOS REIS: UMA BREVE ANÁLISE/REFLEXÃO...................................105
Kátia Antunes Zephiro, Silvia Bittencourt

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


E FORMAÇÃO DOCENTE: CONTRIBUIÇÕES PARA
A DISCUSSÃO DE NOVOS PARADIGMAS.............................................................137
Danielle Tudes Pereira Silva, Norielem de Jesus Martins,
Roseléa Aparecida dos Santos Oliveira

POLÍTICAS PÚBLICAS E PRÁTICA PEDAGÓGICA:


DA AÇÃO AFIRMATIVA À AÇÃO DOCENTE...........................................................163
Hélbia Sant’Ana B. Gonçalves, Janine Gabrielle dos Santos,
Lilian do Carmo de Oliveira Cunha

AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA FORMAÇÃO


DE PROFESSORES: INVISIBILIDADE E SILENCIAMENTO.....................................185
Simony Ricci Coelho, Valéria Paixão de V. Nepomuceno
INTERNET E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LITERATURAS
AFRICANAS, AFRO-AMERICANAS E AFRO-BRASILEIRAS:
UM ESTUDO DE CASO DA REVISTA ÁFRICA E AFRICANIDADES........................211
Aline Oliveira Grion, Nagila Oliveira dos Santos

COMO APRENDEMOS A SER MORENO,


MORENINHO, PARDO... MEMÓRIAS E NARRATIVAS DE
UM APRENDIZADO IMPERCEPTÍVEL AOS OLHOS...............................................237
Adilson dos Santos, Tarciso Manfrenatti de Souza

SIMILARIDADES ENTRE DEUSES AFRO-BRASILEIROS


E DEUSES GREGOS: POR UM OBJETIVO EM COMUM........................................261
Jefferson Machado de Assunção

DIÁLOGOS POSSÍVEIS NA FORMAÇÃO DOCENTE:


O INDÍGENA E O NEGRO NO BRASIL...................................................................285
Viviane da Silva Almeida, Helder Sarmento Ferreira

INTERVENÇÃO DO MOVIMENTO INDÍGENA NAS ESCOLAS:


DESCONSTRUINDO O PRECONCEITO ANTES DA LEI 11.645/08.........................307
Marize Vieira de Oliveira, Julio Cesar Araujo dos Santos

DOCENTES NO CURSO DE TURISMO DA UFRRJ:


REFLEXÕES A PARTIR DA LEI FEDERAL 12.711/12.............................................333
Ricardo Dias da Costa

POÉTICAS ORAIS AFRICANAS PARA PENSAR


FORMAÇÃO DOCENTE E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS.........................................357
Messias Braz Santos

QUANDO A ACADEMIA SE APROXIMA DA ESCOLA:


RELATOS DOCENTES E SUAS PERCEPÇÕES
ACERCA DE PROCESSOS FORMATIVOS E PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS PARA UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA......................................379
Ana Paula Cerqueira Fernandes, Sandra Regina de Souza Cruz
À amiga e lutadora
Azoilda Loreto Trindade,
in memoriam
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

PREFÁCIO
DO SILENCIAMENTO À “DESOBEDIÊNCIA
EPISTÊMICA”: REFLEXÕES SOBRE
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E EDUCAÇÃO

Rosana Heringer1

Acredito que a trajetória do leitor ao percorrer as pági-


nas deste livro será semelhante ao percurso de seus autores na
construção deste trabalho coletivo: um caminho de descober-
tas, questionamento de falsas certezas e de perceber que, por
mais que se caminhe, o ponto de chegada está ainda vislum-
brado à distância na linha do horizonte.
Esta foi a sensação que tive ao ler os trabalhos aqui apre-
sentados, em sua maioria resultantes de reflexões e debates
realizados nas aulas da disciplina “Formação Docente e Re-
lações Étnico-Raciais” ofertada pelo professor Luiz Fernan-
des de Oliveira (um dos organizadores do livro, juntamente
com Lilian do Carmo de Oliveira Cunha e Roma Gonçalves

1. Doutora em Sociologia, professora e vice-diretora da Faculdade de Educação da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Lemos), no âmbito do Programa de Pós-Graduação Stricto


Sensu em Educação, Contextos Contemporâneos e Deman-
das Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Ja-
neiro (PPGEDUC/UFRRJ). Trata-se de um caminho que vai
se desvendando aos leitores aos poucos, formado a partir de
um mosaico de experiência e reflexões teóricas sobre o saber
docente em suas variadas expressões.
Uma característica comum aos diversos trabalhos apresen-
tados aqui é a proximidade entre a reflexão teórica e a expe-
riência cotidiana da maioria dos autores como docentes da
educação básica. Esta marca evidencia a necessidade destes
autores em refletir sobre o que vivenciam em seu cotidiano
profissional. Entretanto, os textos não se limitam a relatar ex-
8 periências ou desfiar críticas e frustrações que frequentemente
aparecem no nosso confronto com o cotidiano do trabalho
docente; também procuram problematizar as questões obser-
vadas e apontar caminhos para superação das dificuldades vi-
venciadas.
Outra recorrência em vários capítulos é a percepção de que
os aspectos referentes às relações étnico-raciais na educação já
não se constituem em novidade e em um debate desconheci-
do no âmbito educacional, nem por parte de gestores, nem
dos docentes. Ao longo de vários anos desde a promulgação
das Leis 10.639/03 e 11.645/08, constata-se que estas temá-
ticas não se constituem numa novidade no ambiente escolar,
o que não significa que sejam plenamente absorvidas e colo-
cadas em prática.
De certa forma, podemos dizer que este é um debate se-
melhante ao que ocorre no âmbito das políticas de ação afir-
mativa para pretos, pardos e indígenas no Brasil, principal-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

mente em relação ao acesso à educação superior. Tais políticas


começaram a ser implementadas em 2001 e se expandiram
significativamente ao longo da década de 2000, tendo um
momento importante de sua consolidação em 2012, com o
reconhecimento unânime da constitucionalidade das mesmas
pelo Supremo Tribunal Federal e com a promulgação da Lei
12.711/12, instituindo cotas no acesso às instituições federais
de ensino.
Em ambos os casos, a longevidade do debate e das inicia-
tivas de implementação de políticas definidas pelo arcabouço
legal não foram suficientes para superar o desconhecimento,
as dúvidas, as dificuldades e, com frequência, a invisibilida-
de ou o silenciamento – palavra utilizada em vários capítulos
deste livro – relativos às temáticas que motivaram a adoção 9
destes mecanismos legais.
Com efeito, vários autores deste livro destacam as barreiras
e dificuldades de natureza cultural e simbólica para que as
diretrizes referentes ao ensino de história e cultura afro-bra-
sileira, africana e indígena sejam plenamente colocadas em
prática. Quando falamos destas barreiras culturais e simbóli-
cas, mergulhamos num universo de percepções, julgamentos,
concepções, certezas e opiniões que se expressam no cotidiano
das nossas instituições educacionais e que, em geral, refletem
um universo mais amplo de diferenças culturais e simbólicas
presentes no conjunto da sociedade brasileira, na qual nossos
docentes e demais profissionais de educação, alunos e familia-
res estão inseridos.
Neste contexto emergem práticas, atitudes e tomadas de
posição que nem sempre condizem com o respeito à dife-
rença, com a garantia dos direitos humanos de todos e com
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

o pleno exercício democrático. Frequentemente nos surpre-


endemos com manifestações racistas, sexistas, etnocêntricas,
homofóbicas e de intolerância religiosa, entre outras, que em
nada correspondem aos princípios de cidadania que devem
guiar a atividade educacional.
Ao vivenciar estas situações, os docentes e demais profis-
sionais que pautam sua prática pela luta antirracista e anti-
discriminatória sentem-se, muitas vezes, impotentes, sem um
curso de ação definido para atuar na desconstrução desses va-
riados estereótipos e preconceitos.
É neste momento que o livro aqui apresentado surge como
uma ferramenta para auxiliar no caminho por vezes tortuoso
destes profissionais. Não falo de receitas ou de estratégias
10 prontas, que não serão encontradas e que nem seriam a pre-
tensão desta obra. Falo das diferentes perspectivas de reflexão
apresentadas, muitas delas a partir de vivências e trabalhos de
campo dos autores, que nos auxiliam a desenhar um cenário
de resistência, aprendizagem e construção coletiva.
A luta contra o racismo, o preconceito e o etnocentrismo
na sociedade brasileira é longa e árdua. Não começou hoje,
não começou com a Lei 10.639 ou com a Lei 11.645, nem
vai terminar num futuro próximo. É marcada pelo grande
protagonismo e liderança dos movimentos negros e indíge-
nas, mas não depende somente deles para se consolidar e
expandir.
Lutar por uma educação antirracista e antidiscriminatória
é uma tarefa igualmente longa e desafiadora. As experiências
e reflexões aqui apresentadas nos dão pistas para pensar que
algumas estratégias podem ser mais bem-sucedidas do que
outras, que alguns aspectos dessa resistência e transformação
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

já estão mais consolidados do que outros. É uma descober-


ta importante, que nos auxilia a identificar o que pode “dar
certo” e o que já pode ser abandonado como estratégia, após
vários anos de implementação destas leis.
Por outro lado, o livro aponta caminhos. Indica que estas
estratégias não estão descoladas das iniciativas de combate ao
racismo e à discriminação na sociedade brasileira como um
todo, em diferentes espaços, mas ao mesmo tempo aponta
que, no campo educacional, temos que ser criativos e inova-
dores nas nossas abordagens. Temos que ir além dos materiais
didáticos tradicionalmente fornecidos e buscar outras fontes
de pesquisa. Temos que estabelecer o diálogo e a empatia com
nossos colegas a fim de tornar visível que estas questões dizem
respeito a todos e não a uma parcela da população brasileira 11
com determinadas características fenotípicas. É importante o
reconhecimento e a percepção de que as disputas pela inter-
pretação crítica da história e da sociedade brasileira estão no
centro dessa construção de novos saberes e novas formas de
ensinar história e cultura afro-brasileira, africana e indígena.
Estes aspectos se destacam nas narrativas e reflexões aqui
apresentadas sobre diferentes atividades desenvolvidas no es-
paço educacional, tais como seminários, visitas de campo, ofi-
cinas, exposições fotográficas, entre outros. Na reflexão sobre
cada um deles, observamos o cuidado dos autores em identi-
ficar aprendizados e limites, visando ampliar o conhecimento
sobre os efeitos e impactos dessas diferentes estratégias.
Outra dimensão importantíssima analisada em alguns ca-
pítulos diz respeito à análise do conteúdo da formação ini-
cial dos futuros docentes, através da avaliação do currículo do
curso de Pedagogia em instituições selecionadas, observando
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

especificamente como se apresenta o tema das relações étnico-


-raciais nos mesmos.
O cenário apresentado é preocupante. Em poucas institui-
ções uma disciplina específica sobre o tema está prevista de
forma obrigatória no currículo. Em proporção semelhante, há
oferta de disciplinas eletivas com conteúdos próximos a esta
temática. O quadro continua a demonstrar a não centralida-
de destes assuntos na formação inicial docente, revelando o
quanto é necessário também definir estratégias para transfor-
mação do currículo nestes espaços de formação, notadamente
instituições de ensino superior públicas e privadas. Este é mais
um caminho a ser percorrido, apontado por vários autores.
De certa forma, o fato deste livro resultar, em grande me-
12 dida, de uma disciplina oferecida em um curso de pós-gradu-
ação, representa um tipo de resposta a essa lacuna apontada
na educação superior. O resultado coletivo aqui apresentado
expressa o compromisso dos autores – em particular, dos or-
ganizadores – em atuar para que a universidade pública se
engaje de maneira comprometida e crítica na produção de
novos saberes e participe na construção de estratégias bem-
-sucedidas de formação de professores e de reflexão sobre ex-
periências inovadoras no campo educacional, principalmente
aquelas voltadas para o respeito à diversidade.
Acredito que é nesta chave que se encaixa a expressão “de-
sobediência epistêmica”, que se lê em algumas passagens do
livro. Trata-se do desafio de desobedecer ao que está consoli-
dado e ter a disponibilidade e abertura para construir novas
perspectivas, inclusive do ponto de vista teórico e metodoló-
gico. Como afirmam Jacqueline Ferreira e Luiz Fernandes de
Oliveira em seu capítulo:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

trabalhar pedagogicamente com as questões étnico-raciais


em sala de aula requer duas operações inéditas para mi-
lhares de docentes, qual seja: por ser uma questão polê-
mica e controversa, a discussão racial mobiliza os docen-
tes a se posicionarem numa dinâmica didática conflitual,
ou seja, são chamados a estabelecerem um conflito de
conhecimentos e também a provocarem conflitos iden-
titários em seus educandos e colegas de profissão. Por
outro lado, ao perceberem esta possibilidade, descobrem
que devem operar uma negação e reformulação de muitos
fundamentos pedagógicos e epistemológicos oriundos de
sua formação inicial docente, além de terem que se repo-
sicionarem em suas subjetividades raciais.
13
Tal operação de negação e reformulação não é em nada
trivial, e provoca questionamentos e inquietações que colo-
cam em xeque nossos percursos pessoais, trajetórias indivi-
duais, pertencimento étnico-racial, identidades, escolhas po-
líticas e profissionais. Por estas razões é tão difícil promover
transformações no ambiente educacional, traduzindo imensa
dificuldade que a sociedade brasileira tem em lidar com a di-
versidade e a diferença, não só na dimensão do respeito, mas
principalmente no que se refere à distribuição de poder.
Tenho a certeza de que os leitores de Diferenças étnico-raciais
e formação docente: um diálogo necessário vão se sentir inspirados
pelas reflexões e análises propostas e certamente terminarão a
leitura mais motivados a lutar para que estas transformações
aconteçam em seus diferentes contextos profissionais.
Parabenizo os organizadores e o conjunto dos autores pela
iniciativa e desejo que outros espaços de formação docente,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

notadamente nossos programas de pós-graduação em Educa-


ção, abracem iniciativas semelhantes de troca e aprendizado
mútuo entre professores e alunos sobre os temas propostos
neste livro.

Boa leitura!

14
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

INTRODUÇÃO

Esta obra é fruto de debates e reflexões coletivas de pro-


fessores, estudantes, pesquisadores e militantes da disciplina
Formação Docente e Relações Étnico-Raciais, do Programa
de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos
e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ). Este livro tem como eixo a articulação 15
das questões tocantes à formação docente e a educação para
as relações étnico-raciais no Brasil.
Os artigos reunidos trazem resultados de pesquisas e ex-
periências de formação e atuação em diferentes espaços de
produção do conhecimento. Escritas que transitam pelo en-
saio, pela narrativa poética, relatos e interlocuções propõem a
reflexão sobre a articulação entre prática profissional/educati-
va, prática política e teoria como elementos fundamentais da
relação dialética que se constitui na escola/academia e com
os atores envolvidos no processo educacional e de formação
identitária. Os autores problematizam o papel da academia,
das redes públicas de ensino e dos movimentos sociais en-
quanto espaços formativos para a docência, colocando em
pauta as lacunas que a formação docente apresenta quando
confrontada com o cotidiano dos contextos educacionais (ou
o cotidiano educacional/escolar).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

A disciplina ministrada pelo professor doutor em Educação


Luiz Fernandes de Oliveira reuniu docentes de diversos mu-
nicípios do Rio de Janeiro com experiência nos mais variados
níveis e modalidades da educação básica e do ensino superior.
Essa diversidade de olhares e lugares de fala contribuiu para
a ampliação de um debate que se insere no contexto da luta
antirracista e percebe a educação como um dos espaços privi-
legiados na construção de outro mundo possível, um mundo
em que as relações entre conhecimentos dominantes, subalter-
nizados e a produção de sentidos sobre o outro se subverta e se
(re)construa a partir de uma perspectiva crítica e num marco
de igualdade e respeito às diferenças dos diversos grupos étni-
cos que constituem o conjunto da sociedade brasileira.
16 Constitui, ainda, a riqueza dessa diversidade o diálogo
entre as questões indígenas e as da diáspora africana com-
preendendo que o processo de dominação colonial produziu
diferenças que serviram de justificativa a um projeto de poder
que conferiu a ambos os grupos (negros e indígenas) um lu-
gar de subalternidade na história. Entendemos que esse movi-
mento intercultural mobiliza, unifica e articula forças contra-
-hegemônicas em direção a outra conformação das relações de
poder, de saber e de ser.
A interlocução com membros do movimento negro e do
movimento indígena foi uma experiência significativa e mar-
cante da disciplina, pois possibilitou que o grupo ampliasse o
olhar sobre os avanços que as mobilizações coletivas podem
provocar, mesmo que uma longa caminhada de luta se apre-
sente pela frente.
Ao longo de quatro meses de diálogo e encontros da
disciplina, cerca de trinta pessoas se dispuseram a dialogar
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

e desafiar suas certezas e dúvidas sobre educação e relações


étnico-raciais. Não chegamos a conclusões definitivas; pelo
contrário, abrimos novas possibilidades de reflexões teóricas,
pedagógicas e de luta política, e esta obra é só um momento
de sistematização e socialização de ideias e pensamentos.
Muitas reflexões foram expostas, como as tensões entre
bacharelado e licenciatura na formação docente, as diversas
concepções de formação em disputa, a identidade docente
que se constrói para além da formação inicial, a diversidade
destas identidades em função das subjetividades docentes, as
questões étnico-raciais que mobilizam pensar outro tipo de
formação, a ideia da militância antirracista conjugada com a
educação escolar, dentre outras.
Uma reflexão que perpassou em diversos momentos foi a 17
constatação de que estamos construindo uma massa crítica,
pós-LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). Esse é um
processo, uma construção histórica de negociações e estabele-
cimento de acordos possíveis a cada avanço coletivo na luta
antirracista na educação brasileira. O risco é essa massa crítica
repetir os vícios da velha educação bancária, da velha escola
ainda existente, dos velhos processos pedagógicos. Entretanto,
nossa tarefa enquanto uma nova geração crítica é reinventar e
inventar um outro modo de ser docente.
As DCNERER2 ajudam a mobilizar um mundo novo na
educação, com conceitos novos nos espaços conservadores –
universidades e escolas –, e neste sentido, como afirmado por
diversos professores em vários de nossos encontros, é neces-
sário “enfrentar dores e medos”, realizar “escolhas fatais”, “se
2. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

posicionar” e perceber que nosso lugar enquanto educadores


pode ser também um lugar de reparação histórica.
Assim como nos textos deste livro, muitos depoimentos
dos docentes na disciplina insistem que devemos alcançar um
patamar de proposição de uma didática antirracista e sair do
lugar cômodo e restrito da denúncia e constatação do racis-
mo. Daí surge a ideia forte em muitos debates acalorados: a
necessidade de começar a refletir sobre a vital aliança com os
movimentos sociais, pois foram eles que nos colocaram neste
momento histórico e que nos oportunizaram estar aqui.
E quando falamos em alianças, estamos pensando na ideia
de uma pedagogia que faça da opressão e de suas causas um
objeto de reflexão dos oprimidos. Na esteira de Paulo Frei-
18 re, a reflexão autêntica conduz a prática, a transformação, a
ação coletiva. Subjetivamente, muitos docentes chegaram à
mesma conclusão de Bell Hooks: a constante problematização
da realidade racial não nos faz felizes, mas nos faz humanos.
Daí, pelo menos, entre dúvidas, angústias e dores, fechamos a
disciplina para abrir um novo debate: a de que precisamos de
uma formação docente militante.
Durante o desenvolvimento das reflexões, reunidos sema-
nalmente, tivemos o inesperado falecimento da companheira
Azoilda Loreto Trindade, nossa amiga e guerreira militante e
intelectual contra o racismo. Muito nos lamentamos, mas o
debate que abrimos e pretendemos continuar com esta obra
também quer dialogar com o legado de Azoilda, ou seja,
compreende-se aqui que a produção intelectual deve servir
como instrumento para a promoção de uma práxis docente
que se engaje na produção de novas pedagogias. Pedagogias
que questionem o modelo hegemônico vigente de educação e
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

problematizem as diferenças étnico-raciais considerando seus


vínculos históricos, sociais, políticos e epistemológicos.
São quinze os artigos que compõem esta obra e versam
sobre temas, tempos e espaços diversos, mas que convergem
para a centralidade da formação docente enquanto foco de
debate e pesquisa. Abrem a coletânea as autoras Fabiana
Lima, Gudrun Klein e Úrsula de Farias com o artigo “A for-
mação docente promove uma educação antirracista? Reflexões
sobre aqueles ‘que se educam entre si’”. O texto apresenta a
discussão sobre como alguns alunos, professores, agentes pú-
blicos de educação e militantes da questão da educação e das
relações étnico-raciais concebem as desigualdades sociais, sob
a ótica do debate acerca de raça no Brasil. Analisam como
a formação de professores – inicial e continuada – se inse- 19
re neste contexto, a partir de três dimensões específicas: os
espaços coletivos de militância e formação política, o currí-
culo previsto na formação inicial e as políticas públicas de
formação continuada no âmbito dos municípios. Partem do
pressuposto, amparadas em Paulo Freire, que a educação se dá
nas relações entre as pessoas, nas suas ações e no processo de
reflexão sobre esses atos.
O segundo artigo, intitulado “Tecendo outras histórias:
formação docente, literatura e a educação infantil no contex-
to das relações étnico-raciais”, de Cecília Saitu, Kelly Mada-
leny e Roma Lemos, entrelaça as trajetórias de três professoras
de educação infantil identificando possíveis origens, tensões,
conflitos e desafios comuns encontrados no decorrer de suas
práticas pedagógicas. Reflete sobre as experiências construídas
com as crianças da educação infantil e as práticas desenvol-
vidas a partir da literatura infantil como elementos que po-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dem servir à discussão da implementação das Leis 10.639/03


e 11.645/08.
“Diferenças culturais e formação docente na Baixada Flu-
minense” é o título do terceiro artigo, escrito por Jacqueline
Ferreira e Luiz Fernandes de Oliveira. O texto é composto por
um diálogo entre duas experiências na formação de professo-
res na UFRRJ, tendo de um lado um profissional que tem a
tarefa de dialogar e trocar experiências com seus estudantes
de pedagogia e, de outro, uma profissional da educação bási-
ca em um município da Baixada Fluminense que, ao mesmo
tempo que exerce a docência na educação infantil, estabelece
novos diálogos entre seu lugar de estudo e a docência. Esta
proposta surge a partir da necessidade de colocar no mesmo
20 nível experiências e análises sobre as diferenças culturais e a
cultura escolar, e como esta reflexão em conjunto pode con-
tribuir na formação de novas gerações de docentes na Baixada
Fluminense. Em cada seção, a escrita está organizada primei-
ro com as reflexões e descrições da docente/estudante e, em
seguida, com as reflexões e análises do docente interlocutor
da estudante.
O quarto artigo, “Educação das relações étnico-raciais e
a práxis dos professores dos anos finais em Angra dos Reis:
Uma breve análise/reflexão”, de Kátia Zephiro e Silvia Bitten-
court, é fruto de uma pesquisa realizada na cidade de Angra
dos Reis, RJ. Angra é muito conhecida pelas belezas natu-
rais, suas praias e ilhas. Quem não a conhece imagina um
paraíso de belezas e prazeres. Contudo, a cidade é um lu-
gar de grandes contradições e pluralidade cultural. O artigo
pretende discutir o que motiva, ou não, professores da rede
municipal de ensino a se comprometerem com a educação
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

para as relações étnico-raciais a partir da implementação da


Lei 11.645/08, que preconiza a obrigatoriedade do ensino de
História e Cultura Africana, Afrodescendente e Indígena em
todo currículo escolar, em especial nas disciplinas de História,
Artes e Literatura. As autoras utilizam como um dos referen-
ciais teórico-metodológicos as discussões realizadas pelo gru-
po Modernidade/Colonialidade (M/C) para analisar entrevis-
tas com professores dos anos finais do ensino fundamental e
documentos da rede municipal de Angra dos Reis.
No quinto artigo, as autoras Danielle Silva, Norielem
Martins e Roseléa Oliveira pretendem contribuir na discussão
de novos paradigmas para a formação docente no contexto
das Leis 10.639/03 e 11.645/08. Para tal, dialogaram com
experiências de implementação das leis na rede municipal pú- 21
blica de ensino realizadas no âmbito do Núcleo de Ações e
Políticas Interculturais, da Secretaria Municipal de Educação,
Ciência e Tecnologia de Angra dos Reis, no Estado do Rio
de Janeiro. Consideram que as escolas públicas, reconhecidas
como contextos de suas militâncias, possuem um papel fun-
damental no combate ao racismo através da criação de novas
pedagogias que caminhem no sentido da superação da colo-
nialidade. Nesse sentido, deparam-se com o grande desafio
de formar educadores para ensinar conteúdos sobre história
e cultura e desconstruir a repulsa e o preconceito que grande
parte da população brasileira tem em relação à população ne-
gra e indígena.
Hélbia Gonçalves, Janine dos Santos e Lilian Cunha ana-
lisam no artigo “Políticas públicas e prática pedagógica: da
ação afirmativa à ação docente” como se dão as políticas de
caráter afirmativo em sala de aula, no tocante à implementa-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ção de leis e às práticas pedagógicas das relações étnico-raciais.


Para tanto, abordam o conceito de ação afirmativa e formação
docente sob uma perspectiva dos conteúdos estabelecidos pela
Lei Federal 10.639/03 e a prática docente. Com o objetivo de
compreender essa práxis, acompanharam o desenvolvimento
do projeto Africanidades e Eu, nas turmas de Educação de
Jovens e Adultos de uma escola do município de Duque de
Caxias, RJ.
As autoras Simony Ricci e Valéria Nepomuceno questio-
nam, no sétimo texto, sobre o silenciamento e a invisibilidade
presentes no contexto educacional contemporâneo, que se ex-
pressam na dificuldade de se trabalhar com práticas que reco-
nheçam o negro dentro de um cenário histórico, político, so-
22 cial e cultural. A pesquisa de natureza qualitativa consistiu em
captar as experiências e opiniões dos alunos quanto às práticas
educativas realizadas no período de sua formação acerca das
relações étnico-raciais no curso de Pedagogia de uma univer-
sidade privada localizada no município de Nova Iguaçu, RJ.
Concluem, com a pesquisa, que a universidade é um espaço
de promoção de diálogos e reflexões com a finalidade de repa-
rar ações que violam o direito à cidadania do negro, contudo,
verificaram que o universo acadêmico ainda tem dificuldade
em lidar com a pluralidade e a diferença. Com isso, preferem
uma concepção homogeneizadora e acrítica.
Ao reconhecerem os desafios em torno da aplicação da Lei
10.639/03, as autoras Aline Grion e Nágila Santos buscam,
no oitavo artigo, trazer as reflexões em torno das possibilida-
des do uso da internet, como forma de suprir as lacunas dos
currículos da formação inicial e continuada dos docentes no
que se refere às temáticas africanas e afro-brasileiras. A pes-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

quisa é um estudo de caso e parte da análise do conteúdo de


artigos, resenhas e antologias publicados pela revista África e
Africanidades na área de literaturas africanas, afro-brasileiras
e afro-americanas, no período de maio de 2008 a novembro
de 2015. O material analisado reuniu perspectivas de estu-
dantes, docentes, pesquisadores, escritores brasileiros e estran-
geiros sobre o tema, compreendendo-o como um importante
subsídio para docentes da educação básica e superior.
O nono artigo, “Como aprendemos a ser moreno, mo-
reninho, pardo... memórias e narrativas de um aprendizado
imperceptível aos olhos”, dos professores Adilson dos Santos
e Tarciso Manfrenatti de Souza, traz, no enredamento de suas
narrativas, a reflexão sobre como o racismo ainda se mantém
e se atualiza no cotidiano da escola e da vida familiar. Acre- 23
ditamos que no interior desses espaços educativos impera um
saber que educa os homens a serem: brancos, heterossexuais e
cristãos, fundamentalmente. Desta forma, buscam o diálogo
com Sodré (2000), Souza (1983), Gomes (2003), entre ou-
tros estudiosos do campo das relações étnico-raciais. Para en-
tramar as narrativas, apoiam-se em Filé (2000; 2006; 2013),
Larrosa (1994; 2002), Benjamin (1985) e Ferraço (2003). Os
autores afirmam que esses referenciais os auxiliam na conju-
gação do verbo “pesquisar” atrelado ao verbo “existir/viver”,
e que, assim, o escritor/pesquisador vai produzindo sentidos
para o que foi/é vivido. Além disso, assumimos aqui o desafio
político de exercitar uma escrita ensaística a fim de problema-
tizar a estética hegemônica como caminho único na produção
do conhecimento.
Jefferson Machado de Assunção, em “Similaridades entre
deuses afro-brasileiros e deuses gregos: por um objetivo em
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

comum”, sugere que a reflexão sobre a descolonização do cur-


rículo da escola brasileira transcende a comemoração de datas
especiais. O autor afirma que “descontaminar” nossas práticas
eurocentradas sedimentadas por anos requer, em princípio,
uma reorientação de nossa forma de pensar e dos manuais
de ensino que temos em mãos, para que alunos negros e/ou
praticantes dos cultos afro-brasileiros sintam que seus saberes,
seus contextos e suas práticas contribuíram para o que enten-
demos hoje como nação. Como parte deste processo é que
esse artigo postula que a ausência das divindades dos cultos
afros em nosso espaço escolar se deve à invisibilidade resul-
tante de um processo alienatório. Processo que considera que
falar dos deuses gregos é importante e traduz um saber domi-
24 nante e reconhecido, ao passo que os deuses afro-brasileiros –
que apresentam características muitos similares às divindades
gregas – sofrem um processo de apagamento por representar
um saber outro. As similaridades entre ambos os panteões são
elucidadas através de tabela comparativa, como forma de con-
duzir o leitor a uma conclusão irrefutável: urge ressignificar
a presença destas divindades em nosso espaço escolar, a fim
de conferir importância a saberes considerados subalterni-
zados, conferir força no combate ao racismo do qual a Lei
10.639/03 é pilar indestrutível.
O artigo “Diálogos possíveis na formação docente: o in-
dígena e o negro no Brasil”, de Viviane Almeida e Helder
Ferreira, apresenta reflexões acerca da importância da instru-
mentalização de uma consciência crítica libertadora que leve
o docente e o educando a um processo reflexivo-crítico. Neste
caminho, Paulo Freire (1987), Walsh (2002), Oliveira (2010),
Guedin (2012), Guimarães (2012) e Petit (2015) deram o
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

suporte teórico que embasou o diálogo construído no campo


epistemológico com algumas experiências que foram coloca-
das em destaque. O trabalho reflete e analisa a importância
da aplicação das leis que complementaram o artigo 26-A da
LDBEN, 10.639/03 e 11.645/08, na formação de educadores
brasileiros, embasadas numa interculturalidade crítica e deco-
lonial, valorizando o conhecimento tradicional nas práticas de
formação de professores na educação brasileira.
“Intervenção do movimento indígena nas escolas: des-
construindo o preconceito antes da Lei 11.645/08” é o título
do décimo segundo artigo, de autoria dos professores Julio
Cesar dos Santos e Marize de Oliveira. O trabalho procurou
destacar concepções presentes na educação a partir de experi-
ências discentes em trabalhos desenvolvidos no espaço esco- 25
lar que pressionam o modelo hegemônico que preside os sa-
beres pedagógicos e procuram minimizar a importância dos
outros grupos étnicos presentes na formação do povo brasi-
leiro. Realçaram a importância da construção do Movimen-
to Tamoio dos Povos Originários, questionando o chamado
“descobrimento” do Brasil ainda presente em vários livros
didáticos que, dentre outras coisas, pereniza uma educação
eurocêntrica e distorce o propósito da Lei 11.645/08. Anali-
sam, através de um breve histórico, a luta indígena contra o
Estado e seus sócios capitalistas para preservar a Aldeia Ma-
racanã. Os autores destacam a necessidade de se reinterpretar
historicamente o termo genocídio para a América e propõem
um diálogo com a pedagogia decolonial, por entender que
esta configura e dimensiona novas identidades plurais. Este
processo pode sustentar-se na diversificação do currículo,
abrindo espaço para que novas vozes atuem nas escolas e na
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

sociedade, amplificando o conceito de identidade, cidadania


e democracia.
No décimo terceiro artigo, “Docentes no curso de Turismo
da UFRRJ: reflexões a partir da Lei Federal 12.711/2012”,
o professor Ricardo Costa explicita que a pesquisa de cará-
ter exploratório visa refletir sobre a referida Lei, também co-
nhecida como “lei de cotas”, e a relação existente entre os
professores do curso presencial de bacharelado em Turismo
da UFRRJ e a temática. Este curso, criado para atender a
uma demanda existente no estado do Rio de Janeiro e em
sua região metropolitana, é oferecido pelo Instituto Multi-
disciplinar no campus Nova Iguaçu desde 2006. A UFRRJ
foi uma das pioneiras na aprovação de 50% de cotas sociais
26 e étnicas, conforme previsto na Lei 12.711/12. A formação e
atuação de seus professores em sala de aula, em um cenário
cujo corpo discente foi modificado pelo ingresso de um novo
perfil de alunos, suscitam reflexões sobre uma nova realidade
na universidade. O trabalho ora apresentado é fruto de pes-
quisas bibliográficas e de campo, sendo utilizada a ferramenta
do Google Drive para sua realização junto ao corpo docente
do curso.
O penúltimo artigo, “Poéticas africanas para pensar ‘For-
mação docente e relações étnico-raciais’”, do professor Mes-
sias Braz dos Santos, especialista em relações étnico-raciais,
reflete o tema sob o aspecto da Lei 10.639/03. Apesar dos
seus treze anos de publicação, a lei ainda se apresenta como
novidade para alguns docentes, mas traz esperança e abre pos-
sibilidades para discussão e implementação de ações que nos
tirem da invisibilidade. O autor apresenta o método TEIA
para abordagem de temas como as religiões de matriz afri-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

cana, dentre outros, através de poéticas orais africanas como


resgate da memória da nossa ancestralidade e o subsequente
uso desses contos como recurso pedagógico para a formação
de alunos críticos e de uma pedagogia antirracista.
Ana Paula Fernandes e Sandra Regina Cruz retomam, no
último artigo da coletânea, aspectos das discussões que foram
propostas no decorrer da disciplina que deu origem a este
livro. Expõem que tal ciclo de estudos contribuiu para instru-
mentalizar os docentes envolvidos no sentido de compreender
a relação intrínseca que há entre teoria e ação, aproximan-
do os saberes acadêmicos dos fazeres que delineiam a práxis
pedagógica que emerge no chão das escolas. As autoras trazem
para o diálogo as percepções dos docentes que participaram
dos encontros no tocante ao princípio da (re)politização do 27
pedagógico enquanto caminho propositivo de práticas outras
e currículos outros. Os relatos evidenciam a percepção do
grupo quanto à urgência de ações inovadoras, coletivas, de
caráter militante e convergentes para os caminhos de uma pe-
dagogia decolonial no contexto da educação para as relações
étnico-raciais no Brasil.
Nossa expectativa é de que essas contribuições provoquem
reflexões e ações que continuem a fortalecer a luta por uma
formação docente a serviço da educação das relações étnico-
-raciais nos mais diversos níveis educacionais. Acreditamos
que, além de resistir, é preciso criar novas formas de luta que
se somem à construção dos que lutaram e lutam contra toda
forma de opressão e exploração. É preciso seguir identifican-
do, reunindo e unificando nossos pares em torno de um pro-
jeto de educação e sociedade em que se garanta aos sujeitos
racializados o direito de existir e conviver em condições de
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

simetria e verdadeiramente libertárias. Nosso desejo é que as


leitoras e leitores dessa produção coletiva se encorajem, deso-
bedeçam, resistam e (re)existam na caminhada inevitável do
combate ao racismo entranhado nas mais diversas esferas da
sociedade.

28
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

A FORMAÇÃO DOCENTE PROMOVE


UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA?
REFLEXÕES SOBRE AQUELES “QUE SE
EDUCAM ENTRE SI”

Fabiana Ferreira de Lima3


Gudrun Klein4
Úrsula Pinto Lopes de Farias5

I - INTRODUÇÃO 29

Este texto, assim como o livro que ajuda a compor, é fruto


de um encontro. Encontro entre três pesquisadoras de origens
distintas, mas com trajetórias que convergem para a discussão
das relações étnico-raciais6 no Brasil e suas implicações no âm-

3. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-


rio), membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação para as Relações Étnico-
-Raciais (Gepeer), professora no primeiro segmento do ensino fundamental, no Colé-
gio Pedro II. Contato: trintonale@hotmail.com
4. Doutoranda e assistente de ensino (graduate teaching assistant) em Antropologia So-
cial pela Universidade de Manchester, membro da Associação Austríaca para os Direitos
Estudantis da Diáspora Africana (VAS). Contato: gudrun.klein@manchester.ac.uk
5. Mestre em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
professora da rede pública municipal de Belford Roxo, docente na AVM Faculdade
Integrada e na Faculdade São Camilo. Contato: ursulaplfarias@gmail.com
6. Neste texto, este termo assumirá a perspectiva com base no Parecer 3/2004, que
regulamenta a Lei 10.639/03, ao afirmar que: “[...]o emprego do termo étnico, na
expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações tensas devidas a diferenças
na cor da pele e traços fisionômicos o são também devido à raiz cultural plantada na
ancestralidade africana, que difere em visão de mundo, valores e princípios das de ori-
gem indígena, europeia e asiática”. (BRASIL, 2004, p. 13)
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

bito da Educação, em especial acerca dos aspectos da aplicabi-


lidade da Lei 10.639/03, em diversificados espaços, bem como
o desenvolvimento destes conhecimentos na formação docente,
tanto inicial quanto continuada, cuja âncora parte da afirmati-
va de que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mes-
mo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”
(FREIRE, 1987, p. 68). Esta colocação de Paulo Freire nos faz
pensar que as pessoas estão em constante movimento educativo.
Neste artigo, ainda refletiremos e discutiremos como alguns
alunos, professores, agentes públicos de educação e militantes
da questão da educação e das relações étnico-raciais concebem
as desigualdades sociais, sob a ótica do debate acerca de raça no
Brasil, e como a formação de professores – inicial e continuada
30 – se insere neste contexto, a partir de três dimensões específi-
cas: os espaços coletivos de militância e formação política, o
currículo previsto na formação inicial e as políticas públicas de
formação continuada no âmbito dos municípios.

II – ESPAÇOS DE SILENCIAMENTO E
SURGIMENTO DA MILITÂNCIA PARA AS
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Uns dias antes de realizarem a prova do Exame Nacional


do Ensino Médio (ENEM), os alunos do último ano – de
um colégio da Baixada Fluminense – foram levados à Uni-
versidade Veiga de Almeida (UVA), considerada uma das me-
lhores universidades privadas no Rio de Janeiro pelo Minis-
tério da Educação. A maioria destes alunos tem a cor da pele
não branca e vem de famílias com baixa renda. O objetivo
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

do passeio era familiarizá-los com o ambiente universitário,


o qual uma boa parte deles, possivelmente, não presenciará
de novo, considerando que o ENEM, como instrumento de
acesso para universidades públicas, é muito competitivo e ins-
tituições privadas são caras.
Passeando pelos corredores da universidade, um aluno per-
guntou aos seus colegas: “Vocês acham que isso aqui é pra
gente?” Os outros alunos balançando a cabeça, o menino
continuou: “Aqui só tem branco. Não é pra gente! Só vi três
negros aqui.” Essa situação revelou o desconforto que alguns
alunos sentiram, durante o passeio; um sentimento de não
pertencimento, além da constatação de que práticas discri-
minatórias estão sendo reproduzidas e estruturas de poder
estão sendo mantidas dentro dos espaços educacionais. Esta 31
foi uma das raras vezes em que a cor da pele e a segregação
racial nas instituições educativas foram tematizadas por alu-
nos, de maneira explícita. Tal contexto vem denunciar que a
prevalência do mito da democracia racial e da negação das
contribuições das pessoas de origem africana e afro-brasileira
à criação da nação brasileira contribuem a uma cultura con-
tínua de silenciar expressões sobre identidade e desigualdade
raciais. Conforme a Lei 10.639/037 e suas Diretrizes Curricu-
lares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
cana (DCNERER), “as escolas devem contar com professores
competentes no domínio dos conteúdos de ensino, compro-

7. Altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e


bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino
a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, e dá outras
providências. C.f.: <http://bit.ly/1JeR0NF>
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

metidos com a educação de negros e brancos, no sentido de


que venham a relacionar-se com respeito, sendo capazes de
corrigir posturas, atitudes e palavras que impliquem desres-
peito e discriminação”. (BRASIL, 2004, p. 12)
Sabe-se que, para os alunos dominarem os conteúdos do
ensino, primeiro os professores precisam ter esse domínio (LI-
BÂNEO, 2011, p. 96). Porém, a maioria dos professores não
tem o suficiente entendimento das relações étnico-raciais no
Brasil para poderem oferecer um ensino que estimule os alu-
nos a repensarem suas posturas e atitudes e a refletirem sobre
suas identidades étnico-raciais (AKKARI, 2012, p. 172). A
prática mais fácil e mais comum é a de simular que as dife-
renças e desigualdades raciais não existem e transformá-las em
32 uma questão puramente de classe social.
O que facilita tal daltonismo racial (BONILLA-SILVA,
2006) é que, embora a cor da pele clara e fenótipos europeus
facilitem a ascensão social, uma pessoa negra da classe média
alta pode ter benefícios semelhantes aos de uma pessoa bran-
ca8. Porém, a realidade é que, independentemente da situação
econômica, o afro-brasileiro continua a ser confrontado com
estigmatização sociorracial. Sovik (2009) observou que “a ex-
clusão racial tem duas vozes: valoriza branquitude e, ao mesmo
tempo, afirma que a cor não existe” (DE SANTANA PINHO,
2009, p. 43, tradução da autora)9. A afirmação de que a cor da

8. A questão de classe social concede alguns benefícios como boa escola, boa alimentação,
viver em um lugar com condições sanitárias favoráveis, dentre outros. Isso não significa
que não vivenciará momentos em que sofrerá racismo, mas pode ter benefícios parecidos
com os de pessoas brancas. Isso desperta o debate raça/classe, referente às questões raciais,
mas esta é uma questão que não será aprofundada neste trabalho.
9. Org.: […] [R]acial exclusion speaks in two voices: it values whiteness and says that
color is not important”.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

pele não tem importância e o silenciamento da linguagem que


aborda identidades raciais geram um espaço no qual posturas
racistas podem ser expressas, sem revelar seu caráter racista. Fa-
zer aparentar que a questão racial não existe faz os professores
negarem a importância da identidade racial para os seus alunos
e para si próprios. Essa prática de silenciamento da questão
racial acontece sistematicamente em forma de afirmação da
mestiçagem do povo brasileiro que está sendo naturalizada pela
retórica dos professores (AKKARI, 2012, p. 166).
Frente a este contexto, pontua-se a necessidade da forma-
ção, tanto inicial quanto continuada, para tais temáticas, que
poderá capacitar o docente para estas demandas, a fim de que
situações inúmeras sejam evitadas, como no caso de professo-
res de um colégio, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, 33
desencorajando a aspiração dos seus alunos a conseguir uma
vaga numa instituição de ensino superior, com a explicação
de evitar desilusão e decepção. Até antes de tentar, o aluno
não branco já está sendo programado a falhar e estimulado a
aceitar uma vida longe da ascensão social, ao invés de refle-
tir com este aluno e abordar as suas oportunidades reais de
maneira crítica. Se nem professores nem alunos aprenderam
a ver e, ainda menos, a lidar com suas identidades raciais e
com o tratamento da sociedade e das instituições que vêm
junto a tal identidade, onde nasce a consciência racial, e com
ela a militância, lutando contra a discriminação racial? As Di-
retrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana são muito imprecisas quanto à questão
da responsabilidade sobre a implementação da educação an-
tirracista em constatar que
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

a autonomia dos estabelecimentos de ensino para compor


os projetos pedagógicos, no cumprimento do exigido [...]
permite que se valham da colaboração das comunidades
a que a escola serve, do apoio direto ou indireto de estu-
diosos e do Movimento Negro, com os quais estabelece-
rão canais de comunicação, encontrarão formas próprias
de incluir nas vivências promovidas pela escola, inclusi-
ve em conteúdos de disciplinas, as temáticas em questão
(BRASIL, 2004, p. 17-18).

Tal redação reflete bem a realidade das escolas, cuja auto-


nomia nesta questão torna o ensino antirracista meramente
dependente da qualificação e vontade do próprio professor.
34 Se a sociedade brasileira ainda é uma sociedade preconcei-
tuosa em relação aos negros e afrodescendentes (SOUZA,
2003, p. 199), quais são as possíveis histórias e motivos do
professor que quer transformar o ensino em acordo com a
Lei 10.639/03 – um professor transformador – implementando
conteúdo antirracista e transformativo?

Professores transformadores – fazendo da luta sua ação

Durante o tempo da minha pesquisa, o que todos os pro-


fessores transformadores que conheci têm em comum é um mo-
mento em suas vidas no qual eles se apropriaram de sua identi-
dade racial, reconhecendo-se como negro, branco ou indígena.
Considerando que a maioria das pessoas não foi incentiva-
da a refletir sobre a questão racial de uma maneira crítica no
seu processo formativo, trata-se de um encadeamento lento,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

no qual pessoa por pessoa está sendo educada – ou em espa-


ços formais, como cursos de formação dos professores, ou em
espaços informais, como feiras culturais, eventos musicais etc.
Tal conhecimento vem com muitas emoções e muita dor, já
que a discriminação racial e a estigmatização das pessoas não
brancas visibilizam-se e tornam-se parte de uma nova consci-
ência social e racial. Sem dúvida, é impossível comparar a dor
de uma pessoa branca com a de uma pessoa negra. Porém, os
dois dividem o vocabulário, chamando o processo de apren-
der sobre identidade racial de “acordar” e “enegrecer”.
Como professores transformadores, querendo transformar o en-
sino como um todo de acordo com a Lei 10.639/03, eles ocu-
pam espaços similares dentro de instituições educacionais, sendo
os únicos que não ficam silenciosos em relação às questões étni- 35
co-raciais e ao racismo. Mesmo se nem todos os professores trans-
formadores entendem-se como militantes, sua posição na escola,
onde eles estão sendo enfrentados com muita resistência, dá-lhes
um estado extraordinário, que requer muita perseverança.
São os próprios professores que se descobrem na militância
lutando contra a discriminação racial e divulgando as infor-
mações necessárias para uma consciência antirracista. Tanto
dentro quanto fora da escola, os professores transformadores
ocupam diversos espaços educacionais formais e informais,
ensinando pessoa por pessoa. Existem canais pelos quais
esse movimento educacional antirracista se organiza, reúne
e apoia. Há grupos de pesquisas acadêmicas e não formais,
plataformas na internet e uma rede de pessoas trabalhando
juntos e aprendendo uns com os outros. Porém, todas essas
iniciativas têm caráter pioneiro e solitário, pois dependem da
própria vontade de cada indivíduo e muitas vezes são me-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ramente vistas como reflexão do seu “gosto pessoal”, que se


identifica de uma maneira ou outra com expressões culturais
africanas e afro-brasileiras.
Enquanto o processo oficial de formação antirracista não
for implementado com sucesso (entre outros na formação do-
cente), é preciso uma divulgação maior e acesso mais fácil –
por exemplo, por via de redes sociais – para educadores que
querem juntar-se à luta antidiscriminatória. Com esta disposi-
ção, a educação antirracista tem o potencial de transformar-se
de um esforço individual a uma rede comunitária funcional.

III – PENSANDO A FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE


36
Uma das maiores preocupações da contemporaneidade é
a Educação, considerada como um instrumento essencial na
luta contra a produção de desigualdades, racismo e toda for-
ma de discriminação, fazendo parte, também, das pautas pri-
mordiais dos movimentos sociais, em especial do Movimento
Negro, ao longo das décadas. Faz-se necessário, assim, prever
tais processos formativos, acerca desta mesma abordagem,
ainda em sua formação inicial.

Uma amostra de previsão curricular – o curso de Pedagogia10

Nessa perspectiva, foi realizado um mapeamento de grades


curriculares, em maio de 2015. Ao concluir este texto, é pos-

10. Este levantamento de grades curriculares é recorte da dissertação da autora


(LIMA, 2016, p. 86-90), sob o título “A inserção da temática étnico-racial em
um currículo do curso de pedagogia: trajetórias e colaborações”.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

sível que alguns dados referentes às grades do curso de Peda-


gogia tenham sofrido modificações. Tais grades se encontram
disponibilizadas nos sites das instituições. O mapeamento
teve como objetivo averiguar se há este conteúdo no currículo
previsto da formação inicial do curso de Pedagogia em insti-
tuições públicas e privadas da cidade do Rio de Janeiro, dis-
ponibilizado em seus ambientes virtuais, totalizando 23 delas
– tanto na modalidade regular quanto a distância (EaD). De-
vido ao elevado número de matrículas na modalidade EaD,
também foram consideradas duas instituições paulistas.
A constatação se o ensino referente à Lei 10.639/03 está
sendo previsto no currículo da formação inicial deste futuro
pedagogo se deu a partir dos títulos atribuídos às disciplinas
oferecidas. Optou-se por definir como disciplinas que corres- 37
pondam a este ensino aquelas cujos títulos apresentassem os
termos história e cultura afro-brasileira, relações étnico-raciais
ou semelhantes.
Durante a busca por dados, percebeu-se que a maioria das
instituições já dispõe suas grades curriculares em seu ambien-
te virtual. Se elas estão atualizadas ou não, este dado foi igno-
rado, pois as informações que foram consideradas são as regis-
tradas e atualmente disponibilizadas nos sites das instituições.
Ao desenvolver o estudo com base nas matrizes curriculares
analisadas, optou-se por nomear as instituições, considerando
que suas grades curriculares estão acessíveis a quem realizar
simples buscas, utilizando-se da internet; ou seja, pode ser
descrita como uma informação de cunho público.
Os pontos observados na análise foram: nome da institui-
ção; se esta é pública ou privada; se a disciplina é oferecida na
modalidade regular ou a distância; se é obrigatória ou eletiva/
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

optativa; carga horária a ser cumprida e período no qual é


oferecida. Vale ressaltar que as ementas não foram analisadas,
sendo o nome da disciplina o fator determinante à definição
de ausência ou existência do citado ensino.
Foram analisadas sete grades curriculares de instituições
públicas que oferecem o curso de Pedagogia. A primeira foi a
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que não con-
tém nenhuma disciplina obrigatória que contemple o ensino
determinado pela Lei 10.639/03. Sua grade oferece optativas
condicionadas – cujo estudante pode escolher ou não – e disci-
plinas de livre escolha, que o aluno poderá frequentar em outra
instituição, desde que esteja de acordo com o seu curso. Nes-
tas opções, então, pode haver, ou não, este conteúdo. Mesmo
38 lendo os títulos das disciplinas, um a um, não há indícios de
tal conteúdo previsto, nesta graduação em Pedagogia.
Outra instituição pública foi a Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ). Seu curso oferece uma disciplina
obrigatória – Cultura Afro-Brasileira e Africana – e uma op-
tativa que, embora não contenha os termos apontados como
determinantes na pesquisa, ele desperta a perspectiva sob a
qual esse ensino pode ser abordado: Multiculturalismo e edu-
cação. Cada uma delas conta dois créditos para cumprimento
do programa, previsto no curso. A obrigatória é cursada no
oitavo período.
Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio), não há qualquer disciplina obrigatória que contem-
ple os conteúdos esperados. A grade oferece duas optativas,
intituladas Ideologia Racial Brasileira na Educação Escolar e
Culturas Afro-Brasileiras em Sala de Aula, ambas com trinta
horas para cumprimento de carga horária. A grade disponibi-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

lizada pelo Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro


(Iserj) contém muitas siglas que não facilitam a interpretação
do público em geral, o que não promoveu a análise desejada.
Foram observadas também as grades curriculares do cur-
so de Pedagogia, promovidas pela Fundação Cecierj e pelo
Consórcio Cederj, sob a responsabilidade da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Unirio. Numa análise
inicial, a primeira não contempla o ensino determinado pela
lei; aponta apenas uma disciplina que, a princípio, pode até
abordar parte da questão debatida, sob o título Diversidade
Cultural e Educação, que é obrigatória e deve ser cursada no
sexto período. Na matriz curricular administrada pela Unirio,
há a disciplina eletiva/optativa denominada Educação para a
Diversidade, a ser cursada a partir do quarto período, que se 39
coloca no mesmo patamar duvidoso da anterior.
Considerando a nomenclatura das disciplinas e os termos
considerados determinantes à pesquisa, dentre os cursos de
Pedagogia promovidos por instituições públicas, apenas dois
deles registram, de maneira objetiva, a previsão deste conte-
údo aos futuros pedagogos matriculados. Três apontam total
ausência desta temática, e, em duas delas, há uma leve supo-
sição de que há o ensino da educação para as relações étnico-
-raciais na matriz curricular do curso de Pedagogia oferecido.
Nas matrizes curriculares analisadas, dos dezesseis cursos
de Pedagogia em instituições privadas, aponto uma institui-
ção paulista, que é considerada uma das que mais formam
pedagogos no Brasil – fator relevante neste contexto – sob
a modalidade a distância: Universidade Paulista (Unip), ofe-
recendo a disciplina obrigatória Relações Étnico-Raciais no
Brasil. Há também a Uninter, que promove ensino a distância
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

e sua grade é distribuída por unidades temáticas, onde a disci-


plina obrigatória Estudos das Relações Étnico-Raciais para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e In-
dígena encontra-se na unidade da Historicidade e prevê uma
carga horária de quarenta horas. UNICESUMAR e Faculdade
Geremário Dantas, no Rio de Janeiro, não registram, em suas
grades curriculares, a possibilidade de qualquer abordagem
determinada pela Lei 10.639/03. Além das duas inicialmente
citadas, seis das dezesseis instituições privadas têm previstas,
em suas grades, disciplinas obrigatórias que podem abordar
a temática, sendo duas delas a distância, a saber: Faculdade
Internacional Signorelli, com a disciplina Relações Étnico-
-Raciais, considerada como Tópicos Especiais, no terceiro pe-
40 ríodo, com carga horária de quarenta horas; e a Universidade
Veiga de Almeida (UVA), no terceiro período, também dis-
põe a disciplina História e Ensino da Cultura Afro-Brasileira.
Das matrizes curriculares analisadas, seis delas correspon-
dem a instituições privadas que contêm alguma disciplina
cuja nomenclatura pode, num estudo mais aprofundado, com
base nas ementas, constatar ou não a abordagem dos citados
conteúdos, que são: AVM Faculdade Integrada, que apresen-
ta a disciplina Antropologia e Pluralidade Cultural, oferecida
obrigatoriamente no primeiro período; Universidade Castelo
Branco, que aponta a disciplina Direitos Humanos, Cida-
dania e Diversidade, com carga horária de quarenta horas,
presencial, além de optativas que podem abordar a temáti-
ca étnico-racial. Além destas, há a Faculdade Gama e Souza,
com a disciplina Cultura Brasileira; a IBMR – Instituto Bra-
sileiro de Medicina de Reabilitação, que disponibiliza ensino
a distância, tendo a disciplina Práticas Sociais e Diversidade; a
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Pontifícia Universidade Católica (PUC), com ensino presen-


cial e a disciplina obrigatória Multiculturalismo e Educação;
e a Unisuam – Centro Universitário Augusto Motta, com a
disciplina presencial Estudos Sócio-Antropológicos da Educa-
ção, no terceiro período, oferecendo seu aprofundamento, no
quarto período.
Nas dezesseis instituições privadas encontradas, apenas
quatro oferecem, no curso de Pedagogia, na modalidade pre-
sencial, as disciplinas obrigatórias previstas em suas grades
curriculares, cuja nomenclatura segue os termos aqui citados,
para caracterizá-las como as que correspondem aos conteúdos
na abordagem étnico-racial. Na Universidade Iguaçu (UNIG),
há a disciplina Estudos Etnoculturais, com carga horária de
quarenta horas e que deve ser cursada no sexto período. A Fe- 41
deração de Escolas Faculdades Integradas Simonsen (FEFIS)
oferece em sua grade, que é disponibilizada no formato de
listagem de Conhecimentos Gerais, as disciplinas Estudos das
Relações Étnico-Raciais no Brasil e História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana, tendo 22 horas como carga horária pre-
vista para cada uma delas. A Universidade Estácio de Sá (Une-
sa) prevê, no oitavo período, com carga horária de 36 horas, a
disciplina História dos Povos Indígenas e Afro-Descendentes,
em sua matriz curricular. Por fim, a Fundação Educacional
Unificada Campograndense (Feuc): em sua matriz curricular
do curso de Pedagogia, há a disciplina obrigatória História e
Cultura Afro-Brasileira/Indígena, com carga horária de trinta
horas, prevista para o sexto período.
Relembrando que os termos história e cultura afro-brasilei-
ra e africana e relações étnico-raciais foram os determinantes à
constatação da ausência ou possível abordagem das temáticas
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

determinadas pela Lei 10.639/03, com base na nomenclatura


das disciplinas das grades curriculares analisadas, vale ressal-
tar também que as ementas, neste estudo inicial, não foram
revisadas, o que pode provocar enganos cometidos, quando
numa verificação mais aprofundada.
Observamos então que, das 23 instituições, apenas dez
apresentaram disciplinas que contemplam, em sua matriz cur-
ricular prevista, os conteúdos esperados. Somente oito delas
apontam alguma disciplina cuja nomenclatura nos faz supor
a presença destes conteúdos no programa do curso. As demais
não esboçam qualquer indicação de que tais conteúdos são
abordados com estes futuros pedagogos em sua formação ini-
cial. Considerando que o mapeamento foi realizado em maio
42 de 2015, percebemos que ainda se faz necessário não apenas o
debate, mas também o fortalecimento nos processos de fisca-
lização quanto à implementação, bem como a implementação
de políticas públicas que facilitem a abordagem desta temáti-
ca, ainda na formação inicial dos diversos licenciandos.

Educação para as relações étnico-raciais na formação


inicial: uma urgência

Levando-se em conta que o processo de humanização seja


comprometidamente retomado pela Educação, cujas aborda-
gens também contemplem as questões pertinentes às relações
étnico-raciais, com vistas à implementação de uma educa-
ção antirracista; e também considerando a necessidade des-
tas perspectivas em todas as licenciaturas – apesar da referida
lei destacar as áreas de Educação Artística e de Literatura e
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

História Brasileiras –, foi opção, neste texto, dar maior ênfase


ao seu termo: no âmbito de todo o currículo escolar (BRASIL,
2003).
O espaço escolar encontra-se, cotidianamente, marca-
do pelos reflexos constantes da sociedade em que se insere
e, levando em conta o que nos diz Müller (2009), “[...] o
senso comum ainda não percebe que a sociedade brasileira é
uma sociedade racista” (p. 43), e, ainda oriundos desta mes-
ma sociedade racista, fatos irão acontecer no espaço escolar,
nos momentos em que o docente menos esperar, nas ocasiões
mais espontâneas possíveis. Como nos alerta Franco (2011),
“[...] as situações de educação estão sempre sujeitas às circuns-
tâncias imprevistas, não planejadas, e, desta forma, os impre-
vistos acabam redirecionando o processo e muitas vezes per- 43
mitem uma reconfiguração da situação educativa” (p. 126).
Espontaneamente, os alunos podem trazer para a sala de aula
ou o ambiente escolar as situações que acontecem e que re-
fletem o quanto ainda estamos impregnados da construção
que hierarquiza e subalterniza o outro: o racismo. O docente
está capacitado para este enfrentamento? Ele saberá lidar com
estes “imprevistos”?
Para reconfigurar tais situações nos processos educacio-
nais, portanto, faz-se necessário estar minimamente capaci-
tado para este enfrentamento; se estas capacitações puderem
já fazer parte da formação inicial dos inúmeros agentes deste
contexto, as reproduções e a consolidação das desigualdades
e diversos tipos de discriminação poderão começar a ter seus
dias contados, até porque “a educação, em todos os níveis e
modalidades, é estratégica na transformação da atual situação
em que se encontra a maioria dos negros e negras em nosso
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

país, vítimas de preconceito e discriminação” (MONTEIRO,


2006, p. 125). Analisar como estão os contextos formativos
e pensar reflexões e ações já são passos para pôr em prática as
transformações dessas situações discriminatórias.
É fato que, referente à formação inicial, “[...] a teoria pode
esperar; porém, os seres humanos exigem uma ação imedia-
ta” (PERRENOUD, 2002, p. 103). Se é parte das demandas
de uma educação antirracista a ressignificação dos processos
de humanização, não dá para esperar até “amanhã” para dar
uma resposta ou realizar uma intervenção frente a um aluno
negro que vê sua dignidade ferida, ao ser denominado como
um animal, por exemplo. Não há como “resolver só depois” a
agressão sofrida por uma menina que se vê comparada a uma
44 menina de cabelo liso – padrão hegemonicamente eurocêntri-
co – a partir do qual seus cabelos são postos sob parâmetros
de “feio”, “duro” ou “ruim”! Não dá para continuar repro-
duzindo, normatizando ou normalizando a história do negro
apenas sob a perspectiva escravista e de subalternidade! Não
dá para continuar elaborando teorias e atividades práticas sob
a égide da hegemonia europeia, como único referencial de
“belo”, de “nobre”, de “civilizado”, cujo destaque é dado às fi-
guras brancas e, quando os negros são expostos, ainda sofrem
as estigmatizações e estereotipações que, talvez, uma formação
inicial de qualidade possa extirpar ou dar-lhes motivos de se-
rem situações problematizáveis.
Enfim, a necessidade de “tocar nessa ferida” já “passou da
hora”. A necessidade do ser negro, do ver-se fielmente repre-
sentado, visibilizado e valorizado é imediata. A formação para
o futuro docente saber lidar com estas questões acompanha
esta urgência: é imediata. Não há como negar que a obri-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

gatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e


Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de decisão
política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na forma-
ção de professores (BRASIL, 2004, p.17). Portanto, constata-se
a urgência desta temática, ainda na sua formação inicial.

IV – A FORMAÇÃO DOCENTE CONTINUADA


COMO UMA ESTRATÉGIA PARA A CONSOLIDAÇÃO
DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

A formação continuada de professores constitui-se como


importante instrumento para a implementação da legislação
em questão, uma vez que muitos deles, em sua formação ini- 45
cial, não tiveram qualquer tipo de contato com a História da
África ou um debate crítico acerca das relações étnico-raciais,
no âmbito da escola e nas práticas pedagógicas. Esta ação
pode ocorrer por iniciativa dos próprios docentes ou serem
oportunizadas pelas Secretarias de Educação. E serão estas úl-
timas as que discutiremos neste momento.
A pesquisa, coordenada por Nilma Lino Gomes, em 2009,
intitulada Práticas Pedagógicas de Trabalho com Relações
Étnico-Raciais na Escola na Perspectiva da Lei 10.639/2003,
realizada em escolas públicas e Secretarias de Educação, em
âmbito nacional, deixa evidente a influência das últimas sobre
as primeiras para a implementação da legislação em questão
(GOMES e JESUS, 2013).
Pesquisas realizadas em âmbito local, na Região Metropo-
litana do Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente em
quatro municípios da Baixada Fluminense (São João, Nova
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Iguaçu, Caxias e Belford Roxo), corroboram com esta cons-


tatação da ação indutora das Secretarias de Educação para a
implementação da lei. No conjunto destas ações, destacamos
as formações continuadas que os municípios ofereceram.
Silva (2010) pesquisou as ações de implementação no mu-
nicípio de São João de Meriti, que aconteceram em três pro-
cessos distintos, sendo dois com a promoção de cursos para os
docentes da rede. Nem todos os professores foram alcançados
diretamente pelas formações; aqueles que as cursaram ficaram
designados como multiplicadores – determinado grupo de
professores que seriam responsáveis em passar adiante o que
aprenderam – e debateram os temas discutidos em suas esco-
las. A pesquisadora nos aponta que foi a partir das formações
46 que um número maior de professores começou a trabalhar a
temática em sala. E, embora alguns ainda a fizessem por um
viés eurocêntrico, outros docentes começaram a perceber mu-
danças na autoestima dos alunos negros, aumentando o seu
rendimento escolar, e que, também, diminuíram os casos de
práticas discriminatórias entre os alunos em sala.
No município de Nova Iguaçu, de acordo com Fernan-
des (2014), as ações de formação continuada de professores
começaram em 2006, em cooperação com o Canal Futura,
a fim de implementar o projeto A Cor da Cultura, que pro-
porcionou encontros bimestrais com 75 docentes. Passado
este período, o município promoveu um novo curso para 120
professores, sob a coordenação pedagógica de Azoilda Loretto
Trindade. Neste mesmo ano, alguns professores da rede pú-
blica municipal tiveram oportunidade de participar do curso
de pós-graduação lato sensu em Diversidade Étnica e Edu-
cação Brasileira, promovido pelo Núcleo de Estudos Afro-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

-Brasileiros da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro


(Neab/UFRRJ). A autora sinaliza que as escolas alcançadas
pelos projetos de formação começaram a ter outro olhar sobre
a temática e passaram a trabalhar as questões ligadas à Histó-
ria da África e do negro no Brasil.
Duque de Caxias começou a promover ações para a imple-
mentação da Lei 10.639/03 em 2006, conforme nos apresen-
ta Conceição (2010) em sua pesquisa. Iniciou também cursos
de formação para os docentes: formaram-se dezoito turmas,
do curso História da África, com 35 docentes, em três anos
de funcionamento. Além desta iniciativa, também foi firmada
uma parceria com o Canal Futura para o desenvolvimento do
projeto A Cor da Cultura em algumas escolas da rede pública
municipal. A pesquisadora evidencia que os docentes come- 47
çaram a rever suas práticas pedagógicas, a partir de um outro
olhar sobre as questões relativas ao negro no Brasil e notaram
melhoria na autoestima de alunas e alunos negros.
Belford Roxo, assim como os demais municípios, começou
suas atividades de implementação da legislação em questão
em 2006. As primeiras ações foram no sentido de promover
formação para os professores da rede. De acordo com Farias
(2015), a Secretaria Municipal de Educação promoveu semi-
nários, oficinas, cursos e, em um dado período, encontros bi-
mestrais para os docentes da rede. Os cursos eram ofertados,
assim como nos outros municípios, para determinado público:
os professores multiplicadores. Em 2015, a secretaria passou a
oferecer um curso sobre educação e relações étnico-raciais que
pudesse atingir os profissionais da educação diretamente, sem
a figura do multiplicador, na modalidade a distância, para que
mais pessoas fossem alcançadas. (FARIAS et al., 2015)
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

As ações destes municípios começaram três anos após a


implementação da Lei 10.639/03, e em três deles por deter-
minação do Ministério Público. Ou não se dava a devida im-
portância ao tema ou os gestores públicos não estavam atua-
lizados com as demandas educacionais. As formações, a partir
daí, não alcançam todos os docentes da rede. Elas chegam,
mas, quando chegam, dão-se de forma indireta aos outros
docentes, por meio dos professores multiplicadores, que as
transmitem a partir de sua ótica e sua subjetividade.
É necessário, portanto, pensar ações que contemplem to-
dos os professores, para que juntos “eduquem-se a si mesmos”
para o enfrentamento ao racismo e tenham outro olhar sobre
o continente africano e sobre as sociedades que se formaram
48 com a diáspora forçada pelo tráfico de escravizados.
Percebemos nas pesquisas apresentadas que, assim como
ocorre nas escolas, também nas Secretarias Municipais de Edu-
cação existe a figura de um profissional que abraça a causa e é
ele quem promove e sustenta ações de incentivo à implemen-
tação da referida lei e na formação continuada de professores.
Entendemos que este processo formativo é gradual e, por
isso, requer vontade política, investimento e continuidade das
ações por parte dos gestores públicos. Que as ações não se-
jam políticas de governo sustentadas por quem milita, mas
tornem-se políticas de Estado consolidadas.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um país que teve mais de três séculos de escravidão, que


viveu muito tempo sob a pecha de ser um exemplo de de-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

mocracia racial, não resolve a questão do racismo com um


conjunto de leis apenas. Seu processo de implementação de-
manda sensibilização, tempo, engajamento e vontade política.
Neste sentido, nossas observações e reflexões nos apontam
que, ao mesmo tempo que há iniciativas individuais e coletivas
para uma educação antirracista, a partir da ação isolada de
tantos professores transformadores de inúmeros contextos esco-
lares, há uma série de fatores que reforçam o racismo e a des-
valorização da pessoa negra, proporcionando a permanência
das desigualdades estruturais da sociedade brasileira.
Ao observar as diversas grades curriculares, percebe-se uma
lacuna nesta formação inicial, que poderá refletir-se em sala
de aula, frente às diversas situações que emergem, quanto às
questões raciais demandadas pelo próprio contexto educacio- 49
nal, mediante a presença da diversidade, que exige e luta por
sua visibilização, valorização e aprofundamento epistemoló-
gico.
É fato que promover a formação, tanto inicial quanto
continuada, não garante que este agente do ambiente escolar
irá desenvolver as ações antirracistas aqui apontadas. Porém,
ao obter contato com a temática, este sujeito poderá ter
despertado para um ato educador, cujo posicionamento
intencional e político possa extraí-lo de uma possível ante-
cedente indiferença, de um silenciamento ou até mesmo de
uma situação discriminadora e reprodutora, para uma refle-
xão e ação que provoquem graduais mudanças quanto a estas
questões, promovendo transformações.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

TECENDO OUTRAS HISTÓRIAS:


FORMAÇÃO DOCENTE, LITERATURA E A
EDUCAÇÃO INFANTIL NO CONTEXTO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Cecília de Campos Saitu11


Kelly Xavier Madaleny12
Roma Gonçalves Lemos13

53

Procuraremos aqui reconstituir retalhos de nossas histó-


rias e costurá-los na proposição de compor uma tessitura que
entrelaça encontros, caminhos, espaços onde vivemos, expe-
rienciamos e compartilhamos saberes pedagógicos teóricos e
práticos. Este artigo parte das reflexões que fizemos a respeito
da formação docente no decorrer da disciplina optativa For-

11. Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos


Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Ja-
neiro (UFRRJ), professora de ensino fundamental (anos iniciais) da Secretaria Munici-
pal de Educação do Rio de Janeiro, especialista em Educação e Relações Étnico-Raciais
pelo Centro Federal de Educação Tecnológica-RJ.
12. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contem-
porâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
professora de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação de Seropédica.
13. Mestranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contex-
tos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ), especialista em Educação Infantil pela PUC-Rio, professora de
Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

mação Docente e Relações Étnico-Raciais, do Programa de


Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e
Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, do qual somos estudantes do curso de Mestrado.
A participação nessa disciplina nos propiciou momentos de
reflexão coletiva sobre nossa atuação enquanto professoras e a
relação que estabelecemos com a formação inicial.
A presença de movimentos compostos por militantes dedi-
cados a combater a discriminação racial na sociedade brasilei-
ra é um dado histórico relevante na conjuntura social e polí-
tica que antecede o período de redemocratização e é marcado
pelo forte autoritarismo dos governos militares. Na década
de 1980, os movimentos negro e indígena organizados prota-
54 gonizaram, ao lado de aliados da sociedade civil organizada,
diversas lutas por uma gama de direitos expressos na nova
Constituição que protegesse e garantisse o reconhecimento da
diversidade étnica, racial, linguística e cultural, inaugurando
assim um cenário que pôs em relevo as relações de poder e
o lugar do subordinado ao qual foi conferido a esses grupos
no processo histórico de formação da sociedade brasileira, tal
como a conhecemos hoje.
O campo da educação tem sido, desde então, reivindica-
do como lócus comum e privilegiado de construção de refe-
rências epistemológicas que, ao mesmo tempo que apontam
para uma crítica ao caráter eurocêntrico hegemônico dos cur-
rículos escolares, concorrem para a construção de um pro-
jeto educacional radicalmente distinto, no qual a produção
de conhecimento dos povos subalternizados seja colocada em
condições de simetria em relação aos conhecimentos produ-
zidos pela modernidade europeia. Em outras palavras, esfor-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ços têm sido empreendidos, no sentido de criar um campo


contra-hegemônico que vislumbra disputar a visibilidade dos
lugares de enunciação, entendendo que a escola é um espaço
de produção epistêmica dos sujeitos que nela interagem. Se
antes havia, de um lado, a luta pela universalização da educa-
ção básica, para a inclusão no sistema de ensino das crianças
oriundas das classes populares (em sua maioria, negras) e pela
escola diferenciada reivindicada por indígenas e quilombolas,
e estas pautas avançaram significativamente, hoje nos pergun-
tamos o que de fato avançou em termos de qualificação do
docente que se vê em uma sala de aula onde a diversidade14,
a diferença e o já consolidado discurso sobre igualdade coti-
dianamente confrontado por pulsantes conflitos são uma re-
alidade? 55
São múltiplas e variadas as ações que vêm sendo desenvol-
vidas desde baixo para pressionar o Estado brasileiro no desen-
volvimento de políticas que atendam às demandas históricas
desses grupos. Nesse bojo, destacam-se as ações afirmativas
na forma das Leis Federais 10.639/03 e 11.645/08. Em 9
de janeiro de 2003, foi promulgada a Lei 10.639 alterando
os artigos 26-A e 79-B da Lei 9.394, de 20 de dezembro de
1996 (LDB), que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para instituir a inclusão no currículo oficial da rede
14. Silva (2000) analisa que “em geral, utiliza-se o termo [diversidade] para advogar
uma política de tolerância e respeito entre as diferentes culturas. Ele tem, entretanto,
pouca relevância teórica, sobretudo por seu evidente essencialismo cultural, trazendo
implícita a ideia de que a diversidade está dada, que ela preexiste aos processos sociais
pelos quais – numa outra perspectiva – ela foi, antes de qualquer outra coisa, criada.
Prefere-se, neste sentido, o conceito de “diferença”, por enfatizar o processo social de
produção da diferença e da identidade, em suas conexões, sobretudo com relações de
poder e autoridade” (p. 44-45). Entendemos que o uso dos conceitos é crucial na com-
preensão do que queremos expressar, por isso, no decorrer do texto, usaremos o termo
“diferença” em vez de diversidade.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura


Afro-Brasileira”. Em 2008, a lei foi modificada pela obriga-
toriedade da inclusão da temática indígena15. Visando a ope-
racionalização da lei, em 2004, são sancionadas as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
-Raciais e para o Ensino de História e Culturas Afro-Brasilei-
ra e Africana. Até o momento da promulgação da Lei 10.639,
a questão étnico-racial, designada como “pluralidade cultu-
ral”, era tida na legislação educacional como um dos temas
transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997),
os conhecidos PCNs, que na teoria deveriam subsidiar a im-
plementação dos currículos. Mendes (2012, p. 316) recorda
que “quando da publicação desses parâmetros já ficava clara a
56 intervenção do discurso da luta contra o racismo (através de
especialistas em Educação e/ou militantes antirracistas)”.
O caráter normativo expresso pela vertente legal que
orienta a elaboração dos currículos dos sistemas educacionais
suscita um debate complexo atravessado por tensões que ex-
põem as contradições que permeiam os saberes e fazeres te-
óricos e práticos dos docentes que atuam em todos os níveis
da educação. Nesse contexto, torna-se inevitável e necessária
a discussão sobre a formação docente e a perspectiva teóri-
ca e epistemológica que orienta esse processo, uma vez que

15. Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públi-
cos e privados, torna-se obrigatório o estudo de história e cultura afro-brasileira e indí-
gena. Parágrafo 1º. O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a
partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africa-
nos, a luta dos negros e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da
Consciência Negra.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dela decorre também a sistematização de conhecimentos que


delinearão as práticas pedagógicas em sala de aula. É nesse
cenário de contexto contemporâneo e demandas populares
no campo da educação que convergimos esforços e situamos
nossas reflexões coletivas a fim de (re)pensar nossas trajetórias
profissionais e acadêmicas. Quais demandas esse contexto im-
põe a nós, docentes da educação básica?

FIO DE CONTA: APROXIMANDO NOSSAS


HISTÓRIAS

É contando Histórias, nossas próprias histórias, o que nos


acontece e o sentido que damos ao que nos acontece, que nos 57
damos a nós próprios uma identidade no tempo.
(Larrosa, 1994)

Como narrar as nossas histórias? Que escolhas fazer na


composição de narrativas de nossas trajetórias de vida?
Somos professoras do segmento educação infantil em es-
colas públicas situadas em dois municípios distintos do Esta-
do do Rio de Janeiro, sendo uma escola do campo e outras
duas em contexto urbano: uma na periferia da capital e outra
em uma comunidade da Zona Norte. Falamos desse lugar,
do “chão da escola”, da interação com as crianças pequenas,
da experiência de ensinar e (re)aprender com sujeitos sócio-
-históricos produzidos na e pela cultura e produtores dela.
Enveredar pelo caminho da memória não é uma tarefa
fácil. Falar sobre nós, do nosso lugar, dizer a nossa palavra,
recortar e selecionar fatos implica situar o momento histórico
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

no qual estamos. Nossa percepção (provisória) sobre quem


somos e os caminhos que percorremos está neste texto, afe-
tada por nossas visões políticas sobre a construção do pensa-
mento. E o que isso significa? De maneira muito incipiente,
significa dizer que nos encontramos em um movimento de
“descolonização” do pensamento. Esse movimento tem exi-
gido de nós uma tarefa difícil que, como expressou Fanon
(1963), requer a capacidade de desaprendizagem de tudo que
foi imposto pela colonização e desumanização para reapren-
der a ser homens e mulheres. Um processo de enfrentamento
e reelaboração que produza a ruptura com a lógica dominante
do eurocentrismo e seus padrões como perspectiva hegemôni-
ca e sua suposta superioridade “natural” em relação ao outro
58 [colonizado] (QUIJANO apud WALSH, 2009).
Ao recordar, o fazemos como um processo conduzido no
presente, e por isso o sentido (também provisório) que damos
é precedido por uma leitura crítica alimentada pela nossa for-
mação como sujeitos históricos e sociais do nosso tempo.
É consensual entre nós que, formadas para o trabalho
docente na Academia, aprendemos métodos, técnicas, formas
de ensinar e aprender referenciadas por um padrão ocidental
de conhecimento. Até chegarmos à universidade, nossas his-
tórias foram construídas por meio da interação e relação com
muitas pessoas e instituições. Assim, nascemos, crescemos
e fomos educadas na escola da Modernidade que se impôs
como modelo educacional e por uma sociedade que há muito
fora dividida por classificações que determinaram o nosso lu-
gar e o lugar de nossos alunos e alunas. O esforço e o cuidado
de repensar criticamente nossas histórias que estão inseridas
em um contexto maior e complexo, composto por muitos
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

momentos históricos conjunturais, requer o distanciamento


de um olhar ingênuo e a aproximação de uma leitura crítica.
Esta leitura está comprometida com um projeto de transfor-
mação radical da sociedade, e nesse sentido, entendemos que
é, também, pela educação formal que conduziremos coletiva-
mente esse processo.
No entendimento de que o tempo também é um Nki-
si , pedimos licença e a bênção para produzir o fio de conta
16

de nossas histórias, na compreensão do importante valor do


vínculo entre o simbólico e o material. Enfiamos cada mi-
çanga como símbolo de experiências vividas que nos permi-
tiram chegar aqui lendo o mundo de outra maneira e como
sujeitos inquietos que assumem a necessária desobediência
coletiva como princípio e a luta antirracista como caminho. 59
Por isso, não somos neutras na leitura sobre o nosso próprio
eu, individual e coletivo. Nosso objetivo na confecção desse
colar é identificar onde nossas experiências se aproximam e se
mesclam no percorrer do caminho de luta que pretendemos
somar. Luta que não começa conosco e nem conosco termi-
nará. Que vem de muito tempo, está na nossa ancestralidade,
inscrita na terra, nos corpos e na sabedoria milenar.

ALGUMA COISA ESTÁ FALTANDO

Esse foi nosso sentimento ao iniciar a carreira no magis-


tério e começar a construir experiências educativas com as

16. Divindade de origem bantu, de acordo com Cossard (2008, p. 65), simboliza todas
as flutuações de que dependem as manifestações climáticas, as estações, a temperatura,
os ventos etc.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

crianças na educação infantil. Somos contemporâneas de


formação inicial. Formamo-nos em pedagogia na segunda
metade da década desse novo milênio. Década marcada pela
vitória dos movimentos sociais que lutaram pela sanção das
Leis 10.639/03 e 11.645/08 e pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Culturas Afro-Brasileira e Africana.
A luta continua, e os desafios ainda são grandes para a im-
plementação das leis. Já afirmamos que é na década de 1980
e decorrer de 1990 que os debates em torno da educação
ganham especial relevância nas bandeiras de luta de muitos
movimentos sociais, sindicais, entre os quais destacamos o
Movimento Negro Unificado (MNU) e o Movimento Indí-
60 gena (UNI – União das Nações Indígenas). Problematizava-
-se, nesse momento, o papel da escola no que dizia respeito às
questões das desigualdades raciais na educação:

com clareza apresentavam a concepção de que nos currí-


culos, equipamentos e procedimentos didáticos se encon-
trariam fatores fundamentais de reprodução do racismo,
potencializando os elevados índices de repetência e evasão
escolar entre a população negra [...] Essa trilha foi sendo
cada vez mais alargada ao longo da década de 90 mobili-
zando muitas pesquisas na área da Educação. Importante
registrar que Luiz Alberto Oliveira Gonçalves, na época,
mestre em Educação, foi convidado também na condição
de membro da Comissão de Educação dos movimentos
negros de Belo Horizonte. Essa intervenção em si mes-
ma tem uma história que levaria a falar no fenômeno,
acentuado nas últimas décadas, do ‘escurecimento’ da ca-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

tegoria do magistério, da crítica cada vez mais ampla, dis-


seminada e qualificada ao preconceito e à discriminação
racial nos currículos, conteúdos e procedimentos didáti-
cos, da criação de organizações do Movimento Negro e
de publicações voltadas especificamente para as questões
da Educação. Aqui cabe registrar o contexto institucional
e político-educacional em que vão acontecer as iniciati-
vas principalmente de educadores realizando os eventos
de Consciência Negra nas escolas (MENDES, 2012, p.
317-318)

Talvez a maior contribuição que o movimento indígena


ofereceu à sociedade brasileira foi o de revelar – e, por-
tanto, denunciar – a existência da diversidade cultural e 61
linguística. O que antes era visto apenas como uma pre-
sença genérica passou a ser encarado como um fato real,
obrigando a política oficial a reconhecer os diferentes
povos como experiências coletivas e como frontalmente
diferentes da concepção de unidade nacional. Este lastro
fez com que o movimento incentivasse e motivasse o sur-
gimento de outras formas de ação, abrangendo temas es-
pecíficos, como educação, saúde, entre outros. Tais temas
“chamaram” novas perspectivas de atuação para entidades
de apoio, como a Comissão Pró-Índio de São Paulo, que
passou a atuar, sobretudo, na área da educação, elaboran-
do publicações que fomentavam um olhar contrário ao es-
tereótipo construído ao longo do processo histórico nacio-
nal. Estas imagens que empobreciam as experiências dos
povos indígenas – o índio era sempre visto como atrasa-
do, selvagem, canibal, pobre e, também, como empecilho
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

para o progresso nacional – foram sendo paulatinamen-


te “arrancadas” do imaginário brasileiro para dar lugar a
outras imagens mais próximas da verdadeira humanidade
indígena. (MUNDURUKU, 2012, p. 222-223)

Com a política de universalização do ensino fundamen-


tal e, mais recentemente, da educação infantil a partir dos 4
anos, há uma crescente concentração na escola, sobretudo a
pública, das classes populares, gerando um fenômeno de esco-
larização em massa. Sabemos que, dada a constatação de que
o racismo é estrutural em nossa sociedade, a formação das ca-
madas mais baixas da sociedade é majoritariamente constituí-
da por negros e indígenas. Esse processo inaugurou uma nova
62 realidade no contexto do cotidiano escolar e, consequente-
mente, um espaço propício para a observação das produções
de sentido sobre a questão racial. Franco (2008, p. 113) faz a
seguinte análise sobre o sujeito docente:

O professor – que por séculos foi visto como aquele que


detém um saber suficiente para ser transmitido a alunos
selecionados pela pirâmide social, aplicador de procedi-
mentos metodológicos, gerenciador de disciplina – passa
a ser requisitado como um profissional crítico e criativo,
pesquisador de sua prática, envolvido com questões polí-
tico-sociais, numa perspectiva de inclusão de toda diver-
sidade cultural emergente, para concretizar os ideais de
uma educação inclusiva, democrática, participativa.

Entendemos que estar na escola hoje significa estar em um


espaço onde o imperativo é a pluralidade cultural e a diferen-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ça. Dado este fato e as ações desenvolvidas pelos movimentos


supracitados, a escola configura-se em terreno fértil onde as
relações são atravessadas por tensões, conflitos e constantes
negociações por visibilidade. Estão cada vez mais em jogo va-
lores, noções e concepções que integram as dimensões pesso-
ais e culturais do professor e sistematizam o conhecimento
que orienta os pressupostos pedagógicos que regem a prática
educativa. Tardif (2014) afirma que “uma parte importante
da competência profissional dos professores tem raízes em sua
história de vida, pois, em cada ator, a competência se confun-
de enormemente com a sedimentação temporal e progressiva,
ao longo da história de hábitos práticos e de rotina de ação”
(p. 69). Alguns dos saberes que este profissional mobiliza para
atuar são construídos na sociedade, na família e em outros 63
lugares formativos, influenciando na prática docente e na ma-
nutenção e reprodução de preconceitos.
Isto é, durante suas ações o professor sofre grande influ-
ência daquilo que aprendeu durante seus primeiros anos de
escolaridade e em outros espaços da sociedade. Fato este que
influencia em suas tomadas de decisão a partir do que julga
certo ou errado, de acordo com normas sociais aprendidas.
Nesse processo, são muitos os obstáculos que se evidenciam
na construção de uma educação antirracista, mas que, pelo
poder hegemônico do constructo ideológico de uma supos-
ta harmonia racial, são constantemente invisibilizados e, por
isso, difíceis de combater.
Apesar da existência das Leis e das Diretrizes que orientam
para uma educação das relações étnico-raciais, percebemos
ainda a persistência de um racismo institucional que, além de
dificultar e desestimular iniciativas de educadores engajados
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

na luta contra o racismo, respaldam práticas acríticas, homo-


geneizadoras, preconceituosas e reforçadoras de estereótipos
que estigmatizam negros e indígenas ou tratam da diferença
de forma celebratória. É ainda recorrente na educação infantil,
do berçário ao final da pré-escola, a reprodução de conceitos
eurocêntricos sobre o outro através das imagens trabalhadas,
largamente difundidas pelos meios de comunicação de massa,
livros de literatura e didáticos, materiais pedagógicos; modos
de interação e relação afetiva e de cuidado que evita o toque
na criança negra, a seleção de datas comemorativas de cunho
religioso cristão, os murais com atividades que expressam a
branquitude como padrão de beleza e representação ideal da
espécie humana e, assim, uma negação e consequentemente
64 desvalorização, desumanização e exotização de outras iden-
tidades étnicas. Ainda é possível constatar uma quantidade
muito pequena de brinquedos, livros e materiais que colocam
negros e indígenas exercendo protagonismo ou em posição
de destaque positivo, em relação aos que destacam os bran-
cos. As histórias ditas “clássicas” ou os chamados “contos de
fadas” continuam sendo referências extremamente utilizadas
pelos educadores.
As manifestações de práticas racistas institucionalizadas e
a nossa dificuldade de entender, enfrentar e trabalhar com
a diferença étnico-racial no espaço escolar não foi percebi-
da e modificada a priori. Contudo, ao longo da iniciação na
carreira docente, a inquietação de nossos olhares, o estranha-
mento com o familiar (apreendido na graduação) e os primei-
ros confrontos com nossas atividades práticas foram as molas
propulsoras para a reflexão de novas possibilidades pedagógi-
cas, escolhas metodológicas e para busca por referenciais que
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

nos ajudassem a compreender e a operar de modo diferente.


Nesse movimento, descobrimos que as palavras expressas em
documentos normativos não bastam para mobilizar educado-
res a discutir questões relativas a diferença afrodescendente
e indígena. Inclusive porque essas prescrições legais muitas
vezes sequer são do conhecimento do corpo docente e da co-
munidade escolar. Ao longo da nossa experiência profissional,
fomos refletindo que nossa formação inicial não nos instru-
mentalizou teórica, conceitual e praticamente para atuar de
modo insurgente, questionador e dialógico. Não contribuiu
para uma desnaturalização do nosso olhar em relação a práti-
cas homogeneizadoras que negam e pretendem diluir e invi-
sibilizar as diferenças, tanto na sala de aula como nos currí-
culos e projetos políticos pedagógicos. Entendemos que essa 65
lacuna influenciou consideravelmente em nossa dificuldade
no enfrentamento de conflitos inerentes à prática de ensino
e pelas questões de ordem social, política e institucional que
a atravessam. Com o tempo, a consciência de inacabamento
e a inquietude investigativa, descobrimos que o que está fal-
tando para a construção daquilo que queremos transformar
em práxis17, é preciso buscar para além dos muros da escola
e, também, da universidade. Essa mobilização exigiu/exige de
nós coragem, autorreflexão e ação.
A lógica de formação para o trabalho, aliada à nossa posi-
ção de classe, também é um obstáculo determinante na im-

17. A perspectiva da práxis é a de uma ação que cria novos sentidos. Para tanto, há que
se partir do pressuposto de que a busca de novos sentidos, a pretensão de autonomia, é
própria do ser humano como um sujeito que se incomoda com seu inacabamento, con-
forme Paulo Freire e Charlot. A práxis como exercício pedagógico permite ao sujeito,
como sujeito histórico e coletivo, acessar os caminhos de sua autonomia. (FRANCO,
2008, p. 115-116)
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

plicação do tempo que podemos empreender para a formação


continuada e para a militância. Nas redes em que trabalha-
mos, encontramos pouco ou nenhum incentivo para dar con-
tinuidade à nossa formação. Ao contrário, nossas condições
objetivas de trabalho impostas pelo governo, altamente pre-
cárias em muitos sentidos (salário, carga horária, quantitativo
de crianças em turma, escassez de material pedagógico, pro-
blemas de infraestrutura física que possibilite um trabalho de
qualidade, desrespeito ao tempo de planejamento, ausência de
um plano de carreira, política meritocrática) não só se confi-
guram dificultadores na iniciativa pela busca do conhecimen-
to e da pesquisa como influenciam a atitude individual por
esta busca. Esse processo de constatação é doloroso porque
66 sabemos que seremos poucas a tomar esse tipo de decisão, e
como poucas que somos, maior a dificuldade para retirar as
pedras do caminho. Mas a vida é luta, e na luta encontramos
companheiros com os mesmos anseios, ideais, esperanças e
consciência política de que a saída é coletiva. Assim, nossas
histórias se cruzam.
Nos encontramos no curso de mestrado acadêmico da
UFRRJ e no Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Mo-
vimentos Sociais e Culturas (GPMC) e vimos nos dedi-
cando ao desenvolvimento de pesquisas no campo em que
atuamos, o da educação infantil. Neste espaço de produção
do conhecimento, compreendemos que a prática docente
possui relações com as diversas esferas do sistema educa-
cional e com o contexto social e cultural no qual a escola,
os docentes e as crianças se situam. Dialogamos com mili-
tantes, desenvolvemos de forma colaborativa ações para a
luta antirracista de forma mais ampla e debatemos sobre a
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

necessidade de estarmos organizados para a efetividade das


nossas intervenções. Desse modo, entendemos que estamos
em processo de formação como educadoras/pesquisadoras/
militantes.

LITERATURA PARA CRIANÇAS,


UMA HERANÇA COLONIAL

A escola do colonizado

Por que meios ainda se transmite a herança de um povo?


Por intermédio da educação que dá às suas crianças, e da
língua, maravilhoso depositório incessantemente enrique- 67
cido de novas experiências. As tradições e aquisições, os
fatos e gestos das gerações precedentes são assim legados
e inscritos na história. [...] A memória que é constituída
para ela (a criança) seguramente não é a de seu povo. A
história que lhes é ensinada não é a sua [...] Os livros a
entretêm com um universo que em nada lembra o seu.
[...] A literatura, as artes, a filosofia permanecem efetiva-
mente estrangeiras, como se pertencessem a um mundo
estrangeiro, o da escola. [...] Se a transferência acaba se
realizando, não é sem riscos: o professor e a escola repre-
sentam um universo diferente demais do universo fami-
liar. (Memmi, p. 146, grifos meus)

Muitos são os documentos oficiais produzidos pelas Secre-


tarias de Educação e Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)
e outras, como, por exemplo, o mais recente intitulado Plano
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Nacional de Implementação das DCNERER18 (2013), que


reforçam as recomendações para que as instituições incluam
o tema no cotidiano da escola. Contudo, fazer valer o prees-
crito exige, por vezes, a tomada de uma atitude ousada pelo
docente. Essa disputa que se dá a partir da perspectiva das leis
no campo do currículo objetiva trabalhar a construção de um
campo contra-hegemônico que produza sujeitos epistêmicos a
partir de conhecimentos e conceitos de grupos historicamen-
te inferiorizados, considerando-os tão importantes quanto os
de origem europeia. Essa decisão, como vimos constatando,
nem sempre é apoiada pela gestão escolar, ou quando é, mui-
tas vezes torna-se prática personificada e isolada de um ou
outro docente que acaba se tornando referência para o trata-
68 mento da temática. Variadas foram as situações em que, por
sustentar esse posicionamento, ouvimos de colegas e gestores
resistentes às orientações curriculares: “lá vem ela falar de ma-
cumba!” ou em outras situações em que conseguimos avançar
com o debate: “chama a fulana. É ela que entende de África e
de índio.” Concordamos com Dias que o

tratamento pedagógico para a diversidade étnico-racial


continua controverso e constitui-se num campo árido, no
qual precisamos semear, regar, e cuidar cotidianamente
para que as propostas possam produzir uma nova ação,
“bons frutos”. Os trabalhos iniciais exigem muita ener-
gia das professoras, que precisam pensar experiências de
aprendizagem, metodologias, e ainda convencer colegas
ou justificar sua ação aos gestores. (2012, p. 666)

18. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais.


DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Em nossas reflexões sobre metodologia, entre outros mé-


todos adotados, encontramos na literatura produzida para
crianças, especialmente aquelas com recorte que evidencia a
diferença étnico-racial, um recurso possível num campo de
luta antirracista. Esta opção torna-se pertinente, pois enten-
demos que as crianças são familiarizadas desde cedo com os
livros de histórias infantis. Estes fazem parte da rotina diária
nas salas de educação infantil em cantos específicos, em ro-
das de contação e em salas de leitura, por exemplo. Portanto,
é necessário que se introduza a temática racial neste contex-
to, a fim de que não seja algo isolado das práticas cotidianas
destes alunos. Esta deve ser introduzida de forma natural; ao
contrário do que alguns pensam, não temos que abordar a
questão apenas nos dias da Consciência Negra, da abolição 69
da escravidão ou do índio. Há aqueles que acreditam que seja
necessário um professor especialista, dado o desconhecimento
sobre as histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indíge-
nas. O que discordamos. É claro que são necessárias leituras
e experiências de participação nos debates sobre a temática e
também a compreensão de que as referidas leis não são uma
imposição vertical, mas uma demanda que emerge desde bai-
xo, é fundamental nesse processo.
Sobre o histórico do surgimento da literatura infantil no
Brasil, Oriá (2011) nos traz algumas importantes informações
históricas nas quais devemos refletir, a fim de entendermos a
predominância de certas literaturas ofertadas às crianças em
idade pré-escolar. De acordo com este autor, o surgimento da
literatura infantil advém da necessidade de uma nova camada
da sociedade onde se começa a enxergar a criança como su-
jeito histórico, onde esta deixa de ser considerada uma adulta
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

em miniatura, sendo reconhecida como um ser que possui


características próprias. (ORIÁ, 2011, p. 40). Neste contexto,
surge a necessidade de uma produção literária para atender
a este público. No Brasil não existiam autores que pudessem
atender a esta demanda.
Desde o século XVII, a Europa já publicava livros para
o público infantil; estas obras foram traduzidas e são bem
conhecidas entre as crianças e seus professores aqui no Bra-
sil. Entre elas, podemos citar as fábulas de La Fontaine, por
exemplo. Esta literatura era restrita a uma camada seleta de
crianças “dos setores mais abastados da sociedade brasileira”
(2011, p. 41). Somente no século XX, portanto, três séculos
depois da Europa, o Brasil, com o surgimento da Repúbli-
70 ca e a ideia de modernização, começa a se preocupar com
a literatura infantil. Além da adaptação brasileira de contos
europeus para as crianças, o Brasil também se apropria de
um “projeto educativo e ideológico que via no texto infantil
e na escola (e, principalmente, em ambos superpostos) alia-
dos imprescindíveis para a formação de cidadãos”. (LAJOLO;
ZILBERMAN, 2007, p. 30). Sobre as obras literárias, elas
transmitem mensagens não somente pelas palavras, mas tam-
bém pelas imagens que apresentam. Lima (2008) afirma que
estas “constroem enredos e cristalizam as percepções sobre
aquele mundo imaginado”. De acordo com a autora, é neste
processo que, através dos personagens, o leitor se reconhece,
também aprende a gostar e desgostar, e formar opiniões em
relação ao ambiente apresentado, ou em relação àquela pessoa
ou sentimento provocado pela leitura. (p. 98)
Diante deste contexto histórico, torna-se necessário que os
livros infantis apresentem às crianças “outras” histórias com
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

“outros” personagens. É premente que cheguem à escola li-


vros infantis nos quais haja protagonistas negros e indígenas,
e que estes sejam abordados de forma positiva à autoestima
da criança para a construção de sua identidade. Portanto, este
trabalho não é importante somente para as crianças negras.
Crianças brancas e negras precisam saber da existência de
“outras” princesas, “outros reinos” que estão contidos nas his-
tórias “outras”, com o intuito de que a criança negra entenda
que não é inferior à branca e que esta entenda que não é
superior. De acordo com Mariosa e Reis (2011), “a literatura
pode influenciar de forma definitiva na construção da identi-
dade da criança”.
Sobre a presença de personagens negras em livros para crian-
ças, Silva, Rosemberg (2008) e Kaercher (2006) afirmam que 71

a presença de personagens negros na literatura infantil até a


década de 1980, no Brasil, demonstra que, se houve, grada-
tivamente, uma diminuição do racismo explícito presente
no início do século XX, permaneciam, até aquele momen-
to, traços como a “invisibilização de personagens negros”,
com o “branco na posição de representante da espécie” e o
“tratamento estereotipado de personagens negros”. Raríssi-
mas eram as obras com protagonistas negros e, em geral,
as personagens racializadas traziam elementos depreciati-
vos das culturas e identidades afro-brasileiras. (apud KIR-
CHOK, BONIN, SILVEIRA, 2015, p. 391-392)

Zilberman e Lajolo (1986, p. 131), ao traçar o percurso


histórico da literatura infantil brasileira, apontam que é entre
1945 e 1965 que a participação do índio nos livros infantis se
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

torna mais significativa, embora ele frequentemente estivesse


“do lado errado, a não ser quando se civiliza, convertendo-se
ao cristianismo e aliando-se aos brancos”. Por outro lado, afir-
mam que se nos voltamos para a vertente de inserção de len-
das indígenas na literatura para crianças, vemos que consiste
em tendência já bastante visitada. Silveira e Bonin (2012)
comentam que Rosemberg (1980; 1984) se dedicou à produ-
ção de um dos primeiros estudos críticos sobre a presença de
personagens negros e índios no que chamou de “livros bra-
sileiros de recreação destinados a crianças e jovens, editados
ou reeditados entre 1950 e 1975” (1980, p. 133). Conclui,
após a análise de 168 títulos, a existência de “discriminação
contra grupos não brancos [...] tanto de forma aberta quanto
72 latente” (1984, p. 137) e “a normalidade da condição de ser
branco, a sua neutralidade aparece claramente no texto pela
não explicitação de sua cor”. (1980, p. 138)

A LITERATURA CONTEMPORÂNEA
DE AUTORIA INDÍGENA

Vimos emergir nas últimas décadas (1990, 2000), no cam-


po de produção literária, a organização de autores indígenas
aldeados e em contexto urbano das mais variadas etnias, com
o objetivo de proteger o saber tradicional coletivo dos usos e
abusos decorrentes do domínio público. Escritores que têm
procurado estabelecer uma relação ética com a sociedade não
indígena no que se refere ao patrimônio cultural – material e
imaterial – de seus povos e, ainda, desconstruir conceitos e es-
tereótipos racistas e preconceituosos atribuídos aos indígenas,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

afirmando, assim, a disputa por uma política representacio-


nal. Esse movimento produziu mais de cem obras destinadas
a crianças e adultos que trazem além de narrativas tradicio-
nais, histórias de ficção.
O caminho para a construção desse movimento é atraves-
sado por entraves no que tange à legitimação dos indígenas
no cânone literário. Esta não é em si uma reivindicação desses
autores; no entanto, é um ponto em constante tensionamento
para a afirmação de uma literatura diferenciada que sempre
foi classificada por uma perspectiva ocidental como lendas
folclóricas exóticas. Esse reducionismo imprimiu uma visão
estereotipada19 e largamente difundida do indígena que serviu
à construção de um imaginário social e, portanto, de uma
cultura escolar profundamente marcada pelo racismo e pelo 73
preconceito. Assim, os estereótipos têm papel fundamental na
reprodução da imagem sobre o outro, o diferente em relação
aos iguais, de modo negativo. Bonin (2012) reflete sobre essa
questão relacionada à caracterização estereotipada dos indí-
genas (e diríamos que cabe também aos afrodescendentes e
africanos) nas produções escolares como efeito das relações de
poder. Neste sentido, considera importante indagar sobre as
representações que circulam mais amplamente e que consti-
tuem nossas maneiras de entender as culturas indígenas. (in
BONIN, 2012, p. 42)
Dados do IBGE (2010) revelam atualmente a presença de
cerca de 240 povos indígenas falantes de pelo menos 180 lín-

19. Hall argumenta que o estereótipo reduz, essencializa, naturaliza e estabelece a dife-
rença. Bhabha (2005) afirma que o estereótipo não é uma simplificação porque é uma
falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma
presa, fixa de representação.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

guas de diferentes troncos linguísticos. Estes dados revelam


que a expectativa de que os indígenas não sobreviveriam à
chegada do novo milênio, dadas todas as tentativas que va-
riaram desde o extermínio de populações inteiras à assimila-
ção cultural dos que sobreviveram, não se concretizou. Este
fato constitui base para a afirmação do Brasil como um país
pluriétnico e multilíngue. Nesse sentido, existe um esforço
por parte dos autores de literatura indígena em problematizar,
sobretudo, a questão da noção de imagem genérica sobre os
povos indígenas e dar relevo à importância da tradição oral,
da memória ancestral e dos elementos de um povo originário
na sua organização social, política e econômica, sua concep-
ção de educação, que expressam uma outra lógica de ser, estar
74 e se relacionar com o mundo. Assim, a literatura de autoria
indígena se configura num lugar de resistência ontológica e
epistêmica para a garantia da sobrevivência de sua condição
de povos diferenciados. Esse movimento é face de um movi-
mento maior, mais amplo, que ainda precisa lutar pela ma-
nutenção do seu direito à terra, ao uso da língua, da educa-
ção diferenciada e proteção dos saberes tradicionais. Segundo
Graúna, escritora indígena Potiguara (2013):

A literatura indígena é um lugar utópico (de sobrevivência),


uma variante do épico tecido da oralidade; um lugar de con-
fluência das vozes silenciadas e exiladas ao longo da história
há mais de 500 anos. Enraizada nas origens, a literatura in-
dígena contemporânea vem se preservando na auto-história
de seus autores e autoras e na recepção de um público-leitor
diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras
possíveis no universo de poemas e prosas autóctones. Nesse
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

processo de reflexão, a voz do texto mostra que os direitos


dos povos indígenas de expressar seu amor à terra, de vi-
ver seus costumes, sua organização social, suas línguas e de
manifestar suas crenças nunca foram considerados de fato.
Mas, apesar da intromissão dos valores dominantes, o jeito
de ser e viver dos povos indígenas vence o tempo: a tradição
literária (oral, escrita, individual, coletiva) é uma prova dessa
resistência. (p. 15)

AMARRANDO OS FIOS...

De acordo com alguns atores citados durante o desenvol-


vimento deste trabalho, podemos notar o quanto a literatura 75
é importante para o desenvolvimento e construção da iden-
tidade da criança. Compreendemos o quanto a escolha dos
livros a serem trabalhados em sala de aula é fundamental para
a construção de uma identidade positiva desta criança. Estes
precisam conter, também, personagens não brancos e que se-
jam abordados de forma positiva.
É importante ressaltar que o livro como recurso pedagó-
gico (em oposição a um viés de pensamento utilitarista do
livro) não basta para desconstruir as imagens estereotipadas
que compõem a cultura escolar. Não basta listar livros que
tratem da diferença étnico-racial de forma positiva e incluí-
-los nos currículos apenas para constar. Entendemos que a
literatura para crianças na escola deve servir como suporte a
uma práxis mais ampla, com a participação de toda a comu-
nidade escolar, na perspectiva de construção de um projeto
de escola e sociedade radicalmente distintas. Neste sentido,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

o docente ocupa um lugar fundamental de mediação em um


diálogo que deve ser crítico e plural, que possibilite a expres-
são real de todas as culturas igualmente.
As Leis Federais 10.639/03 e 11.645/08 abrem caminhos
para mudanças reais nos currículos, entretanto, sozinhas não
surtirão efeito algum. Para que se alcancem os objetivos pro-
postos pelas mesmas, é imprescindível a ação daquele(a) que
atua em sala de aula e dos demais componentes da comuni-
dade escolar. Para que o educador-pesquisador de fato ocupe
esse lugar, precisa sentir-se motivado e seguro para agir a par-
tir de uma perspectiva pedagógica comprometida com a luta
antirracista. Entendemos que ação não pode continuar sendo
uma iniciativa estanque e individualizada de alguns profissio-
76 nais, que, por inúmeros fatores, buscam-na solitariamente, e
ainda enfrentam dificuldades, inclusive impostas pelos pró-
prios sistemas de ensino, como, por exemplo, a impossibilida-
de de dispensa para estudar. A formação inicial não costuma
dar conta dessas lacunas, e ainda é precária a existência de
cursos e encontros de formação em serviço que instrumenta-
lize o docente para trabalhar com as relações étnico-raciais e
com a diferença. Pudemos vivenciar isso durante todo nosso
percurso acadêmico e profissional, como colocamos ao longo
do texto.
A discussão a respeito das relações étnico-raciais precisa es-
tar presente na escola de uma forma clara, livre de quaisquer
estereótipos. É preciso que, além da oportunidade de se de-
parar com a história e as culturas negra e indígena no Brasil,
os docentes reflitam suas próprias questões identitárias. Isso
não é fundamental somente para os indivíduos pertencentes a
estas identidades étnicas, mas para todos, pois uma educação
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

eurocêntrica, homogeneizadora e carregada de preconceitos


afeta a todos. Abrir espaços às culturas normalmente silen-
ciadas e subalternizadas significa romper com esse ciclo de
dominação e possibilitar a crianças e adultos a construção de
subjetividades críticas, de autoimagens positivas e de reconhe-
cimento e identificação.

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81
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

DIFERENÇAS CULTURAIS
E FORMAÇÃO DOCENTE
NA BAIXADA FLUMINENSE

Jacqueline de Oliveira Duarte Ferreira20


Luiz Fernandes de Oliveira21

Este texto é um diálogo entre duas experiências e dois lu-


83
gares na formação de professores na UFRRJ. De um lado,
um profissional que tem a tarefa de dialogar e trocar expe-
riências com seus estudantes de pedagogia e, apesar de ter
a responsabilidade da formação inicial, aprende a cada dia
com os mesmos, pois a cada tempo uma nova experiência
é relatada, uma nova informação se acrescenta no repertório
das aulas. De outro, uma profissional da educação básica em
um município da Baixada Fluminense que, ao mesmo tempo
que exerce a docência na educação infantil, estabelece novos
diálogos entre seu lugar de estudo e a docência.

20. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pro-
fessora da rede pública municipal de São João de Meriti, RJ. Membro do Grupo de
Pesquisa em Políticas Públicas e Movimentos Sociais (GPMC).
21. Doutor em Educação Brasileira pela PUC-Rio. Professor adjunto III do Departamento
de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade do Curso de Licenciatura em
Educação do Campo do Instituto de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ). Membro do
Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas (GPMC).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

O contexto desse diálogo são as aulas de antropologia da


educação, disciplina que tem como objetivo, além do estudo
de conceitos clássicos dessa área de conhecimento, relacionar
estes conceitos com a educação, com a escola e com o contex-
to educacional da Baixada Fluminense.
A ideia do texto no formato de diálogo surge a partir da
necessidade de colocar no mesmo nível experiências e análises
sobre as diferenças culturais e a cultura escolar, e como esta
reflexão em conjunto pode contribuir na formação de novas
gerações de docentes na Baixada Fluminense. Em cada seção,
a escrita está organizada primeiro com as reflexões e descri-
ções da docente/estudante, e, em seguida, com as reflexões e
análises do docente interlocutor da estudante. Esperamos que
84 esta forma de escrita contribua para uma nova reflexão sobre
formação docente e as diferenças culturais.

INTRODUÇÃO

Diariamente, nos deparamos com diversas questões dentro


de nossas salas de aula. São questionamentos que podem par-
tir de nós, de nossos alunos, da equipe de trabalho e da co-
munidade em geral. Ao contrário do que imaginamos, o pro-
fessor não é um ser “todo-poderoso”, capaz de sanar todas as
dúvidas. O professor tem seus métodos de ensino e, como diz
Paulo Freire (2001), deve sempre buscar aprender a aprender.
Somos seres que possuem tantas dúvidas quanto os outros, e
quase sempre não sabemos como saná-las. Há algumas ques-
tões que são trazidas até nós, mas, na maioria das vezes, ficam
ecoando em nossas mentes, fazendo com que fiquemos sem-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

pre em busca de respostas, o que é extremamente positivo,


pois através desta busca constante é que temos a capacidade
de nos tornar seres capazes de desenvolver nossa criticidade,
nossa opinião e pensamento a respeito do que nos é colocado.
Como ser pensante e crítico, o professor pode compreender
a cultura escolar de sua comunidade – seus desdobramentos,
suas dinâmicas –, pode entender como surgem determinados
assuntos em sua sala de aula e como se desenvolvem deter-
minadas atitudes de seus alunos. A cultura escolar pode ser
entendida como a forma que um determinado grupo, de uma
determinada comunidade se expressa em relação às diversas
questões culturais, que envolvem as visões de mundo de de-
terminados sujeitos.
Durante minha trajetória docente, passei por algumas es- 85
colas onde pude observar um pouco o comportamento dos
profissionais da educação em relação a diversos assuntos.
Neste texto, abordaremos algumas visões de mundo e falas
que norteiam determinadas atitudes em nosso espaço, que é
de intensa troca de experiências, mas também de conflitos.
Como parte atuante do corpo docente, mostrarei alguns pon-
tos em que as diferenças ora se calam, ora se mostram. Farei
observações de como se constitui a organização desta escola
através de atitudes e falas da comunidade escolar em determi-
nadas situações – analisando os contextos e tentando compre-
ender quais as razões dessas atitudes e falas. Através do olhar
observador de pesquisadora, pois estou diretamente ligada às
questões de raça, militando e tentando inserir no contexto
escolar uma perspectiva antirracista, que respeite as diferenças
em todos os sentidos.
Analisando uma das escolas de educação infantil por onde
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

passei, percebi que dentro das instituições alguns valores cul-


turais são passados para nossos alunos, que, na referida escola,
eram muito pequenos (crianças de zero a 6 anos de idade).
Eles passavam a maior parte do seu dia em nossa escola, em
média dez horas por dia e cinquenta horas semanais. Muitos
passavam mais tempo com as professoras e agentes do que com
seus familiares. É nesse contexto que devemos analisar nossas
práticas e nossa cultura. Quais referências culturais a escola
constrói para nossos alunos? Ou seja, estamos construindo
para nossos alunos referências que reproduzem culturas antir-
racistas, antissexistas e que respeitem as diversas expressões de
religiosidade? Ou continuamos reproduzindo alguns valores
contraditórios que a sociedade nos impõe? Segundo Dayrell
86 (1996), a escola é um espaço sociocultural compreendido e
ordenado em dupla dimensão. Institucionalmente, por um
conjunto de normas e regras, que buscam unificar e delimi-
tar a ação dos sujeitos. Cotidianamente, por uma complexa
trama de relações sociais entre os sujeitos envolvidos, que in-
cluem alianças e conflitos, imposição de normas e estratégias
individuais, ou coletivas, de transgressão e de acordos. É nesse
contexto que analisamos a escola como contribuinte na for-
mação de opinião nos grupos que a compõem (docentes, dis-
centes e equipe), mas ao mesmo tempo sendo mediadora de
conflitos, não podendo exercer, por muitas vezes, o seu papel
devido à gama de normas a serem seguidas.
Nesta escola – assim como em tantas outras – há diversos
indivíduos diferenciados nas suas formas de pensar e encarar
a vida, que possibilitam uma forma peculiar de construção
cultural. Dayrell (1996) nos chama a atenção para o fato
de que nenhum indivíduo nasce homem, mas constitui-se e
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

se produz como tal, dentro do projeto de humanidade do


seu grupo social, num processo contínuo de passagem da
natureza para a cultura, ou seja, cada indivíduo, ao nascer,
vai sendo constituído e vai se construindo como ser humano.
De acordo com este pensamento, podemos afirmar que o ser
humano nasce em uma cultura preexistente, cercado de valo-
res que não dependem deste indivíduo, mas que vão moldá-lo
no decorrer de sua existência.

CONHECENDO NOSSO ESPAÇO CULTURAL:


FALANDO DE RELIGIOSIDADE

Um espaço cultural é um local que agrega experiência de 87


diversos sujeitos. Cada um deles tem uma perspectiva e olhar
em relação a assuntos diversos, que se entrelaçam, fazendo
com que cheguem – ou não – a um consenso sobre determi-
nada questão. Na escola observada não é diferente, pois há
questões que permeiam diversas perspectivas. Podemos iniciar
com uma dessas questões, que é a religiosidade.
Havia neste espaço uma gama de pessoas que são pertencen-
tes a religiosidades diversas. Entre os funcionários, tínhamos
uma sacerdotisa de candomblé, uma pastora evangélica e mem-
bros das mais variadas denominações protestantes. Tínhamos
também católicos e umbandistas, frequentadores de terreiros
assíduos e simpatizantes. Há aqueles que só frequentam as igre-
jas aos domingos e aqueles que preferem “não opinar”.
Neste espaço tão diverso, não era difícil ouvir pelos corre-
dores pessoas falando das religiões, mas em nosso meio, são
assuntos que não se discutem frente a frente. Tínhamos, em
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

todas as paredes, versos atribuídos a diversos líderes religio-


sos. Um deles diz: “Não há caminho para a paz, a paz é o
caminho”, palavras de Gandhi. Há outras frases: “Eu Sou o
Caminho, a Verdade e a Vida”, de Jesus Cristo”; “Gbala é
resgatar, salvar. A criança é a esperança de Oxalá”, de Marti-
nho da Vila; e por fim, “Para ter paz temos que esvaziar-nos
de si mesmos e nos enchermos de Deus”, de Madre Tereza
de Calcutá. Tínhamos como discurso em nossa comunidade
escolar o respeito às religiões, embora ainda tenhamos algu-
mas pessoas que insistem em criticar a religião do outro. A
questão cultural de nossa escola em relação à religiosidade es-
tava “engatinhando” na fase do amadurecimento e seguia em
construção de acordo com os pilares do respeito ao próximo,
88 embora muitos insistam na prática da crítica e desqualificação
da religiosidade do outro.
Em uma dessas ocasiões de desqualificação, ocorreu o se-
guinte caso: uma das crianças de nossa creche é do candom-
blé e precisou fazer um dos rituais da religião, raspando a ca-
beça e ficando ausente por alguns dias. No entanto, algumas
professoras questionaram com a professora da criança sobre as
razões de ela estar com a cabeça raspada. A docente mostrou-
-se neutra à situação, no entanto, a criança virou motivo de
visitação de todos os funcionários da sala dessa professora.
Muitos estavam perplexos com a situação, pois ficaram exta-
siados com o fato de a menina, sendo tão pequena, estar sen-
do “submetida” aos rituais de candomblé, não atentando eles
para o fato de que as crianças católicas também são “subme-
tidas” aos rituais de sua religião, que as batizam e catequizam
desde a mais tenra idade, assim como outras religiões, que
possuem ritos de iniciação de crianças.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Outro exemplo que posso citar é de uma das auxiliares de


serviços gerais, que é sacerdotisa em um terreiro de candom-
blé. Possui doze filhos de santo e, num determinado período,
chegou com a notícia de que estava completando 42 anos
naquele dia. Muitos ficaram espantados, pois já havia ocor-
rido seu aniversário. No entanto, ela explicou que aquele dia
era seu aniversário de santo e que ela estava muito feliz, pois
estava há 42 anos se dedicando àquele santo no candomblé.
Muitos não deram atenção ao fato, mas eu a cumprimentei;
afinal, é louvável ver uma pessoa dedicada à sua religião por
tantos anos.
Minha amiga do candomblé contava em detalhes sua roti-
na no centro22. Gostava de relatar as festas infantis e as lem-
branças que faz. Cortava bandeirinhas para enfeitar o terreiro 89
e fazia enfeites. Tinha paciência em explicar sobre tudo o que
acontece lá, tirando todas as minhas dúvidas, pois sabia que
eu me interessava por conhecer outras linhas de pensamen-
to. Acredito que, conhecendo, aprendemos a respeitar e não
criamos nenhum tipo de pré-conceito. Muitos não entendem
como eu, sendo evangélica, tenha amizade com pessoas de re-
ligiões de matrizes africanas. No entanto, acredito que a ami-
zade começa aí. Ela respeita minha religião e quer saber sobre
ela. Eu respeito a religião dela e quero saber sobre como se
dá também. Percebi que em alguns dias da semana ela vestia
branco, e isso faz parte de sua religião. No entanto, vejo que
muitas pessoas a olham de forma discriminatória. De acordo
com a visão de muitos dos que convivem neste contexto esco-
lar, a postura é o silêncio sobre candomblé, mas percebíamos
22. Centro é outro termo utilizado para definir uma comunidade de terreiro de can-
domblé ou umbanda.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

os olhares e ficávamos sabendo dos comentários pelos cor-


redores. Enfim, todos neste ambiente em que trabalhei têm
seus pensamentos em relação à religiosidade, no entanto não
externavam em grupo, mas entre si. As pessoas da direção
e equipe eram católicas e pareciam, silenciosamente, cultivar
certo respeito. Não havia discussões acaloradas em relação à
religião, mas percebíamos grupos formados entre si, que opi-
navam e construíam, de certa forma, um senso comum sobre
a religiosidade do outro, especialmente em relação ao can-
domblé e à umbanda.

Comentários

90 Um primeiro comentário sobre esta experiência se expressa


naquilo que afirmamos em outro momento de reflexão (OLI-
VEIRA e RODRIGUES, 2015, p. 27):

A cruz é um dos símbolos das religiões judaico-cristãs,


o Ogó é o símbolo de Exú (bastão em forma de falo)
para lembrar da sua virilidade, sua posição de criador da
vida e o Oxê é o símbolo de Xangô (machado de duas
pontas), representando o orixá da justiça. Três símbolos
que representam as marcas de grandes tradições de povos
influentes na humanidade. Entretanto, presentes no con-
texto educacional brasileiro, somente um desses símbolos
é reconhecido como portador de coisas benéficas: a Cruz.
Os outros dois são vistos como representações maléficas,
portadores de uma maldição para aqueles que se aproxi-
mam ou que acreditam nas suas forças transcendentais.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Se não há uma explicitação de negação neste contexto


escolar, descrita pela professora, há o silenciamento, a não
explicitação de concepções que consideram aqueles que per-
tencem ao candomblé como algo maléfico. Aqui, o que que-
remos destacar é o silêncio como expressão de discriminação,
ou seja, uma postura que não precisa se declarar, se posicionar
para excluir o outro de uma determinada relação.
Esse tipo de relação tem muitas afinidades com a pes-
quisa de Cavaleiro (2000), quando a autora afirma que o
educador da pré-escola brasileira apresenta dificuldades para
perceber problemas nas relações interétnicas entre crianças;
pois as crianças em idade pré-escolar já interiorizam ideias
preconceituosas; e o silêncio do professor, no que se refere à
identidade étnica e às diferenças, facilita o desenvolvimento 91
do preconceito e a ocorrência de discriminação no espaço
escolar.
A partir dessas hipóteses, a autora vai observar as intera-
ções entre adultos e crianças em situações escolares, utilizan-
do como principal fonte a observação sistemática de todos os
atores do espaço escolar. Nessa análise, ela seguiu um roteiro
preestabelecido de coleta de dados como a expressão verbal, a
prática não verbal e a prática pedagógica. Seu campo de ob-
servação foi uma escola municipal da cidade de São Paulo que
recebe diariamente cerca de quinhentas crianças com idade
entre 4 e 6 anos.
Enfim, o que colocamos como reflexão a partir deste relato
da professora é que há uma dimensão do silenciamento dos
conflitos que se faz necessário pensar, principalmente na for-
mação inicial docente.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

GÊNERO E SEXUALIDADE

Outra discussão expressiva em nosso contexto escolar, mas


que não “aparece” de forma explícita, é a questão de gênero e
a sexualidade. Por uma das escolas onde passei, tínhamos em
nosso meio mulheres casadas, solteiras, divorciadas, mulhe-
res namorando e lésbicas. Em um público formado em sua
grande maioria de mulheres – havia somente dois homens
trabalhando em nosso meio –, poucas aceitavam o fato de ter
colegas que possuíam esta orientação sexual. Assim como a
questão religiosa, não fazia parte do contexto escolar conver-
sarmos sobre este assunto. Então, é o que faremos no decorrer
dos parágrafos a seguir.
92 Mais uma vez percebi grupos especulando pelos cantos,
“pensando alto” em assuntos sobre os quais não há o que
se discutir, e sim “respeitar” acima de tudo. Duas de nossas
colegas moravam com companheiras, e isso é um espanto,
principalmente para as mais idosas.
Uma das colegas citadas casou-se bem jovem, teve três fi-
lhos e, após um casamento decepcionante e um divórcio de-
sastroso, viu que poderia recomeçar felizmente sua vida ao
lado de uma companheira. Assumiu sua sexualidade e fala
abertamente sobre o assunto. As pessoas reagem de diversas
formas, mas sempre com reservas. A colega sabe com quem
pode conversar e conta felizmente como resolveu seus confli-
tos quanto à sua sexualidade.
Quanto à outra colega citada acima, posso descrevê-la
como uma pessoa introspectiva em relação ao assunto. Mora
com sua companheira, mas não diz a ninguém. Nas festas
da escola a leva, mas nunca a apresentou como sendo a sua
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

esposa. É uma pessoa alegre com os que são mais próximos,


mas nem com estes ela conversa sobre o assunto. Alguns dos
funcionários da escola fingem não saber, no entanto, todos
sabem e a criticam por tal postura. Mas se pudessem falar
abertamente com ela a esse respeito, como agiriam? Acredito
ser este o receio dela, que prefere não assumir sua sexualidade
em público, por medo do preconceito que certamente sofre-
ria, principalmente por parte dos mais conservadores.
Muitas vezes ouvi comentários maldosos em relação às co-
legas referidas acima. Alguns funcionários riam e faziam pia-
das de mau gosto. No entanto, o referido assunto era tratado
como se respeitassem plenamente a decisão de ambas, mas
infelizmente sabíamos que não era bem assim.
Outra dimensão da discussão sobre sexualidade são os mo- 93
mentos em sala de aula em que eu vivenciava questões de con-
flito em relação aos brinquedos com minha agente educativa.
Eu tentava deixar minhas crianças à vontade ao máximo para
que brincassem com os brinquedos que desejassem, não esco-
lhia para eles o brinquedo que deviam pegar no cesto, sempre
os deixando à vontade para brincar com o que quisessem. No
entanto, minha colega de sala insistia em fazer a separação
que eu tanto relutava em fazer: carrinho de menino e boneca
de menina. Eu explicava a ela, todas as vezes em que tínha-
mos o momento do brincar, que o cesto de brinquedos seria
disponibilizado para as crianças sem distinção do objeto com
o qual a criança iria brincar. Ou seja, as crianças eram livres
para escolher o brinquedo naquele momento, sem a nossa in-
tervenção sobre os objetos. Relembrava a ela a faixa etária das
crianças, que na época tinham 2 anos de idade. Explicava que
o que chama a atenção de crianças tão pequenas são as cores,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

o lúdico, a brincadeira. Ela não compreende e faz questão de


dizer em alto e bom som dentro da sala de aula: “Carrinho é
de me-ni-no! Boneca é de me-ni-na! Rosa é de me-ni-na! Azul
é de me-ni-no!” Percebo atitudes semelhantes em outras salas
de aula, que insistem em plantar em nosso meio uma cultura
sexista, através da qual excluem totalmente um pensamento
de valorização das qualidades e do ser. Por que meninas não
podem vestir a cor azul e brincar de carrinho e bola? Afinal,
não temos mulheres que dirigem e são jogadoras de futebol?
Por que meninos não podem utilizar bonecas em suas brinca-
deiras e usar a cor rosa? Afinal, não seria uma forma de fazer
com que ele se tornasse um pai dedicado aos cuidados com
seus filhos? A cor rosa faria com que um homem deixasse de
94 ser visto como homem? Enfim, nossa sociedade é permea-
da por concepções bem delimitadas para homens e mulheres,
que passam de geração em geração, sendo reproduzidos ao
longo do tempo entre nossas crianças, jovens e adultos.
Desconstruir estes conceitos é fundamental, principalmen-
te no ambiente escolar. Entendemos que a escola – que, por
via de regra, deveria possuir uma visão libertadora –, deve-
ria ser também a responsável pela propagação de atitudes de
igualdade de gênero. No entanto, sabemos que não é assim, a
começar pelo pensamento sexista de alguns educadores, como
citado no exemplo acima.
Como sabemos, a criança já vem de berço com esses con-
ceitos e traz de casa diversas falas incutidas em sua mente.
A escola pode ser um fator positivo para esta criança – ou
não. Pode ser um lugar onde, na coletividade, ela poderá al-
cançar o entendimento de diversas questões. Acredito que a
educação infantil é um terreno fértil, onde podemos, através
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

do lúdico, conversar sobre qualquer assunto que seja (com


histórias infantis e rodas de conversas direcionadas). Ou seja,
quanto menor a criança, mais cedo conseguiremos fazer com
que ela consiga perceber que a diferença existe, e que temos
que respeitá-la e conviver com ela.
Observando este contexto escolar, certamente estas ques-
tões relacionadas a gênero causam estranheza em muitos, prin-
cipalmente os que viveram em épocas mais conservadoras e de
educação rígida em relação aos mais diversos assuntos. Guacira
Lopes Louro (1997) afirma que o gênero institui a identidade
do sujeito (assim como a etnia, a classe, a nacionalidade, por
exemplo) e transcende o mero desempenho de papéis; a ideia
é perceber o gênero fazendo parte do sujeito, constituindo-o.
Nessa perspectiva, admite-se que as diferentes instituições e 95
práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são também
constituintes dos gêneros. (LOURO, 1997, p. 25)

Comentários

Vemos mais uma vez o silenciamento como expressão de


discriminação sexista e afirmação dos supostos papéis de gê-
nero como coisas naturais.
Nossa tradição cultural sexista e machista faz com que
muitas pessoas confundam o desejo por alguém do mesmo
sexo com a vontade de pertencer a outro gênero. Se um ho-
mem ou mulher tem modos de se comportar que identifi-
camos como feminino ou masculino, boa parte das pessoas
imagina que ele ou ela seja gay ou lésbica. Nessa discussão, é
importante não confundir identidade de gênero com orien-
tação sexual. A primeira diz respeito a como eu me entendo,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

me identifico como sujeito nesse mundo dividido em mas-


culino e feminino. A outra tem a ver com a direção do meu
desejo por outras pessoas.
Se nos últimos anos pessoas trans, homo e bissexuais ga-
nharam visibilidade, também ficou mais evidente a violên-
cia dirigida a pessoas que vivem relacionamentos e práticas
sexuais não heterossexuais e/ou que transgridam determina-
das normas de comportamento de gênero. Quando o foco
da discriminação é a orientação sexual – real ou presumida
–, chamamos de homofobia. Quando o foco é a identidade
de gênero e o alvo são pessoas trans, o nome que damos é
transfobia.
Homofobia é a discriminação ou violência contra pessoas
96 por conta de sua orientação sexual homossexual, real ou pre-
sumida. Não permitir que um casal de mulheres adote uma
criança pelo fato de serem lésbicas é homofobia. Fazer piadas
e comentários ofensivos a pessoas homossexuais, também. E o
silêncio, expresso em gestos, olhares, posturas cotidianas etc.?
Podemos afirmar que também é homofobia.
A pesquisa “Diversidade sexual e homofobia no Brasil,
intolerância e respeito às diferenças sexuais”, realizada pela
Fundação Perseu Abramo, em parceria com a fundação ale-
mã Rosa Luxemburg Stiftung, investigou as percepções sobre
as práticas sociais diante da orientação sexual e da identida-
de de gênero das pessoas. Perguntados sobre a existência ou
não de preconceito contra as pessoas gays, lésbicas, bissexuais
e trans no Brasil, quase a totalidade entrevistada respondeu
acreditar que existe preconceito contra travestis (93%), contra
transexuais (91%), contra gays (92%), contra lésbicas (92%)
e 90% acham que há preconceito contra bissexuais. Porém,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

perguntados se são preconceituosos, apenas 29% admitiram


ter preconceito contra travestis, 28% contra transexuais, 27%
contra lésbicas e bissexuais e 26% contra gays. Isso lembra
um fenômeno que acontece em relação ao racismo contra ne-
gros, pois é comum atribuir os preconceitos aos outros, sem
reconhecer o próprio.
Para Gustavo Venturi (2009), professor de Sociologia da
USP, a pesquisa indica o que os sociólogos já suspeitavam: por
trás da imagem de liberalidade que o senso comum atribui ao
povo brasileiro, particularmente em questões comportamen-
tais e de sexualidade, há graus de intolerância com a diversi-
dade sexual bastante elevados – coerentes, na verdade, com o
grande número de crimes homofóbicos existentes no Brasil.
Enfim, no relato da professora, pode-se perceber nitidamente 97
o quanto os processos de formação docente deveriam con-
siderar essa dimensão homofóbica e conflitual presente nos
espaços escolares.

RACISMO X RELIGIOSIDADE: ANTES E DEPOIS


DO PROJETO “AS TRANÇAS DE BETINA”

Atualmente leciono em uma creche, situada em São João


de Meriti. Nossa creche possui cerca de 320 crianças e 51
funcionários. Em nossa escola, pouco se falava das questões
raciais, até a minha iniciativa como professora começar a apa-
recer para o conjunto da escola. Muitas questões saltavam aos
olhos e não podiam calar-se diante de tantas situações que
ocorriam no dia a dia escolar. Por isso, levei para a escola,
em 2015, o projeto “As tranças de Betina” (Descontruindo
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

as diferenças e construindo a identidade racial na educação


infantil).
Reconheço que a escola é uma instituição importante no
processo de socialização, estabelecendo relações entre crianças
negras e brancas. Ao realizar este projeto, busquei compreen-
der como se constroem as relações raciais em nossa escola. O
intuito era colaborar na promoção da equidade, enfatizando
que somos todos iguais e merecemos o mesmo carinho, res-
peito e consideração. As atividades desenvolvidas durante o
projeto mostraram ser possível conseguir elevar a autoestima
da criança negra, bem como desconstruir a formação de pre-
conceitos e promover o gosto e prazer pela leitura.
Uma das coisas que me espantou quando cheguei a esta
98 escola foi o jeito com que algumas profissionais e docentes se
referiam aos cabelos das alunas, ao fenótipo e estereotipavam
as características das crianças (principalmente as negras).
Percebi também que havia uma professora que não se acei-
tava como negra, não reconhecia sua identidade. Como um
educador levará seus alunos a se reconhecerem dentro de sua
característica racial e a valorizar sua cultura se ele mesmo não
se reconhece dentro de sua negritude? E vou além: Como
respeitar o outro se você não se conhece e se valoriza?
O projeto foi proposto para trazer várias questões à tona, e
fez com que várias pessoas da equipe e da comunidade escolar
refletissem sobre as questões raciais. No entanto, mais uma
vez “esbarramos” em questionamentos dos setores conserva-
dores da escola, que não entendem que a africanidade que
está em nós não é somente de cunho religioso, mas perpassa
por questões diversas, sendo a primeira delas – a meu ver – o
racismo e o preconceito referentes a cor da pele.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Durante a realização do projeto de igualdade racial “As


tranças de Betina”, em uma determinada fase, seria feito
um ensaio fotográfico com as professoras para a valorização
e resgate da identidade também dos profissionais. Uma das
merendeiras recusou-se a participar, pois alegava que “jamais
colocaria um turbante em sua cabeça”, certamente devido
à sua religião. Não houve insistência por parte da direção e
da equipe, e sua vontade foi respeitada. Uma das professoras
negou-se a tirar a fotografia para o mural, alegando questões
religiosas, que foram prontamente respeitadas.
Porém, uma colega, que é pastora evangélica, participou
do projeto com muito entusiasmo. Fez muitos trabalhos com
seus alunos, prontificou-se a levar materiais para facilitar nos-
sas atividades e caracterizou as crianças para o desfile. Tirou 99
fotos no ensaio fotográfico dos professores, entendendo que a
africanidade está em nós e não em questões religiosas. Isso foi
um grande avanço e um ganho imensurável na luta contra o
preconceito, deixando de lado as questões de cunho religioso
e respeitando a luta antirracista.
Avaliando os efeitos após a realização do projeto, ainda en-
contramos preconceitos e discriminações relacionadas à cor
da pele. Porém, começamos a perceber que os comentários
racistas, as “brincadeiras” inocentes que fazem alusão ao ne-
gro, e as piadas de péssimo gosto, prosseguem fazendo parte
do cotidiano, mas de forma menos intensa. Percebi que as
pessoas se tornaram cautelosas no falar das questões raciais,
respeitando as características individuais, principalmente dos
alunos. No entanto, ainda podemos ouvir falas preconcei-
tuosas, mesmo que em menor quantidade. Um dia desses,
uma das professoras negras veio trabalhar de vestido preto e
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

o porteiro disse que ela estava nua. No mesmo instante, uma


das professoras o repreendeu dizendo que aquela era uma fala
preconceituosa. Senti-me realizada, pois antes do projeto, cer-
tamente todos ririam da “piada”.
Outro caso que posso citar também no pós-projeto “As tran-
ças de Betina” é o de uma professora que fazia uma “brincadei-
ra” denominando quem eram as negras da escola, caracterizan-
do-as de acordo com seus traços. Quando me autodenominei
negra, ela me reprimiu, pedindo-me que eu não “sujasse a raça”
com a minha cor pálida. Eu a esclareci que, mesmo sendo par-
da na aparência, tenho uma ascendência ancestral negra, assim
como minha identidade racial. Ela insistia no debate, dizendo
que as “típicas” negras eram as professoras que ela acabara de
100 denominar, não eu. Esta professora – negra, no meu entendi-
mento – não se reconhece em sua identidade racial, embora te-
nha participado do projeto e visto como se deu todo o processo
de reconhecimento racial por parte da equipe, da comunida-
de e até mesmo das crianças. A princípio, conseguimos iniciar
uma reflexão na escola. Porém, parece que esta professora não
conseguiu perceber os objetivos das atividades propostas.
Outro ponto que percebi durante a execução do projeto
é que precisamos trabalhar e intensificar o trabalho de con-
fecção e demonstração de objetos que compõem a cultura
afro-brasileira. Esta conclusão eu tirei ao confeccionar bone-
cas abayomi23. Percebi um tom preconceituoso de algumas

23. Abayomi – boneca confeccionada com retalhos de tecido; utilizam-se apenas nós
para sua montagem, dispensando o uso de apetrechos de costura. Rege a lenda que as
bonecas Abayomi eram confeccionadas pelas africanas escravizadas a bordo dos navios
negreiros a partir de retalhos das barras de suas saias. As bonecas eram confeccionadas
para acalentar as crianças a bordo do navio, trazendo um alento em meio à dor e os
horrores vividos por seus semelhantes.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

pessoas da equipe, que achavam a boneca parecida com um


“vodu” ou como “coisa de macumba”. Após explicar a histó-
ria da boneca, pude perceber que houve grande aceitação por
parte da escola. No entanto, uma das merendeiras pegou uma
das bonecas construídas em sala de aula e exclamou baixinho:
“bicha feia do cabelo horroroso!” Expliquei a ela que fazia
parte da cultura e contei a história das bonecas. Ela se calou,
mas percebi que não se convenceu. Enfim, acredito que pre-
cisamos desmistificar e contar as histórias de tais objetos para
uma melhor compreensão, visando o respeito e o reconheci-
mento da cultura afro-brasileira.

Comentários
101
Este último relato nos remete a uma questão que vem se
evidenciando a cada vez que refletimos sobre a implementa-
ção das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações
Étnico-Raciais, que é o fato de que esta discussão só penetra
nos espaços escolares, de forma intensa, por meio de certa
militância antirracista.
Essa militância não se caracteriza por se integrar necessaria-
mente em movimentos sociais organizados, apesar de isto ser
fundamental. Essa militância se caracteriza pelo fato de os do-
centes envolvidos nesta reflexão e ação pedagógica terem que
se posicionar diante de muitas demandas conflituais que, por
sua vez, têm aspectos políticos, identitários e epistemológicos.
Essas demandas existem em nível nacional, em todos os
sistemas de ensino, em milhares de escolas. As respostas são
amplas, complexas e com variadas conexões com temas, as-
pectos e setores na área do conhecimento pedagógico.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

A princípio, o que podemos levantar como hipótese é que


trabalhar pedagogicamente com as questões étnico-raciais em
sala de aula requer duas operações inéditas para milhares de
docentes: por ser uma questão polêmica e controversa, a dis-
cussão racial os mobiliza a se posicionarem numa dinâmica
didática conflitual, ou seja, são chamados a estabelecer um
conflito de conhecimentos e também a provocar conflitos
identitários em seus educandos e colegas de profissão. Por
outro lado, ao perceberem esta possibilidade, descobrem que
devem operar uma negação e reformulação de muitos funda-
mentos pedagógicos e epistemológicos oriundos de sua for-
mação inicial docente, além de terem que se reposicionar em
suas subjetividades raciais. Ou seja, parece que, para iniciar
102 uma reflexão sobre as relações étnico-raciais, não dá mais para
ser feliz numa zona de conforto racial e, também, necessita-
-se desaprender o que nos foi, desde “sempre”, ensinado nos
bancos universitários.

CONCLUSÃO

Os relatos que vimos acima fazem parte de uma cultura


escolar de uma comunidade constituída por pessoas que fa-
zem parte de contextos diversos (religiosos, de gênero e de
raça). No entanto, mesmo diferentes, vemos na unidade es-
colar professoras comprometidas, que cumprem seu papel de
educadoras ao extremo, trazendo para o dia a dia dos alunos
suas vivências, que, por vezes, vão de encontro às vivências
deles e de seus pais, e, por vezes, não. Este encontro forma
a cultura do “nosso” lugar, a cultura do convívio diário desse
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

espaço de aprendizado mútuo e de referência de vida.


Porém, ao retratar um cotidiano escolar através de uma
visão única, certamente poderemos trazer questões que não
são de comum acordo, e com isso, o risco de estabelecer coti-
dianamente um conflito, mesmo que silencioso.
As questões étnico-raciais, de gênero ou de expressão das
religiosidades geram desafios e tensões na dimensão cogniti-
va e subjetiva dos docentes e nos espaços escolares. Por ou-
tro lado, essas questões não são de fácil reflexão nos contex-
tos escolares, pois tratam de discussões curriculares que são
conflituais, desconsiderados como relevantes ou questionam
e desconstroem saberes históricos considerados como verda-
des inabaláveis. A questão curricular se desdobra também na
necessidade de uma nova política educacional de formação 103
inicial e continuada, para reverter positivamente às novas ge-
rações uma nova interpretação da história e uma nova abor-
dagem da construção de saberes.
Por fim, a aprendizagem que podemos tirar dessas experi-
ências de escolas inseridas na Baixada Fluminense é a neces-
sidade de mobilizar constante e cotidianamente essas discus-
sões, desconstruir paradigmas e enfrentar inevitáveis conflitos
na sala de aula e nos espaços escolares para articular e pro-
mover uma perspectiva intercultural, baseada em negociações
culturais, favorecendo um projeto comum, no qual as dife-
renças sejam patrimônios comuns da humanidade.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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lêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na edu-
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DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos olhares sobre educação
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tudos Avançados, [s.l.], v. 15, n. 42, p.259-268, ago.
2001. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: <http://bit.
104 ly/2fQtmNB>. Acesso em: 02 fev. 2016.

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OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; RODRIGUES, Marcelino


Euzebio. A Cruz, o Ogó e o Oxê: religiosidades e racismo
epistêmico na educação carioca. In: FERNANDES, Ana Pau-
la Cerqueira; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; ROBERTO,
Joanna de Angelis Lima (orgs.). Educação e Axé: uma pers-
pectiva intercultural na educação. Rio de Janeiro: Imperial
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VENTURI, Gustavo. Diversidade sexual e homofobia no


Brasil. Intolerância e respeito às diferenças sexuais. Disponível
em: < http://bit.ly/2eYgqaN>. Acesso: fev./2013.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


E A PRÁXIS DOS PROFESSORES
DOS ANOS FINAIS EM ANGRA DOS REIS:
UMA BREVE ANÁLISE/REFLEXÃO

Kátia Antunes Zephiro24


Silvia Bittencourt25

105
A cidade de Angra dos Reis é muito conhecida pelas bele-
zas naturais, suas praias e ilhas. Quem não a conhece imagina
um paraíso, contudo a realidade da população local é bem
diferente do que nos mostra a grande mídia. Podemos dizer
que em Angra há ilhas de riqueza e mares de pobreza, pois
ao mesmo tempo que existem condomínios luxuosos, onde
grandes empresários e a grande burguesia possuem imóveis
e vão desfrutar das praias e ilhas, também temos um grande
contingente de pessoas que vivem ao redor desses condomí-
nios e por outras áreas da cidade, recebendo baixos salários e

24. Mestranda em Educação pelo PPGEDUC/UFRRJ. Especialista em Gênero e Se-


xualidade pela UERJ. Licenciada em História pela UERJ. Membro do grupo de pes-
quisas GPMC e docente de História das redes estadual do Rio de Janeiro e municipal
de Angra dos Reis.
25. Mestranda em Educação pelo PPGEDUC/UFRRJ. Especialista em Alfabetização das
Classes Populares pelo IEAR/UFF. Formada em Pedagogia pelo IEAR/UFF. Membro do
grupo de pesquisas GPMC e pedagoga da rede municipal de Angra dos Reis.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

necessitando dos serviços públicos que, em sua maioria, fun-


cionam precariamente.
Também é uma cidade de grande pluralidade cultural. Te-
mos dois grupos indígenas vivendo na cidade: os Pataxó, que
vieram do sul da Bahia e vivem em contexto urbano, e os
guaranis Mbya, indígenas aldeados. Ainda há um grupo de
ciganos, o Quilombo de Santa Rita do Bracuhy, e um gran-
de número de caiçaras, moradores tradicionais da cidade que
vivem de atividades relacionadas a pesca e agricultura. Toda
essa diversidade é, muitas vezes, desconhecida e/ou desvalori-
zada pela população local.
Neste sentido, afirmamos ser a escola local privilegiado
para possibilitar que crianças, jovens e adultos conheçam e
106 se reconheçam nesta diversidade, aprendam a valorizá-la e
respeitá-la e compreendam o porquê de somente alguns usu-
fruírem das belezas e “riquezas” da cidade. Acreditamos que
“a escola é o espaço da diversidade. É o local do encontro das
diferenças, de ideias e valores, que talvez não se encontrassem
em outros espaços, e por isso ela é tão rica em possibilidades”.
(OLIVEIRA e FARIAS, 2014, p. 88). Esperamos que na es-
cola o estudante tenha a possibilidade de trazer suas histórias
de vida, seus saberes e expectativas, para que num processo
dialógico com outros sujeitos – profissionais da educação e
demais estudantes – vivam um rico e significativo processo
de ensino-aprendizagem. Sabemos que, no cotidiano da es-
cola pública, muitas são as dificuldades para que o processo
aconteça, de forma geral, mas seguimos acreditando que “a
realidade, porém, não é inexoravelmente esta. Está sendo esta
como poderia ser outra e é para que seja outra que precisa-
mos, os progressistas, lutar.” (FREIRE, 1996, p. 83)
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Sabemos que atualmente temos, para além de um compro-


metimento educacional e social com a afirmação e respeito à
diversidade, a Lei 11.645/08, que preconiza o ensino da his-
tória e culturas africana, afro-brasileira e indígena nas escolas.
E os professores: Como desenvolvem o seu trabalho a partir
desta diversidade presente em suas salas de aulas? O que mo-
tiva os professores a se comprometerem com a Educação das
Relações Étnico-Raciais? E os que não se comprometem, por
que isto ainda acontece? Encontram alguma dificuldade para
trabalhar em sala de aula a História e Cultura dos povos afri-
canos, afrodescendentes e indígenas?
É neste contexto e com estas preocupações que o presente
artigo se apresenta. Fruto de uma pesquisa inicial realizada no
município de Angra dos Reis, RJ, pretende, a princípio, dis- 107
cutir como vem sendo realizada a implementação – nas áreas
de história, artes e literatura na rede municipal – da Educação
das Relações Étnico-Raciais e, consequentemente, a inserção
da Lei 11.645.
A pesquisa foi realizada com professores que atuam em es-
colas públicas da Grande Japuíba, um dos bairros mais popu-
losos da cidade de Angra dos Reis. A escolha deste bairro se
deu por concentrar três grandes escolas de anos finais do mu-
nicípio, tendo em média mais de seiscentos alunos cada uma.
A decisão de pesquisar os professores das áreas de história,
artes e literatura está no fato de que estas áreas de conheci-
mento são responsáveis, em especial, pelo ensino da “histó-
ria e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros”,
conforme determina a Lei 11.645. Vale ressaltar que a lei de-
fine que o ensino deve ser ministrado no âmbito de todo o
currículo escolar.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Utilizamos como um dos referenciais teóricos desta pesquisa


as discussões realizadas pelo grupo Modernidade/Colonialidade
(M/C), e acreditamos que, para além de um referencial teórico,
esse aporte nos serve também como metodologia, já que as dis-
cussões e teses realizadas pelos integrantes desse referencial tam-
bém nos ajudam a compreender e analisar os dados coletados.
Como procedimento metodológico, utilizamos o recurso das
entrevistas. No processo de escolha de entrevistados, buscamos
profissionais sensíveis à temática e que participam de atividades
relacionadas a discussões sobre Educação no município.
Ao final da pesquisa, esperamos chegar a algumas conclu-
sões sobre como vem sendo realizada a discussão sobre as rela-
ções étnico-raciais nas escolas e quais os empecilhos para que
108 isso ocorra. Acreditamos que essa pesquisa pode contribuir
para um melhor entendimento dos entraves que encontramos
para a real efetivação da Lei 11.645/08 e pensarmos coletiva-
mente em caminhos para superá-los.

HISTÓRICO DAS LEIS 10.639/03 E 11.645/08:


FRUTO DAS LUTAS SOCIAIS

No que tange à implementação das Leis 10.639/03 e


11.645/08, temos um longo histórico de lutas dos movimen-
tos negro e indígena em busca da superação de preconceitos
e valorização de suas histórias, culturas e de sua participação
e contribuição na construção do que seria a nossa história e
cultura brasileira.
Inicialmente temos as conquistas obtidas na Constituição
de 1988 no que tange ao respeito à diversidade e pluralidade
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

cultural, dentre outras, que abriram espaço para que poste-


riormente a história e cultura da África, africanos no Brasil,
afrodescendentes e indígenas estivessem hoje como conteúdos
obrigatórios nos currículos escolares da Educação Básica.
Logo após a promulgação da Lei 10.639/03 (uma emenda
à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96)
estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da História e Cul-
tura da África e dos Afrodescendentes no Brasil, foi elaborado
o Parecer do CNE/CP 3/2004, implementando as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-
-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana, e também a Resolução CNE/CP 1/2004, que de-
talha os direitos e as obrigações dos entes federados em rela-
ção à referida lei. Estes compõem um conjunto de disposi- 109
tivos legais promotores de uma política educacional voltada
para a afirmação da diversidade e pluralidade cultural e étnica
e da implementação de uma educação das relações étnico-
-raciais nas escolas.
Diante de um país com um histórico de racismo encoberto
pelo mito da democracia racial, vemos essa legislação como
uma vitória dos movimentos sociais sobre toda uma história
de subalternização, dominação, inferiorização e conquista.
Se formos pensar no movimento negro como protagonista
dessa legislação, podemos dizer que ele é mais antigo do que
imaginamos, pois podemos dizer que ele se compõe por:

vários os campos de resistência, dentre os quais destaca-


mos o político, o jurídico, o sindical e o cultural… Mo-
vimento negro considera-se toda manifestação organizada
por afro-brasileiros, com o objetivo de divulgar sua cul-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

tura, escrever a verdadeira história do Brasil, denunciar e


resistir ao racismo, valorizar o homem negro (pessoa hu-
mana), além da prática de outros meios adequados à luta
de um povo pela sua identificação e para ser respeitado.
(MENDES, 1983, p. 16-17)

Dessa maneira, desde o primeiro ato de resistência cultu-


ral, política, de organização pela liberdade e igualdade, temos
a existência do movimento negro que nos remete aos tempos
coloniais, contudo se pensarmos em movimento negro com
o termo e o modelo que pensamos nos dias atuais, podemos
dizer que “foram as entidades e grupos de negros, surgidos na
década de 70, que tornaram comum o uso do termo movi-
110 mento negro para designar os seus conjuntos e as suas ativida-
des.” (PEREIRA, 2012, p. 91). Temos então um movimento
que desde sempre luta por uma legislação que auxilie na luta
antirracista e pelo fim da assimetria existente entre negros e
brancos no nosso país.
Ressaltamos também como lutas importantes neste proces-
so: a Frente Negra Brasileira, na década de 1930, que elegeu
como um de seus compromissos a educação que contemplasse
a história da África e dos povos negros e combatesse práticas
discriminatórias na escola; o Teatro Experimental do Negro,
na década de 1940, liderado por Abdias do Nascimento, que
discutia a formação integral da pessoa negra e reivindicava
políticas públicas, anunciando assim as primeiras propostas
de ação afirmativa.
O movimento negro passou por várias etapas ao longo de
sua história, sendo um movimento multifacetado, que não
possui unidade total, mas que se organiza sempre em torno
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

da luta antirracista. Desde a década de 1980, uma das cor-


rentes mais fortes do movimento esteve à frente da busca de
uma legislação que pudesse contribuir com o fim da assime-
tria existente entre negros e brancos na sociedade brasileira,
na valorização da cultura africana e afro-brasileira e no fim do
racismo. Em 1995, o Movimento Negro organiza a Marcha
Zumbi em Brasília, um marco na luta pela implementação de
políticas públicas para a população negra. Como fruto dessas
lutas, temos hoje um conjunto de leis que auxiliam no com-
bate ao racismo e pela igualdade e valorização da diversidade.
A respeito da Lei 11.645/08, que veio alterar/complemen-
tar a Lei 10.639/03, incluindo a história e culturas indígenas
nos currículos escolares, afirmamos que a inclusão dessa te-
mática também é fruto da militância política do movimento 111
indígena.
Grupioni (SILVA & GRUPIONI, 1995) afirma que a
inclusão das histórias e culturas dos povos indígenas é uma
antiga reivindicação. Ela surgiu para que as escolas localiza-
das fora das aldeias atualizassem seus currículos e práticas es-
colares e que contemplassem a história e culturas dos povos
indígenas, visto que muitas crianças e adolescentes indígenas
frequentavam essas escolas, necessitando que suas histórias e
culturas estivessem presentes no currículo escolar com objeti-
vo de que as mesmas pudessem se ver e reconhecer nos sabe-
res escolares. Também para que as demais crianças e adoles-
centes não indígenas pudessem conhecer os povos indígenas e
quebrassem estereótipos e preconceitos existentes.
Podemos imaginar que a situação citada acima seria uma
exceção no nosso país, mas não. O censo do IBGE de 2010
aponta que mais da metade da população indígena vive fora
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dos seus territórios e somente no Rio de Janeiro cerca de 16


mil pessoas se reconhecem como indígenas. Visto esses dados,
percebemos a urgência e a importância de se discutir a histó-
ria e cultura dos povos indígenas em todas as escolas do nosso
país, e não só as que estão nas aldeias.
Atualmente são cerca de 305 etnias, que têm sua própria
história, suas culturas, seus saberes, suas crenças e religiosi-
dade. No entanto, muitos são os equívocos cometidos acerca
dos povos indígenas. Precisamos suprimir estes preconceitos e
estereótipos para criar uma sociedade livre do racismo.
A luta do movimento indígena pelo reconhecimento da
multietnicidade em nosso país e pela pluralidade e diversi-
dade cultural tem início na década de 1970. Essa luta levou
112 à conquista, na Constituição de 1988, de diversos direitos,
inclusive de uma política educacional própria para os povos
indígenas na qual se respeitasse a sua especificidade e diferen-
ciação, além de garantir uma educação intercultural. Mas só
garantir direitos e educação diferenciada sem uma interlocu-
ção com a sociedade envolvida não era o suficiente. Fez-se ne-
cessário a inclusão da História e culturas dos povos indígenas
em todos os currículos escolares.
Essas leis são importantes se observarmos que vivemos um
processo colonizador que terminou, mas persiste até os dias
atuais através da colonialidade, transformando tudo que se
refere à história e cultura africana e indígena em inferior, su-
balterno, negativo, e o que se refere à influência europeia/
ocidental, como superior, positivo e que deve ser incorpora-
do e imitado. Nelson Maldonado Torres (2007) nos aponta a
diferença de colonização e colonialidade, em que a primeira
faz parte do processo histórico de “dominação política e eco-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

nômica, na qual a soberania de um povo está no poder de


outro povo ou nação” (idem, p. 131), e a segunda, como essa
dominação se mantém nos dias atuais através da forma como
o trabalho, o conhecimento e a autoridade estão articulados
através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça.
Esse processo de colonialidade se apresenta de três formas:
a colonialidade do poder, do saber e do ser. No que se refere
à colonialidade do poder está a questão política e econômica
que vivemos no capitalismo atual, numa relação de subalter-
nidade às potências europeias e norte-americana, no qual o
domínio do poder político em nosso país está nas mãos e
para atender a uma burguesia herdeira das relações coloniais,
herdeira dos benefícios coloniais dados aos conquistadores
brancos europeus. Uma política e economia que excluem e 113
subalternizam negros, indígenas e mestiços.
No que se refere à colonialidade do saber, apontado por
Quijano (2005), percebemo-nos na forma como o conheci-
mento e o saber europeu é tratado em detrimento dos conhe-
cimentos e saberes dos povos africanos e indígenas. A forma
como as instituições de pesquisa e educativas, ao realizarem
suas pesquisas e transmitirem os saberes, nos demonstram
isso, pois os conhecimentos de origem europeia são tidos
como os únicos modelos válidos. As pesquisas, os currículos
seguem um padrão europeu de produção e transmissão do
conhecimento. Os demais conhecimentos, de origem africana
e indígenas, são negligenciados, invisibilizados ou até vistos
como menores, inferiores, oriundos de superstição, lendas ou
sem “validade científica”.
Parece-nos que há, como Boaventura Sousa Santos (1998)
afirma, um epistemicídio, no qual os saberes e conhecimentos
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dos povos africanos e indígenas são apagados, negligenciados


em nome de uma superioridade do conhecimento ocidental,
que acaba por fim sendo tido como universal.
No que tange à colonialidade do ser, Catherine Walsh
(2007) nos apresenta como uma maneira de apagar nossas
heranças africanas e indígenas para sermos, nos identificarmos
somente com a cultura ocidental, absorvermos a identidade,
a cultura, o modo de ser oriundo do Ocidente. Passamos a
imitar os modelos e padrões culturais ocidentais como os cor-
retos e desejados não só no modo de ser, mas também no que
é considerado belo.
Dessa maneira, a Lei 11.645 vem no enfrentamento dessas
questões, na tentativa de pôr fim a essa colonialidade do ser,
114 do saber e auxiliar na eliminação da colonialidade do poder.
Dizemos que a Lei 11.645 tem uma perspectiva decolonial
(WALSH, 2005), pois ao colocarmos em prática, ela nos aju-
da a desconstruir a colonialidade e a dar visibilidade aos “sa-
beres outros”, que são os saberes de origem indígena, africana
e dos povos tradicionais – hoje subalternizados, invisibiliza-
dos, esquecidos por conta da colonialidade – se afirmem e
possam estar em igualdade com os saberes ocidentais.
Uma educação decolonial cria a possibilidade de superar-
mos a atual assimetria do saber, do ser e do poder e se consti-
tui como mais uma arma na superação das desigualdades, dos
preconceitos, do racismo existente na nossa sociedade. Com
a decolonização, estaremos no caminho de uma educação
transformadora e emancipadora da classe trabalhadora, fruto
de uma história de dominação, subalternização, miscigenação
que nega sua herança africana e indígena e/ou a tem como
inferior.
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O CONTEXTO POLÍTICO DO BRASIL NA


PROMULGAÇÃO DAS LEIS 10.639/03 E 11.645/08

A Lei 10.639/03 foi assinada pelo presidente Luiz Inácio


Lula da Silva (Lula) – PT, em seu primeiro mandato, e a Lei
11.645/08, no segundo mandato. Como já apontado, as leis
são resultado da luta política travada pelos movimentos ne-
gros e indígenas ao longo da história. No entanto, faz-se ne-
cessário compreender o contexto histórico e político do país
nestes períodos, principalmente no campo da educação, do
governo Lula a seu antecessor Fernando Henrique Cardoso
(FHC) – PSDB, presidente do Brasil no período de 1995 a
2002. Não acreditamos ser possível realizar a reflexão propos-
ta aqui neste artigo de forma descontextualizada do projeto 115
de Brasil da época.
O Brasil na gestão do governo FHC fez a opção pelo de-
senvolvimentismo dependente, seguindo as regras do sistema
capitalista e da ideologia neoliberal. Época de ajustes finan-
ceiros e privatizações do patrimônio brasileiro, aliado ao não
investimento em áreas sociais, como saúde e educação. O
Estado deixa de ser o responsável pela garantia de direitos e
passa a se voltar para o mercado – o Estado Mínimo.
No campo da Educação, período de tentativas de priva-
tização das universidades públicas, terceirizações de serviços
importantes e cortes de verbas para as universidades públicas;
também foi um período de longas greves, pelo não sucate-
amento da universidade e pela defesa da educação pública,
gratuita e de qualidade. Momento de grande mobilização e
luta dos movimentos sociais.
O ministro da Educação da época, em parceria com os
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

organismos internacionais, criou políticas determinadas pelo


grande capital que influenciaram e influenciam a política
educacional atual. Essas sofreram grande influência das polí-
ticas educacionais externas, como, por exemplo, instituciona-
lização das avaliações externas nas universidades, inspirada no
modelo dos Estados Unidos.
Iniciava-se, nesta época, a perda da autonomia político-pe-
dagógica e a padronização do sistema de avaliação brasileira.
Tais ações se contrapõem a uma concepção de educação com-
prometida com as classes populares e com o incentivo para
que as instituições públicas elaborem seus Projetos Políticos
Pedagógicos a partir de seus contextos sociais.
Com o fim do governo FHC, tem início o governo Lula
116 (2002/2003). Em relação ao Projeto Político, este assume
dando continuidade à política macro, com algumas diferenças
na forma de condução e no estabelecimento de medidas que
atendiam às necessidades das classes populares. Percebem-se
algumas diferenças no estabelecimento de programas sociais,
como, por exemplo, o Programa Luz Para Todos, Minha Casa
Minha Vida e ampliação do Programa Bolsa Família.
Na Educação, observamos algumas mudanças, como a re-
alização de concursos públicos e um certo recuo na políti-
ca do Estado Mínimo. Assim como a promulgação das Leis
10.639/03 e 11.645/08. No entanto, as mudanças tão dese-
jadas pelas classes populares e pelos movimentos sociais, de
forma geral, não aconteceram, pois nos campos ideológicos e
político não houve rupturas. As políticas educacionais man-
tiveram os princípios que já se desenhavam na gestão FHC.
Muitos militantes dos movimentos sociais que apoiaram
Lula, por este ser visto, a princípio, como um governo popu-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

lar, assumiram cargos estratégicos na tentativa de possibilitar


avanços nas legislações, que na prática não foram efetivadas
plenamente, com isso, tivemos algumas conquistas com rela-
ção às políticas de igualdade racial, gênero e diversidade se-
xual. Foram criadas secretarias especiais para esses temas com
status de ministério e a política de cotas implementada. Os
avanços não foram os esperados, pois o alinhamento do go-
verno com o grande capital e a continuidade da política eco-
nômica do governo anterior demonstram que o governo Lula
tinha limites claros de atendimento às demandas populares.
A elaboração dos Planos Nacionais de Educação, no final
do governo Lula em 2010, e em 2014, no final do primei-
ro mandato da presidenta Dilma Rousseff (PT), eleita com
apoio do Lula em 2010, teve a articulação dos dirigentes do 117
MEC e o grupo Todos pela Educação – composto por repre-
sentantes dos grandes empresários. Neste sentido, as políticas
das avaliações externas se ampliaram, do ensino superior ao
fundamental, com provas padronizadas e hegemonizadas que
se pretendem “avaliar” o ensino de norte a sul do país. As
teorias das competências e habilidades se mantêm nos docu-
mentos oficiais, tanto dos PCNS quanto na Base Curricular
Nacional – em processo de elaboração – quanto nos materiais
didáticos.
O governo Dilma continua o alinhamento econômico e
político do governo Lula, contudo, no âmbito da garantia de
direitos e manutenção dos programas sociais, ele recua signi-
ficativamente.
Nesse governo, tivemos a elaboração do atual Plano Na-
cional de Educação, que possibilita flexibilização dos Planos
de Cargos e Salários, incentiva a parceria público-privada e,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

apesar de ter sido votado o investimento de 10% do PIB para


a Educação, há a brecha deste investimento não ser direciona-
do somente ao ensino público, há possibilidade de a iniciativa
privada também usufruir deste financiamento. Sem esquecer
que o financiamento se dará aos poucos a cada ano. Pode se
afirmar, assim, que a despeito de algumas intenções em con-
trário, a estratégia de fazer reformas conciliando e não con-
frontando os interesses da minoria prepotente com as necessi-
dades da maioria desvalida, acabam favorecendo essa minoria,
mantendo o dualismo estrutural na educação. (FRIGOTTO,
2012, p. 129)
Essa política educacional perpetrada pelos últimos gover-
nos é sentida e traz duras consequências principalmente para
118 as classes subalternizadas historicamente; destacamos aqui as
políticas educacionais que atendem à população negra e indí-
gena do Brasil.

A ANÁLISE DAS ENTREVISTAS:


UMA BREVE REFLEXÃO

Consideramos fundamental iniciar a análise das entrevistas


ressaltando que compreendemos os profissionais de educação
como sujeitos históricos e sociais. Significa compreender que
esses profissionais carregam consigo as marcas do espaço e do
tempo em que viveram e vivem; não é possível separar o su-
jeito das relações sociais que viveu e vive; significa pensar a
história como a dialética entre a ação dos sujeitos históricos e
sociais e as condições dadas em que tais sujeitos têm que agir.
Neste sentido, não acreditamos em processos de formação
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

continuada que desconsiderem este princípio – do ser sujeito


histórico e social.
Entendemos que a formação e práxis docente, como todo
processo de ensino-aprendizagem, é multidimensional, há a
interação de três dimensões: a humana, a técnica e a política
(CANDAU, 2012). Neste sentido, a formação do professor
para a atuação na área das relações étnico-raciais não se res-
tringe a uma técnica, a um treinamento do como fazer, assim
como preconiza os modelos de formação pautados por pre-
missas capitalistas, pragmáticos tão em voga nos dias atuais
e financiados por grandes organizações internacionais, como
Banco Mundial, FMI, Educação para Todos, entre outras.
Essa premissa tecnicista e pragmática da formação docente
leva, muitas vezes, a uma prática mecanizada, não reflexiva 119
da atividade docente, ou seja, a uma prática que não se torna
práxis e, dessa maneira, uma prática que não leva à transfor-
mação da realidade, mas à reprodução mecânica de um con-
teúdo sem o diálogo, a reflexão sobre ele.
Seguimos acreditando nos processos de formação perma-
nente no qual o conceito de práxis supere o conceito de prática
e recorremos aos estudos de Vazquez (1968) para compreender
este conceito de práxis. Enquanto a prática estaria no campo
do senso comum, como atividade não refletida, uma atividade
pragmática, a práxis seria uma atividade prática que faz, refaz,
transforma a ação ou uma situação. A práxis é teórico-prática,
é a reflexão da realidade, da prática a partir da teoria e da teoria
a partir da prática, é a crítica da realidade e autocrítica.
Acreditamos que, para um trabalho docente incidir na rea-
lidade assimétrica das relações étnico-raciais, faz-se necessário
que esse trabalho seja realizado a partir da práxis.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Ao realizar as análises das entrevistas com os professores da


rede municipal de Angra dos Reis, o faremos em três blocos,
que apresentaremos a seguir:

– Conhece a Lei 11.645/08?

A maioria dos professores afirma conhecer a lei; contu-


do, quando questionados sobre seu teor, não a conhecem
profundamente. A maioria só cita a questão africana/
afrodescendente e a temática indígena só aparece quando
questionados diretamente sobre a mesma. Os professores que
mais falam sobre a lei foram os que realizaram cursos sobre
a mesma; ainda assim, a temática africana/afrodescendente é
120 mais citada – a indígena só apareceu na fala de uma professo-
ra, que fez uma pós-graduação (única do grupo que tem uma
especialização na área) sobre a educação das relações étnico-
-raciais.
Há uma ausência constante sobre a temática indígena nas
falas dos professores, sempre que questionados sobre algum
assunto referente à Lei 11.645/08, estes se remetem à lei an-
terior, 10.639/03, que tratava apenas da questão africana/
afrodescendente. A temática indígena, incluída através da
Lei 11.645, não aparece nas observações preliminares sobre
a mesma.
Os que conhecem um pouco mais sobre o teor da lei rea-
lizaram algum tipo de curso ou buscaram em pesquisas pes-
soais. Não citaram que em algum momento esse tipo de for-
mação tenha sido oferecido pelas redes de ensino nas quais os
referidos professores atuam ou nos cursos de graduação pelos
quais estudaram:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

“Conheço a lei, na minha disciplina principalmente, por-


que gosto de ler, buscar, pesquisar. Eu sei que estamos cien-
tes da inclusão da diversidade étnico-racial.” Professor A

“Sim, fiz curso sobre elas na UERJ promovido pelo mo-


vimento negro. Não me lembro o nome.” Professor B

“Vou fazer uma pós sobre esse assunto ano que vem.”
Professor C

Neste sentido, podemos inferir que a Lei 11.645 ainda é


pouco conhecida pelos professores, sendo a Lei 10.639 sem-
pre citada quando falamos de relações étnico-raciais. Ainda
assim, há dificuldades dos professores em apontar mais deta- 121
lhadamente o que as duas leis pretendem implementar.
Também percebemos que no município de Angra dos
Reis, os professores que se comprometem com a educação
das relações étnico-raciais o fazem por diferentes fatores. Da
identificação com o tema à sensibilização pela questão do ra-
cismo presente na sociedade e cotidiano escolar, a militância
política e o contato com movimento negro.
No que tange à formação na área, percebemos que alguns
buscaram formação de maneira individualizada, pois não há
por parte do poder público um projeto efetivo de formação
continuada visando a discussão dessa temática. Alguns tam-
bém se formam por terem, em algum momento de suas histó-
rias de vida, interlocução com o Movimento Negro da cidade
– Yla Dudu.
Na Secretaria Municipal de Educação há uma coordena-
ção, o Núcleo de Ações e Políticas Interculturais, que trata da
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

diversidade cultural. Contudo, seu alcance tem sido limitado,


restringindo-se a formações pontuais e curtas, realizadas por
apenas duas profissionais em toda a rede municipal.

– Aplica a lei? Com que frequência? O que o impulsiona a


trabalhar com a lei? Do compromisso em trabalhar com a
educação das relações étnico-raciais

Quanto à aplicação da lei em sala de aula, percebemos


que a maioria tenta realizar algum tipo de atividade, mas as
mesmas não ocorrem cotidianamente, ou seja, ao longo do
processo ensino-aprendizagem. Há momentos específicos no
cotidiano da escola ou em desenvolvimento de projetos. Tam-
122 bém quando questionados sobre como trabalham com a te-
mática, a maioria apenas citou a questão africana/afrodescen-
dente; a temática indígena só foi citada quando perguntados
como realizam e se realizam algum trabalho com esse tema.
Por exemplo, um dos professores, quando perguntado se apli-
ca a lei e em quais momentos, afirma:

“Não é projeto, acontece cotidianamente no espaço da


disciplina, quando se fala da história do Brasil, da colô-
nia. Se toca no assunto. Particularmente eu dou um espa-
ço enorme. A gente acaba aprendendo algumas coisas e aí
você… culturalmente... na questão cultural... na parte de
como se deu o tráfico de escravos.” Professor F

Se formos analisar mais profundamente, perceberemos que


esse “cotidianamente” não acontece, pois ele cita que trabalha
a temática quando está no conteúdo Brasil Colônia, ou seja,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

em momentos específicos do ensino de alguns conteúdos. Isso


também aparece na fala de outros:

“eu até trabalho, valorizo, trago para sala de aula. Eu até


fiz um trabalho bem grande sobre isso, primeiro sobre a
questão africana e depois sobre a questão indígena. Mas
assim no cotidiano, a gente não pode estar trabalhando
com isso, né? Levando isso, a escola está sem um projeto,
apesar de eu ter apresentado isso… a antiga diretora…
ficou encantada com a questão e disse ‘vamos trabalhar’.
Só que a gente não conseguiu caminhar em cima disso,
então está meio parado.” Professor G

“Quando o currículo permite, eu trabalho. Mas nem 123


sempre dá, o currículo é muito extenso.” Professor D
“Trabalho depois que falo da chegada dos portugueses ao
Brasil, tem um livro bom sobre esse tema…. é o Africa-
nos no Brasil.” Professor C

“Talvez não se faça em termos de história, só em alguns


momentos, quando existe alguma mobilização para se fa-
zer e trabalhar algumas temáticas. (...) Quando tem mo-
bilização a gente faz, quando não se tem a gente não faz.
Fica resumido só em festa, não dá. Professor F

“… uma autoanálise, uma autocrítica talvez porque se eu


tivesse essas questões como fundamentais como priori-
dade, com certeza eu não esqueceria de trabalhar, então
eu confesso que eu, às vezes, que eu deixo isso de lado.”
Professor E
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Dessa maneira, percebemos que a maioria dos professores


incorpora a temática da Lei 11.645/08 quando o currículo
“permite” ou quando há projetos na escola. Mas que currícu-
lo é esse?
Entendemos currículo como “uma opção cultural, o proje-
to que quer tornar-se na cultura conteúdo do sistema educati-
vo para um nível escolar ou para uma escola de forma concre-
ta.” (SACRISTÁN, 2000, p. 34). Sendo assim, o conjunto de
conteúdos, práticas e saberes desenvolvidos nas salas de aula
representam a opção cultural que será abordada nas discipli-
nas, quais saberes são necessários e importantes de serem dis-
cutidos no espaço escolar. A seleção do que vai ser trabalhado
pedagogicamente nos mostra qual projeto de sociedade espe-
124 ramos, portanto, currículo também seria local de disputa de
poder, de representação dos saberes considerados necessários.
Sabendo disso, os governos têm investido pesado em polí-
ticas de controle curricular, controle do que deve ou não ser
ensinado, através de diretrizes, bases curriculares, guias, lis-
tas de conteúdos, livros didáticos. Elas “movimentam, enfim
toda uma indústria cultural montada em torno da escola e
da educação: livros didáticos, material paradidático, material
audiovisual.” (SILVA, 2010, p. 11)
Durante as entrevistas, todos os professores citaram o cur-
rículo do livro didático como referência para seus trabalhos.
Um currículo não oficial, mas com uma força arrebatadora
e que controla o que vai e quando vai ser ensinado. Há um
grande receio por parte dos professores em romper com esse
programa curricular e criar seus próprios currículos.
Sabemos que os livros didáticos atuais mantêm uma pro-
posta curricular ocidentalizada, dando extremo valor à cultura
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

e conhecimentos ocidentais em seus conteúdos, deixando, na


maioria das vezes, um ou dois capítulos dedicados as histórias
e culturas africana, afrodescendente e indígenas. Acreditamos
que, se os professores continuarem tendo esse material como
única base para organizar seu trabalho pedagógico, teremos
mais dificuldades de introduzir as temáticas africana, afrodes-
cendente e indígenas nas salas de aula.
Um dos professores nos deu uma resposta interessante para
pensarmos o porquê dessa temática ainda ser uma exceção,
um assunto de “projeto” e não estar presente cotidianamente
em todo currículo:

uma das maiores dificuldades que é você se identificar


com o seu discurso. Quando você fala sobre o europeu... 125
a maioria das pessoas fala da sociedade europeia, prin-
cipalmente quando fala assim... antigamente… mesmo
quando não é professor de história, fala assim, falando
como se fosse você, como se você fizesse parte disso, da
história da Europa... do que quando você fala da Áfri-
ca. Eu acho que isso meio que marca muito a fala de
qualquer professor que for trabalhar com esse tema. Isso
impede que o aluno, que está ali... coisas essenciais que
está ali na discussão... você vê que o aluno negro, o aluno
o que não se reconhece como negro e é visto como negro
pela sociedade e vê isso como uma coisa ruim, vê isso
como uma coisa diferente, uma coisa que ele quer negar.
E quando você não trabalha no sentido de nós somos
negros, nós somos e isso é nossa cultura. Não é a história
do negro no Brasil. Isso é nossa história, né? Nós somos
negros e tal. (…) Professor B
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Outros professores nos dão mais pistas:

“Agora dependendo do ano você vai ter que trabalhar


história da arte, mas a gente ainda tem aquilo de que a
história da arte é europeia, então muitas vezes você en-
contra do Renascimento até a arte moderna europeia e
você esquece de falar da arte, como se fala… arte pré-
-colombiana, da arte africana.” Professor E
“A escola não trabalha isso, a nossa cultura é europeia.
Né? A nossa base é europeia. Quem conta a história do
mundo, se a gente não for correr atrás, é… o europeu é
a cultura, é a visão deles. Que a única coisa que eles con-
sideram arte que não é europeu é basicamente o Egito. É
126 claro que isso acabou de um século para cá. Mas até hoje
você não tem nos livros de história da arte oficiais a cul-
tura pré-colombiana, a cultura africana. É muito, o que
predomina … é a arte europeia.” Professor E

Ou seja, a arte, a história, os conhecimentos nos currícu-


los atuais têm uma matriz específica: a europeia. As demais
matrizes do conhecimento entram como conhecimento extra,
um adereço. Neste aspecto, podemos dizer que a negação dos
conhecimentos indígenas e de origem africana é “sacrificial,
na medida em que constitui a condição para a outra parte da
humanidade se afirmar enquanto universal” (MENEZES &
SANTOS, 1998, p. 31). Podemos dizer que há o sacrifício, ou
seja, a negação, o apagamento, o epistemicídio (MENEZES
& SANTOS, 1998) de parte do conhecimento produzido em
outros espaços não europeus, que é negado, invisibilizado em
favor do conhecimento europeu, ocidental.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Durante as entrevistas, quando questionados sobre seu cur-


rículo e como implementam a Lei 11.645/08 em suas salas de
aula, percebemos que a temática africana é a predominante e
a indígena é pouco usual ou esquecida.

– Dificuldades na implementação da Lei 11.645/08 e na


discussão das relações étnico-raciais na escola

Quando perguntados quais as dificuldades em trabalhar a


história e a cultura dos povos africanos e afrodescendentes, e
a cultura dos povos indígenas, os professores respondem:

“tudo que vem… tudo que vem da África é macumba,


então… é que muitos têm preconceito. E ficam com re- 127
ceio de falar. Qualquer palavra que você fala diferente é
macumba.” Professor F

“A história deles, a história deles e falta um pouco assim, é


a nossa. É a minha história, é a sua história, né? Não apon-
tar aquela história como uma coisa que fosse à parte, então
assim, tentar incorporar isso até no discurso” Professor B

“Por exemplo: a arte africana, você vai, querendo ou não,


eles vão fazer um link com a cultura negra, mas você sabe
que com a cultura e arte negra tem muito preconceito. En-
tão eles (os alunos) vão lembrar de, de repente, candomblé,
de… religião, de… tradições que aqui em Angra eu vejo
um preconceito muito grande com a cultura negra. Quan-
do você fala de música negra, instrumentos, acaba caindo
na macumba em si. E… em termos pejorativos… a capo-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

eira, a … eles já associam a macumba. Ah, isso é coisa de


macumbeiro. Tem essas dificuldades…” Professor E

“os alunos acham que tudo que vem da África é macum-


ba, daí resistem.” Professor C

A questão mais apontada como dificuldade para trabalhar


a temática africana/afrodescendente é o preconceito dos es-
tudantes no que tange aos conhecimentos, cultura de raiz
africana. Mas como superar o preconceito se deixarmos de
trabalhar por conta dele?
Quanto à questão indígena, a maior dificuldade apresen-
tada pelos professores é de conseguir material sobre o tema,
128 de conhecer para desenvolver um trabalho sobre a temática.

“Isso tenho maior dificuldade, principalmente de mate-


rial. Porque em termos de história indígena, temos que
associar a história local, e não temos subsídio para traba-
lhar isso com a história local. Para trabalhar melhor do
que ver uma coisa de história… no livro didático, enten-
deu?” Professor F

“tem muito pouco material sobre o tema… fica difícil


trabalhar sem material.” Professor C

“Eu acho que o maior problema de trabalhar é a invisi-


bilidade. Você falar sobre a questão indígena é você falar
sobre um alguém do passado, normalmente é assim. Mes-
mo você morando numa cidade como Angra com duas
aldeias que você vê o tempo inteiro, mesmo assim parece
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

como uma figura anacrônica. Como uma coisa, como se


estivesse no zoológico.” Professor B

Possivelmente a invisibilidade da temática indígena esteja


justamente na formação dos profissionais, que não lhes per-
mitiu conhecer, discutir sobre isso e consequentemente se
sentem fragilizados para abordarem esse assunto nas suas salas
de aula. Como essa temática não esteve presente na formação
desses profissionais, os mesmos acabam reproduzindo essa in-
visibilidade em seu trabalho pedagógico. A invisibilidade que
pode existir nos cursos de formação é agravada pela ausência
de políticas públicas de formação continuada e distribuição
de material didático.
A tarefa de formação fica a cargo dos próprios profissio- 129
nais, que têm de buscá-la de forma individual, pessoal, a par-
tir dos seus interesses subjetivos ou posicionamentos políticos,
ficando a discussão das relações étnico-raciais fragilizada. Essa
tarefa acaba, muitas vezes, sendo realizada pelos movimentos
sociais e militantes que se organizam para promover ativida-
des formativas.

À GUISA DE CONCLUSÕES…

Partimos da análise que todo esse processo de subalterni-


zação e invisibilização dadas às temáticas africana e indígenas
no currículo escolar se dá por conta do processo de coloniali-
dade que atinge a produção do conhecimento nas sociedades
americanas e, consequentemente, os currículos escolares, a
formação inicial e continuada dos profissionais da Educação.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

O processo de colonialidade do poder levou à repressão dos:

modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo


simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos. Ope-
ra-se então, a naturalização do imaginário do invasor euro-
peu, a subalternização epistêmica do outro não europeu e
a própria negação e o esquecimento de processos históricos
não europeus. (OLIVEIRA & CANDAU, 2010, p. 19)

A partir deste contexto, abriu-se espaço para a colonialida-


de do saber que subalternizou os saberes africanos e indígenas
em detrimento do europeu, que passou a ser visto como uni-
versal, válido. Podemos perceber esse tipo de comportamento
130 em diversos momentos das entrevistas com os professores na
medida em que se baseiam em currículos eurocêntricos e têm
o saber ocidental como referência para discussão das temáti-
cas em suas disciplinas. Poucos ousam romper essa estrutura
curricular e desenvolver uma prática pedagógica diferente.
Segundo Santos, há uma monocultura dos saberes, na qual
o conhecimento ocidental europeu predomina e para romper
com isso faz-se necessário:

confrontar a monocultura dos saberes com uma ecologia


dos saberes. É uma ecologia porque se baseia no reconhe-
cimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos
(sendo um deles a ciência moderna) e em interações sus-
tentáveis e dinâmicas entre eles em comprometer a sua
autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de
que o conhecimento é interconhecimento. (SANTOS &
MENEZES, 1998, p. 45)
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Desenvolver um trabalho voltado para a ecologia dos sa-


beres, nos quais todos os conhecimentos, sejam eles de ma-
triz africana, indígena, caiçara, europeia ou qualquer outra,
estejam dialogando em base de igualdade, produzindo um
interconhecimento, um conhecimento intercultural, necessita
de uma produção do conhecimento nas universidades, nos
institutos de pesquisa de pressupostos diferenciados dos atu-
ais. Se conseguirmos produzir o conhecimento na premissa
da ecologia dos saberes, abriremos espaços para uma proposta
decolonial de educação.
Percebemos que a formação dos profissionais da educa-
ção são um fator fundamental para que se sintam seguros e
instrumentalizados para atuar numa perspectiva decolonial,
antirracista em suas práticas pedagógicas. Formações em que 131
sejam discutidos conhecimentos “outros” e possibilitem, a
partir desses conhecimentos e da análise histórica e política
da realidade e de como se constituiu e constitui o racismo,
elaborar um currículo intercultural, no qual os conhecimen-
tos africanos e indígenas se encontrem em pé de igualdade
com os conhecimentos europeus e, a partir daí, construam
uma proposta antirracista de educação.
Por isso, a formação inicial e continuada deve ser aquela
que leve à reflexão da práxis docente, que possibilite o educa-
dor se tornar um educador progressista e comprometido com
as transformações sociais. Um educador que não aceite “ne-
nhuma explicação determinista da história. O amanhã para o
educador progressista não é algo inexorável. Tem de ser feito
pela ação consciente das mulheres e dos homens enquanto
indivíduos e enquanto classes sociais.” (FREIRE, 1997)
Educadores que, em sua práxis pedagógica, percebam que
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

não é possível entender-me apenas como classe, ou como


raça ou como sexo, mas, por outro lado, minha posição de
classe, a cor de minha pele e o sexo com que cheguei ao
mundo não podem ser esquecidos na análise do que faço,
do que penso, do que digo. Como não pode ser esquecida
a experiência social de que participo, minha formação po-
lítica, minha esperança. (FREIRE, 1997, p. 15).

Assim, quem sabe daremos um passo em direção a uma


prática pedagógica que possibilite a igualdade nas relações
étnico-raciais. Neste sentido, a formação de um educador
que se espere progressista (FREIRE, 1997), que tenha como
princípio a formação humana, pautada na práxis pedagógica e
132 com vistas à promoção da transformação social são caminhos
possíveis.
Não nos cabe mais um mundo no qual indígenas e caiça-
ras são assassinados na disputa pelo seu território ancestral,
em que jovens negros de periferias são as maiores vítimas de
violência, dentre outras práticas ligadas ao racismo e a hege-
monização cultural perpetradas pelo grande capital para di-
vidir e dominar as classes ditas subalternas no processo de
colonialidade.
Uma Educação para as relações étnico-raciais pode con-
tribuir para o respeito à diversidade, valorização das dife-
renças, no qual as identidades étnicas/culturais não serão
hierarquizadas, mas vistas como um valor que contribui para
um mundo plural, sem racismo ou desigualdade.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


E FORMAÇÃO DOCENTE: CONTRIBUIÇÕES
PARA A DISCUSSÃO DE NOVOS PARADIGMAS

Danielle Tudes Pereira Silva26


Norielem de Jesus Martins27
Roseléa Aparecida dos Santos Oliveira28

137
E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá
E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar
(Gonzaguinha)

Este artigo é fruto de debates e estudos realizados no con-


texto da disciplina Formação Docente e Relações Étnico-Ra-

26. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - PROPED


– da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pedagoga na rede municipal
de Angra dos Reis - RJ.
27. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos
e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ). Professora de anos iniciais na rede municipal
de Angra dos Reis - RJ e coordenadora do Núcleo de Ações e Políticas Interculturais da
Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia de Angra dos Reis - RJ.
28. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos
e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ). Professora de anos iniciais na rede municipal
de Angra dos Reis - RJ e coordenadora do Núcleo de Ações e Políticas Interculturais da
Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia de Angra dos Reis - RJ.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ciais do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contex-


tos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) durante o segundo
semestre do ano de 2015 e seu objetivo principal é contribuir
na discussão de novos paradigmas para a formação docente
no contexto das Leis 10.639/03 e 11.645/08. Para tal, dia-
logamos com experiências de implementação das leis na rede
municipal pública de ensino, realizadas no âmbito do Núcleo
de Ações e Políticas Interculturais, da Secretaria Municipal de
Educação Ciência e Tecnologia de Angra dos Reis, no Estado
do Rio de Janeiro.
As leis citadas determinam que a história e a cultura afro-
-brasileira e indígena devem, obrigatoriamente, integrar os
138 currículos do ensino fundamental e do ensino médio de es-
tabelecimentos públicos e privados. Entendemos que, para
além da realização de eventos em datas comemorativas ou
da inclusão de atividades e conteúdos isolados, as leis nos
colocam o compromisso de garantir que as trajetórias de
meninas e meninos nas escolas – ingresso, permanência e
sucesso – sejam equânimes, a fim de que possamos cami-
nhar para a construção de uma sociedade em que as relações
sejam verdadeiramente democráticas. Para tal, é necessário
um conjunto de políticas públicas que visem à reparação das
desigualdades.
As escolas públicas, contextos de nossas militâncias e espa-
ços-tempos de onde falamos, possuem um papel fundamental
no combate ao racismo através da criação de novas pedago-
gias que caminhem no sentido da superação da colonialidade.
Aníbal Quijano nos explica esse conceito como
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

...um dos elementos constitutivos e específicos do padrão


mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição
de uma classificação racial/étnica da população do mun-
do como pedra angular do referido padrão de poder e
opera em cada um dos planos, meios e dimensões ma-
teriais e subjetivos, da existência social quotidiana e da
escala societal. (QUIJANO, 2010, p. 84)

Considerando que vivemos hoje o processo colonial em


outros marcos, acreditamos que, assim como as leis são fruto
da mobilização e luta dos Movimentos Negros e Indígenas,
a construção de novos paradigmas para a formação docente
também depende da atuação desses sujeitos, militantes atuan-
do no interior das redes de ensino e pesquisa. Embora consti- 139
tua um grande desafio, há várias práticas em andamento que
podem alimentar esse processo, pois concordamos com o tex-
to das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana ao afirmar que

Para obter êxito, a escola e seus professores não podem


improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e dis-
criminadora secular, superando o etnocentrismo europeu,
reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalie-
nando processos pedagógicos. Isto não pode ficar redu-
zido a palavras e raciocínios desvinculados da experiência
de ser inferiorizados vivida pelos negros [e indígenas],
tampouco das baixas classificações que lhe são atribuídas
nas escalas de desigualdades sociais, econômicas, educati-
vas e políticas. (2004, p. 15)
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Para tal, reafirmamos a urgência da formação docente, ten-


do em vista os discursos que, proclamando a crise da educa-
ção pública, colocam professoras e professores como os prin-
cipais culpados, uma vez que seriam malformados. Ao mesmo
tempo que são colocados como sujeitos imprescindíveis para
a “qualidade” do ensino, são acusados de incompetência
e obsolescência frente aos desafios contemporâneos. É
interessante observar que, por vezes, as acusações proferidas
contra a formação desses profissionais se originam do mesmo
Estado responsável pelo credenciamento e avaliação dos cur-
sos de formação.
Nóvoa (1999) argumenta que há uma abundância de dis-
cursos voltados para o papel dos professores no âmbito políti-
140 co e nos meios de comunicação de massa. Essa tendência es-
taria justificada pelo atual contexto em que há uma descrença
generalizada em relação à política e a ausência de vivências
democráticas significativas. Por isso, haveria um apelo ao ci-
vismo e um excesso de projeção de expectativas para o futuro,
consequentemente evitando uma análise crítica do presente,
sendo providencial apelar para os professores.
Nessas circunstâncias, buscam-se alternativas no liberalis-
mo com grande abertura e tolerância para a iniciativa privada
– vide a abundância de propostas de cursos de formação e
realização de eventos oferecidos às Secretarias de Educação.
Em algumas redes, os cargos de administração são inclusive
confiados aos profissionais de empresas privadas, bem como
a construção de Planos Municipais de Educação, Programas
de Correção de Fluxo e outros. Por outro lado, encontramos
também o apelo ao autoritarismo como alternativa, tendo
como exemplo emblemático a adoção de avaliações de de-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

sempenho profissionais atreladas à remuneração de forma


individual ou coletiva. Dessa forma, o excesso dos discursos
esconde a pobreza das políticas em que a formação de profes-
sores vem se configurando como um mercado rentável onde
proliferam ofertas de formação, presencial ou a distância, para
todos os bolsos.
Enquanto há um excesso de discursos científico-educa-
cionais, proferidos no campo da Pedagogia e das Ciências da
Educação, as práticas pedagógicas são cada vez mais empobre-
cidas. A comunidade científica se legitima por meio da refle-
xão acerca dos docentes. Nessa conjuntura, se estabelece uma
interdependência entre a profissionalização dos professores e a
produção de discursos científicos em educação. Porém, aqui
se estabelece um paradoxo, uma vez que esses discursos são 141
produzidos no contexto acadêmico, investindo novos grupos
de especialistas como autoridades, enquanto os professores
são desconsiderados como produtores de saberes. A relação
da academia com esse campo, embora seja construída sobre
o discurso de contribuir para o desenvolvimento profissional
dos professores, acaba desapossando os mesmos de seus saberes
porque “leva a que os investigadores fiquem a saber o que os
professores sabem, e não conduz a que os professores fiquem
a saber melhor aquilo que já sabem.” (NÓVOA, 1999, p. 15)
O empobrecimento das práticas pedagógicas vem se dando
no enrijecimento dos currículos amparados por livros e ma-
teriais concebidos por grandes empresas e que se caracterizam
por serem extremamente prescritivos. Arroyo (2011) nos diz
que o currículo é um território em disputa e que é estrutu-
rante da função da escola. Por isso, a diversidade curricular é
oficialmente normatizada em contraposição à demanda dos
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Movimentos Negros e Indígenas por reconhecimento, valori-


zação e afirmação do direito à diferença.
Um dos grandes desafios que vivenciamos enquanto do-
centes em formação, formadoras e militantes no combate ao
racismo, consiste em ressignificar a função social da escola e,
consequentemente, seus currículos, adotando o que Santos
(1996, p. 17) denomina “imagens desestabilizadoras”, enten-
didas aqui como ideias, pensamentos e mesmo imagens pro-
priamente ditas que nos colocam outras formas de conceber,
ser e estar no mundo invocando o inconformismo e a rebeldia.
Nesse sentido, ter o amparo legal constitui um avanço sig-
nificativo, uma vez que conceber as leis como um enfrenta-
mento ao racismo é, sobretudo, desconstruir uma concepção
142 de formação docente “instrucional”, tendo em vista que esta-
mos falando não apenas da socialização de métodos, planos e
ou materiais, mas de posturas políticas e ações cotidianas que
identifiquem e combatam o racismo e o preconceito respon-
sáveis pela inferiorização de determinados grupos sociais.
Neste sentido, nos questionamos: como formar educadores
para ensinar conteúdos sobre história e cultura sem descons-
truir a repulsa e o preconceito que grande parte da população
brasileira possui em relação à população negra e indígena?

1 - UM POUCO DE HISTÓRIA

No âmbito das políticas públicas, a cidade de Angra dos


Reis, desde os anos 1990, possui movimentos sociais de
combate ao racismo, como o grupo de consciência negra
Ylá Dudu, que desde a sua criação esteve articulado com as
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

comunidades indígenas e quilombolas existentes na Região,


possibilitando o diálogo destas com as universidades e demais
espaços de formação política.
A Secretaria Municipal de Educação, articulando-se a al-
guns destes movimentos, foi consolidando assim seus pro-
gramas e projetos em nível local e global, seguindo também
as deliberações das lutas antirracistas em nível nacional. Na
primeira década dos anos 2000, as políticas de promoção da
igualdade racial aconteceram por meio de parcerias com uni-
versidades, principalmente com a Universidade Federal Flu-
minense (UFF), que realizou o Curso de Extensão “Negros e
Negras em Movimento” para os docentes da rede municipal e
demais envolvidos na discussão local. Também foram realiza-
das formações pontuais nas escolas, seminários e a criação da 143
Medalha Zumbi dos Palmares, posteriormente ressignificada
em forma de incentivo, a fim de estimular a participação de
diferentes setores da sociedade em projetos que abordassem
as temáticas em questão, criando um espaço de socialização
dessas práticas.
Outra importante conquista desse movimento foi a criação
de um Comitê Gestor de Políticas de Promoção da Igualda-
de Racial de Angra dos Reis (CGPPIR/AR), responsável pela
articulação das políticas antirracistas na cidade e a criação do
Conselho de Promoção da Igualdade Racial. No âmbito da
Educação Escolar Indígena, destacamos a criação do projeto
EJA Guarani, que atendeu a jovens e adultos indígenas gua-
rani das aldeias de Angra dos Reis, Parati e Maricá, sendo
premiado, em 2010, com a Medalha Paulo Freire, pela inova-
ção de sua proposta e pelo seu caráter interinstitucional, que
perdurou até o ano de 2014.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

No ano de 2011, a UFF, por meio do Instituto de Educa-


ção de Angra dos Reis, ofereceu o curso de especialização “Di-
versidade Cultural e Interculturalidade: Matrizes Indígenas e
Africanas na Educação Brasileira”, do qual fomos alunas. Este
curso colaborou para o fortalecimento e a criação de políticas
públicas na educação local, tendo em vista que formou cerca
de trinta especialistas que, assim como nós, continuaram a
multiplicar o conhecimento aprendido em suas salas de aula
e em demais espaços educativos.
Consideramos importante contextualizar essas vivências
que possibilitaram a nossa atuação, a partir de 2013, no Nú-
cleo de Ações e Políticas Interculturais29, buscando dar conti-
nuidade e ampliar as discussões até então realizadas. Ressalta-
144 mos também a importância histórica da criação da Secretaria
de Promoção da Igualdade Racial, em nível nacional, e as suas
orientações de caráter formativo e normativo a fim de promo-
ver a igualdade racial.
Como o Núcleo está associado à Educação Comunitária,
ou seja, a uma educação que transcende o espaço escolar, bus-
camos ampliar nossa atuação nas políticas públicas locais para
além da formação nas escolas, visando contribuir com a luta
pela garantia de direitos específicos das comunidades tradi-
cionais presentes na cidade (indígenas, quilombolas, ciganos,
caiçaras). Deste movimento surgiu o Fórum Municipal Per-
manente de Educação para as Relações Étnico-Raciais, que
vem contribuindo para o fortalecimento da discussão em nível
local e possibilitando a participação de diferentes sujeitos,

29. O Núcleo de Ações e Políticas Interculturais foi organizado no ano de 2013 e está
inserido no âmbito da Gerência de Educação Comunitária da Secretaria Municipal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Angra dos Reis.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

como estudantes do curso de formação de professores, da gra-


duação em pedagogia, indígenas, quilombolas, caiçaras, entre
outros. Outras ações importantes articuladas a este movimen-
to também aconteceram no processo, dentre elas o I Congres-
so de Diversidade Cultural e Interculturalidade de Angra dos
Reis, realizado em parceria com o Instituto de Educação de
Angra dos Reis (IEAR/UFF), em novembro de 2015.
Além disso, realizamos periodicamente formações especí-
ficas nas escolas abordando as Leis 10.639/03 e 11.645/08,
atingindo 40% das unidades escolares, principalmente os
profissionais dos anos iniciais do ensino fundamental.
Neste artigo, nos limitaremos a falar brevemente de duas
ações que refletem a introdução destes novos paradigmas da
educação das relações étnico-raciais, tendo como exemplos: 145
a exposição fotográfica “Belezas, Poesias e Identidades” e os
Circuitos Culturais de Educadores.

2 - DE IMAGENS E EXPERIÊNCIAS COMO


FORMAÇÃO

Em meados de 2013, realizamos uma pesquisa para mape-


ar quais das 75 unidades escolares da rede pública municipal
desenvolviam projetos e ações ligadas à cultura indígena e à
cultura negra, articuladas ou não aos seus Projetos Políticos
Pedagógicos. O resultado foi que apenas doze escolas pos-
suíam projetos com a temática indígena em desenvolvimen-
to e vinte desenvolviam algum projeto sobre cultura negra.
Algumas escolas relataram também que o trabalho didático
ainda estava muito restrito às datas comemorativas, embora
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

estivessem abordando transversalmente o conceito de diversi-


dade. Apontaram também para a falta de materiais didáticos
e paradidáticos, e de formação docente específica. Enviamos
também um questionário intitulado “Desafios para a Imple-
mentação das Leis 10.639/03 e 11.645/08”. Foram respon-
didos 458 questionários por educadores de diferentes escolas
da rede pública municipal. A maioria dos educadores de-
clarou conhecer as leis, considerando-as importantes. Já no
quesito autoidentificação, segundo as definições do IBGE,
a maioria dos educadores declarou-se como branca ou par-
da, ao lado de uma minoria negra, indígena e amarela. Em
relação a haver ou não discussões sobre discriminação racial
na escola, alguns educadores declararam que sim, porém que
146 não havia preconceito na escola. Outros declararam que as
principais causas da existência do preconceito eram a cor e
a religião.
Diagnósticos assim são importantes quando associados ao
diálogo e à formação continuada, pois apontam caminhos
possíveis para construir outras posturas frente ao preconcei-
to e à discriminação racial. Esses diagnósticos, embora não
determinantes, nos auxiliaram no planejamento de ações
para a formação desses profissionais, na medida em que nos
apontaram a necessidade de refletir sobre a repercussão do
que já havia sido realizado. Os resultados nos indicavam os
frutos dos esforços empreendidos pelos movimentos sociais e
pelo poder público, mas também nos indicavam que, frente
ao todo da rede municipal, os números eram muito modes-
tos e nos provocavam a questionar os modelos de formação
nos quais nos baseávamos. Concordamos com Arroyo (2011)
quando o mesmo afirma a impossibilidade de formar tendo a
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

diversidade como princípio em propostas que tratam o corpo


docente como homogêneo.

A tendência no equacionamento de todo curso de for-


mação é partir de concepções prévias da docência e do
perfil de profissional da educação básica. Parte-se sempre
da ideia de organizar um currículo que os capacite para
lecionar em qualquer escola, seja da cidade ou do cam-
po, das periferias urbanas, seja para indígenas ou jovens e
adultos. Os coletivos diversos seriam vistos como destina-
tários de última hora de um projeto comum de educação
básica, consequentemente, projeto único de docência e
de formação. A diversidade tende a ser secundarizada. O
que é visto como universal, comum e único é o determi- 147
nante. (ARROYO, 2008, p. 11)

Ademais, precisamos considerar que na formação docente


há outros espaços-tempos, para além do acadêmico, igualmente
importantes e que são constituídos pelo vasto e heterogêneo
conjunto de experiências vividas pelo docente ao longo de
sua vida, fundamentais para explicar e reforçar as opções aca-
dêmicas e profissionais dentro do caminho que ele percorre
no magistério em seus mais diferentes níveis. Tais contextos
têm uma função fundamental dentro da formação docente no
sentido de sensibilizar o profissional de educação para o com-
bate ao racismo, e correspondem a uma multiplicidade de
possibilidades que abrangem desde o convívio familiar até os
espaços profissionais anteriores ao magistério, passando pela
convivência religiosa, movimentos sociais, ciclos de amizades
e grupos de práticas esportivas ou recreativas. As interações
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

do indivíduo com seu meio social fornecem a matéria-prima


e os acervos que irão contribuir para a formação das visões de
mundo do docente; em última análise, são os elementos aos
quais ele vai recorrer sempre que necessitar encontrar soluções
para as crises e questões com as quais ele se deparar durante o
exercício de sua prática.
Compreendemos que esses contextos influenciam a forma
como os docentes lidam com as demandas dos conflitos ét-
nicos e as manifestações racistas no espaço escolar. O exer-
cício profissional está relacionado e depende do que somos
enquanto pessoas, como nos ensina Nóvoa

Eis-nos de novo face à pessoa e ao profissional, ao ser e


148 ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções
que cada um de nós tem de fazer como professor, as quais
cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de
ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa
maneira de ser. É impossível separar o eu profissional do
eu pessoal. (NÓVOA, 2007, p. 17)

Por isso, entendemos que é fundamental a promoção de


formações que envolvam o autorreconhecimento a partir da
diferença e da inserção dos docentes, não como ouvintes ou
telespectadores, mas como dotados de conhecimentos, forja-
dos em suas variadas experiências. Diante disso é que propo-
mos o diálogo com estas duas ações: a Exposição Fotográfica:
“Belezas, Poesias e Identidades” e os Circuitos Culturais de
Educadores.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

2.1 - Exposição Fotográfica

O racismo constitui um conjunto de crenças pseudocien-


tíficas, fundamentadas em duas premissas que, embora sejam
igualmente falsas, foram e continuam a ser amplamente acei-
tas: a primeira é que a espécie humana encontra-se dividida
em raças diferentes, distinguíveis entre si meramente por um
conjunto de características fenotípicas gerais; e a segunda é de
que é possível estabelecer algum tipo de hierarquização en-
tre essas supostas raças, arbitrariamente classificando algumas
como sendo superiores, quando em comparação com as de-
mais.
Entretanto, campos como a Biologia e a Genética che-
garam ao consenso de que as diferenças genéticas existentes 149
entre as etnias não são significativas o suficiente para carac-
terizarmos a existência de diferentes raças humanas, tornan-
do ambas as premissas “científicas” do racismo falsas e suas
teorias desprovidas de sustentação ou embasamento. Porém,
isso não impede que o conceito de raça exista no âmbito das
sociedades e estruture as relações sociais. Assim, o racismo
no Brasil opera com base no fenótipo (cor dos olhos, pele,
cabelo...) e quanto maior a aproximação com marcadores ét-
nicos de origem africana, maior a discriminação sofrida pelos
corpos negros.
Desta maneira, entendemos a corporeidade como um
conceito fundamental para a formação docente, a partir da
desconstrução da dicotomia entre corpo e mente, em que o
primeiro, também por influência das tradições judaico-cristãs,
é o receptáculo de todas as interdições. Petit nos diz que:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Para reverter essas tendências negadoras, precisamos sus-


citar nas pessoas um sentimento de pertencimento à an-
cestralidade africana, algo que só pode ser feito tocando
o sentimento das pessoas, elas precisam sentir-se negras,
esse sentimento é transmitido principalmente por nosso
corpo, pois ele é o guardião da nossa memória ancestral.
(PETIT, 2015, p. 148)

Neste sentido, em novembro de 2014, propusemos a rea-


lização da Exposição Fotográfica “Belezas, Poesias e Identida-
des”. Os participantes foram alunos, professores, zeladores e
outros sujeitos da rede municipal que fossem negros e que ti-
vessem cabelos naturalmente crespos, uma vez que nosso ob-
150 jetivo era trabalhar a beleza na estética negra. No total, foram
21 participantes e foram produzidas 42 fotografias.
A opção por fotografias é reforçada pela necessidade de
produção de imagens que constituam referenciais, especial-
mente para as crianças negras, considerando que, na maio-
ria das vezes, os corpos negros estão expostos nas páginas
policiais dos periódicos em imagens que fixam estereótipos.
Atualmente, com o aumento do acesso aos instrumentos de
produção e divulgação de imagens, é importante que criemos
interpretações do real em prol do combate ao racismo.
Após o período em que as fotos ficaram expostas no centro
da cidade, em local de grande fluxo de pessoas e, consequen-
temente, de grande visibilidade, a Exposição Fotográfica tor-
nou-se itinerante, e aproximadamente vinte escolas já a rece-
beram. Percebemos também um aumento nas solicitações das
escolas para que o Núcleo esteja presente realizando forma-
ções. Vimos que o primeiro momento foi relevante por conta
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

da grande mobilização para a questão. Contudo, a passagem


da exposição pelas escolas se constituiu como um momento
de formação mais aprofundada, cabendo aqui um breve relato
sobre os procedimentos ocorridos.
Inicialmente, a Exposição Fotográfica permaneceu em
torno de quinze dias em cada escola. A comunidade esco-
lar interagiu com a mesma de formas variadas, e foi prepon-
derante para instigar e fomentar as discussões étnico-raciais
nas escolas, pois por onde ela passava, havia muitos relatos
de alunos(as), funcionários(as) e até de responsáveis que se
emocionavam em ver pessoas conhecidas, parentes ou mes-
mo os(as) filhos(as) retratados(as) de forma tão profissional e
tendo a beleza valorizada. Constatamos que as imagens mo-
bilizaram as pessoas. 151
Um relato muito interessante foi o de uma mãe de aluno
de uma creche que foi um dos “mascotes” da Exposição. Mui-
to emocionada, ela dizia para todos e também para si mesma:
eu sempre soube que meu filho é lindo. As pessoas me diziam
para cortar o cabelo dele, mas eu acho bonito assim grande e
crespo. De uma outra escola, uma professora nos manda uma
foto via celular e nos diz: Olha o meu cabelo, a culpa é de
vocês, resolvi assumi-lo, não está lindo? Esta mesma professora,
quando estivemos em sua escola, disse que ainda não tinha se
visto como negra. E que tudo isso era muito novo para ela.
Realizamos também, nestas escolas, formações de base te-
órica tendo as Leis 10.639/03 e 11.645/08 e ações educati-
vas de combate ao racismo como eixos estruturantes, além de
pequenas exposições envolvendo a literatura afro-brasileira,
africana e indígena.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

BANNER DE DIVULGAÇÃO DA EXPOSIÇÃO

152

Fonte: Divulgação. Núcleo de Ações e Políticas Interculturais. Secretaria Mu-


nicipal de Educação de Angra dos Reis. 2014.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Acreditamos que ações dessa natureza nos forneçam ele-


mentos na busca de novos paradigmas para a formação do-
cente, apostando na superação do colonialismo de que pa-
decemos em nossos referenciais e caminhando no sentido de
uma Pretagogia, que, de acordo com Petit – uma de suas cria-
doras –, pode ser definida como:

...referencial teórico-metodológico em construção há al-


guns anos, pretende se constituir numa abordagem afro-
centrada para formação de professores/as e educadores/
as de modo geral. Parte dos elementos da cosmovisão
africana, porque considera que as particularidades das ex-
pressões afrodescendentes devem ser tratadas com bases
conceituais e filosóficas de origem materna, ou seja, da 153
Mãe África. Dessa forma, a Pretagogia se alimenta dos
saberes, conceitos e conhecimentos de matriz africana, o
que significa dizer que se ampara em modo particular de
ser e de estar no mundo. Esse modo de ser é também um
modo de conceber o cosmos, ou seja, uma cosmovisão
africana. (PETIT, 2015, p. 120)

A autora narra suas experiências com grupos de alunos de


graduação, processo em que foi fomentando a criação da Preta-
gogia e relata como a cosmovisão africana foi se fazendo presente
a medida em que se tornou consciente de que a mesma faz parte
de sua vida e das vidas de seus alunos como afrodescendentes, a
partir de um dos princípios da Pretagogia: o “autorreconhecer-
-se afrodescendente, assumindo uma postura autoafirmativa e
lembrando sempre a importância da raiz africana para nossa
constituição como pessoa.” (PETIT, 2015, p. 122)
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Nessa busca, também enfrentamos diversas dificuldades,


uma vez que, para viabilizar a Exposição, o grupo de coordena-
dores investiu recursos financeiros próprios. Houve momentos
em que a exposição agendada era remarcada seguidamente, de-
vido ao concorrido calendário escolar e/ou a não compreensão
da escola sobre a importância da discussão, sendo o material
levado à escola, mas não resultando em ações na mesma. Al-
gumas destas situações nos levam a refletir sobre a nossa atua-
ção e em como é possível ampliá-la e melhorá-la, considerando
que o ritmo dentro da escola é absurdamente intenso e que,
enquanto profissionais em formação permanente, precisamos
compreender as nossas limitações e possibilidades de avançar,
mas que é no desafio cotidiano do chão da escola que se sente
154 que a gente é mesmo muita gente, quando se ousa “ir” e ao
“retornar” nós percebemos ainda mais, mais gente.

2.2 - Circuitos Culturais

No ano de 2015, foram realizados quatro circuitos, sendo


dois para a aldeia guarani Sapukai e dois para o quilombo
Santa Rita do Bracuí. Por ora, nos deteremos nos circuitos da
Aldeia Sapukai.
Ao pensarmos nos coletivos silenciados historicamente e
que são estereotipados, é provável que os povos indígenas se-
jam os coletivos mais desprezados socialmente, pois são trata-
dos como se pertencessem exclusivamente ao passado e rela-
cionados ao atraso. Ainda há uma lógica de tutela por parte
das universidades e das denominações religiosas nas aldeias,
onde a realidade, de forma geral, é muito dura. Infelizmente,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

a intenção colonizadora pela religião está presente nas ações


de muitos grupos. Além disso, os povos indígenas empreen-
dem lutas contra grandes poderes econômicos, pois a questão
do território é uma constante.
Sobre a precariedade da formação para a discussão da te-
mática indígena, consideramos que a Lei 11.645/08 nos pos-
sibilitou avanços, uma vez que

A implementação desse novo dispositivo legal tornou


prioritária a formação de professores capazes de oferecer
um tratamento qualificado dessas temáticas, no sentido
de superar as concepções estereotipadas presentes no sen-
so comum a respeito dos povos indígenas como meio de
combater o desconhecimento, a intolerância e o precon- 155
ceito em relação a eles. Verificamos, no entanto, que elas
raramente constam dos cursos de formação inicial de pro-
fessores, sejam estes os de pedagogia ou as licenciaturas.
Mais escassos ainda são os cursos de formação continuada
de professores. As experiências que conseguimos detectar
resultam de iniciativas de alguns grupos de pesquisa ou
de laboratórios de determinadas universidades do país,
que contam com poucos recursos e, em geral, são des-
contínuas. (COLLET; PALADINO; KELLY, 2014, p. 7)

Por isso, os circuitos foram pensados para que fosse pos-


sível deslocar a ideia de formação como uma relação entre
alguém que detém conhecimentos e um grupo ao qual os
mesmos seriam transmitidos, especialmente porque proferir
palestras sobre essa questão causa pouca repercussão na visão
cristalizada que muitas pessoas possuem sobre os povos indí-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

genas. Desse modo, priorizamos as vivências no território da


aldeia, tomando aqui a experiência como uma possibilidade
de produção de conhecimentos e sentidos sobre o povo gua-
rani, tendo, portanto, uma dimensão formativa. Isso implica
que é preciso disposição para ouvir o outro sem a pretensão
de transformá-lo em algo diferente, implica uma escuta onde:

...alguém está disposto a ouvir o que não sabe, o que não


quer, o que não precisa. Alguém está disposto a perder o pé
e a deixar-se tombar e arrastar por aquilo que procura. Está
disposto a transformar-se numa direção desconhecida. O
outro, enquanto outro, é algo que não posso reduzir à mi-
nha medida. Mas é algo do qual posso ter uma experiência
156 que me transforma... (LARROSA, 1996, p. 138)

Sentimos que para as visitas na aldeia, embora tenhamos


tido uma pequena discussão com o grupo, era necessário um
tempo maior de diálogo com os profissionais, pois apesar da
discussão realizada e do interesse na temática indígena, mui-
tas vezes ainda predomina o olhar de quem está diante do
“exótico”, olhar este que tentamos desconstruir em iniciativas
como esta, associada a leituras e reflexões como, por exemplo,
a do professor Bessa Freire (2005), em sua importante fala so-
bre algumas ideias equivocadas30 que costumamos reproduzir
em relação aos povos indígenas.

30. Bessa Freire (2005) em seu artigo “cinco ideias equivocadas sobre as culturas indí-
genas”, reúne alguns dos estereótipos mais comuns em relação a estes povos. Em cinco
ideias ou equívocos principais: o primeiro é que os povos indígenas possuem uma única
cultura, genérica. O segundo é que são culturas atrasadas, o terceiro é que são culturas
“congeladas”, o quarto é que fazem parte do passado e o quito é que o brasileiro não
é índio.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Em quase todas as formações que realizamos nas escolas


sobre a temática indígena, ao final dos depoimentos nos ví-
deos expostos, havia lágrimas nos olhos dos colegas presentes;
muitos se lamentavam por não saber “nada daquilo”, espe-
cialmente as informações sobre os diferentes Povos indígenas,
suas especificidades, os altos índices de violência contempo-
rânea contra esses Povos e também em relação aos negros e
negras brasileiras(os).
Após esse primeiro momento de contraste entre seus ima-
ginários repletos de estereótipos e preconceitos frente à fala
dos sujeitos em questão, geralmente emergem relatos emocio-
nados de casos de racismo vivenciados ou presenciados, in-
dignações, casos de família, identificações com os indígenas,
africanos, caiçaras, ciganos. Parece que à medida que vamos 157
falando e valorizando os saberes africanos, afro-brasileiros e
indígenas, algo dentro das pessoas vai se descortinando, de-
sempoeirando, vivificando e nos permitindo questionar: onde
e como estão representados(as) os negros e negras? E os indí-
genas? Por que não valorizamos nossa própria história? Essa
desvalorização é propulsora do cenário atual? É proposital?
Por onde começamos a mudança? Pelos outros ou por nós?
Em uma de nossas primeiras formações, uma colega pro-
fessora nos indagou se os índios daqui (se referindo a nos-
sa cidade) ainda comiam gente; ela nos tinha dito que faria
uma pergunta polêmica, mas não poderíamos imaginar que a
antropofagia estivesse tão atual em seus pensamentos mesmo
após cinco séculos de contato entre Povos. Explicamos um
pouco sobre o conceito de antropofagia e informamos que
alguns historiadores indígenas contemporâneos da etnia Gua-
rani (pois ela se referia a este povo específico) não os identi-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ficavam como um povo de ancestralidade antropófaga, con-


trariando alguns historiadores, porém a mesma, não satisfeita
com a resposta, indagou: Ah, mas será que lá, escondidinho,
eles ainda não comem gente?
Outra situação inusitada aconteceu ao término de uma for-
mação, quando uma das mediadoras da creche em questão,
demonstrando muito contentamento com as questões apren-
didas, nos fez um questionamento, muitíssimo preocupada,
pois a mesma nunca tinha se dado conta das especificidades
dos povos indígenas. Sua dúvida era de cunho religioso: Mas
se todos os homens vieram de Adão e Eva, então os índios vieram
de onde? Foi importante a tentativa de explicar à colega que
essa era uma concepção religiosa e que havia muitas outras
158 concepções de acordo com outras “histórias”. Nesse momento,
nos remetemos a importante fala de Chimamanda Adichie em
seu brilhante discurso sobre o perigo de uma única história31:
“histórias importam, muitas histórias importam. Histórias
têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histó-
rias também podem ser usadas para capacitar e humanizar”.
Como professoras de sala de aula que somos, que apren-
demos na prática, na troca com o colega e que também apre-
sentam suas dúvidas, procuram por respostas, pesquisam e,
acima de tudo, refletem sobre suas práticas, enfim, enquanto
professoras do “chão da escola” que não se contentam com
respostas aparentes, mas que buscam, na práxis cotidiana, fa-
zer, desfazer e refazer o processo de construção de conheci-
mento e de aprendizagem, buscamos socializar outros saberes
e valores civilizatórios de diferentes culturas, pois aprendemos
31. A conferência está disponível, na íntegra, em: <http://bit.ly/2czujLD>.
Acesso: fev. 2016.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

que é só no coletivo que poderemos criar novas trajetórias de


formação na educação para a diferença.

CONCLUSÃO

Muitos são os mitos, as construções ideológicas, as infor-


mações equivocadas sobre os povos indígenas, africanos e
afro-brasileiros. Independentemente do contexto local, parece
que há um imaginário coletivo consolidado em nosso país,
com algumas “verdades”, que podem ser ouvidas de norte a
sul, propagando-se em igual proporção, de doutores aos não
escolarizados. Essas “verdades” são um grande desafio, pois
em nossa trajetória pessoal, carregamos impressões, ideologias 159
etc. Dialogar com o preconceito, mesmo a fim de combatê-
-lo, não é uma tarefa fácil, não acontece sem uma medida
de sofrimento, de indignação. No entanto, para incentivar a
valorização da diversidade, precisamos superar estes desafios.
Infelizmente, a Educação para as Relações Étnico-Raciais
ainda é vista como um assunto secundário, de menor impor-
tância. Esta situação é ainda mais preocupante entre os do-
centes dos anos finais do ensino fundamental, pois, da forma
que está estruturada a ação destes profissionais, neste caso es-
pecífico, da rede municipal de Angra dos Reis (mas que acre-
ditemos que seja também uma realidade comum a outras re-
des), estes geralmente necessitam atuar em diferentes escolas,
dificultando a identificação e ou envolvimento contínuo com
as questões que emergem no cotidiano escolar. A carência de
materiais específicos e a falta de pedagogos nas escolas parece
ser também um fator desmobilizador.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Sendo assim, nossas ações, embora ainda limitadas, consi-


derando a urgência desta discussão, estão organizadas no in-
tuito de envolver alguns aspectos que consideramos essenciais
para a formação docente na implementação efetiva das Leis
10.639/03 e 11.645/08, de acordo com nossas vivências e tra-
jetórias em formação permanente. O primeiro é a necessidade
de contextualizar a existência das leis enquanto uma ação de
combate ao racismo, por meio do reconhecimento do nosso
desconhecimento e ou negação desses saberes na escola. O
segundo é a importância da identificação desses saberes nas
trajetórias pessoais, buscando evidenciar as histórias e culturas
veladas, por meio das formações específicas, que são, na prá-
tica, grandes momentos de socialização de histórias de vida e
160 de aprendizagem mútua; e o terceiro é o desafio de construir
pontes com esses saberes e referenciais diversos para que eles
estejam atrelados ao currículo de forma dinâmica e dialógica,
o que envolve o fortalecimento e a criação de políticas públi-
cas que necessitam de uma “militância” permanente para que
sobrevivam frente às descontinuidades da gestão pública.

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

POLÍTICAS PÚBLICAS E PRÁTICA


PEDAGÓGICA: DA AÇÃO AFIRMATIVA
À AÇÃO DOCENTE

Hélbia Sant’Ana B. Gonçalves32


Janine Gabrielle dos Santos33
Lilian do Carmo de Oliveira Cunha34

163
INTRODUÇÃO

Durante muitos anos, as discussões sobre as desigualdades


sociais e raciais no Brasil se restringiram aos movimentos so-
ciais, não ocupando a pauta da agenda política nacional. Con-
tudo, embora o Estado se recusasse a afirmar que o racismo é
uma realidade social do país, diversos movimentos discutiam
a posição histórica e socioeconômica do negro brasileiro, bem
como estratégias de enfrentamento a este cenário, com vistas
à erradicação das desigualdades atribuídas pelo critério racial.

32. Pedagoga pela Universidade Luterana do Brasil, professora da Educação Infantil da


rede municipal do Rio de Janeiro e da Educação de Jovens e Adultos da rede municipal
de Duque de Caxias.
33. Mestranda em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ).
34. Mestranda em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
supervisora educacional da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), membro do
Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas (GPMC).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

É importante destacar que o Movimento Negro foi o


principal precursor de que o preconceito, a discriminação e
o racismo35 fossem reconhecidos pelo Estado e que este se
responsabilizasse por devolver à população negra sua história,
sua cultura, sua dignidade, dando-lhes um lugar social que
não o subalternizado, pois foi o próprio Estado que legitimou
as desigualdades sociais e raciais ao não criar estratégias de
inserção do negro nas diversas esferas da sociedade no período
pós-abolição (SILVÉRIO, 2002).
O século XX tem como marca uma série de iniciativas que
tinham como propósito implementar “um conjunto de medi-
das e ações com o objetivo de corrigir injustiças, eliminar dis-
criminações e promover a inclusão social e a cidadania para
164 todos” (Brasil, 2004, p.7). Destacamos aqui que na década de
70 e 80, o Movimento Negro debateu amplamente sobre a
importância de que a diversidade étnico-racial36 da sociedade
brasileira fosse inserida nos currículos escolares, uma vez que
a educação se constitui em um espaço político de transfor-
mação social, mas foi na década de 90 que as formulações de
políticas públicas afirmativas se consolidaram como proposta
de âmbito federal.

35. Em seu artigo “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre as relações
raciais no Brasil: uma breve discussão” (2005), Nilma Lino Gomes descreve e diferencia
preconceito, racismo e discriminação.
36. O termo étnico-racial utilizado tem como referência as Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cul-
tura Afro-Brasileira e Africana, em que o termo “raça”, ressignificado pelo Movimento
Negro, possui um sentido político e de valorização do legado deixado pelos africanos; já
o termo “étnico”, na expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações tensas
devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos o são também devido à raiz
cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de mundo, valores e
princípios das de origem indígena, europeia e asiática (Brasil, 2004, p. 13).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Em 2001 foi realizada a III Conferência Mundial Contra


o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
Correlata37, um marco importante para os debates acerca das
políticas educacionais para a educação das relações étnico-ra-
ciais38, pois teve como principal resultado uma declaração e
um plano de ação que expressam o compromisso dos Estados
na luta sobre os temas abordados. Assim, fica cada Estado
comprometido em estruturar políticas de ação afirmativa. É
neste contexto que em 9 de janeiro de 2003, como uma das
primeiras ações do então presidente Luís Inácio Lula da Silva,
é sancionada a Lei 10.639, que altera a atual Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional, tornando “obrigatório
incluir nos currículos oficiais das redes de ensino a temáti-
ca ‘História e Cultura Afro-Brasileira’” (BRASIL, 2003). Em 165
2004, o Conselho Nacional de Educação (CNE), institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das rela-
ções étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-
-brasileira (BRASIL, 2004), que tem como objetivo orientar
a formulação de projetos para a implementação da lei e, do
mesmo modo, valorizar a história e cultura dos africanos e
afro-brasileiros. Estas foram conquistas relevantes nas polí-
ticas de ação afirmativa no campo educacional, uma forma
sistemática adotada pelo Estado de alcançar a verdadeira de-
mocracia racial, através do reconhecimento e valorização de

37. Conferência realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de
2001, em Durban – África do Sul. Ficou popularmente conhecida como Conferência
de Durban.
38. Aqui, entendemos como educação das relações étnico-raciais as relações entre ne-
gros e brancos, como descrito nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

uma história que até então não vinha sendo contada no espa-
ço escolar, considerando este como um importante espaço de
promoção da cidadania.
Chega, então, na escola não “de cima para baixo”, mas
através da luta de um movimento social, uma importante po-
lítica pública de ação afirmativa que exige toda uma mudança
cultural, epistemológica e, sobretudo, política. Mas estariam
os professores preparados para essa mudança? As licenciaturas
instrumentalizaram seus futuros docentes para esta modifi-
cação epistêmica? Os “principais responsáveis” por concreti-
zar as ações afirmativas como práticas pedagógicas sentem-se
seguros com esta temática? Buscando responder a estas per-
guntas e realizar não somente uma análise, mas uma reflexão
166 de como se dão as políticas de ação afirmativa no contexto
escolar no tocante a uma efetiva implementação destas, escre-
vemos o presente artigo.
A fim de atendermos às questões aqui colocadas, aborda-
remos o que se entende como ação afirmativa, como estas
se refletem na sala de aula e de que maneira os docentes li-
dam com “as lacunas” conceituais e limitações pessoais para o
cumprimento das mesmas.

AÇÕES AFIRMATIVAS: COMPREENDENDO


O CONCEITO

O conceito de ações afirmativas teve seu início nos Estados


Unidos da América (EUA) no ano de 1935, com o objetivo
de reparar situações, ou de injustiça, ou de violação legal já
perpetradas nos ambientes trabalhistas. As ações afirmativas se
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

constituíram então em um dispositivo criado para combater


as práticas racistas direcionadas aos trabalhadores sindicalis-
tas que sofriam discriminação em seu ambiente de trabalho.
Porém, mesmo com esse aparato legal, as formas de discrimi-
nação continuaram presentes, fazendo necessária a criação de
medidas adicionais que coibissem tais atos. Em 1965, foram
promulgadas pelo governo Kennedy-Johnson as políticas de
ação afirmativa.

A legislação inicial dos direitos civis, promulgada na ad-


ministração Kennedy-Johnson, era composta por leis que
coibiam a segregação e a discriminação raciais, e que vi-
savam, assim, criar as condições de igualdade de oportu-
nidades educacionais, de vida e de trabalho entre todos os 167
americanos. Eram leis e políticas que se coadunavam com
o que Lipset (1993) chama de ações compensatórias, ou
seja, “que compreendem medidas para ajudar grupos em
desvantagem a se alinhar aos padrões de competição acei-
tos pela sociedade mais abrangente”. São políticas com
esse espírito que Lipset contrasta com políticas que ele
chama de tratamento preferencial, e para os quais o ter-
mo “Ação Afirmativa” passou a ser um codinome (GUI-
MARÃES apud SISS, 2003, p. 115).

Os motivos para a implementação das ações afirmativas


nos Estados Unidos têm as suas singularidades com o pro-
cesso ocorrido no Brasil para a implementação das mesmas.
Os 350 anos do período escravagista em nosso país deixa-
ram marcas que se refletem até hoje em nossa sociedade, com
base nas desigualdades criadas naquele período; assim, as
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ações afirmativas tornam-se dispositivos legais que garantem


o acesso de grupos anteriormente excluídos, em especial os
afro-brasileiros, que foram afetados com o legado funesto da
escravidão.
Embora os militantes do Movimento Negro, cientistas so-
ciais e estudiosos se esforcem para desconstruir as ideias exis-
tentes acerca da questão racial no Brasil, comprovando, atra-
vés de estudos, a existência da discriminação e do racismo,
sabemos que esse debate é uma questão antiga em nosso país
e está enraizado no pensamento daqueles que ainda afirmam
não haver racismo e discriminação, e sim a diferença de clas-
ses sociais, causando a desigualdade. Mas emerge a cada dia a
necessidade de enfrentamento a este cenário ainda mitificado,
168 pois

em uma sociedade racialmente excludente como a nossa,


na qual as desigualdades raciais são mascaradas pelo mito
da democracia racial, a formulação e implementação de
políticas sociais exclusivamente universalistas, por não
atacarem os mecanismos geradores dessas desigualdades,
vêm operando antes como forma de atualização delas que
como instrumentos que concorram para dirimi-las. É que
tais políticas aumentam, de forma escandalosa, o fosso
que separa aqueles considerados como cidadãos, daqueles
percebidos como não cidadãos. (SISS, 2003, p. 111)

Apesar de possuir argumentos contrários e favoráveis às


políticas de ações afirmativas, faz-se necessária a implemen-
tação efetiva das mesmas, a fim de eliminar as desigualdades
historicamente acumuladas, desempenhando o significativo
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

papel e corrigi-las na atualidade. Santos (apud SISS, 2003)


entende que é necessário o estabelecimento de políticas de
ação compensatória em favor dos afro-brasileiros, e que tal
ação deva atingir um duplo objetivo:

1. O de permitir igualdade de oportunidade e de trata-


mento – o que, a médio prazo, permitirá a materialização
econômica da igualdade; e

2. O de elaborar uma pedagogia reversiva que não só re-


construa a estima negra, como também eduque a todos
contra o racismo (ibidem, p. 134).

Se observarmos a demora para que as políticas de ação afir- 169


mativa se tornassem uma realidade no nosso país, podemos
acreditar que muito se avançou no enfrentamento a que elas
se objetivam, o racismo. No tocante à educação, apesar de
constituir um avanço, a Lei 10.639/03 foi promulgada com
algumas questões a serem ainda resolvidas. Segundo Santos
(apud SISS, 2003), a legislação federal é genérica e não se
preocupa com a implementação adequada do ensino sobre
História e Cultura Afro-Brasileira. Ela não estabelece metas
para a implementação da lei, não se refere à necessidade de
qualificar os professores que já estão em sala de aula, do en-
sino fundamental e médio, para ministrarem as disciplinas
referentes à Lei supracitada, menos ainda à necessidade de as
universidades reformularem os seus programas de ensino e/ou
cursos de graduação, especialmente os de licenciatura, para
formarem professores aptos a ministrarem ensino de Histó-
ria e Cultura Afro-Brasileira. Estas questões são abordadas no
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, to-
davia, nem sempre este importante documento é conhecido
pelos atores que compõem a instituição escolar.
É um equívoco pensar que o papel de discutir a questão
racial e desmontar os estereótipos cabe apenas ao movimen-
to negro e não à escola, em consonância com as Diretrizes
Curriculares para a Educação Étnico-Racial (2004), a escola
enquanto instituição social responsável por assegurar o direito
da educação a todo e qualquer cidadão, deverá se posicionar
politicamente contra toda e qualquer forma de discriminação.
Siss (2003) afirma que
170
[...] a educação, escolarizada ou não, é uma esfera propí-
cia à produção, reprodução e cristalização das desigualda-
des, sejam de classe, de gênero, étnicas ou raciais. É uma
arena mestra para as iniciativas que se propõem a reduzir,
se não eliminar os mecanismos que impactam fortemente
e de forma negativa as trajetórias individual e social dos
membros dos grupos sociais colocados em posição de su-
balternização (SISS, 2003, p. 123).

A implementação das ações afirmativas implica então um


resgate moral, cultural, étnico, político e epistemológico da
parcela da população que foi, e ainda se mantém em muitos
contextos, inferiorizada e segregada. A adoção destas, em ca-
ráter nacional, legitima a existência de um racismo estrutural,
institucionalizado na forma de padrões, procedimentos e prá-
ticas, que segregam, discriminam e excluem os indivíduos que
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

não compõem a população branca. Reconhecemos, porém,


que essa mudança estrutural não está relacionada apenas com
a ordenação oficial, vinculando-se a outras questões de cunho
operacional. Neste sentido, o que implica a efetiva implemen-
tação destas políticas no contexto escolar?

FORMAÇÃO DOCENTE E AS RELAÇÕES


ÉTNICO-RACIAIS

A escola é composta por uma série de rotinas que se repetem


ano após ano, rotinas estas que, muitas vezes, são reproduzidas
sem que a prática seja um momento de construção e reflexão.
Por esse e outros motivos que fazem parte da realidade escolar, 171
o fato de uma lei ser promulgada não assegura que esta rotina
seja repensada e modificada, uma vez que isso demanda o en-
volvimento dos atores dessa transformação: gestores, equipe
pedagógica e docentes.
A lei 10.639/03, que tratamos neste trabalho, demanda
uma reestruturação curricular em todos os segmentos da edu-
cação básica, o que exige que outros conteúdos façam parte
do planejamento pedagógico e, não menos importante, que
atitudes discriminatórias sejam coibidas (o que, na realida-
de, não necessitaria de uma legislação específica) e que a
invisibilidade da criança e do adolescente negro se reverta a
uma imagem positiva. As Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana orientam a
implementação da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, por meio da Lei 10.639, contudo, esta efetiva exe-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

cução está relacionada com algumas problemáticas não con-


cernentes à leitura das diretrizes, perpassando por questões de
ordem subjetivas e conceituais, históricas, sociais e antropoló-
gicas (BRASIL, 2004).

O sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais


e pedagógicas, visando a reparações, reconhecimento e
valorização da identidade, da cultura e da história dos
negros brasileiros depende necessariamente de condições
físicas, materiais, intelectuais e afetivas favoráveis para o
ensino e para aprendizagens. (BRASIL, 2004, p. 13).

O pensamento hegemônico persistente no Brasil faz com


172 que a formação intelectual e pessoal daqueles que atuam e
atuarão nos espaços escolares seja constituída por uma ideo-
logia baseada em estereótipos privilegiando a cultura branca
europeia, o que reforça as desigualdades sociais e raciais. Não
queremos aqui colocar a escola e seus agentes como únicos
responsáveis pelo combate a este cenário discriminatório que
permeia o país, mas para que estes se configurem em um lo-
cal verdadeiramente democrático, devem contribuir para o
enfrentamento da problemática racial, não podendo ser um
espaço de neutralidade muito menos de reforço ao racismo. É
imprescindível reconhecer que

a escola tem papel preponderante para a eliminação das


discriminações e para a emancipação dos grupos dis-
criminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos
científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista
de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

conhecimentos avançados indispensáveis para consolida-


ção e concerto das nações como espaços democráticos e
igualitários (BRASIL, 2004, p. 15).

Nesta perspectiva, o Plano Nacional de Implementação


das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana aponta a necessidade da formação
continuada de profissionais que já atuam nas escolas e dis-
tribuição de materiais de apoio para os mesmos, bem como
a reformulação dos currículos do ensino superior, sobretudo
das licenciaturas, com o objetivo de que estas propiciem aos
estudantes uma formação que os habilite a educar para as re-
lações étnico-raciais. 173
De acordo com algumas pesquisas acerca da implementação
da Lei 10.639/03 (OLIVEIRA, 2012), a principal implicação
para o cumprimento desta política é a formação docente. Se
o professor não conhece nem reconhece a “outra” história do
nosso país e toda a herança cultural nela escondida, este terá
dificuldades para desenvolver e aplicar os conteúdos necessá-
rios, podendo também não ver sentido na promoção de ações
afirmativas. Assim, “para obter êxito, a escola e seus profes-
sores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade
racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo
europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desa-
lienando processos pedagógicos” (BRASIL, 2004, p. 15). Em
sua pesquisa, Oliveira (2012) nos mostra que existem muitos
desafios e tensões quando se propõe ao docente que mude
suas práticas, principalmente quando estas mudanças impli-
cam a reconfiguração de todo o aporte epistemológico de sua
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

“formação inicial”. Aponta, ainda, a ausência de um suporte


pedagógico que auxilie aos docentes nos processos de sistema-
tização destas “novas práticas”, afirmando que “as implicações
curriculares e pedagógicas suscitadas pela nova legislação vão
correr um longo caminho até chegar efetivamente nas salas de
aula” (OLIVEIRA, 2012, p. 128).
Ghedin (2012), ao discorrer sobre a identidade do educa-
dor do campo, traz à tona diversas considerações que também
podem ser observadas quando falamos da formação para a
educação das relações étnico-raciais. Dentre suas colocações,
consideramos importante destacar a compreensão, por par-
te do educador, de que ao assumir uma postura política de
valorização da diversidade cultural e, neste caso, também da
174 diversidade racial, este não o faz apenas com vistas à formação
do estudante, mas quase que inconscientemente, formando a
si mesmo. Podemos perceber então que a prática é um espaço
permanente de formação, considerando que os desafios e ten-
sões, colocados por Oliveira (2012), demandam uma cons-
tante reformulação teórica, que tendem a resultar na reformu-
lação da prática. Madaleny (2016), corroborando com estas
ideias, explicita que quando o professor esbarra em questões
conceituais que não fazem parte do seu domínio teórico, este
tem como compromisso pedagógico buscá-los a fim de que
estas lacunas sejam preenchidas, forjando o caminho para no-
vas buscas. A pesquisadora pontua ainda que formar, enquan-
to o dia a dia no “chão da escola” a partir das trocas com os
alunos e professores, é se autoformar, numa constância. Assim
sendo, os conhecimentos que não foram obtidos no período
de formação inicial expressam-se vitais na formação desenca-
deada pela práxis cotidiana.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Por outro lado, para que estas trocas sejam possíveis, o


profissional deve estar propício a isto, o que muitas vezes, por
questões subjetivas, não acontece.

Quer dizer que as questões centrais que perpassam a


formação, do ponto de vista curricular, são uma opção
pessoal, histórica, política e epistemológica por um mo-
delo de formação que incide em uma visão de mundo,
de ser humano e de sociedade que irá impulsionar ou
frear a luta política contra a desigualdade (GHEDIN,
2012, p. 29).

Podemos perceber, considerando as questões aqui coloca-


das, que temos políticas de ação afirmativa voltadas para a 175
educação, implementadas em 2003; um conjunto de elemen-
tos que interferem na prática docente com vistas à concreti-
zação destas; um Estado negligente às condições de trabalho
dos educadores; e a realidade educacional, que devido a tantos
anos de engessamento epistêmico, se organiza de forma estig-
matizada e excludente. Em face das condições, é o professor-
-militante que se apropria da intervenção desta realidade, na
tentativa de fazer com que as políticas não permaneçam no
campo do discurso. Isso porque cada pessoa, antes de ser um
profissional, é um sujeito composto por uma educação ideo-
lógica de acordo com os princípios do seu meio. Neste senti-
do, sua formação acadêmica – e posteriormente profissional
– está intimamente ligada às facilidades e/ou dificuldades de
lidar com determinadas temáticas; por isso, alguns docentes
se mostrarão mais inclinados às mudanças de suas práticas,
enquanto outros se colocarão em oposição a elas.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

A POLÍTICA, A FORMAÇÃO E A PRÁTICA:


O COTIDIANO EM PAUTA

Com o objetivo de compreender como estas políticas de


ação afirmativa, especificamente a Lei 10.639/03, se tradu-
zem no cotidiano escolar, acompanhamos um projeto desen-
volvido numa escola municipal de Duque de Caxias, na mo-
dalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), noturno.
O projeto “Africanidades e Eu” teve início na Semana da
Consciência Negra, em novembro de 2015, com a proposta
de continuar seu desenvolvimento no ano letivo de 2016,
“conforme oportunizações concedidas pela gestão da unida-
de escolar”39. Neste momento podemos sinalizar que, embo-
176 ra exista uma determinação legal para a inserção da história
e da cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar,
ainda aparece a necessidade de permissão para a execução
da mesma. Isto mostra que a equipe gestora da unidade,
no momento da pesquisa, não tinha consciência de que fa-
lar de África não é um projeto que carece de aprovação ou
negação, e sim de cumprimento (ou não) de uma política
pública.
De acordo com os docentes envolvidos, o objetivo princi-
pal do projeto foi “propiciar o conhecimento da influência e
da importância da África na formação da identidade cultural
do nosso país, mostrando seu percurso histórico e social, de
modo a construir uma conscientização coletiva acerca da he-
terogeneidade cultural e étnica”. É importante ressaltar que
o projeto foi sugerido por uma professora, que chamaremos

39. Esta frase aparece entre aspas por fazer referência à fala de uma professora.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

de Fernanda40, que possui conhecimento teórico mais amplo


acerca da temática abordada. Esta informou ter ciência de
que os conteúdos descritos na lei não devem ser restritos ao
desenvolvimento de projetos, mas que acredita que o proje-
to possibilita que o tema seja apresentado e desenvolvido de
maneira a elucidar a proposta da lei, e assim, criar possibili-
dades de que os conceitos sejam incorporados efetivamente
ao currículo.
A ideia inicial do projeto seria a realização de uma pesqui-
sa que os alunos fariam junto aos professores durante uma
semana, de acordo com os conteúdos que foram divididos
por turma. Como culminância, os alunos realizariam uma
feira temática, durante a semana seguinte à pesquisa, onde
apresentariam seus trabalhos. Ao levar a proposta à equipe 177
gestora da unidade escolar, em um primeiro momento, esta
foi bem recebida.
Através de ações integradas e interdisciplinares, as ativida-
des foram elaboradas pelo corpo docente noturno e os alunos
pesquisaram sobre os seguintes temas:

1º Segmento – desenvolvimento a partir


das áreas integradas:
• Etapa I – “Alfabetização” – pesquisa acerca do assunto
“Raça e posicionamento político”;
• Etapa II – Viagem e consequências – Navio Negreiro;
• Etapa III – Lendas e mitos africanos;
• Turma de alunos surdos – Culinária Afro-brasileira.

40. Nome fictício, pois a mesma não autorizou o uso do seu nome.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

2º Segmento – desenvolvimento a partir das disciplinas:


• Artes – Artes e influências africanas no Brasil;
• Ciências – Corpo, cor e afrobrasilidade;
• Geografia – Características da região africana;
• História – Pindorama;
• Língua portuguesa – Influências em nosso idioma;
• Matemática – Gráficos/Como me considero (trabalhando
com os resultados da pesquisa da turma etapa I);
• Língua inglesa – Notoriedades negras no mundo.

Foi exposta a necessidade do uso de alguns espaços da escola


para a preparação e culminância do projeto, como o auditório
e salas específicas, bem como materiais que precisariam ser
178 utilizados, como projetor, papéis, lápis de cor e tintas. Após a
análise do projeto por parte da orientação pedagógica, alguns
entraves começaram a surgir. O primeiro questionamento fei-
to foi que “parar” as aulas por uma semana para o preparo de
um evento tomaria muito tempo das aulas e os alunos perde-
riam conteúdos, o que foi consentido por alguns professores
que já não se mostravam muito interessados em desenvolver
tal projeto. A professora Fernanda colocou que os alunos não
perderiam conteúdo, pelo contrário, estariam incorporando
aos demais conteúdos curriculares outros indispensáveis para
uma formação plena e contra-hegemônica. Com algumas di-
ficuldades, o projeto foi desenvolvido.
Durante esta semana de pesquisa, alguns docentes não se
mostraram muito dispostos a realizar novas abordagens, não
auxiliando diretamente os alunos. As falas recorrentes eram
no sentido de que eles já tiveram os anos de graduação para
se formar e saber quais os conteúdos deveriam fazer parte do
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

currículo da sua disciplina; que já trabalhavam há muitos


anos da mesma forma, não havendo sentido em mudar estas
práticas. Algumas vezes, a professora Fernanda teve que men-
cionar a lei para enfatizar que não se tratava de uma sugestão
pessoal, e sim de uma determinação legal. Por outro lado,
alguns docentes demonstraram interesse em se aprofundar na
temática além dos conteúdos determinados pelo projeto, per-
cebendo um distanciamento entre estas questões e a formação
que tiveram.
Na semana de apresentação dos trabalhos, a direção infor-
mou que não poderiam ser utilizados espaços “extras”, como o
auditório, a sala de vídeo ou outras salas que não as já ocupa-
das para as aulas, pois o espaço poderia ser “estragado”. Disse
que não precisava tanta mobilização, pois os alunos poderiam 179
apresentar para a sua própria turma, e desta forma não seria
gasto tanto tempo. Mencionou ainda que não compreendia o
porquê de abordar temas como o racismo e a desigualdade,
uma vez que estes não eram problemas daquele contexto es-
colar, e novamente teve o coro de alguns professores.
Assinalamos aqui a necessidade de uma análise mais pon-
tual destas falas. Primeiro no sentido de que, para a coorde-
nação pedagógica e para alguns docentes, não há carência de
se destinar tanto tempo a um assunto “que está fora” dos con-
teúdos já adotados, desconsiderando, assim, a demanda de
formação continuada, colocada no Plano Nacional de Imple-
mentação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educa-
ção das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana. A segunda questão trata-se
da recusa desta equipe pedagógica e de alguns professores a
discutir sobre as epistemologias enraizadas nos currículos e
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

sobre atitudes que naturalizam e reforçam o racismo dentro


da escola, local este que deveria ser o primeiro espaço de des-
construção das desigualdades sociais. A terceira observação e
a mais preocupante se refere ao contexto social destes alunos.
Quando falamos de alunos da EJA, estamos nos referindo a
um quantitativo significativo de pessoas que tiveram que co-
locar seus estudos em segundo plano em detrimento da inser-
ção no mercado de trabalho. Falamos ainda de um número
considerável de jovens e adultos negros, que desde a sua in-
fância são expostos a situação de discriminação racial.

Considerando que jovens e adultos negros representam


a maioria entre aqueles que não tiveram acesso ou fo-
180 ram excluídos da escola, é essencial observar o proposto
nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de Histó-
ria e Cultura Afro-Brasileira e Africana que regulamen-
tam a Lei nº 10.639/03. Por meio do documento, vê-
-se a possibilidade de ampliar o acesso e a permanência
desta população na escola, promovendo o desenvolvi-
mento social, cultural, econômico, individual e coletivo.
(BRASIL, 2013)

Face ao exposto, se abordar as questões concernentes às re-


lações étnico-raciais para crianças e adolescentes tem extrema
importância na constituição de sua identidade, esta aborda-
gem na educação de jovens e adultos se faz emergente, pois
possibilita além do resgate identitário, um resgate emocional,
proporcionando a estes um reconhecimento positivo do seu
pertencimento racial com vistas a uma efetiva representativi-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dade social. Discutir as relações étnico-raciais na educação,


sobretudo na educação de jovens e adultos, é mais que contri-
buir para uma mudança espistêmica, é corroborar com uma
mudança social.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Longe de pretender dar por concluído os debates relativos


às implementações de políticas públicas de ação afirmativa,
é necessário fazer algumas reflexões acerca das questões aqui
apresentadas.
Apesar da Lei 10.639/03 estar em seu décimo terceiro ano
de promulgação, ainda é questionável a sua efetiva implemen- 181
tação dentro das escolas. A dificuldade de se trabalhar a ques-
tão racial, preocupações, receios ainda persistem, e algumas
destas dificuldades, por vezes, não dizem respeito apenas à
falta de conteúdo e fontes de pesquisa; há aquelas relaciona-
das às experiências pessoais, medos, mágoas e insegurança no
trato da temática étnico-racial que não devem ser ignoradas.
Na observação realizada na escola municipal de Duque
de Caxias, foi possível perceber que a iniciativa e a respon-
sabilidade de implementação da Lei, fica a cargo de uma
professora, que milita no espaço escolar na tentativa de tor-
nar prática a política aqui discutida. Docentes como a Fer-
nanda tornam-se agentes da lei em busca da concretização
de práticas antirracistas. Foi possível observar também que a
relevância social desta ação afirmativa ainda não é consenso
entre docentes e equipe pedagógica, o que dificulta que uma
política se torne práxis.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Torna-se necessário que os professores rompam as barreiras


de resistência ao abordar a temática, sejam elas conceituais ou
pessoais. Os educadores precisam refletir sobre suas limitações
com o tema étnico-racial, visando compreender como se deu
a sua experiência enquanto estudante e como isto se reflete
enquanto educadores, reconhecendo que a formação é perma-
nente, e em face disso, é imprescindível que sejam realizadas
novas buscas conceituais. Neste sentido, a formação continua-
da deve envolver todo o corpo docente, fugindo da personifi-
cação da temática, em que um único docente interessado pela
temática fica incumbido de realizar as discussões dentro da
escola. Com o trabalho coletivo, será possível o rompimento
do currículo que até então tem sido eurocentrado.
182 Percebemos que o caráter ideológico forjado pela estrutu-
ra racial sistematizada no Brasil somatiza às questões teóricas
resistências de ordem subjetiva. Assim, muitas vezes a recusa
do educador em mudar as suas práticas vai na contramão não
só de sua formação inicial, mas de sua formação social, sendo
possível afirmar que “a discordância entre o discurso e a re-
alidade, absorvido pela prática no espaço da escola, impossi-
bilita a mobilização coletiva em torno de uma proposta mais
democrática”. (GHEDIN, 2012, p. 32)
Por fim, é importante considerar que não é só de lacu-
nas que se constituem as análises de implementação da Lei
10.639/03. Com as políticas de ação afirmativa, muitas vozes,
como a da professora Fernanda, passaram a ecoar cada vez
mais alto, tornando-se audíveis para aqueles que as ignora-
vam. Embora o ideal seja a erradicação de qualquer manifes-
tação racista, dentro e fora das práticas pedagógicas, é possível
notar uma mudança de cenário no tocante às relações étnico-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

-raciais. Se antes o enfrentamento era pautado no discurso de


uma verdadeira democracia racial, hoje esta luta é amparada
por um dispositivo legal de amplitude federal. Consideran-
do todas as políticas de ação afirmativa e as pesquisas que
avaliam sua implementação, percebe-se um significativo au-
mento da heterogeneidade racial em diversas esferas sociais,
daí a necessidade de continuar discutindo e implementando
práticas antirracistas em todo o território nacional.

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
INVISIBILIDADE E SILENCIAMENTO

Simony Ricci Coelho41


Valéria Paixão de V. Nepomuceno42

INTRODUÇÃO
185

O presente artigo surgiu a partir dos discursos desenvol-


vidos nas aulas da disciplina de Formação de Professores nas
Relações Étnico-Raciais ofertada no âmbito do Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Contextos Con-
temporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (PPGEDUC/UFRRJ). Dessas discus-
sões, emergiram inquietações seguidas de mobilizações e ações
41. Doutoranda em Humanidades, Cultura e Arte pela Unigranrio. Mestre em Letras
e Ciências Humanas pela Unigranrio e integrante do Grupo de Pesquisa em Movimen-
tos Sociais e Culturais (GPMC), pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ).
42. Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio), do Grupo de estudo e pesquisa em Educação Étnico-Racial, coordenado pela
professora doutora Maria Elena Viana Souza, do Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação/Unirio. Graduada em Pedagogia pela Unirio. Especialista em Educação Especial
em Deficiência Mental pela Unirio, em Política de Promoção da Igualdade Racial na
Escola pela UNIAFRO/UFRRJ/IM Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/
Instituto Multidisciplinar de Nova Iguaçu e tutora a distância do curso de Aperfeiçoa-
mento de Educação de Jovens e Adultos para Juventude.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

acerca da Educação das Relações Étnico-Raciais em nossos


contextos educacionais nos quais atuamos, como docente.
Nos debates na referente disciplina, pensávamos em abor-
dar ações efetivas para que não haja o silenciamento que
invisibiliza o racismo e todas as questões étnico-raciais, até
porque é notório, ainda hoje, nos espaços educacionais ocor-
rências de discriminação racial, a qual revela o quanto a for-
mação de professores deve avançar, sendo isto um problema
político-social que impacta neste profissional quanto à quali-
ficação destes futuros docentes. E é justamente devido a estas
questões que chegamos ao tema deste artigo.
Ademais, percebe-se que as novas diretrizes incluídas que
emergem a História da África e Cultura Afro-Brasileira já
186 não é novidade no currículo, nem nos cursos de Formação
de Professores (OLIVEIRA, 2012), entretanto tal questão se
faz pela cultura profissional, que às vezes se esvazia quanto à
inserção de tais preceitos legais, cujas tensões que ocorrem
com os agentes inseridos em sala de aula entre educadores e
educandos que não relacionam escola e sociedade (ARROYO,
2011).
Para a realização desta pesquisa, contamos com a autori-
zação de uma universidade particular na Baixada Fluminense
para desenvolvermos um trabalho sobre a questão em tela,
cuja localidade ainda é considerada como a de maior índice
de população negra. Os cursos que participaram do referido
evento foram: Pedagogia, Biologia e Educação Física, mas,
como delimitação, escolhemos os alunos do Curso de Peda-
gogia para realização desta pesquisa.
Com esse estudo, pensamos nas seguintes questões: Qual
o papel da universidade quanto à reparação social, valoriza-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ção e reconhecimento da ações afirmativas para o negro? Que


práticas educativas são adotadas na formação de professores
quanto à Educação das Relações Étnico-Raciais?
O procedimento metodológico adotado para pesquisa foi
de natureza qualitativa, pois analisaremos o cotidiano nessas
oficinas, coincidindo com aspectos da pesquisa participante.
Refletimos, atuamos e “empoderamos” como nos fala Bran-
dão que “a investigação, a educação e a ação social conver-
tem-se em momentos metodológicos de um único processo
dirigido à transformação social”. (2006, p. 43)
Como perspectiva metodológica, dialogamos com os tex-
tos de Benjamin (1994) que discorre sobre o instrumento
narrativa, “que é uma forma artesanal de comunicação. Ela
mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá- 187
-la dele”. (p. 205) Com base nisso, buscamos o relato de ex-
periência dos alunos do curso de Pedagogia, como forma de
captar as impressões, experiência, representações e opiniões
desses alunos sobre o seu processo de Formação de Professores
acerca das relações étnicos-raciais, na qualidade de contem-
plar o objetivo do nosso estudo nesta pesquisa.
Para tanto, essas questões nesta pesquisa justificam-se pela
inserção na Instituição de Ensino Superior, sendo um espaço
que deve fomentar diálogos e reflexões com a sua comunida-
de; assim, acreditamos que o Curso de Formação de Profes-
sores tem por excelência uma necessidade crucial em relação
ao desenvolvimento dessa temática, na qualidade de repensar
uma forma de reparar socialmente algumas ações de trata-
mento, que violam a identidade e a cultura deste grupo à
margem da sociedade, haja vista que esta formação irá impac-
tar nas escolas da educação básica.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

1 - DESENVOLVIMENTO

1.1 - Políticas Públicas acerca das Relações Étnico-Raciais

É proeminente nesta pesquisa uma investigação aos


documentos e orientações oficiais no âmbito educacional
acerca das Relações Étnico-Raciais, “uma vez que essas
discussões [...] das ações afirmativas não podem ser desfocadas
do horizonte da promoção da igualdade de oportunidades en-
tre os diferentes segmentos da sociedade brasileira” (ROCHA,
2007, p. 76).
Assim, destaca-se a Constituição Federal43 (BRASIL,
1988). Dela emanam todas as leis que irão disciplinar a vida
188 dos cidadãos. O artigo 5º diz que: “todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza (...).” (1988, p. 13)
As leis que partem da Constituição são chamadas de Leis
Complementares. Desta forma, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996) esclarece os fins e
princípios da educação nacional, como o artigo 3º: “O ensino
será ministrado com base nos seguintes princípios, destaca-se
o inciso XII – consideração com a diversidade étnico-racial”
(BRASIL, 1996), como também os artigos 26, 26A e 79B
na Lei 9.394/96, “ que asseguram o direito à igualdade de
condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual
direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira,
além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura na-
cional e dos brasileiros”. (BRASIL, 2004)
Na esfera universitária, temos o Sistema Nacional da Edu-
43. BRASIL, Presidência da República. Constituição da República Federativa Brasileira.
Distrito Federal, 1988.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

cação Superior (SINAES 2003), que assegura a avaliação ins-


titucional da Educação no Ensino Superior, como se apresen-
ta no artigo 1º, em seu primeiro parágrafo, e no inciso III do
segundo parágrafo, que dizem:

O SINAES tem por finalidades a melhoria da qualidade


da educação superior, [...] a promoção do aprofundamen-
to dos compromissos e responsabilidades sociais por meio
da valorização de sua missão pública, da promoção dos
valores democráticos, do respeito à diferença e à diversi-
dade, da afirmação da autonomia e da identidade insti-
tucional.

Pautados ainda nos preceitos legais, nesta pesquisa priori- 189


zamos o diálogo entre a Resolução CNE/CP 1/200644, de 17
de junho de 2004, que institui Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana com
as Leis 10.639/03 e 11.645/08. Na intenção de entender após
as implantações das políticas públicas direcionadas ao âmbito
educacional se atendem às questões pautadas nesta lei de co-
nhecimento da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
como forma de fomentar reparações sociais, reconhecimento
e valorização da identidade, cultura e história dos negros bra-
sileiros, num processo educativo, político e social.
Algumas reflexões sobre a Lei 10.639/03, que altera a Lei
Diretrizes e Bases (LDB) e estabelece a obrigatoriedade do en-
sino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Edu-

44. BRASIL, Ministério de Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Ple-


no. Lei n. 1, de 17 de junho de 2004. Distrito Federal, 2004.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

cação Básica se fazem imprescindíveis para a compreensão da


necessidade da implementação desta lei. Em suas diretrizes é
possível revelar quão necessário se faz:

Ao analisar os dados que apontam as desigualdades entre


brancos e negros na educação, constata-se a necessidade
de políticas específicas que revertam o atual quadro. Os
números são ilustrativos dessa situação. Vejamos: pessoas
negras têm menor número de anos de estudos do que
pessoas brancas (4,2 anos para negros e 6,2 anos para
brancos); na faixa etária de 14 a 15 anos, o índice de
pessoas negras não alfabetizadas é 12% maior do que
o de pessoas brancas na mesma situação; cerca de 15%
190 das crianças brancas entre 10 e 14 anos encontram-se no
mercado de trabalho, enquanto 40,5% das crianças ne-
gras, na mesma faixa etária, vivem essa situação. (BRA-
SIL, 2005, p. 7).

As estatísticas não podem ser ignoradas. É preciso ações


político-pedagógicas para modificá-las. E como disposto na
lei, colocou-se a questão étnico-racial em assunto de agenda
nacional e de importância para que sejam assumidas políticas
públicas afirmativas, de forma democrática, “descentralizada
e transversal”.

É importante salientar que tais políticas têm como meta


o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional,
expressarem visões de mundo próprias, manifestarem
com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos.
É necessário sublinhar que tais políticas têm, também,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

como meta o direito dos negros, assim como de todos


cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos níveis de
ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas,
orientados por professores qualificados para o ensino das
diferentes áreas de conhecimentos; com formação para
lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e
discriminações, sensíveis e capazes de conduzir reedu-
cação relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou
seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asi-
áticos, e povos indígenas. Estas condições materiais das
escolas e de formação de professores são indispensáveis
para uma educação de qualidade, para todos, assim como
o é o reconhecimento e valorização da história, cultura
e identidade dos descendentes de africanos. (BRASIL, 191
2005, p. 10-11)

Neste parecer, é apresentada a importância da formação do


professor para lidar com relações de racismo e discriminação
e saber como desconstruir esse pensamento e ato que agridem
brutalmente o aluno negro. Como cita Souza (2009), “a es-
cola tem um importante papel a cumprir na desconstrução
desses estereótipos criados pela nossa sociedade”. (p. 72). Mas
a autora comenta sobre o que está sendo feito nos cursos de
formação de professores e as expectativas desses futuros pro-
fessores ao trabalharem com as crianças negras, da possibili-
dade de estar atentos e sensíveis às ações de discriminações e
de racismo.
Assim, como as Diretrizes sugerem para a educação das
relações étnico-raciais, “a luta pela superação do racismo e da
discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer educa-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dor, independentemente do seu pertencimento étnico-racial,


crença religiosa ou posição política” (p. 16). Neste sentido,
mesmo sendo imprescindível, é muito difícil um professor,
com suas crenças religiosas e políticas, proporcionar ativida-
des que contrastam com seus princípios, mas há muitas possi-
bilidades para trabalhar com a cultura africana e étnico-racial
sem agredir suas convicções.

1.2 - As Relações Étnico-Raciais no Curso de Formação


de Professores

Um dos grandes prejuízos atualmente na formação docen-


192 te é a ausência da abordagem nos currículos e nas abordagens
com alunos em período de formação inicial acerca dos con-
flitos sociais, que devem ser pontuados, refletidos, questiona-
dos, uma vez que o professor é um sujeito cultural e social,
inserido numa cultura que viola e discrimina grupos minori-
tários, ficando engessados pelas relações de poder.
Arroyo (2012) questiona por que não somos formados
para o conhecimento pleno e somente o hegemônico, o qual
é considerado legítimo, universal em que gera uma miopia
cultural, cujo resultado apresenta-se nas lacunas da formação
de professores que sinaliza uma identidade profissional
alienada, a qual não pode pensar, refletir e criticar, somente
transmitir conhecimentos preestabelecidos.
Assim, “é fato que nem a escola nem os centros de forma-
ção de professores ‘inventaram’, sozinhos, os diversos precon-
ceitos e estereótipos. Isso não os isenta, porém, da necessida-
de de assumirem um posicionamento contra toda e qualquer
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

forma de discriminação”. (GOMES, 2003, p. 160)


Visto isso, percebe-se que abrir espaços para a diversida-
de é um desafio no âmbito educacional, uma vez que essa
questão não pode ser ignorada pelos educadores, sob o risco
de a educação se afastar da sociedade, em que o saber do-
cente torna-se complexo tendo como princípio a diversidade
de culturas em nossas escolas e universidades, consideradas
como “arco-íris de culturas”, pois cada docente deve perceber
a especificidade de cada aluno e sua relação nos grupos de
pertença, verificando a pluralidade existente nas salas de aula.
(MOREIRA, CÂMARA, 2008)
Com base nisso, em relação a abordagem das relações ét-
nico-raciais nos cursos de formação de professores, Oliveira
declara: 193

Ao tomar conhecimento da nova legislação e ao partici-


par de diversas reflexões com docentes em vários estados
brasileiros sobre a Lei, percebi mais nitidamente que ins-
tituir a obrigatoriedade do Ensino de História da África
e dos Negros no Brasil requer um investimento na For-
mação docente e uma problematização dos referenciais
teóricos e pedagógicos dos cursos de graduação e licen-
ciatura. Observei que os cursos de formação de professo-
res parecem partir de uma perspectiva monocultural e da
negação de outras Histórias, criando lacunas na prática
pedagógica que precisam ser preenchidas ou ultrapassadas
diante de novas diretrizes (2012, p. 26).

Inserido nesta questão, o curso de formação de professo-


res deve-se preocupar com a diversidade étnica cultural, na
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

qualidade de promover o pensamento e a reflexão acerca do


currículo, das políticas e práticas no sentido de buscar uma
emancipação que valorize o respeito às diferenças, a história,
a memória e a cultura que devem ser imprescindíveis para
a construção de uma educação mais comprometida com as
causas sociais (GOMES, 2003).
Considerando tal assertiva, aqui sinteticamente abordada,
percebe-se a necessidade de analisar a natureza da educação,
do currículo, da profissionalização docente, e dos saberes pro-
fissionais efetivamente utilizados pelos professores em suas
atividades de ensino visando oferta de “espaços e tempos de
ensino e aprendizagem significativos e desafiantes para os
contextos sociopolíticos e culturais atuais” (CANDAU, 2008,
194 p. 13), num atendimento aos requisitos legais tendo como
desafio as abordagens étnico-raciais elencadas, aos direitos hu-
manos, no ambiente do ensino superior.
Cabe ao educador buscar vivenciar outras pedagogias que
explicitem no processo de sua formação, os impactos do racis-
mo na sociedade. Entendemos que esse movimento pode co-
laborar na compreensão de valores e atitudes como processo
de construção social e cultural (ARROYO, 2000; BRUNER,
2001) que reconhecem a riqueza da diversidade brasileira
como um bem imaterial, em busca de uma sociedade mais
justa e humanizada.

2 - METODOLOGIA

A investigação inicialmente se fez por meio de uma pesqui-


sa bibliográfica de forma interdisciplinar (FAZENDA, 2003),
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

num âmbito histórico, cultural, político, social e educacional


no intuito de buscar um aprofundamento teórico sobre a te-
mática em questão. No segundo momento, dar-se-á conti-
nuidade neste estudo por meio da aplicação da metodologia
qualitativa (BRANDÃO, 2006).
Os sujeitos da pesquisa serão os alunos no Curso de Peda-
gogia e a aplicação dos instrumentos de pesquisa qualitativa
será realizada numa universidade na Baixada Fluminense, no
município de Nova Iguaçu.
Após a realização da pesquisa bibliográfica, foram consti-
tuídas com os alunos do Curso de Pedagogia suas narrativas.
Segundo o filósofo Benjamin (1994) “ a narrativa é uma for-
ma artesanal de comunicação. Ela mergulha a coisa na vida
do narrador para em seguida retirá-la dele”. (p. 205) 195
Ainda a respeito da narrativa, Dutra (2002) colabora:

A consonância com tal modo de pensar a experiência e a


narrativa como a sua expressão levam-nos a eleger a nar-
rativa como uma técnica metodológica apropriada aos es-
tudos que se fundamentam nas ideias fenomenológicas e
existenciais. Através da narrativa podemos nos aproximar
da experiência tal como ela é vivida pelo narrador. (p. 373)

Desta forma, acredita-se que por meio da narrativa exis-


ta a promoção dos discursos dos sujeitos em que são atores
das suas próprias histórias e experiências, cuja função será a
desconstrução e a construção da própria experiência, numa
relação dialógica em torno de uma cumplicidade de dupla
descoberta, e paralelamente a isso se descobre no outro, os
fenômenos revelam-se em nós.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Em seguida, serão descritos os resultados obtidos em cada


instrumento de coleta de dados a ser utilizado nesta pesquisa,
seguido de análise articulada com dimensão teórica e investi-
gação das narrativas realizadas pelos alunos, na qualidade de
pontuar as possíveis lacunas que fomentam as potencialida-
des e fragilidades que perpassam nos Cursos de Formação de
Professores quanto às práticas educativas acerca das Relações
Étnico-Raciais.

2.1 - Relato de experiência participativa: Onde e como


tudo começou...

196 Diante do panorama aqui delineado, o presente estu-


do buscou compreender as práticas educativas acerca da Lei
10.639/03 desenvolvida no Curso de Pedagogia de uma uni-
versidade privada, no município de Nova Iguaçu, Baixada
Fluminense/Rio de Janeiro. Reflexões sobre o conjunto de
atividades desenvolvidas nesta universidade, com o olhar no
estudo de futuros professores perante as relações étnico-ra-
ciais.
Inicialmente foi proposta pelo Curso de Pedagogia a im-
plementação de um projeto a esta universidade, intitulado “A
valorização e o respeito da história, da cultura e memória do
negro”, haja vista que a mesma autorizou a promoção deste
nos dias 18, 19 e 21 de novembro do ano de 2015 de forma
pontual quanto à data comemorativa do Dia da Consciência
Negra. Ainda nesta questão, é relevante mencionar que foi
o primeiro projeto que resultou de um evento a respeito das
relações étnico-raciais nesta universidade.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Para tal projeto, houve a motivação e participação de três


cursos: Pedagogia, Educação Física e Biologia, uma vez que
eles necessitam estar inclusos nesta temática, até mesmo por
se tratar de cursos de formação de professores.
Paralelamente, cada curso se mobilizava dentro da sua sin-
gularidade acadêmica, o qual elencou várias atividades com
seus alunos como forma de mostrar a importância cultural
e social do Negro, durante um mês em sala de aula, em que
em que as bonecas Abayomi foram expostas nos três dias do
evento.
No Curso de Pedagogia, no dia 18/11, houve uma oficina
da boneca Abayomi, realizada pela professora Valéria Paixão
Nepomuceno, que abordou a história e a lenda da boneca.
Na lenda a Abayomi era confeccionada pelas mães escraviza- 197
das durante o tráfico nos navios negreiros, com pedaços de
tecidos de suas saias, como forma de amenizar o sofrimento
das crianças. Abayomi, em iorubá, significa “aquele que traz
felicidade ou alegria”. Após a explanação da história, a pro-
fessora fez, juntamente com os alunos, uma oficina da bone-
ca Abayomi, por meio de confecção artesanal, sem nenhuma
costura, com retalhos de tecido preto para o corpo e colorido
para a roupa.
No dia 19/11 foi a culminância do projeto, com o evento
oferecido para toda a universidade, em que os autores princi-
pais para a elaboração do mesmo foram os alunos dos cursos
de formação de professores, em parceria com seus professores
e coordenação, a partir das ações apresentadas a seguir:
A abertura foi com uma palestra do professor Renato, no
auditório desta universidade, negro e militante, com o tema
“A história da África”, na qualidade de conscientizar, refletir
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

e mobilizar os alunos quanto à valorização e respeito da his-


tória, memória e cultura do Negro. É como Munanga (1996)
diz, apoiando-se em Santos (1983)45: “trata-se de tornar o ne-
gro brasileiro visível através de seu passado recuperado (...).
Embora isso possa parecer uma tarefa de menor importância,
é o primeiro e indispensável passo para promovê-lo à condi-
ção de brasileiro de alto nível” (p. 85).
No curso de Pedagogia, alunos do 1º e do 2º períodos fica-
ram com a valorização da História, da memória e identidade
do negro, desde as imagens estereotipadas até as de celebri-
dades de cunho cultural e social com o tema; já o 3º e o 4º
períodos apresentaram uma peça teatral sobre a intolerância
religiosa, e o interessante foi que vários alunos de princípios
198 religiosos evangélicos participaram ativamente; o 5º apresen-
tou uma dança afro-brasileira mostrando a beleza e a história
da cultura africana; o 6º e o 7º fizeram uma oficina sobre a
história e função social do turbante, após a mesma todos os
participantes da oficina começaram a multiplicar o que havia
aprendido colocando turbante nos convidados que chegaram
ao evento; e o 8º período fez várias atividades para serem tra-
balhadas na infância por meio de contação de história sobre a
beleza negra infantil.
O Curso de Biologia, alunos do 5º e do 6º períodos apre-
sentaram um estudo sobre as plantas medicinais africanas sob
uma perspectiva ancestralidade cultural e religiosa, que con-
tou com a colaboração do Curso de Farmácia, com a compo-
sição de alguns medicamentos naturais, que foram demons-
trados e doados aos convidados.
45. SANTOS, Joel Rufino dos. Le noir brésilien et son histoire. Recherches, Pédagogie
et Culture, Paris, n. 28, 1983.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Já a Educação Física ficou com as danças; os alunos pes-


quisaram sobre elas e, antes de suas apresentações, explicaram
ao público a relevância de cada dança no seu sentido históri-
co-sócio-cultural, sendo as escolhidas para o evento: Macule-
lê, Capoeira, Dança de Rua, Samba, Funk.
No dia 21/11, fechamos o projeto com alunos do 6º e 8º
períodos realizando uma visita no Quilombo São José. Nesta
ocasião os mesmos puderam vivenciar e conhecer aspectos da
sua cultura, história de vida e lutas por respeito e reconheci-
mento de sua identidade e relevância na sociedade.
Para tanto, é mister que a instituição de ensino superior
promova diálogos e reflexões com a sua comunidade, na qua-
lidade de repensar uma forma de reparar socialmente algumas
ações de tratamentos desumanos, que violam a identidade e a 199
cultura deste grupo à margem da sociedade.

2.2 - Da análise e resultados por meio das narrativas


vivenciadas no curso de Pedagogia acerca das relações
étnico-raciais

Aqui neste espaço, pretendemos elucidar os resultados e


a análise desta pesquisa por meio das narrativas dos nossos
alunos do curso de Pedagogia de uma universidade privada da
Baixada Fluminense acerca das relações étnico-raciais.
Em relação ao evento ocorrido na universidade, podemos
destacar a oficina da Boneca Abayomi, a intolerância religiosa
e a visita à Comunidade Quilombola em que os alunos de-
clararam:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Fiquei comovida com a história da boneca e me senti na


obrigação de multiplicar o que aprendi e fiz a mesma ofi-
cina com os meus alunos, e não me esqueci do principal:
falar da causa da boneca. (8º período)

Gostei muito da minha participação na peça teatral sobre


a Intolerância Religiosa, pois apesar de ser evangélico, te-
mos que dar possibilidades de construirmos uma educa-
ção global em que todos possam ser respeitados, seja na
cultura e na religião. (4º período)

Dia Perfeito! Como foi bom passar o dia na comunidade


quilombola adquirindo conhecimentos sobre este povo
200 em relação à história de lutas pelo reconhecimento de
seu território, dor, sofrimento, costumes, crenças. Estes
conhecimentos foram além do que é retratado nos livros
didáticos. (6º período)

Mediante tais declarações sobre o evento vivenciado pe-


los alunos, destacamos Hall (2002, p. 15) o qual menciona
que viver é romper com as condições sociais anteriores e com
fragmentos internos dessas condições, ou seja, com interna-
lizações as quais os sujeitos resistem em manter. É construir
identidades a partir de relações complexas, pois “não pode
ser definida apenas como a experiência de convivência com
a mudança rápida, abrangente e contínua, mas uma forma
altamente reflexiva de vida”.
Quanto o papel da Universidade em relação à reparação
social, valorização e reconhecimento das ações afirmativas
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

para o negro, os alunos negros do Curso de Pedagogia desta


Universidade falaram:

É a primeira vez que me sinto reconhecida por esta uni-


versidade, pois essas questões devem ser mais trabalhadas
em outros momentos em vários espaços. (4º período)

Bom saber que os professores desta universidade estão


ampliando seus olhares a favor da discussão sobre o pro-
blema que consiste na inserção do negro enquanto pessoa
sujeito igual que é. Senti muita falta disto no período da
minha formação. (aluno egresso em 2014)

201
Pode-se dizer que no ensino superior é relevante oferecer
“espaços e tempos de ensino e aprendizagem significativos
e desafiantes aos contextos sociopolíticos e culturais atuais”,
cujo atendimento aos requisitos legais tende a abordagem
das Relações Étnico-Raciais elencadas, aos direitos humanos
(CANDAU, 2008, p. 13).
Para contemplar a nossa pesquisa, buscamos captar as im-
pressões dos alunos de pedagogia em relação às práticas edu-
cativas que são adotadas na formação de professores quanto à
Educação das Relações Étnico-Raciais, e eles narraram:

Este semestre que tivemos um professor que por sinal


negro que trabalhou de forma polêmica as questões so-
bre o respeito e a valorização do negro, não de forma
só histórica, como também em forma de pensarmos so-
bre várias injustiças que ocorrem na sociedade devido
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ações discriminatórias. Infelizmente o que ele deu não foi


necessário para nossas futuras práticas educativas, porque
estamos no último período. Não entendi por que nos ou-
tros períodos não foi abordado da forma que foi agora.
(8º período)

Nas disciplinas de Antropologia e Diversidade Cultural a


história do negro é abordada, mas faltou discutir como de-
vemos relacionar isso entre escola e sociedade. (5º período)

Pensando neste contexto de prática docente, é mister fa-


zer alusão a Arroyo (2011, p. 363) quando enfatiza “que um
dos traços de nossa formação política pouco pesquisada nas
202 relações educação-cidadania é a própria história do reconhe-
cimento da condição de cidadãos a uns coletivos e sua nega-
ção e não reconhecimento aos outros”. Assim, considera-se
importante promover discussões e reflexões nas universidades
sobre os processos em que esses indivíduos foram reconheci-
dos ou se autorreconheceram, ou seja, os coletivos considera-
dos subcidadãos. (ARROYO, 2011)
Essa negação remete-se ao silenciamento que é referente a
invisibilidade das questões raciais histórica e cultural nesses
espaços de formação, que se apresenta não só por falta desses
conhecimentos, bem como por omissão. Ademais, ainda exis-
te a persistência do conformismo de um currículo segregador
e universal, que por muitas vezes silencia os sujeitos que se
encontram à margem da sociedade opressora (CAVALLEIRO,
2000). Desta forma, é relevante elucidar que “a investigação
da temática, [...] envolve a investigação do próprio pensar do
povo. Pensar que não se dá fora dos homens, nem num ho-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

mem só, nem no vazio, mas nos homens e entre os homens, e


sempre referindo a realidade”. (FREIRE, 1987, p. 58)
É por isso que inserirmos o discurso de Munanga (2015)
que acha relevante ensinar a História da África e do Negro no
Brasil na sociedade e na educação brasileira de uma forma sin-
gular, pois esta foi ensinada de forma distorcida, falsificada e
preconceituosa numa perspectiva monocultural e segregadora.
Assim, Boaventura acrescenta:

O objetivo último de uma educação transformadora é


transformar a educação, convertendo-a no processo de
aquisição daquilo que se aprende, mas não se ensina, o
senso comum. O conhecimento só suscita o inconformis-
mo na medida em que se torna senso comum, o saber 203
evidente que não existe separado das práticas que o con-
firmam (apud SILVA, 1996, p.18).

Cabe ressaltar que vivemos numa sociedade complexa,


plural, diversa e desigual. Contudo, não é pertinente estarmos
diante dessa diversidade de forma monocultural e universal
de olhos fechados para essas culturas constituintes da popula-
ção. É neste contexto que as políticas públicas se posicionam
mediante a universidade, na qualidade de emergir a criação
de condições e possibilidades para a inserção da diversidade
cultural e da equidade social no cotidiano educacional.
A cultura de direito vem se construindo como componen-
te de memória dos educandos e educadores, pois quando essa
cultura não se adere à formação plena dos educandos, em
suas totalidades humanas empobrece essa formação inicial,
continuada dos docentes, o que irá impactar nas suas práticas
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

profissionais escolares e não escolares (NÓVOA, 1999).


Assim, é relevante mencionarmos que a comunidade
acadêmica possa abrir espaços e tempos para que os sujei-
tos sociais narrem a sua memória-história como direito de
reconhecimento e valorização de sua cultura na sala de aula,
na relação dos conteúdos e das disciplinas, como forma de
emancipação social.

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

As inquietações que nos impulsionaram à escolha do tema


provêm do entendimento de que a universidade deve ser vis-
204 ta como um cenário de oportunidades emancipatórias, o que
somente é possível se ela for capaz de traçar uma política de
intervenção que contemple uma pedagogia antidiscriminató-
ria e valorativa de especificidades étnico-raciais, ou seja, pro-
motora de emancipação e dos direitos humanos.
Quanto às narrativas analisadas dos alunos do Curso de Pe-
dagogia em relação às questões raciais, verificou-se que, apesar
da obrigatoriedade legal para inclusão no currículo oficial da
rede de ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indí-
gena, contida nas Leis 10.639/03 e 11.645/08 e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana, as temáticas não foram inseridas nestes espaços
de forma que contemplem as necessidades sociais, políticas e
educacionais, uma vez que a mesma geralmente é trabalhada
somente em momentos estanques, como eventos e datas co-
memorativas.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Ademais, as disciplinas indicadas pelos alunos que inserem


aos preceitos legais de tal temática ainda não atendem às ne-
cessidades da formação de professores, sendo assim invisibili-
zada e silenciada a sua história, cultura e identidade. Assim,
esta problemática necessita de uma reconstrução dos saberes
históricos e culturais, em que possa criar movimentos em es-
paços educacionais, no intuito de fomentar diálogos em prol
de ações antirracistas.
Para tanto, há importância em constatar que essa peda-
gogia é para todos os educandos; neste sentido, deveria ser
para os brancos em especial, que também precisam obter a
consciência negra, e assim aprender a respeitar as diferenças
com igualdade. Ainda nos dias de hoje, muitos negros não
se afirmam como negros; eles se dizem morenos, marrom 205
bombom, dentre outras denominações, devido à restrição de
exaltação da cultura negra, e por esse motivo é importante
que os negros se orgulhem de sua origem, para apreenderem
que ser negro, além de ser uma ação política, é se reconhecer,
formando sua identidade, dando continuação ao seu desen-
volvimento, valorizando a cultura africana que faz parte de
sua história.

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

INTERNET E FORMAÇÃO DE PROFESSORES


DE LITERATURAS AFRICANAS,
AFRO-AMERICANAS E AFRO-BRASILEIRAS:
UM ESTUDO DE CASO DA
REVISTA ÁFRICA E AFRICANIDADES

Aline Oliveira Grion46


Nagila Oliveira dos Santos47

211

A proposta deste artigo é discutir e pensar a importância da


formação de professores para a real aplicabilidade da ação afir-
mativa aludida na Lei 10.639/03, assim como pensar a internet
como uma possibilidade de fazer circular informação e ser um
possível meio de formação para os professores. Para além dos
usos institucionalizados de cursos de extensão e pós-graduação
a distância e semipresenciais que são possibilitados pela rede
de computadores, voltamos nosso olhar para os conteúdos dos
periódicos de acesso aberto, partindo de um estudo de caso dos
conteúdos sobre Literaturas Africanas e Afro-Brasileiras, dispo-
nibilizados pela revista África e Africanidades.

46. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Demandas Populares e


Contextos Contemporâneos/UFRRJ.
47. Especialista em África/Brasil: laços e diferenças (UCB). Mestranda do Programa  de Pós-
-Graduação em Educação, Demandas Populares e Contextos Contemporâneos/UFRRJ. 
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Passados treze anos da alteração da Lei 9.394/96 de Dire-


trizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que implementou
a Lei Federal 10.639/03, tornando assim obrigatório o ensino
de história, cultura e literaturas africanas e afro-brasileiras no
currículo da educação básica, percebemos que os debates em
torno da mesma ainda são geradores de reflexões, incertezas
e indefinições dentro dos espaços acadêmicos, escolares e se
estendendo também à sociedade civil.
O trabalho com a temática das relações raciais impõe ou-
tras perspectivas, novas formas de pensar e novas formas de
ver. De modo que a formação dos professores se estrutura
não apenas no aprendizado de outros conteúdos que devem
ser transmitidos aos alunos, mas também na desconstrução de
212 perspectivas e epistemologias que se baseiam na centralidade e
superioridade europeia.
Manifestações negativas frente a este aparato legislativo48
se devem ao fato de que estas mudanças impõem o desafio
de alterar visões de mundo, redimensionar a memória crítica
e enfrentar mitos e preconceitos, assim como incorporar na
história do país e na construção da ideia de nação e nacionali-
dade agentes esquecidos ou que tenham tido sua participação
e memórias abandonadas em nome de uma visão eurocên-
trica, ou seja, incluir outras versões e outros atores sociais no

48. Os aparatos legislativos aos quais nos referimos são: Lei 9.394, de 9 de dezembro
de 1996, relacionada às alterações recentes: Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003; Di-
retrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Ministério da Educação, 2004;
Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, emitidas pelo Mi-
nistério da Educação, em 2006; Lei 11.645, de 10 de março de 2008; Plano Nacional
de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, formu-
lado pelo Ministério da Educação, em 2009.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

currículo escolar. Esses novos conteúdos e perspectivas devem


entrar em todas as disciplinas, mas principalmente, como diz
a lei, na história, na literatura e nas artes.
É preciso ressaltar que a construção e a implementação da
nova perspectiva proposta por esta legislação são tidas como um
marco de lutas e fruto de reivindicações dos movimentos ne-
gros e outros atores envolvidos na luta antirracista. Para garantir
que não seja relegada ao esquecimento, estes atores permane-
cem em disputas de poder e legitimidade nas diferentes esferas,
entretanto, ações institucionais estão aquém do necessário, e a
aplicabilidade desta ação afirmativa se dá a passos lentos.
Somente em 2013, o Ministério da Educação, a partir da
Secretaria de Promoção de Igualdade Racial, instituiu o Plano
Nacional de Implementação das Diretrizes Nacionais Curricu- 213
lares das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana. Este visa contribuir para
que todos os sistemas de ensino executem as determinações
legais, objetivando o enfrentamento das diversas formas de
discriminação racial em nossa sociedade, tendo por eixos es-
tratégicos: a) Fortalecimento do marco legal; b) Política para
a formação de gestores(as) e profissionais de educação; c) Po-
lítica de material didático e paradidático; d) Gestão demo-
crática e mecanismos de participação social; e) Avaliação e
monitoramento; f ) Condições institucionais.
Desde a promulgação da referida lei, o MEC vem tentan-
do sensibilizar e subsidiar a prática de docentes, a partir da
publicação de materiais didáticos, mas o próprio ministério
reconhece que os esforços ainda são insuficientes. A pesqui-
sa nacional “Práticas pedagógicas de trabalho com relações
étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei 10.639/2003”
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

(GOMES, 2013) aponta as dificuldades de implementação


das práticas e conteúdos sugeridos por este dispositivo legal.
Nesse contexto, a formação dos professores para este con-
teúdo e para a educação para as relações étnico-raciais ainda
se apresenta enquanto uma problemática a ser discutida e re-
solvida em todos os níveis de ensino.

FORMAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES


ÉTNICO-RACIAIS: ENTRE A ESCASSEZ DA
FORMAÇÃO INICIAL E A BUSCA INDIVIDUAL

A formação dos professores deveria ser o ponto de partida


214 para a implementação de ações e propostas de mudanças na
educação. Segundo Melo (1999), a formação dos professores
deve ser percebida como um direito e inserida dentro do con-
texto das políticas de valorização da carreira, o que significa
superar o estágio das iniciativas individuais e propor políticas
de governo que visem à formação e atualização destes profis-
sionais, estando em consonância com as novas características
dos alunos e dos novos conteúdos inseridos no currículo.
A autora observa como recorrente o investimento prioritá-
rio na formação de professores em serviço, muitas vezes em
detrimento de uma formação ligada ao direito do professor a
obter uma formação crítica e reflexiva e ter acesso a conhe-
cimentos acadêmicos e científicos. Esse modelo de formação
tende a ser aligeirado, fragmentado e pragmático, voltado
apenas para algumas áreas ou aspectos da formação.
A formação para as relações raciais não se diferencia deste
cenário, tendo como principais características o voluntarismo,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

iniciativas individuais e as “boas intenções” dos professores e


gestores. Esse modelo do “improviso” supera os investimen-
tos na formação dos profissionais, o que gera compreensões
e propostas de intervenção aquém das enumeradas pela Lei
10.639, geralmente ligadas a conteúdos éticos e morais, pre-
terindo os conhecimentos acadêmicos acerca da África, da
importância dos indígenas, africanos e afro-brasileiros na
construção do país. (COELHO, 2010; COELHO, 2013)
Aos professores, é colocada a exigência de que tenham co-
nhecimentos sobre a história, cultura e literatura da África,
dos afro-brasileiros e indígenas, entretanto, esses conhecimen-
tos não são oferecidos de forma satisfatória pelas universida-
des que ainda não reestruturaram seus currículos para que
ofereçam de forma perene e obrigatória a formação para que 215
os futuros profissionais de educação saiam com conhecimen-
tos mínimos acerca dos novos conteúdos propostos, tampou-
co é fornecido aparato reflexivo acerca das relações raciais bra-
sileiras e os significados de uma educação antirracista.49
Dentro desta perspectiva voluntarista e individualista, os
professores que desejam trabalhar com a temática das relações
raciais e o ensino de história, cultura e literaturas africanas e
afro-brasileiras e indígenas têm na internet um aliado no que
diz respeito à obtenção de informação sobre o tema, bem como
exemplos e inspirações para o planejamento de atividades.
Na internet, os profissionais de educação encontram apoio
teórico com artigos acadêmicos que abordem a temática,

49. A análise das grades curriculares dos cursos de licenciatura em Português e


Literaturas de Língua Portuguesa na UERJ, por exemplo, não apresenta disciplinas
específicas. No caso da UFF e da UFRJ, no que se refere à literatura africana, há a oferta
de duas disciplinas obrigatórias.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

além de artigos jornalísticos mais curtos que trazem questões


relacionadas à vivência das relações raciais em sala de aula,
como preconceito e discriminação direcionados a professores
e alunos negros, autoestima da criança negra e opções de tra-
tamento dessas questões.
Os relatos de práticas bem-sucedidas de aplicação da lei tam-
bém ganham cada vez mais espaço, assim como os planos de
aula também são facilmente encontrados na rede. E, com uma
busca um pouco mais refinada, pode ser localizado material de
apoio didático, como filmes, desenhos, contos africanos e in-
dígenas, histórias com personagens de outras cores, bibliografia
de personalidades negras, estudos sobre a História da África
e da participação dos africanos e indígenas na construção do
216 nosso país.
Nessa perspectiva, a internet tem como potencial o auxílio
no que tange a apropriação teórica dos conteúdos e perspecti-
vas que a lei propõe, bem como coloca em diálogo sujeitos que
pensam e produzem práticas relacionadas às relações raciais.

CONTEÚDOS PARA A FORMAÇÃO DOCENTE


NA REVISTA ÁFRICA E AFRICANIDADES

Nascida da iniciativa, em 2008, de um grupo de professo-


res, pesquisadores, estudantes, técnicos e especialistas voluntá-
rios, a revista África e Africanidades (ISSN 1983-2354)50, pe-

50. Em 2012, o periódico obteve, de acordo com o sistema Quali Capes, a classificação
(B5) na área de Letras e Linguística. A revista África e Africanidades não possui vínculo
com instituições formais de ensino ou organizações não governamentais que recebem
apoio de alguma esfera pública do governo. Nágila Oliveira dos Santos, coautora deste
artigo, é criadora e editora do periódico em questão.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

riódico on-line de acesso aberto e gratuito, tem como missão


a divulgação de estudos relativos às temáticas africanas, afro-
-brasileiras e afro-latinas e o subsídio de práticas pedagógi-
cas e formação continuada de professores da educação básica.
Apresenta-se como um dos poucos periódicos nacionais intei-
ramente dedicados a estas temáticas e que agregam conteúdos
acadêmicos, de informação, entretenimento e subsídios para
a prática docente.
Atualmente, o conteúdo encontra-se dividido em quatro
grandes seções, a saber: a) cultura; b) educação; c) história; e)
literatura.
De maio de 2008 a novembro de 2015, a seção Literatura
da revista África e Africanidades se apresenta como um im-
portante subsídio para a formação de docentes, estudantes e 217
pesquisadores, pela variedade e qualidade dos conteúdos, con-
tando com a publicação de pesquisadores brasileiros e estran-
geiros. A revista possui 34 linhas de estudo, sendo seis delas
diretamente relacionadas ao território literário: a) Literatura,
mito e memória; b) Relações raciais em discursos midiáticos e
literários; c) A literatura afro-brasileira e africana para jovens
e crianças; d) Literatura, História e Artes: entrelaçamentos
possíveis; e) Estudos de narrativas: tendências contemporâ-
neas; f ) O comparativismo literário: interdisciplinaridade e
hibridismo.
A seção Literatura51 traz artigos, resenhas e planos de aula.
Didaticamente, divide-se da seguinte forma: a) por países; b)
estudos comparados; c) planos de aula; d) o negro na litera-
tura infantil. Reúne 89 textos sobre literatura africana, afro-

51. www.africaeafricanidades.com.br/literatura
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

-brasileira, literatura afro-americana e representações do ne-


gro na literatura.
Passamos agora a analisar as possibilidades de oferta de
material e subsídios disponibilizados pela revista África e
Africanidades para a formação inicial e continuada de pro-
fessores da área de Literatura, no que se refere à aplicação
da Lei 10.639/03, em cinco partes, a saber: a primeira parte
aborda a oferta de conteúdos sobre literatura africana fora do
território da lusofonia; a segunda está voltada para a análise
da subseção Estudos Comparados; a terceira volta-se para a
oferta de subsídios sobre literatura negra norte-americana; na
quarta parte, são analisados os conteúdos sobre a literatura
africana de língua portuguesa, separada pelos respectivos paí-
218 ses; e na quinta e última parte, os conteúdos sobre a literatura
afro-brasileira são pontos de reflexão.
Como nosso objetivo é analisar a oferta de material dedica-
do à formação de professores, no que se refere aos conteúdos
de Literatura, no âmbito da Lei 10.639, para o ensino médio
e licenciaturas, as subseções O Negro na Literatura Infantil e
Planos de Aula52 não serão objetos deste estudo.
Os textos, em sua maioria, trazem biografias e trechos de
obras, até então, muitos inacessíveis a nós, brasileiros(as), o
que, além de contribuir para a formação inicial e continu-
ada de docentes, pode auxiliá-los na construção de material
didático-pedagógico, em especial para os que atuam com o
terceiro ano do ensino médio e licenciatura em Letras, de for-
ma a ampliar o debate em sala de aula em torno do currículo

52. A seção Plano de Aula reúne os trabalhos finais na área de Literatura do I e II Curso
Mitologias Africanas e Afro-Brasileiras na Sala de Aula, organizado pela revista África e
Africanidades, nas cidades do Rio de Janeiro e Belford Roxo.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

sobre as literaturas africanas e afro-brasileiras. Outro ponto


que merece destaque é a questão imagética da seção Litera-
tura; em geral, optou-se pela seleção e publicação de imagens
dos escritores analisados, contribuindo para que não só suas
obras sejam reconhecidas.
Entre os referenciais teóricos trazidos pelos artigos de au-
toria de pesquisadores e estudantes brasileiros, destaca-se uma
seleção criteriosa, a partir da presença de renomados(as) es-
pecialistas na área de literatura africana e afro-brasileira, tais
como Simone Caputo, Carmem Tindó Secco, Inocência Mat-
ta, Laura Cavalcante Padilha, Maria Tereza Salgado, Maria do
Carmo Sepúlveda, Moema Parente Augel, dentre outros. Des-
ta forma propicia-se, tanto a estudantes como a professores,
o acesso a um arcabouço teórico ainda pouco explorado na 219
formação inicial.
No que se refere à literatura africana, o periódico disponi-
biliza não apenas conteúdos sobre a África Lusófona (Angola,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Prín-
cipe), mas inclui materiais sobre a literatura do Egito e de
Mali. Há espaço ainda para as produções norte-americanas, a
partir de obras do escritor britânico-jamaicano Linton Kwesi
Johnson e da estadunidense Alice Walker.

1) Literatura Africana para além da Lusofonia


• Literatura Egípcia
Os estudos sobre a literatura egípcia são trazidos pela aná-
lise da obra Os pequenos mundos do Edifício Yacoubian, do
escritor Alaa El Aswany, que apresenta um painel dos pro-
blemas enfrentados pela sociedade egípcia contemporânea,
explicitados na obra a partir do debate em torno de temas
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

como estratificação social, violência, sexualidade, política,


pós-colonialismo, relações de poder, aliciamento de jovens ao
islã para a jihad.

• Literatura Malinesa
A produção literária do Mali está presente em artigo dire-
cionado aos estudos sobre o escritor Amadou Hampaté Bâ,
no qual se destaca a valorização da sabedoria dos anciãos ma-
lineses.

2) Literatura Negra Norte-Americana


• Literatura Jamaicana
O diálogo com a literatura negra norte-americana é intro-
220 duzido a partir das obras do poeta britânico-jamaicano Linton
Kwesi Johnson, analisadas em artigo que discute estratégias de
resistência diaspórica, contra-hegemonia e hibridismo cultural
enquanto características dos escritos de Johnson.

3) Estudos Comparados
Na subseção Estudos Comparados, os romances de Paulina
Chiziane (Moçambique) e de Alice Walker (EUA), Niketche:
uma história de poligamia e A cor púrpura, respectivamente,
abrem espaço para discussão sobre a sexualidade feminina e
suas representações. Neste sentido, os docentes podem entrar
em contato com o universo de escritas femininas distintas
que, através de narrativas sobre cotidianos locais, explicitam
questões universais e contemporâneas do universo feminino,
tais como a homoafetividade, a tradição do dote, a repressão
sexual, a poligamia, o machismo, a desigualdade de gênero, a
traição, a exploração e violência sexual. Por outro lado, estes
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

romances trazem uma ressignificação de alguns aspectos da


cultura tradicional de modo a subverter a ordem hegemônica
e subalterna. Falando de subversão à ordem, cabe salientar o
ineditismo de Paulina Chiziane, primeira mulher moçambi-
cana a publicar romances.
O universo feminino e seu encontro com a poesia e a arte
de resistência também são abordados na subseção Estudos
Comparados, a partir de artigo que elege os entrelaçamentos
possíveis do poema “A herança”– publicado no livro O útero
da casa, da santomense Conceição Lima – com o quadro Xô,
pardal – Xô Manel Garçal, da cabo-verdiana Luísa Queiroz.
As obras de Conceição Lima são marcadas por forte plastici-
dade, elevado rigor estético e escolha lexical, como nos apon-
ta Saraiva (2010), apresentando-se como uma interessante e 221
importante seleção para abordagem sobre a literatura africana
em sala de aula. O poema em questão se aproxima da arte de
Luísa Queiroz pelo uso de metáforas e polissemias, bem como
pela busca da emancipação política e recorrência à memória.
As narrativas poéticas da brasileira Miriam Alves e da san-
tomense Conceição Lima, a partir do artigo de Silva (2009),
convocam-nos a refletir sobre o lugar das mulheres numa li-
teratura marcadamente masculina, e de que forma as culturas
em que estão inseridas refletem em seus fazeres literários, em
especial quando os temas abordados envolvem a questão fe-
minina negra.
Confluências entre memória lírica, infância e intertextua-
lidades nos poemas do angolano Ernesto Lara e da brasilei-
ra Cora Coralina também ganham destaque nesta subseção,
de forma a subsidiar a formação de docentes e estudantes.
Ambos os autores trazem em seus poemas o rememorar do
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

passado, através da vivência da infância e sua reconstrução


mítica. A ausência paterna e a repressão de educação patriar-
cal também são temas comuns nos poemas analisados, assim
como a memória coletiva. Chaves (2007) aponta o uso da
recorrência à memória coletiva na poesia angolana como uma
característica deste espaço, dialogando com a tradição e diver-
sos aspectos da cultura.
Ainda no que tange aos estudos comparados, a revista
África e Africanidades apresenta artigo no qual as obras fic-
cionais o Auto da compadecida, do brasileiro Ariano Suassuna
e alimentada pelas artes circense e popular, e Quem me dera
ser onda, que resgata o período de distopia do pós-indepen-
dência, de autoria do angolano Manuel Rui, como objetos de
222 análise crítica, no que se refere ao uso do discurso literário, do
simbólico, das paisagens e dos personagens para demonstrar o
sonho como forma de resistência à miséria, à fome, a intrin-
cadas relações de poder marcadas pela opressão.
A estrutura social angolana das primeiras décadas do sécu-
lo XX, durante o regime ditatorial salazarista, em contraponto
com a divulgação da imprensa oficial da época, é explorada a
partir do artigo sobre o livro Viragem, de Castro Soromenho.
Esta obra de ficção denuncia a exploração e os abusos de po-
der cometidos pelos administradores coloniais. Neste sentido,
a partir do material disponibilizado no periódico, os docentes
terão acesso à obra de Soromenho, influenciada pelo movi-
mento literário neorrealista português, mas que, ao mesmo
tempo, é marcadamente uma ficção africana.
O estudo do movimento modernista no Brasil pode se
apresentar como um caminho introdutório do conteúdo so-
bre a literatura africana em sala de aula, como apresenta o
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

artigo de Santos (2009), na subseção Estudos Comparados.


Neste, o autor destaca a relevância das produções dos moder-
nistas brasileiros, tais como Manuel Bandeira, Carlos Drum-
mond de Andrade, Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto,
para o movimento literário africano lusófono. O modernista
Manuel Bandeira é apontado por Santos (2009) como a prin-
cipal referência para o surgimento do movimento evasionista
ou pasargadista em Cabo Verde, que teve entre seus principais
nomes Jorge Barbosa e Manuel Lopes, fundadores da revista
Claridade. O evasionismo, em Cabo Verde, foi um movimen-
to tão marcante que fora capaz de propiciar um movimento
de negação ao mesmo, o antievasionismo, no qual se destaca
Ovídio Martins.
O artigo traz ainda um panorama da literatura africana de 223
língua portuguesa a partir da busca pela libertação e de iden-
tidade, presente no movimento de negritude, que teve como
líderes Léopold Sédar Senghor (Senegal), Aimé Fernand Da-
vid Césaire (Martinica) e Léon-Gontran Damas (Guiana
Francesa), a partir de meados da década de 1930, e destaca as
principais revistas e antologias. Neste sentido, encontramos
reflexões e trechos de João Tenreiro (São Tomé e Príncipe),
Mario Pinto de Andrade (Angola), Agostinho Neto (Angola),
Viriato da Cruz (Angola), José Craveirinha (Moçambique),
Germano Almeida (Cabo Verde), Corsino Fortes (Cabo Ver-
de), nos quais destacamos forte influência da literatura brasi-
leira.
Reflexões sobre o regionalismo literário e denúncia da
pobreza associada às secas do Nordeste brasileiro e de Cabo
Verde são trazidos a partir da análise das obras de Graciliano
Ramos e Manoel Lopes.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

4) Literatura da África Lusófona


• Angola
O subsídio para a formação de professores, no que se re-
fere à literatura angolana, encontra-se organizado a partir de
doze artigos e uma resenha, destacando os principais escrito-
res contemporâneos.
Professores podem, a partir da resenha do livro A formação
do romance angolano, da escritora brasileira Rita Chaves, ter
acesso a um importante material introdutório sobre o tema.
Essa obra é um marco nos estudos sobre a literatura africana
no Brasil, em razão de sua qualidade e ineditismo, ao discutir
grandes autores como Assis Júnior, Castro Soromenho, José
Luandino Vieira e Oscar Ribas.
224 A obra de Luandino Vieira também é revisitada em artigo
de Crossariol (2009), que analisa a novela A verdadeira vida
de Domingos Xavier, na qual pode-se destacar a desmitificação
da produção literária divulgada pelo Estado Novo. Publicada
logo após a independência, a novela retrata a luta pela criação
e fortalecimento de um ethos angolano num contexto de luta
pela liberdade.
A construção de uma angolanidade capaz de romper com
os estereótipos do colonialismo, os diálogos e conflitos entre
tradição x modernidade, bem como as representações e rea-
propriações de identidades históricas, ficcionais e sociocultu-
rais são ressaltadas a partir de artigos que analisam os discur-
sos presentes nas obras A gloriosa família, Parábola do cágado
velho e Geração da utopia, de Pepetela.
A oposição entre as narrativas literárias no Estado Novo e
pós-independência também é retratada em artigo que analisa a
poética de Ruy Duarte de Carvalho. Este aborda o corpo ne-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

gro a partir de uma perspectiva de resistência aos variados me-


canismos de silenciamento impostos pelas forças hegemônicas.
A presença da violência na literatura angolana, como sa-
lienta Silva (2008), vem se colocando enquanto um tema re-
corrente e pode ser estudada a partir das reflexões em torno
da literatura de Jacques dos Santos, em artigo que traz uma
análise crítica da obra Kasakas & Cardeais, três estórias.
Observa-se entre os artigos e resenhas publicados certa re-
corrência aos estudos sobre as obras do escritor Ondjaki. Sua
popularização entre estudantes e professores brasileiros deve-
-se, além de sua qualidade literária, à facilidade de acesso a
sua obra, uma vez que, residente no Brasil desde 2007, teve
diversos livros publicados por editoras brasileiras e vem par-
ticipando de diversos seminários, congressos e eventos lite- 225
rários. Nos estudos trazidos pelo periódico sobre a literatura
de Ondjaki, destaca-se o forte encontro e diálogo entre orali-
dade e literatura, tradição e modernidade, memória coletiva,
reinvenções literárias e sociais. Neste sentido, são objetos de
análise as seguintes obras: Quantas madrugadas tem a noite?,
Bom dia camaradas, Actu sanguíneu, E se amanhã o medo, Mo-
mentos de aqui, O assobiador, O segredo húmido da lesma &
outras descoisas, Os da minha rua e Materiais para confecção de
um espanador de tristezas e AvóDezanoze e o segredo do soviéti-
co. As análises trazidas pela revista mostram um escritor com
forte capacidade de diálogo intercultural, a partir de recorren-
tes citações à poetas, escritores e músicos, entre muitos brasi-
leiros. Partindo dos estudos do território literário de Ondjaki,
podemos também percorrer parte da história, da cultura e
da memória coletiva angolana, ao mesmo tempo que este se
mostra em franco diálogo com uma visão cosmopolita.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Cabe destacar que artigos sobre a escritora angolana Ana


Paula Tavares encontram-se inseridos na seção Estudos Com-
parados, a partir da análise dos diálogos desta com as brasi-
leiras Conceição Evaristo e Miriam Alves, e com a santomen-
se Conceição Lima. A representação da literatura feminina
angolana entre as publicações ainda se apresenta como uma
lacuna a ser preenchida, na qual devem merecer destaque, por
exemplo, as escritoras Amélia Dalambola, Margarida Paredes,
Carla Queiroz e Maria Selestina Fernandes.

• Cabo Verde
Cabe destacar que a revista, neste encontro com a literatura
cabo-verdiana, que em sua maioria traz um intercambiamen-
226 to com a história e a cultura locais, a partir do que podemos
denominar de memória poética, há grande preocupação em
dar voz a figuras femininas dentro de um território literário
marcado pelo gênero masculino. Sendo assim, estudos sobre
as escritoras Vera Duarte, Dina Salústio, Carlota de Barros,
Margarida Fontes, Maria Helena Sato e Paula Vasconcelos
introduzem uma série de inquietações sobre as condições hu-
manas, em especial as femininas, trazendo novos olhares a
partir da abordagem sobre questões sociais, cujos agentes são
femininos.
Em 2011, foi publicada Cabo Verde: antologia de poesia
contemporânea, organizada por Ricardo Riso e com ilustra-
ção dos artistas cabo-verdianos Abraão Vicente e Mito Elias,
da qual participaram treze escritores e escritoras, a saber: An-
tónio de Névada, Carlota de Barros, Danny Spínola, Dina
Salústio, Filinto Elísio, José Luís Hopffer C. Almada, Marga-
rida Fontes, Maria Helena Sato, Mario Lucio Sousa, Oswal-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

do Osório, Paula Vasconcelos, Vasco Martins e Vera Duarte.


Estes são alguns que representam a recente produção poética
cabo-verdiana, marcada por um amadurecimento que se ex-
plicita a partir das pluralidades de temática, estética e formas.
Além desta antologia, no período entre 2008 a 2015, foram
publicados doze artigos sobre a literatura cabo-verdiana.
O periódico reúne ainda republicações ou publicações iné-
ditas enviadas por diversos(as) escritores(as) de Cabo Verde.
Neste sentido, a revista África e Africanidades não apenas
apresenta biografias e obras sobre a literatura do arquipélago,
mas dá voz à mesma, a partir da participação de seus agentes
com a publicação de artigos, memórias e poesias.
Entre as republicações, merece destaque Antonio Pedro: a
saga islenha de um poeta de cabo-verdianidade bissexta vista por 227
Dionísio de Deus y Fontana, de autoria de José Luís Hopffer
C. Almada e publicado originalmente em 1987, na revista
Fragmentos (Cabo Verde), e em 2010 e 2011 em Portugal.
Almada (2011), a partir de uma bela homenagem ao poeta,
dramaturgo e artista plástico António Pedro, nos traz um dis-
curso histórico e poético sobre o arquipélago e ressalta, entre
outros temas, as reiteradas tentativas de expropriação da iden-
tidade cultural da população negra desde o início da coloni-
zação, bem como os movimentos de resistência, entre os quais
podemos destacar os processos de insalurização, crioulização e
o movimento claridoso, tendo como pano de fundo os coti-
dianos vivenciados nas ilhas.
A obra Praianas – Revisitações do tempo e da cidade, de Ho-
pffer Almada, é tema de análise num dos artigos da edição
número 8, e oferece um panorama sobre o caráter multiface-
tado de Almada, que tem como uma de suas peculiaridades
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

o fato de recorrer a diversos heteronômios; muitos o acom-


panham desde a década de 1970 para dar conta de olhares
diversificados e diferenciados sobre o presente e o passado de
Cabo Verde. O artigo de Almada (2011) ainda merece desta-
que pela variedade de citações de trechos de outros autores re-
levantes para a construção da literatura cabo-verdiana. Neste
sentido, o escritor nos coloca em contato com o universo de
agentes históricos da poesia e prosa de Cabo Verde, tais como
Mário Fonseca, Kaoberdiano Dambará e Ovídio Martins –
que trazem uma poética de intervenção social –, ensaios de
Gabriel Mariano, e citações de obras e personagens mais lite-
rários, como as de Onésimo Silveira.
Os valores comunitários da sociedade cabo-verdiana po-
228 dem ser discutidos, por exemplo, a partir do artigo “Os ca-
minhos do amor filial em Os dois irmãos, de Germano de
Almeida”, trazendo uma análise sobre a importância da figura
paterna e da preservação da honra no desenrolar da narrativa.
Assim, docentes podem recorrer ao uso deste artigo para pro-
blematizar dualidades existentes na sociedade cabo-verdiana,
marcada pelos conflitos tradição x modernidade, espaço agrá-
rio x urbanização, isolamento x comunicação, emigração x
permanência.
Num contexto de acirramento dos debates em torno do
processo de emigração, a literatura deste arquipélago se apre-
senta como um subsídio para introduzir o tema em sala de
aula, uma vez que tal fenômeno é inerente à cultura cabo-
-verdiana e está, de forma recorrente, presente em sua litera-
tura. Em “A emigração em Cabo Verde: olhar contemporâneo
das obras do artista plástico Abraão Vicente renova tema caro
à literatura do arquipélago”, podemos encontrar um debate
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

crítico sobre a emigração contemporânea no país. Segundo


Riso (2009)

A insularidade de Cabo Verde impôs ao ilhéu os dilemas


“querer ficar e ter que partir” e/ou “ter que partir e querer
ficar” em razão das condições adversas do arquipélago,
ora devido à geografia e ao clima desfavorável, ora com
situações políticas como o colonialismo português no
passado, e as desigualdades sociais e econômicas que a in-
dependência não conseguiu resolver. (RISO, 2009, p. 1)

Quanto à presença deste tema na literatura, Riso (2009)


acrescenta que “disseminadas na sua literatura, a evasão e a
emigração foram temas que percorreram todo o século XX, 229
gerando profundas polêmicas entre os escritores”; dentre estas
podemos citar a constante acusação dos escritores claridosos de
serem evasivos por não assumirem uma crítica explícita ao regi-
me colonial. O artigo constrói um histórico do percurso da li-
teratura cabo-verdiana, a partir da revista Claridade, na década
de 1930, seguindo os principais acontecimentos da sociedade e
o diálogo com as transformações na literatura e seus agentes. E
ainda dialoga com as obras de Abraão Vicente em torno da di-
áspora cabo-verdiana, ao apresentar as séries “Retratos” e “Pas-
saportes Frames”, no qual o artista apropria-se do passaporte,
objeto de desejo entre os moradores do arquipélago.

• Guiné-Bissau
A literatura guineense é apresentada a partir de sua for-
te ligação com a oralidade presente nas figuras de narradores
griots, trazidos pelas reflexões em torno das obras Soneá: his-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

tórias e passadas que eu ouvi contar I; e Djênia: histórias e pas-


sadas que eu ouvi contar II, da escritora Odete Semedo, assim
como de A última tragédia, do escritor Abdulai Sila.

• Moçambique
A revista África e Africanidades traz vinte e quatro con-
teúdos sobre a literatura moçambicana, dentre os quais se
destaca “Moçambique hoje: Antologia da novíssima poesia mo-
çambicana” que conta com a participação de jovens escritores
nascidos após os anos 1970 – Alex Dau, Andes Chivangue,
Chagas Levene, Domi Chirongo, Manecas Cândido, Mbate
Pedro, Rinkel, Rogério Manjate, Sangare Okapi, Tânia Tomé
– e de Armando Artur, representante da geração Charrua.
230 Este trabalho organizado por Ricardo Riso apresenta aos lei-
tores não só um pouco da literatura contemporânea angolana,
mas também de sua arte, a partir de ilustrações de João Paulo
Quehá e de fotografias de Tomas Cumbana.
As análises em torno dos romances de Mia Couto, um dos
escritores do continente africano mais conhecidos e publicados
no Brasil, destacam a presença de uma literatura com forte pre-
sença do fantástico, sendo este carregado de trocadilhos, dita-
dos populares e provérbios que expressam a oralidade, a ances-
tralidade e a cultura popular moçambicana. Os textos também
apresentam um escritor com forte renúncia ao maniqueísmo,
tão presente na visão ocidental a que estamos acostumados; e
de uma literatura que sabe jogar simultaneamente com a his-
tória e a ficção, sendo rica em metáforas, signos, significantes
e reconstruções semânticas, morfossintáticas; e históricas, prin-
cipalmente na abordagem da identidade nacional. Ao todo são
disponibilizados onze artigos sobre as obras de Mia Couto.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

A literatura de Khosa é apresentada aos leitores, a partir de


uma análise do romance histórico Ualalapi. Neste emergem
questões em torno de disputas pelo poder, manipulação, mo-
dificação de regras e das tradições moçambicanas, do século
XIX (1884-1898), sendo frequente a recorrência aos provér-
bios populares e outras estratégias do autor para dar vida à
oralidade.
Abordagens em torno dos mecanismos de opressão e de
resistência feminina, bem como do conflito entre moderni-
dade e tradição em terras moçambicanas, estão presentes, por
exemplo, em artigos que trazem aos leitores os escritores Su-
leiman Cassamo e Paulina Chiziane.
Nesta subseção, são também disponibilizados estudos em
torno das obras de escritores como Glória de Sant’Anna, 231
Nelson Saúte, Eduardo White, Domi Chirongo, João Paulo
Borges Coelho, Luís Bernardo Honwana e Noémia de Sousa.

• São Tomé e Príncipe


Nesta subseção, a literatura santomense é representada pela
poesia com forte crítica social e um eu lírico inquietante de
autoria de Conceição Lima, a partir de reflexões sobre O útero
da casa, obra publicada no período pós-independência, sendo
esta repleta de metáforas em torno do passado e dos rumos
da nação.

5) Literatura Afro-brasileira
O encontro entre literatura, religiosidade e oralidade de
matriz africana e afro-brasileira é trazido aos leitores a partir
de estudos de Silva (2010) em torno dos contos de Mãe Be-
ata de Yemonjá, que refletem sobre valores, costumes e tra-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dições do povo de santo e da cultura dos orixás. A oralidade


afro-brasileira também é tema em debate em artigo de Yahn
(2010) que revela o diálogo entre a capoeira angola e a lite-
ratura popular, relacionando-o com o universo da Literatura
de Cordel e destacando figuras como Pedro Cem, Riachão,
Besouro, Pedro Mineiro, Valente Vilela, entre outros; de Jú-
nior (2008) que analisa a disputa – gênero poético típico do
sertanejo – a partir dos festejos e tradições sincréticas da Co-
munidade Quilombola Kalunga. Artigo de Sampaio (2008)
destaca a importância e presença da oralidade afro-brasileira
e africana, a partir das letras de música de grandes intérpretes
brasileiros, como Virgínia Rodrigues, Maria Bethânia, Dori-
val Caymmi, entre outros.
232 As biografias e obras de escritores e militantes afro-brasilei-
ros como Solano Trindade, Cuti, Conceição Evaristo, Miriam
Alves, Oliveira Silveira, Severo D’Acelino, Abdias Nascimento
ganham destaque em diversos artigos que buscam apresentar
e discutir a produção literária afro-brasileira enquanto instru-
mento de resistência, denúncia, ressignificação, construção de
identidades, valorização da memória e do legado afrodescen-
dente, bem como de diálogo com o mundo e com questões
contemporâneas para além das diaspóricas.
Os entrelaçamentos possíveis da música com a literatura
são temas recorrentes em diversos estudos trazidos pelo pe-
riódico, como, por exemplo, Moutinho (2015), ao abordar
o samba enquanto fonte de informação, de patrimônio e de
relações humanas e históricas; e ressalta os processos de resis-
tência, ressignificação, silenciamentos e invisibilidades.
Nesta seção também há espaço para a publicação de uma sé-
rie de poemas de novos escritores em torno das temáticas negras.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São muitas as dificuldades encontradas nestes treze anos de


uma proposta nova que desafia quinhentos de perspectiva de
história e epistemologia única. A formação docente se apre-
senta como um grande desafio, desde as licenciaturas até os
programas de pós-graduação, que apresentam poucas linhas
de estudo diretamente ligadas à educação para as relações
étnico-raciais.
Entretanto, embora não possa ser percebida como um úni-
co meio de formação, é preciso que se tenha em vista que
a internet oferece possibilidades para que os educadores que
tenham a intenção de pensar a educação a partir de uma per-
cepção que leve em conta outras epistemologias, para além da 233
europeia, encontrem materiais que subsidiem a sua prática e
construção teórica sobre o tema.
A exemplo do que observamos na revista África e
Africanidades, encontramos na internet educadores e/ou pes-
quisadores interessados em oferecer subsídio à prática docente
de forma gratuita, assim como existe uma audiência de educa-
dores e/ou pesquisadores que encontram, nesta mesma rede,
uma série de possibilidades de ampliar seus conhecimentos
e se colocar em diálogo com outros que também têm como
compromisso a aplicabilidade da Lei 10.639 e a construção
de uma educação que pense e questione as relações raciais da
forma como são colocadas no contexto brasileiro.
No que se refere à formação de docentes na área de Lite-
ratura, o acervo oferecido pela revista África e Africanidades
pode contribuir de forma significativa para preencher parte
desta lacuna deixada pela ausência de formação institucional,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ao divulgar de forma gratuita as produções literárias africanas,


afro-brasileiras e afro-americanas, quebrando as barreiras ainda
impostas pela não publicação de muitas destas obras por edi-
toras nacionais e de circulação destas obras no Brasil, incluin-
do os escritores nacionais; e pelo incentivo e subsídio teórico
para a formação de novos pesquisadores sobre a temática.

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UFPR

236
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

COMO APRENDEMOS A SER MORENO,


MORENINHO, PARDO...
MEMÓRIAS E NARRATIVAS DE UM
APRENDIZADO IMPERCEPTÍVEL AOS OLHOS

Adilson dos Santos53


Tarciso Manfrenatti de Souza54

237
1. ANTES DE MAIS NADA

Gostaríamos de dizer que ficamos imensamente honrados


com o convite feito pelo professor doutor Luiz Fernandes
de Oliveira para escrever este artigo, a fim de colaborar com
as discussões e propostas que foram debatidas ao longo do
curso Formação Docente e Relações Étnico-Raciais, uma vez
53. Professor de Língua Portuguesa da Secretaria Estatual de Educação do Rio de Ja-
neiro (SEEDUC/RJ). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Con-
textos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ). Participante
do Grupo de Pesquisa Educação, Sociedade do Conhecimento e Conexões Culturais,
coordenado pelo professor doutor Valter Filé (DES/UFRRJ). E-mail: adisantos37@
gmail.com
54. Professor de Língua Portuguesa da Secretaria Estatual de Educação do Rio de Ja-
neiro (SEEDUC/RJ). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Con-
textos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ). Participante
do Grupo de Pesquisa Educação, Sociedade do Conhecimento e Conexões Culturais,
coordenado pelo professor doutor Valter Filé (DES/UFRRJ) e do Grupo de Pesquisa
em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturais, coordenado pelo professor dou-
tor Luiz Fernandes de Oliveira (DES/UFRRJ). E-mail: tarciso.literatura@gmail.com
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

que este artigo tem por objetivo “ampliar as possibilidades de


nos relacionarmos com as diferenças, principalmente para o
reconhecimento do racismo brasileiro e as possibilidades de
eliminação dos seus efeitos nefastos para com negros e afro-
descendentes”. (FILÉ, 2013, p. 4)
Inicialmente, precisamos saber que, quando falamos das
“relações raciais” no Brasil, estamos falando de algo extrema-
mente complexo, porque em nossa sociedade tanto o racismo
quanto o preconceito e a discriminação estão envolvidos em
uma rede de muitos fios e engodos, que se utilizam da dissi-
mulação para que tais assuntos sejam ora negados/silenciados,
ora vistos como um “tabu”, ora “tolerados” com a justificativa
cristã/humanista de que “todos somos iguais” porque perten-
238 cemos a uma “democracia racial”.
No entanto, há uma ardilosa e sutil armadilha ao dizer que
todos somos iguais, pois tal expressão sintetiza aquilo que foi
universalmente convencionado como ideal de ser humano;
ou seja, ser, fundamentalmente, branco, europeu, proprie-
tário, cristão e heterossexual. Sendo assim, todos os sujeitos
considerados “outros” – aqueles e aquelas que escapam da re-
ferência hegemônica de ser humano – são emparedados pela
educação formal ou por outros espaços educativos (família,
igreja, mídia, trabalho, rua etc.) a se conformarem, a se com-
portarem como “todo mundo”.
Da mesma forma, quando falamos em “formação do-
cente”, não podemos nos esquecer de que os cursos de for-
mação – cursos normais/cursos de formação de professores
(nível médio) ou os cursos de licenciatura (nível superior)
–, infelizmente, também têm acompanhado esse processo
de naturalização da subalternização e silenciamento/negação
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dos negros, uma vez que temos, historicamente, uma esco-


la pública brasileira – e por que não podemos dizer uma
educação – “monocromática, monocultural e monofônica”.
(FILÉ, 2013, p. 3)
Embora em meio a tantos entraves, avançamos! Hoje, por
exemplo, temos a Lei 10.639/03 circulando pelas escolas e
universidades, diversos cursos são oferecidos (cursos livres,
cursos de extensão universitária, cursos de pós-graduação –
lato sensu e stricto sensu); em contrapartida, na maioria das
vezes, as relações étnico-raciais nestes espaços-tempos ainda são
desconsideradas ou tratadas apenas como temática, ou seja,
vistas como mais um componente curricular distanciado dos
sujeitos e de seus problemas.
Tal exemplo vai de encontro à perspectiva – adotada por 239
nós neste artigo – proposta por Jorge Larrosa (1994), pois ele
irá dizer que podemos ter o conhecimento; no entanto, ele é
algo exterior a nós, ou seja, podemos estar bem informados
sobre algo; porém, nada nos comove em nosso íntimo. Assim,
continuamos os mesmos: nossas aulas ainda continuam as
mesmas, presas ao conteúdo programático previamente esta-
belecido; entramos ainda em sala de aula esperando uma tur-
ma homogênea, isto é, sem singularidades; ainda esperamos
ter alunos “bem” assíduos, que cheguem no horário, “bem”
asseados, com famílias “bem” estruturadas. Isso é, antes de
mais nada, o reflexo dessa “formação prescritiva, tecnocrática,
asséptica e que, fundamentalmente, se sabe antes que aconte-
ça”. (RIBETTO, 2011, p. 114)
A fim de quebrar essa visão hegemônica de formação ou
essa formação “maior”, Larrosa (2002) vai pensar na formação
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

sem ter uma ideia prescritiva de seu desenvolvimento


nem um modelo normativo de sua realização. Algo assim
como um devir plural e criativo sem padrão e sem proje-
to, sem uma ideia prescritiva do seu itinerário e sem uma
ideia normativa, autoritária e excludente de seu resultado,
disso que os clássicos chamavam humanidade ou chegar a
ser plenamente humano. (p. 135)

Assim, pretendemos propor uma alternativa de pensar a


formação docente mais sintonizada com as complexas deman-
das das relações étnico-raciais. Para isso, precisamos pensar
em uma formação que não queira “transformar o outro em
alguma coisa que possamos controlar, nomear, explicar...logo”
240 (RIBETTO, 2011, p. 114); sendo assim, acreditamos em um
fazer pedagógico em que o educando55 (re)elabore uma rela-
ção reflexiva consigo mesmo, muito mais importante do que
aprender algo “exterior”, ou seja, um corpo de conhecimento.
Desse modo, acreditamos que a “Pedagogia Narrativa”
(FILÉ, 2000) cumpra com as complexas demandas entre as
“relações étnico-raciais” e a “formação docente”, como alerta-
mos anteriormente.
Segundo a Pedagogia Narrativa, a formação é um processo
de en-tramar histórias, que pressupõe que os acontecimentos
vividos-ouvidos (vistos, lidos) – possam ser in-corporados para
a re-elaboração das nossas tramas, dos sentidos que podemos
criar para a compreensão de nós mesmos e do mundo (FILÉ,
2000, p. 16).

55. Aqui interpretamos educando, enquanto o aluno professor, no dizer de Ferraço (2003),
o professor que é um eterno aluno, aprendiz; pois (re)aprende, se (re)inventa, se (trans)
forma com a sua prática, com o cotidiano, com os alunos, com a escola, com a vida.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Sendo assim, as narrativas autobiográficas que se seguem:


Meu nariz, minha cor: metonímias do corpo negro e Narrativas
de como aprendi a ser branco, escritas, respectivamente, pelos
professores Adilson Santos e Tarciso Manfrenatti de Souza,
são narrativas de

sujeitos que passaram/passam pelos sistemas escolares e


que viveram experiências importantes, experiências essas
que nos ajudam na compreensão daquilo que acontece
cotidianamente nas relações pedagógicas, nos encontros
interculturais, naquilo que cada um(a) precisa criar para
ir adiante. […] Tais experiências são também histórias-
-capítulos da educação brasileira. […] Histórias vividas
por afro-brasileiros nas suas relações com a educação num 241
mundo preparado para os brancos. (FILÉ, 2013, p. 5-6)

2. MEU NARIZ, MINHA COR: METONÍMIAS


DO CORPO NEGRO

Ester Gonçalves Santos, minha avó paterna, é a minha re-


ferência quando o assunto é negritude. O espelho que devol-
ve o meu reflexo, projeta lembranças daquela senhora negra
com quem eu perambulava nas periferias de Salvador na dé-
cada de 1980.
Andávamos longas horas pela Feira de São Joaquim para
“fazer render” o dinheiro das compras e, consequentemente,
tentar garantir as duas ou três refeições diárias das mais de
dez crianças que, por vários motivos, moravam lá na casa da
dona Ester.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Ela passava a maior parte de seu tempo cuidando de netos,


que eram “hospedados” lá em sua casa; até mesmo aqueles
que não fossem parentes tinham vaga. Lembro-me de que ela
passava e lavava roupa para fora e assim tentava dar conta
de sua casa-orfanato. Não é à toa que, embora fosse avó, era
chamada de “Mãe”.
Como nunca presenciei “dona Ester” lendo nenhum docu-
mento escrito, jornal ou qualquer coisa que o valha, desconfio
que ela não soubesse ler como nos ensinam na escola. Prova-
velmente, nem fora à escola. Entretanto, aprendera a leitura
do mundo, como nos ensinou Paulo Freire.
Nossa imaginação era alimentada por suas histórias e brin-
cadeiras que supriam a falta da televisão. O entretenimento
242 vinha acompanhado do calor da voz, do brilho dos olhos etc.;
em resumo, tínhamos ali uma boa contadora de histórias.
Creio que sua capacidade narrativa se aproximava da com-
petência atribuída por Walter Benjamin (1987) aos antigos
narradores, que, para o autor, estão em extinção.

São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devi-
damente. Quando se pede num grupo que alguém narre
alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se es-
tivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia
segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experi-
ências. (BENJAMIN, 1987, p. 198-199)

Talvez o rico “intercâmbio de experiências” de dona Es-


ter explique algumas perguntas que eu me fazia sobre alguns
conhecimentos que ela tinha, que, até há bem pouco, na mi-
nha “inocência”, adquiríamos somente na escola. Na ironia
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

de Filé, “fomos bem escolarizados”. Não esqueço as histórias,


brincadeiras, parlendas com as quais a preta velha nos envol-
via, e ainda me lembro de alguns remédios caseiros. E já faz
tanto tempo...
“Dona baratinha queria casar, mas seu barato fugiu... Po-
bre do rato, sua usura o levou à morte... Caiu na panela de
feijoada!”
A brincadeira de passar o anel: “tá quente?/tá frio?” Ou
aquela brincadeira para fazer cócegas nas crianças:
“Cadê o pão que tava aqui?”
“O gato comeu!...”
“Cadê o gato?”
Quando alguém ficava doente, ela sempre sabia a planta
certa para aliviar as dores. Para sarampo: flor de sabugueiro. 243
Para estourar furúnculos: folhas de guiné. Para estancar o san-
gue: visgo de bananeira. Para vermes: mastruz. Para pedra nos
rins: quebra-pedra.
Para completar o almoço: folha de taioba, língua de vaca,
bertalha etc. O candomblé de caboclo também ensina a “ler”,
a viver.
A última vez que a vi foi em janeiro de 2001. Eu já mora-
va há mais de quinze anos no Rio de Janeiro. Presenciei dois
acontecimentos que fortaleceram o imaginário que construí
de minha avó no tempo em que convivi com ela.
Fui visitá-la em Salvador. Logo que cheguei, vi uma me-
nina com seus 4-5 anos na porta da entrada da casa de “dona
Ester”, o que logo me chamou a atenção. Perguntei-lhe:
“Mãe, quem é aquela menina lá na porta?”
Como se fosse a coisa mais natural do mundo, ela me res-
pondeu:
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“Apareceu aí.”
Agora não havia mais tantas crianças lá. Ainda bem, pois
ela já estava com 73 anos.
Nas últimas décadas do século XX, a Bahia, assim como
a maior parte do país, registra um crescimento muito grande
das igrejas neopentecostais. Não me lembro de ter visto tan-
tos “crentes” assim, na década de 1980, em Salvador.
Sendo assim, mais cedo ou mais tarde, todos estariam su-
jeitos a “aceitar Jesus”, inclusive “dona Ester”, que há muitos
anos “bolava” no candomblé de caboclo com “Seu Obaluaê”.
Então, chegou a vez dela:
Ao tentar convertê-la, o rapaz evangélico, argumentou:
“Dona Ester, para ser salva, a senhora vai ter de aceitar
244 Jesus!”
Mais uma vez, com a maior simplicidade do mundo, ela
responde:
“Meu filho, se Deus tiver de me aceitar, vai ter de me acei-
tar do jeito que eu sou, porque eu já tenho 73 anos.”
Fiquei quinze anos sem vê-la, mas as convicções dela con-
tinuavam lá em meio a muitas mudanças que pude notar na
velha Salvador.
Em junho de 2001, dona Ester faleceu. Imagino a cena de
sua chegada ao céu da mesma forma que a Irene do poema
“Irene no céu”, de Manuel Bandeira:
“Licença, São Pedro, posso entrar?”
“Venha, dona Ester, a senhora não precisa pedir licença!”
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2.1. Pisando em ovos ou desnaturalizando o racismo

Desde que tomei consciência de estar no mundo, sempre


me vi negro. Quando digo negro, estou indo muito além da
cor da pele. A ideia de negritude aqui é ampla: é cabelo, nariz,
cheiro, ...é candomblé de caboclo, é capoeira na parte baixa
do São Caetano, da qual minha avó me proibia de participar
“pra não ser preso pela polícia”.
Até os 7 anos, a afirmação ou negação da minha negritu-
de não esteve em conflito. Mesmo sabendo que minha mãe era
“branca”, ainda não me questionava sobre essas identidades fron-
teiriças, híbridas, que formam a maior parte do povo brasileiro.
Porém, entre 8 e 9 anos, soube de uma das histórias do contur-
bado relacionamento entre meus pais. Resumindo, é o seguinte: 245
Quando José Mendes (meu avô materno) descobriu que
minha mãe se relacionava com um homem negro e que tivera
um filho com ele, disse a ela que não queria mais vê-la, pois
lhe avisou “que não gostava de negros”.
Quem dera a certeza a meu avô de que “os negros não
prestam”?
Embora o século XIX tenha ficado para trás e o etnocen-
trismo tenha sido contestado dentro do espaço acadêmico,
Sodré (2000) nos alerta que

Seja como for, a questão é que os juízos etnocêntricos


permanecem mais fortes junto à existência ou ao senso
comum do cidadão ocidental do que qualquer um dos
brilhantes desenvolvimentos nos escritos sistemáticos
de Kant, Hegel ou outro grande mestre do pensamento
(SODRÉ, 2000, p. 27)
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Lembro-me de ter ficado algum tempo com meus avós


maternos. Neste período, não tive tanto contato com meu
avô, pois ele viajava muito a trabalho. Entretanto, no pouco
tempo em que convivi com ele, recordo-me que era um ho-
mem de quem as pessoas tinham medo.
Descobri através dele que meu nariz era diferente, pois
sempre que “brigava” comigo, fazia alguma referência nega-
tiva a esse traço saliente de negritude estampado descarada-
mente no meu rosto, metonímia do corpo negro.
Paradoxalmente, alguns tios me contavam já terem ouvido
de José Mendes que ele gostava de mim, pois, apesar dos gritos
e impropérios, eu “não tinha medo dele” e isso o impressionava.

246
2.2. Ainda sob o mito Cam?

Ser negro no Brasil “não é uma condição dada, a priori. É


um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (SOUZA, 1983, p.
77), pois quem nasce nessa condição aqui pode ter de convi-
ver com todos os estereótipos atribuídos à população negra.
O que pode começar dentro da própria casa e se estender aos
espaços públicos, tornando muito difícil para nós, negros e
afrodescendentes, a construção de uma identidade positiva e
o sentimento de autoestima.
Nilma Lino Gomes (2003), problematizando o pressupos-
to de que a “essência do ser humano se revela nos aspectos que
são universais, apoiada em Gertz (1978), afirma que (...) o que
nos faz mais semelhantes ou mais humanos são as diferenças.”
Especificamente sobre a população negra, a autora nos es-
clarece:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

(...) a classificação e a hierarquização racial hoje exis-


tentes, construídas na efervescência das relações sociais
e no contexto da escravidão e do racismo, passaram a
regular as relações entre negros e brancos como mais
uma lógica desenvolvida no interior da nossa sociedade.
Uma vez constituídas, são introjetadas nos indivíduos
negros e brancos pela cultura. Somos educados pelo
meio sociocultural a enxergar certas diferenças, as quais
fazem parte de um sistema de representações construído
socialmente por meio de tensões, conflitos, acordos e
negociações sociais.

Como eu já disse antes, estas questões me acompanham


há muitos anos; primeiro, no âmbito familiar; depois, como 247
aluno da escola pública.
Em Salvador, quando fui para a escola, já era “velho”. Só
me lembro de que quando cheguei lá, já sabia ler. Creio que
aprendi as primeiras letras ao ouvir uma tia ler as cartas que
minha mãe enviava do Rio de Janeiro. Na Bahia estudei ape-
nas dois anos, logo, não me lembro de conflitos causados por
ofensas raciais no ambiente escolar. Provavelmente, ainda não
prestava atenção a isto.
Aqui no Rio, cheguei quase adolescente. A formação de
minha subjetividade começa a passar por um processo de
renegociação, porque passei a ser identificado como moreno
ou “pardo” (certificado de reservista), tanto em casa como
na escola.
Stuart Hall nos ajuda a compreender esta complexidade
que envolve a (des)construção de processos identitários quan-
do afirma que
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a identidade é realmente algo formado, ao longo do tem-


po, através de processos inconscientes, e não algo ina-
to, existente no momento do nascimento. Existe sempre
algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre em proces-
so, sempre “sendo formada”. As partes “femininas” do eu
masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem
com ele e encontram expressão inconsciente em muitas
formas não reconhecidas, na vida adulta. Assim, em vez
de falar da identidade como uma coisa acabada, devería-
mos falar de identificação, e vê-la como um processo em
andamento. (HALL, 2002, p. 39)

248 Além de agora ser identificado como pardo, minha mãe


também me coloca no catecismo para fazer a primeira comu-
nhão, o que de alguma forma vai embotar algumas lembran-
ças das minhas idas com a minha avó Esther aos candomblés
de caboclos em Salvador; a religião cristã é mais um fator para
perturbar a subjetividade dos afrodescendentes, uma vez que
é colocada como “a religião correta” a ser seguida.
Entretanto, paradoxalmente, é a religião que vai resgatar
minha ancestralidade negra, vinte anos depois, aqui no Rio
de Janeiro. Já adolescente, eu sabia de uma tia materna que,
em alguns sábados ou domingos, não me lembro ao certo, saía
misteriosamente e nunca dizia aonde ia. Eu achava aquilo mui-
to estranho. Depois descobri que ela frequentava um Centro
de Umbanda. Muito tempo depois, passo a ir algumas vezes ao
Centro de Umbanda levado por esta tia. A partir daí, começo a
reconstruir muitas memórias de quando vivi em Salvador com
minha avó Esther, inclusive o candomblé de caboclo, que nas
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minhas lembranças se assemelhava muito à umbanda aqui no


Rio de Janeiro. Uma cena que trago até hoje comigo é a mi-
nha avó falando uma língua muito enrolada e me dando umas
baforadas com a fumaça do charuto. E quando me início na
umbanda, começo a rememorar muitas práticas do dia a dia
da minha avó, como o vasto conhecimento sobre plantas que
ela possuía e que ajudava muito a amenizar a falta de dinheiro.
Entretanto, estes conhecimentos historicamente foram classifi-
cados como demoníacos por nossa formação eurocêntrica, por-
tanto deveriam ser esquecidos, para que, assim, os afrodescen-
dentes pudessem professar a “verdadeira religião”.
Além dos fatores elencados acima, a escola também terá
um papel muito relevante nestas tensões étnico-raciais presen-
tes na sociedade brasileira, pois passamos um tempo significa- 249
tivo de nossas vidas nos bancos escolares. Por isso, concordo
com as ideias de Gomes (2003), acerca da importância do es-
paço escolar no combate ao racismo, quando esta observa que

A escola, enquanto instituição social responsável pela or-


ganização, transmissão e socialização do conhecimento e
da cultura, revela-se como um dos espaços em que as re-
presentações negativas sobre o negro são difundidas. E por
isso mesmo ela também é um importante local onde estas
podem ser superadas. (GOMES, 2003, op. cit. p. 77)

Lembro-me de que os colegas de pele mais escura e cabelo


crespo eram os alvos preferidos das brincadeiras de mau gosto,
o que hoje se chama de bullying. Só hoje entendo o comporta-
mento extremamente tímido e introspectivo de alguns colegas
como Samuel, pois qualquer fala, qualquer ação era motivo
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para ser ridicularizado. Ele era chamado de “mussum”, tiziu,


macaco, era como não tivesse se apresentado: “Meu nome é
Samuel.” Talvez a melhor defesa fosse o silêncio.
As meninas sofriam muito por causa do cabelo, seja por
deixá-lo crespo ou por tratá-lo com henê. Se o mantivessem
crespo, seriam chamadas de “cabelo de bombril”, palha de aço
etc. Para as meninas negras era sempre mais difícil, pois, na
maioria das vezes, quando eram assunto na escola, era para
negar-lhes o direito à beleza.
Havia uma menina que mantinha o seu cabelo sempre
muito curtinho. Era chamada de Joãozinho. Porém, diferente
do Samuel, Daniele partia para a briga. Invadia a quadra e
acabava com o futebol, por isso, os meninos pensavam duas
250 vezes em falar do cabelo na presença dela.
Atualmente, como professor da rede pública, presencio,
diariamente (até quando?!), esta desvalorização da população
negra dentro da escola. Por muitas vezes tenho de interrom-
per as aulas em virtude de alunos chamarem os colegas de
pele mais escura de “macaco”, “chorume”, entre outros nomes
pejorativos usados para ofender alunas e alunos negros.
Que mecanismos ainda sustentam a permanência do racis-
mo dentro da sociedade brasileira? Dentro da escola?

3. NARRATIVAS DE COMO APRENDI


A SER BRANCO

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”


(Livro dos Conselhos)
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Esta é a epígrafe do livro Ensaio sobre a cegueira, do escritor


português José Saramago. Ruminar esse pensamento é muito
importante para mim neste momento. Pois percebo que por
mais que eu enxergue, estive cego, ao longo de um vasto perí-
odo, e ainda tenho dificuldade de enxergar muitas coisas, por
estarem fora do meu campo de visão, no ponto cego.
Eu recebi de minha avó uma vasta herança. Enquanto he-
rança imaterial ou simbólica, se assim posso eu dizer, recebi o
gosto pela leitura, a paixão por dar aula, o gosto pelo estudo.
E a relíquia primordial, que gostaria de ressaltar aqui, o gosto
por escrever diários.
Eu cresci vendo minha avó escrevendo diários. Todo início
de ano, eu ganhava o meu. Ano após ano, ela ia me ensinando
a manipular aquele artefato. Assim, comecei a ensaiar os pri- 251
meiros escritos, habituei-me a registrar as simples trivialidades
da vida. À medida do tempo, eu aprendi a escrever as minhas
histórias; as minhas angústias; os meus questionamentos; as
cartas que jamais foram entregues; e até mesmo a desabafar
aquilo que nem mesmo meu psicanalista ousou escutar.
Os diários sempre estiveram comigo de alguma forma, des-
de a infância e adolescência com a minha avó, como minha
preceptora. Depois, quando fui para o seminário, tinha que
fazer os “cadernos espirituais”. Posteriormente, na vida adulta,
eles ainda continuam comigo, como, por exemplo, no traba-
lho, com os famosos “diários de classe”; e agora, na pesquisa,
em que os meus diários muitas vezes se confundem com os
“diários de campo”.
No entanto, hoje, quando releio as páginas dos meus
diários, percebo que falo sobre diferentes registros, tais
como questões de gênero, de sexualidade, de religiosidade,
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de afetividade; porém, não falo sobre a questão racial, não


questiono sobre o meu pertencimento racial, a minha cor,
a minha herança afro-brasileira, não relato nenhum caso de
preconceito etc.
Por que nunca me questionei sobre isso antes?
Para tentar responder a essa indagação provocadora pre-
ciso voltar no tempo, preciso rememorar; assim, lembro-me
de que certa vez, perguntei a minha mãe qual era a minha
cor. Ela olhou para mim, parou, pensou e me deu a seguinte
resposta: “Você é pardo!” Depois me advertiu que eu deveria
conferir em minha certidão de nascimento, ou futuramente,
em meu certificado de reservista, a minha cor. Pois lá eu en-
contraria, certamente, a resposta.
252 Hoje, ao verificar a documentação oficial, a minha certidão
de nascimento e o meu certificado de reservista, não encontro
essa resposta. Deparo-me, portanto, com mais uma ausência.
Muito menos meus diários íntimos me auxiliam nessa busca
pelo meu pertencimento racial, pela minha ancestralidade –
como já disse anteriormente.
Por que me acostumei a ser “pardo”?
Talvez tenha sido por ter passado por um longo proces-
so de aprendizado, que ocorre nos mais diferentes espaços
educativos (família, escola, igreja, trabalho, rua, mídia etc.),
no qual aprendi a expurgar, negar qualquer “mancha negra”
(SOUZA, 1983) em mim, em meu corpo, em minha histó-
ria, em meu passado; em contrapartida, aprendi a desejar a
brancura com todas as suas indumentárias: ser letrado, inteli-
gente, bem-sucedido, elitista.
Não é à toa, por exemplo, que sempre estudei em colégios
particulares, frequentei cursos de idiomas. Meus pais sempre
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me ensinaram a ver a escola pública como uma instituição


ruim, pois me ameaçavam todo ano: caso eu não conseguisse
a aprovação daquele ano letivo, eu sairia da escola particular
e iria para a instituição pública. Eis um pequeno exemplo
de como somos educados a adquirirmos uma visão branca e
elitista.

3.1. “Ser pardo ou negro, eis a questão!”

Recordo-me de quando fiz a inscrição para um curso de


pós-graduação em Relações Raciais e Educação, oferecido
pelo Penesb/UFF56; ao preencher a ficha de inscrição, cons-
tava uma pergunta sobre raça/cor – confesso que não sabia o 253
que deveria responder. No formulário on-line se encontravam
as seguintes categorias: preto, pardo, branco, amarelo, indíge-
na, não declarado ou não identificado.
Dentro da minha cabeça, eu ficava matutando: “branco”
não sou; “preto” também não; “amarelo” me remetia muito
às pessoas de ascendência oriental; “indígena” sabia que não
era e em “não declarado ou não identificado” não me vinha,
naquele momento, a possibilidade de marcar tal opção.
Então, sobrou a opção “pardo”. De alguma forma aquela
opção me causava um determinado conforto. Aqui entendo
perfeitamente a expressão utilizada pela pesquisadora Sheila
Faria (2004), quando diz que o termo pardo é um curinga.

56. Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira – o programa oferece


diversos cursos para estudantes e professores pela Faculdade de Educação da Universi-
dade Federal Fluminense, coordenado pela professora doutora Iolanda de Oliveira, de
quem tive a honra de ser aluno.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Era, justamente, a cor/raça/identidade que me estabilizava en-


tre o “branco” e o “preto”. Marcar a opção “pardo” me dava
esse conforto, de estar na fronteira, de pertencer a dois lados.
A partir daquele momento, eu comecei a me questionar
sobre esse fato, comecei a juntar os cacos, a colher fragmentos
e a perseguir os rastros da minha história que me ajudassem a
entender o porquê de me sentir tão confortável em ser “par-
do”. Ou, ainda, sobre o porquê de ser tão fácil eu falar sobre
os negros utilizando o pronome ELES e não o NÓS, por
exemplo.
Em Cor e raça, Antônio Guimarães (2008) me auxilia a
entender o porquê dessa imbricação ser tão “natural”, o que
aumenta ainda mais a complexidade do racismo na sociedade
254 brasileira. Segundo o referido autor, quanto mais “natural”
ou “naturalizado” é um conceito, mais “nativo” ele se torna;
como, por exemplo, ser “moreno(inho)” ou “pardo”, mais ele
é habitual, ou seja, menos ele é exposto à crítica, menos se
consegue perceber que ele é artificial e construído, parece ser
um dado da natureza (p. 68).
Ao se falar em “conceito artificial” ou “conceito construí-
do”, lembro-me do conceito “Ideal de Ego branco” cunhado
por Neusa Souza Santos (1983), na obra Tornar-se negro. Se-
gundo a autora, o negro é constituído em torno do fetichismo
de ser branco, desse modo, o negro “nasce e sobrevive imerso
numa ideologia que lhe é imposta pelo branco como ideal a
ser atingido e que endossa a luta para realizar este modelo [ser
branco]”. (SOUZA, 1983, p. 34)
Dentro desse fetichismo, eu estive envolvido e fui educado
– tanto pela minha família quanto pela escola – para cumprir
tal modelo. Não é à toa que a referida autora vai dizer cla-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ramente que “o contexto familiar é o lugar primeiro onde a


ação constituinte do Ideal do Ego se desenrola. (...) Depois
é a vida de rua, a escola, o trabalho, os espaços de lazer”.
(SOUZA, 1983, p. 36)
Esse ensinamento, ou melhor, desejo, fixação, meta de
“aparência mais clara” é muito peculiar em minha família,
desde quando minha avó se casa com meu avô, Lucindo
Manfrenatti. Como o sobrenome deixa claro, meu avô ti-
nha ascendência italiana. Tal marca suplanta toda uma his-
tória “outra”, silencia a fala de vários personagens “outros”.
O sobrenome Manfrenatti, em mim, tem uma consequência
enorme, a de contar a minha história sobre a perspectiva he-
gemônica, ou seja, eurocêntrica, sobre o ângulo dos imigran-
tes europeus italianos que aportaram no porto de Santos, em 255
São Paulo.
A partir de agora, as palavras de Antônio Guimarães
(1995), proferidas em Racismo e antirracismo, fazem sentido
em minha história familiar: “No Brasil, a nação foi forma-
da por um amálgama de crioulos cuja origem étnica e racial
foi ‘esquecida’ pela nacionalidade brasileira. A nação permitiu
que uma penumbra cúmplice encobrisse ancestralidades des-
confortáveis”. (p. 38)
Essa penumbra foi encobrindo a minha ancestralidade, por
isso, fui deixando para trás a história da minha tataravó, Ma-
ria Rosa, por exemplo, descrita pelos meus tios-avós ora como
“morena”, do cabelo “bem crespo” ora “cabocla”. Minha tia-
-avó ainda conta que ela tinha outras irmãs que eram “bem
escuras”57. Já, minha mãe, conta que essa minha tataravó, era
57. Ao me dar esse relato, minha tia-avó, ao proferir a expressão “bem escuras”,
fez uma expressão facial negativa e passou as mãos no rosto e nos braços.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

“índia”, muito alta, cega de uma vista, que ficava de cócoras


em um canto da casa fumando seu cachimbo.
Em contrapartida, meu avô é sempre descrito como sen-
do um homem lindo, branco, alto, com orelhas um pouco
grandes, exímio cozinheiro, educado, festeiro, um excelente
anfitrião, entre outros atributos.
Dessa forma, não é difícil imaginar qual história será mais
disseminada. Não é à toa que prefiro ser lembrado por ser
neto de Lucindo Manfrenatti a ser tataraneto de Maria Rosa.
Sendo assim, o casamento de Semirames Peixoto (minha
avó) e de Lucindo Manfrenatti (meu avô) garantiram para
mim e para minha família usufruir de um certo grau de bran-
cura (tanto cromática quanto cultural).
256 E tal brancura, ao longo das gerações, sempre foi preser-
vada, de forma naturalizada, é claro. Um exemplo é a inexis-
tência de casamentos inter-raciais em minha família. Minha
mãe, meus tios, eu e meus primos, por exemplo, nos casamos
com brancos e brancas. Quando anunciávamos que estáva-
mos namorando, minha avó sempre perguntava: “Ela(e) é
branquinha(o)?!” E mediante a resposta sempre positiva, ela
fazia o sinal da cruz.

3.2. “Se podes ver, repara”

Voltando à epígrafe, ...Se podes ver, repara, acredito que co-


mecei a notar a minha cegueira em 2013, quando comecei
a perceber, dentro de sala de aula, que eu tinha alunos “ne-
gros”, e que eles se chamavam de “macacos”. Que qualquer
música com um ritmo ou percussão diferente era chamada
de “macumba”. A partir de então, comecei a perceber que na
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

instituição58 na qual eu trabalhava na época, atividades como


capoeira, jongo ou maculelê, por exemplo, eram raríssimas de
acontecer; quando aconteciam, era sob muita luta e esforço
por parte dos professores. A instituição não se declarava con-
fessional, mas em todo início e fim de ano ocorria um culto
evangélico de agradecimento, e em determinado período, um
dos pastores evangélicos, amigo do presidente da instituição,
que também era pastor, assumiu a direção da ONG.
Poderia citar aqui muitos outros exemplos, que hoje rea-
cendem em minha memória; contudo, estou querendo ressal-
tar aquilo que me deixa mais atordoado, o longo período de
cegueira, quase seis anos – pois atuo em sala de aula desde
2006 – em que não via meus alunos, não sabia que tinha
alunos negros, não ouvi as suas “brincadeiras”, não sentia as 257
pressões exercidas pela equipe gestora.
Hoje eu paro e fico pensando em quantas injustiças, quan-
tas atitudes discriminatórias aconteceram diante de meus
olhos e eu não vi, não reparei. Assim como o cego do roman-
ce de Saramago, eu, de alguma forma, também procurei um
oftalmologista; embora, como diz o escritor português, “os
cegos não vão ao oftalmologista”.
Desse modo, desde 2013, comecei a frequentar alguns cur-
sos livres sobre Literatura Africana e sobre a Lei 10.639/03
oferecidos pelo NEPA/UFF59; depois, participei de um curso
de extensão universitária e, posteriormente, de pós-graduação

58. Entre os anos de 2010 e 2013, trabalhei em uma ONG, localizada em


uma comunidade na Zona Norte do Rio de Janeiro, atuando como professor
de Língua Portuguesa com adolescentes entre 15 e 18 anos, em situação de
vulnerabilidade social.
59. Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da Universidade
Federal Fluminense.
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lato sensu em Educação e Relações Étnico-Raciais oferecido


pelo Penesb/UFF. Atualmente, meu “tratamento” oftalmoló-
gico continua, agora, fazendo mestrado em educação. Insisto
nessa metáfora, pois “a busca da nossa identidade é, então,
antes de mais nada, um exame médico para descobrir nossas
moléstias e curá-las”. (FILÉ, 2006, p. 51)
Portanto, este recorte apresenta uma faceta de nossas pes-
quisas/escritas que pretendem rememorar um passado que foi
silenciado, apagado, expurgado pela “história oficial” (bran-
ca e eurocêntrica), ou seja, pelas “grandes narrativas”. Desse
modo, ao rememorarmos nossas histórias de vida, pretende-
mos aqui “en-tramar histórias” (FILÉ, 2010), ou seja, alinha-
var as histórias dos nossos alunos, de colegas professores, e
258 de várias “outras” pessoas – aparentemente sem nome, com
histórias aparentemente sem sentido – com a nossa história
de vida.
Assim, Ferraço (2003) nos ajuda a entender a pesquisa en-
quanto uma constante busca a nós mesmos, em sermos pes-
quisadores de nós mesmos. Para que desse modo, ao passo
que vamos contando as histórias de tantos “outros” sujeitos/
personagens, vamos assim, também, contando/narrando a
nossa própria história, e, ao fazermos isso, começamos a nos
compreender.

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

SIMILARIDADES ENTRE DEUSES


AFRO-BRASILEIROS E DEUSES60 GREGOS:
POR UM OBJETIVO EM COMUM

Jefferson Machado de Assunção61

INTRODUÇÃO
261
Este artigo visa a traçar brevemente uma comparação entre
os deuses do povo iorubá (cultuados pelos praticantes do can-
domblé62 Ketu no Brasil) e os deuses gregos, a fim de mostrar
similaridades e ressignificar a presença das divindades negras
no espaço escolar.
Esta questão e tantas outras surgem a partir da percepção
de que a criança negra não tem qualquer referencial positivo
quando busca a história de seu povo. Não há por parte do
negro um sentimento de pertencimento ao povo brasileiro,
60. O vocábulo “Deus” foi escrito com letra maiúscula para se referir aos deuses afro-
-brasileiros e com letra minúscula para se referir aos deuses gregos, devido a um posi-
cionamento político e ideológico do autor.
61. Mestre em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Uni-
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professor no Instituto Federal
do Rio de Janeiro (IFRJ). Autor da Dissertação Exu e Hermes: Um xirê intercultural?
62. Alguns historiadores indicam que o candomblé foi trazido por escravos oriundos de
países atualmente conhecidos como Nigéria e República do Benim. Os seguidores do
candomblé prestam culto e adoram os orixás, que são Deuses ou divindades africanas
que representam as forças da Natureza.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

uma vez que são escassas as referências positivas nos livros


didáticos, na mídia e na história que se convencionou contar.
Muitas vezes, os negros não aparecem nos textos ou nas ilus-
trações dos livros, e quando há referências, essas os colocam
em situações subalternas. Os negros são referenciados como
elementos que contribuíram para a formação do povo brasi-
leiro, como se eles não contribuíssem mais ou como se suas
contribuições tivessem desaparecido. Quando as referências
ao negro não são negativas, elas simplesmente não existem,
causando uma sensação de invisibilidade. Essa linha metodo-
lógica de muitas publicações contribui para a construção de
estereótipos quando constrói uma ideia negativa e de rejeição
acerca do outro, e contribui para a construção de caricaturas
262 quando busca cristalizar o conceito de que o negro serve para
pouca coisa ou quase nada e, principalmente, para ridiculari-
zado e zombado.
O papel do professor no contexto de ensino/aprendizagem
é importante enquanto catalizador e indutor de conhecimen-
tos que contemplem não somente os conteúdos específicos,
mas também a possibilidade de múltiplas leituras de uma so-
ciedade multicultural, que é onde todos vivem. Falar de mul-
ticulturalismo implica falar de diferenças existentes na nossa
sociedade, porque nela prevalece a diversidade de etnias, cul-
turas, gêneros e problemas sociais.
A abordagem da religiosidade africana também está salva-
guardada no texto das Diretrizes quando determina a valori-
zação e o enaltecimento da História da África através da rele-
vância do papel dos Griôs, que são guardiões da memória de
seu povo, através da ancestralidade e da religiosidade africana,
bem como assuntos pertinentes:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

(...) ao tráfico e à escravidão do ponto de vista dos es-


cravizados; – ao papel de europeus, de asiáticos e tam-
bém de africanos no tráfico; – à ocupação colonial na
perspectiva dos africanos; (...) – às relações entre as
culturas e as histórias dos povos do continente africano
e os da diáspora; – à formação compulsória da diáspora,
vida e existência cultural e histórica dos africanos e seus
descendentes fora da África; (...) (BRASIL, 2004:21,22)

Sabemos que as iniciativas governamentais no âmbito das


políticas afirmativas não foram gratuitas, mas, sim, resulta-
dos dos esforços das mobilizações dos movimentos sociais ne-
gros, que intimaram o governo a reconhecer as demandas de
grupos marginalizados e a promover políticas de reparação e 263
valorização de suas identidades nos currículos, de modo que
vise à compreensão da formação diversificada de nossa socie-
dade e à consolidação de uma educação antirracista. Vale a
pena ressaltar que, conforme Nilma Lino Gomes (2012):

É sempre bom destacar que os movimentos sociais têm


como intenção política atingir de forma positiva toda a
sociedade e não somente os grupos sociais por eles re-
presentados. Em sociedades pluriétnicas e multirraciais
como o Brasil, os avanços em prol da articulação diver-
sidade e cidadania poderão ser compreendidos como ga-
nhos para a construção de uma democracia, de fato, que
tenha como norte político a igualdade de oportunidades
para os diferentes segmentos étnico-raciais e sociais e su-
pere o tão propalado mito da democracia racial. (GO-
MES, 2012, p. 106)
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

O currículo é construído mediante interesses da sociedade


e das perspectivas hegemônicas que se impõem; é um terri-
tório hostil e de disputas entre o hegemônico e o contra-he-
gemônico. Por isso, devido ao interesse social, forma-se um
campo de força para fazer frente à eurocentricidade e buscar
promover a valorização da afro-brasilidade, através da qual
uma cisão é feita com o modo eurocêntrico de construção do
currículo, propondo assim a inserção de outros sujeitos com
seus locais e formas de produzir conhecimento. O movimento
negro teve papel preponderante para impedir a continuação
da desigualdade racial em nosso sistema de ensino. As ações
vão desde críticas sobre as formas como o negro é retratado
e referenciado nos livros didáticos até a formação docente.
264 É mais do que advogar em causa própria, é estar consoante
com as novas demandas epistemológicas do mundo. Trata-se
de buscar a conscientização de que não existe uma cosmogo-
nia universal, uma história universal ou um saber único, mas
histórias e saberes locais que, quando “confrontados”, estabe-
lecem diálogos entre si, formando um saber pluriversal.

REFLETINDO SOBRE OS ORIXÁS

Antes de falar dos Orixás, gostaríamos apenas de pro-


por uma reflexão acerca da expressão nagô ou iorubá (ou
iorubano/a). O termo yorùbá está para as comunidades
que pertencem ao mesmo grupo linguístico, mas que pos-
teriormente passou a designar um povo ou território. Além
da identidade linguística, os yorùbá são unidos pela mesma
cultura e tradição, cuja cidade sagrada é Ifé. O yorùbá está
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

concentrado nos territórios limítrofes entre a Nigéria (Oyó,


Egbwa, Ijexá, Ijebu, Oxogbó, Ifé) e o Reino de Queto (Kétu),
no Benin. Juana Elbein dos Santos afirma que:

Da mesma forma que a palavra Yorùbá na Nigéria, ou a


palavra Lucumi, em Cuba, o termo Nàgô no Brasil aca-
bou por ser aplicado coletivamente a todos esses grupos
vinculados por uma língua comum – com variantes dia-
letais. Do mesmo que em suas regiões de origem todos se
consideram descendentes de um único progenitor mito-
lógico, Odùduwà, emigrantes de um lugar de origem, Ilé
Ifè. (SANTOS, 2008, p. 29)

E quem são os Orixás? De acordo com Santos (2008), al- 265


guns pesquisadores situam os Orixás em uma dimensão his-
tórica e em uma dimensão espiritual. Na dimensão histórica,
os Orixás são chefes de clãs ou linhagens e que, através de
atos extraordinários quando em vida, ultrapassaram os vín-
culos familiares e, de ancestres, passaram a receber cultos de
outros clãs ou linhagens até ganhando notoriedade nacional.
Pierre Verger (2002) também reconhece a existência histórica
do Orixá ao referenciá-lo como ancestre divinizado. O an-
tropólogo francês prossegue em sua análise postulando que,
em vida, essas divindades exerciam controle sobre forças da
natureza, como raios, ventos, trovões, águas doces e salgadas
ou sobre certas atividades, tais como a caça, a perícia no ma-
nuseio dos metais ou adquirindo conhecimento sobre a pro-
priedade e utilização das plantas.
Para retratar a passagem da condição terrena à dimensão
espiritual, Verger nos ensina que a aquisição dessa divinização
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

se dá a partir do momento em que se produzem em mo-


mentos de paixão cujas memórias as lendas conservam. Para
ilustrar esse momento de transição, basta retomar o relato
histórico de Ògún que abre esse capítulo e que Verger tão
precisamente sintetiza:

Ògún ter-se-ia tornado orixá quando compreendeu, la-


mentando amargamente, que acabava de massacrar, em
um momento de cólera irrefletida, os habitantes da ci-
dade de Ire, fundada por ele e que não mais a reconhe-
cera quando ali voltou, após longa ausência. (VERGER,
2002, p. 18)

266 Esses antepassados, por serem possuidores de àse63 e po-


deres extraordinários, “sofriam uma metamorfose nesses mo-
mentos de crise emocional, provocada pela cólera e outros
sentimentos violentos” (VERGER, 2002, p. 18). A matéria
desaparecia incinerada pelo sentimento que consumia o an-
tepassado e o poder em estado de energia permanecia, a qual
era posta em um recipiente que recebia oferendas e que se
tornava a conexão material com o Orixá. Uma vez que, para
os iorubas, a morte representa o abandono do corpo pelo so-
pro de vida, esses ancestrais se transfiguravam, transcendiam.
Os Orixás retornam, através do seu axé, em um de seus des-
cendentes durante o transe, encarnando temporariamente du-
rante algum ritual; assim se torna visível aos humanos a partir
da possessão. Dessa forma, a divindade retorna para receber
oferendas, cumprimentos etc.

63. Força imaterial, poder em estado de energia pura. Em português: axé.


DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Na África, a noção de Orixá está ligada à ideia de família


que descende de um mesmo antepassado e que abrange vi-
vos e mortos. Esse ancestral digno de culto é um patrimônio
familiar o qual é uma herança paterna cujo chefe de família
é quem designa o guardião do poder do Deus. Essa guar-
da é compartilhada com o elégùn64 que receberá a divindade
em certas ocasiões. Por ser um culto restrito aos membros da
família, a religião dos Orixás é desprovida do caráter proseli-
tista, visto que pessoas que não compartilham de um mesmo
ancestre não poderiam participar do culto. Por ser também
uma religião que mantém a tolerância, é possível que, por
conta de razões indicadas pela adivinhação, por questões de
doenças, dificuldades, ameaça prevista ou imprevista, um su-
jeito seja orientado a seguir o culto de outra divindade, em- 267
bora conserve sua filiação ao culto familiar.
E a relação com o Orixá no Brasil? Enquanto na África
o culto ao Orixá está intimamente ligado à noção de famí-
lia, no Brasil essa ideia acabou se perdendo, ao passo que o
candomblé viu aumentar o número de seus adeptos brancos,
europeus, asiáticos, negros com tom de pele cada vez mais
claro, os quais se distanciaram da ideia de família. Assim, em
terras brasileiras, o vínculo com o Orixá se dá através de afi-
nidades de comportamento, temperamento. De acordo com
Verger (2002):

Africanos e não africanos têm em comum tendências ina-


tas e um comportamento geral correspondente àquele de
um Orixá, como a virilidade devastadora e vigorosa de

64. Quem é “montado” pelo Orixá.


DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Xangô, a feminilidade elegante e coquete de Oxum, a


sensualidade desenfreada de Oiá-Iansã, a calma benevo-
lente de Nanã Buruku, a vivacidade e a independência de
Oxossi, o masoquismo e o desejo de expiação de Omolu.
(VERGER, 2002, p. 33-34)

A essa padronização de comportamento, podemos chamá-


-la de arquétipo da personalidade a qual está sublimada – ou
escondida, conforme Verger. Essa padronização ou tendên-
cia fica oculta por não ser possível desenvolvê-la livremente
dentro do ser humano durante sua existência, por eventuais
interdições impostas pela sociedade na qual o indivíduo está
inserido. A experiência de ser escolhido pela divindade cujo
268 arquétipo corresponde a essa tendência sublimada é conforta-
dora, pois no momento do transe, o filho de santo se com-
porta de modo inconsciente como o Orixá de seu arquétipo.
No Brasil, há um panteão de divindades africanas com
uma hierarquia fixa ou um quadro litúrgico semelhante. Há
uma sistematização e um número significativo de Orixás que
são reconhecidos e adorados em todos os terreiros, ainda que
alguns sejam menos conhecidos e outros, importantes na
África, sejam desconhecidos aqui. Na África, Orixás que ocu-
pam posições dominantes em alguma região estão totalmente
ausentes em outra.

REFLETINDO SOBRE OS DEUSES GREGOS

A organização religiosa, na Grécia Antiga, assemelha-se em


muito com a organização religiosa dos povos africanos. An-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

tes do advento da pólis, a sociedade grega era organizada em


sistemas familiares constituídos a partir de um clã patriarcal,
cujos membros tinham sua gênese em um antepassado co-
mum. Cada sistema familiar adorava o mesmo deus, cujas
celebrações só podiam ser realizadas por membros desse clã.
Além disso, essa comunidade desenvolvia seus ritos e suas re-
gras de conduta visto que o génos, por ser a união de toda
uma família, precisava ser organizado visando à agricultura e
à provisão de seus membros.
Nesse tipo de organização, a religião era o elemento res-
ponsável por tecer a união familiar, as relações sociais e as
atividades inerentes a sua subsistência, por isso, o clã se iden-
tificava mais como uma associação religiosa, por submeter
os futuros membros a ritos iniciáticos, que são cerimônias 269
acompanhadas de casamento, nascimento e adoção. No gé-
nos, a noção de justiça tinha uma relação simbiótica com a fé
da religião doméstica. Assim, o convívio social era regulado
por normas que apresentavam relações íntimas com a litur-
gia, haja vista que as leis apresentavam uma faceta divina, por
serem promulgadas por entes sobrenaturais. Para Jean-Pierre
Vernant (2006):

Entre o religioso e o social, o doméstico e o cívico, por-


tanto, não há oposição nem corte nítido, assim como en-
tre sobrenatural e natural, divino e mundano. A religião
grega não constitui um setor à parte, fechado em seus
limites e superpondo-se à vida familiar, profissional, po-
lítica ou de lazer, sem confundir-se com ela. (...) o ato
religioso está incluído no social e, reciprocamente, o so-
cial, em todos os seus níveis e na diversidade dos seus
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

aspectos, é penetrado de ponta a ponta pelo religioso.


(VERNANT, 2006, p. 7)

Os gregos rendiam cultos a deuses inspirados em elemen-


tos da natureza, como água, fogo, vento e raio, os quais eram
a representação de seres divinos, além de cultuarem animais
sagrados. Com o passar do tempo, os helenos foram adaptan-
do a religião doméstica, de modo que passaram a representar
seus deuses com formas humanas, a exemplo das religiões de
povos considerados “primitivos” ou “bárbaros”. Os deuses,
que até então eram representados como animais, passaram a
ser vistos como homens e mulheres que, apesar dessa aparên-
cia, eram superiores aos humanos, por serem portadores de
270 características que são extremamente estimadas aos mortais,
como bem nos lembra Vernant (2006):

Embora pertençam ao mesmo mundo dos humanos, e


de certa forma, tenham a mesma origem, eles constituem
uma raça que, ignorando todas as deficiências que mar-
cam as criaturas mortais com o selo da negatividade –
fraqueza, fadiga, sofrimento, doença, morte –, encarna
não o absoluto ou infinito, mas a plenitude dos valores
que importam na existência dessa terra: beleza, força, ju-
ventude constante, permanente irrupção da vida. (VER-
NANT, 2006, p. 9)

Apesar de Vernant afirmar que os deuses ignoram caracte-


rísticas negativas como as mencionadas no excerto acima, há
autores que pensam diferente:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Eles vivem, aliás, de maneira idêntica à dos homens;


se têm um rei, também têm suas assembleias. (...) Es-
ses deuses também têm, como os homens, paixões nem
sempre lícitas. (...) De qualquer modo, essas paixões le-
vam com frequência a misturar-se com os homens, às ve-
zes sob seu próprio aspecto, às vezes sob traços fictícios.
Eles têm seus amigos e seus inimigos. (...) Todas essas
características tornam os deuses não só antropomórficos,
mas extremamente humanos, com os defeitos inerentes
à expressão (ROMILLY,1984, p. 32-33 apud MELO;
SOUZA, p. 33)

Não é estranho que os deuses apresentassem traços da


personalidade humana, bem como suas qualidades boas 271
e vicissitudes, visto que seres humanos e seres divinos são
provenientes da união entre Caos (Cháos) e Terra (Gaîa). Da
mesma forma que um culto pode ser direcionado à Lua ou ao
Sol, este mesmo culto pode ser prestado a um sentimento ou
paixão, como postula o próprio Vernant (2006):

Há, portanto, algo de divino no mundo e algo de mun-


dano nas divindades. Assim, o culto não pode visar a um
ser radicalmente extramundano, cuja forma de existência
não tenha relação com nada que seja de ordem natural,
no universo físico, na vida humana, na existência social.
Ao contrário, o culto pode dirigir-se a certos astros como
a Lua, à aurora à luz do Sol, à noite, a uma fonte, um
rio, uma árvore, ao cume de uma montanha e igualmente
a um sentimento, uma paixão (Aidós, Éros), uma noção
moral ou social (Díke, Eynomía). Não que se trate sem-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

pre de deuses propriamente ditos, mas todos, o registro


que lhes é próprio, manifestam o divino do mesmo modo
que a imagem cultual, tornando presente a divindade em
seu templo, pode legitimamente ser objeto da devoção
dos fiéis. (VERNANT, 2006, p. 5)

Com o surgimento das cidades-Estado, o sistema de orga-


nização familiar, por laços de consanguinidade, começa a se
desconstruir por volta do século VIII a. C. para dar vez a uma
organização com multiplicidade de pessoas que são iguais ju-
ridicamente e que passarão a ser guiadas pela racionalidade e
individualidade. Esse novo modo de organização não se ba-
seava mais em torno de um pai, do chefe do clã, dotado de
272 autorização divina para legislar e conduzir sua comunidade,
mas no coletivo formado por famílias que se reuniam em lo-
cais públicos para decidir os rumos da sociedade. Com isso, a
religião transcende do grupo familiar para o coletivo e passa a
ser praticada nas ruas e nas cidades, onde foram construídos
os templos nos quais se erigiram estátuas para homenagear
seu deus patrono.
Apesar de os ritos, as crenças e divindades terem sido in-
corporados a essa nova forma de organização social, o con-
junto de preceitos que norteavam a religião e a sociedade no
génos não eram suficientes para manter o funcionamento de
uma sociedade nova em franco crescimento. Por uma questão
lógica, se a função de chefe do clã perde o sentido diante de
uma nova dinâmica social, outras funções precisam ser criadas
a fim de manter a ordem. A partir daí, surgem os tribunais
com seus juízes, visando ao julgamento das infrações não ape-
nas religiosas, mas políticas.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

As reuniões públicas, as assembleias fizeram com que os


helenos se deparassem com situações demandadas pela nova
forma de estruturação social, pois esses encontros tinham a
finalidade de apresentar propostas para conduzir o cotidia-
no até então diverso daquele vivenciado nos clãs. Os debates
com suas teses, antíteses, paradoxos, argumentações contri-
buíram para que esses cidadãos refletissem sobre a ineficácia
das leis subjetivas da religião doméstica e que somente a razão
seria capaz de dirimir conflitos. O que anteriormente era re-
solvido pelo oráculo passou a ter solução nos encontros em
locais públicos.
Somando o fato de a religião da cidade não ser opressora,
com a nova forma de administrar as cidades e com o surgi-
mento da filosofia, matemática, medicina, podemos chegar à 273
conclusão de que os gregos foram buscar outras explicações,
além da religião, para sua existência. Apesar da necessidade de
buscar outras explicações, a religião não foi deixada de lado,
visto que ela era tida como um elemento de pertença à comu-
nidade política. Ser notado nos espaços de decisão e tribunais
e ser notado nos espaços de culto denotava que um cidadão
respeitava e valorizava o convívio e a vida pública.
E a partir de que momento os deuses gregos foram des-
mitizados e dessacralizados? Não há uma data precisa ou um
acontecimento específico que tenha contribuído para que os
deuses gregos fossem “arremessados” do Olimpo, mas uma
sucessão de acontecimentos, dos quais trataremos de forma
breve. O início se deu com a crítica dos filósofos jônicos65 ao
comportamento das divindades que, segundo os jônicos, era
65. Uma das quatro etnias que formaram o povo grego. Povo de origem indo-europeia
que se estabeleceu na Ática e no Peloponeso e foram depois para a Ásia Menor.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

incompatível com a “ideia elevada de Deus”. Para esse grupo,


deus jamais poderia ser adúltero, vingativo, injusto ou ciu-
mento. Além desse ataque provocado pelos jônicos, o panteão
helênico sofre o segundo ataque, dessa vez protagonizado por
Demócrito66, que com crítica racionalista atribui à movimen-
tação e entrechoques atômicos a origem do mundo, dos seres,
das almas, dos deuses, os quais, por serem matéria, estão su-
jeitos à lei da morte. Para esse filósofo, “os deuses vulgares e a
mitologia nasceram da fantasia popular” (BRANDÃO, 2013,
p. 28). Demócrito postulava que deuses existiam, mas por
serem compostos atômicos, estariam sujeitos à lei da morte.
Como os deuses gregos ainda subsistiam a essas investidas,
surgiram, de acordo com Brandão (2013), a “dicotomização”
274 e a “politização”. Por dicotomização se entende a prevalência
das narrativas verdadeiras em detrimento às variantes que são
atribuídas aos poetas e, por isso, fantasiosas. Na linha da di-
cotomização, apenas ações belas, sadias e honestas devem ser
atribuídas aos deuses.
Por “politização” se entende o deslocamento de heróis re-
gionais para Atenas. Se a peregrinação era algo inerente aos
heróis, nada mais justo que fazê-los convergir para Atenas,
que se constituiria num ponto obrigatório. O objetivo dessa
convergência era o de reforçar a cidade ateniense como cen-
tro da política hegemônica. Não satisfeitos em apenas fazê-los
convergir para Atenas, os idealizadores dessa proposta criaram
genealogias e atribuíram-lhes feitos históricos totalmente in-
versos à cronologia. Por volta do século IV a. C., Epícuro67

66. Filósofo que viveu entre 520 – 440 a.C.


67. Filósofo grego que viveu entre 341 e 270 a. C.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

retoma a teoria atomista materialista de Demócrito e busca


conscientizar o homem acerca da libertação do temor dos
deuses, visto que eles são sujeitos à morte e são impotentes.
Ainda no mesmo século e apesar de todas essas investidas
contra as divindades gregas, surgem o Alegorismo e o Eveme-
rismo68, modos de interpretação do mito que, teoricamente,
deveriam ser uma crítica ao mundo imaginário, mas que ser-
viram para salvar a mitologia. A alegoria consiste em trans-
cender o sentido “original” para uma interpretação do que
está encoberto. Deve-se a esse modo de interpretação a desco-
berta de que os nomes dos deuses representavam nomes dos
fenômenos naturais. Já o evemerismo romanceou a origem
dos deuses e afirmou que eles foram antigos reis e heróis que
sofreram um processo de divinização e, nesse caso, os mitos 275
seriam as lembranças de suas conquistas na terra. Para o espe-
cialista brasileiro em mitologia grega e latina Junito Brandão
(2013):

O Evemerismo, por conseguinte, nada mais é do que a


tentativa de explicar o processo de apoteose de homens
ilustres. Embora teoricamente antípoda do alegorismo,
o Evemerismo muito contribuiu também para “salvar” a
mitologia, injetando-lhe uma dose de caráter “histórico”
e humano. Afinal, os deuses não passavam de transposi-
ções, através da apoteose e de reminiscência, um tanto
desordenada, das gestas de reis e de heróis primitivos,
personagens autenticamente históricas... (BRANDÃO,
2013, p. 32)

68. Evemerismo – com referência ao filósofo Alexandre Evêmero.


DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Os ataques às narrativas mitológicas gregas sempre parti-


ram dos filósofos poetas e pensadores, e é por isso que a mi-
tologia grega ainda continuou viva, apesar de tudo:

Se a tenacidade e o vigor, com que os pré-socráticos bem


como alguns pensadores e “reformadores” combatiam o
mito, se tivessem imposto integralmente à consciência
grega, a tradição mitológica teria desaparecido por com-
pleto. Mas tal não aconteceu, porque os ataques desfecha-
dos contra o mito partiram sempre da elite pensante (...)
e se uma parcela dessa mesma elite pensante descobriu
no Oriente “outras mitologias” capazes de alimentar-lhe
o espírito, a massa iletrada, tradicionalista por vocação e
276 indiferente a controvérsias sutis (...), agarrava-se cada vez
mais à tradição religiosa (BRANDÃO, 2013, p. 33).

A mitologia e a religião tiveram seu trunfo no ocultismo,


nas religiões Greco-orientais, no Oráculo de Delfos, no culto
a Dionísio, nas mitologias astrais, magia e bruxaria. O cris-
tianismo não teria conseguido se estabelecer se tivesse apelado
para o uso da força e da violência, como as protagonizadas pelo
imperador Teodósio, que fechou e destruiu templos. O maior
opositor do cristianismo não foi a mitologia clássica, mas os
cultos pagãos, como os relacionados no início desse parágrafo.
Com o objetivo de atrair os “ímpios”69, o cristianismo se valeu
de uma estratégia deveras inteligente em relação à mitologia:
“dessacralizou-a de seu conteúdo pagão e ressacralizou-a com

69. Denominação bíblica para aqueles que não conhecem o deus judaico-cristão. Esse
termo também apresenta a acepção semântica de bárbaro – ou aquele que não tem
apreço pela religião.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

elementos cristãos, ecumenizando-a”, (BRANDÃO, 2013, p.


34). Ainda nessa linha interpretativa, Junito Brandão enumera
casos de uma fonte da Gália com a presença de uma figura
divina local que passou a ser santa para os cristãos após a con-
sagração à Virgem Maria; os deuses das tempestades foram as-
similados a Elias, e os matadores de dragões, a São Jorge.
Há três gerações sucessivas de deuses gregos que governa-
ram o universo. Os da primeira geração foram responsáveis
pela criação do universo: Urano e Gaîa (Geia), de que procede
numerosa descendência: Titãs (Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon,
Jápeto, Crono), Titânidas (Téia, Réia, Têmis, Mnemósina,
Febe, Tétis), Ciclopes (Arges, Estérope, Brontes), Hecatonqui-
ros (Coto, Briaréu, Gias). A segunda geração era chefiada por
Crono e Reia, os quais geraram Héstia, Hera, Deméter, Hades, 277
Posídon (Poseidon), Zeus. Os deuses da terceira geração são
os mais humanizados e representam a vitória da força humana
sobre a natureza, além de serem deuses titulares do Olimpo. Os
deuses anteriores foram aglutinados pelo Olimpo, outros foram
“aposentados” e outros foram lançados ao Tártaro. A teogonia
grega é extremamente extensa e impossível de relacioná-la aqui,
por causa da proposta desse trabalho. Os deuses da terceira
geração são resultados da união de Zeus com deusas ou com
humanas. Visando a um trabalho mais assertivo, apresentamos
apenas as uniões de Zeus que originaram deuses. Na terceira
geração, Zeus, o fertilizador, uniu-se com as divindades:

Zeus – Métis = Atena


Zeus – Dione = Afrodite
Zeus – Leto = Apolo
Zeus – Hera = Ares
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Da união de Zeus com a humana (heroína) Maia nasceu Her-


mes. Assim como os povos iorubanos, os gregos também relacio-
naram seus deuses à natureza, a locais (como no caso de Exu), a
determinadas atuações (guerra, no caso de Ogum e Ares).

DEUSES ÁREA DE ATUAÇÃO


DEUSES GREGOS
AFRICANOS EM COMUM
EXU HERMES Encruzilhada/Comércio
OGUM ARES Guerra
Fecundação/Amor/Beleza/
OXUM AFRODITE
Sensualidade
IANSÃ ATENÁ Guerra/Impetuosidade
IEMANJÁ POSEIDON Mares e Oceanos

278 XANGÔ ZEUS Justiça/Raio/Trovão/Atrevimento


Sabedoria/Serenidade/
OXALÁ APOLO
Inteligência/Equilíbrio

Além de estar presente nos manuais do sexto ano do en-


sino fundamental, a mitologia atrai jovens e estudiosos, por
conferir notoriedade por um saber socialmente reconhecido.
A escola não pode ser um setor de reprodução e de massifica-
ção de uma cultura que exclua povos que contribuíram para
a formação do povo brasileiro. A fim de coibir a ação institu-
cional na reprodução de saberes excludentes e nas consequen-
tes desigualdade e exclusão é que a escola brasileira precisa de
senso crítico para conduzir o processo de aprendizagem de
modo a disseminar o respeito às diversas manifestações de sa-
ber. Urge discutir métodos e alternativas para inibir investidas
racistas nos livros didáticos, nas datas comemorativas e nos
comportamentos dos discentes e dos docentes.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Para além da discussão sobre a abordagem e valorização da


Cultura Afro-Brasileira na perspectiva da religiosidade de ma-
triz africana denominada Candomblé está a necessidade de,
por parte dos professores e gestores, aproveitarem a temática
para o combate ao racismo e à intolerância religiosa dentro e
fora do ambiente escolar. Uma das formas é trabalhar a apro-
ximação entre as divindades do candomblé e as divindades
gregas. Desassociar as práticas de matriz africana ao mal ou às
trevas ou desvincular Exu do diabo cristão, através de estudos
que esclareçam os reais motivos que fizeram os colonizado-
res se utilizarem dessa aproximação cruel que se perpetua até
hoje.
A invisibilidade da cultura negra nos currículos propicia
ao professor uma oportunidade para ressignificar a presença 279
da cultura e história do negro na formação da sociedade bra-
sileira. A abordagem e atenção que devem ser dadas à Cul-
tura Afro-Brasileira na perspectiva da religiosidade de matriz
africana denominada Candomblé devem ser vistas para além
do atendimento à Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
“estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para in-
cluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática História e Cultura Afro-Brasileira.
Um dos principais caminhos para a manutenção da estru-
tura social vigente ou sua alteração para melhor ou para pior
é a educação. Tendo a educação como significativo meio de
disseminação de valores e a escola como espaço de socializa-
ção e manifestações culturais de formação cognitiva e subje-
tiva, conduz o professor a ter uma visão multicultural do seu
universo de atuação, visto que em sala de aula lidará a todo
momento com alunos de referências culturais diversas. Por
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

serem responsáveis pelo desenvolvimento individual e coleti-


vo de seu corpo discente diverso, os profissionais da educação
são impelidos a promover conteúdos outrora subalternizados
objetivando uma sociedade justa e igualitária.

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283
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

DIÁLOGOS POSSÍVEIS NA
FORMAÇÃO DOCENTE: O INDÍGENA
E O NEGRO NO BRASIL

Viviane da Silva Almeida70


Helder Sarmento Ferreira71

A educação brasileira tem tratado tanto o indígena quanto


285
o negro72 de forma folclórica há bastante tempo, acreditando
na premissa de que, dessa forma, estão abordando-os no co-
tidiano escolar. Contudo, não foi neste caminho que foram
pensadas as Leis 10.639/03 e 11.645/0873, que complemen-
taram o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional (LDBEN). Essa atualização da LDBEN, muitas

70. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos


Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ) na linha de pesquisa
Educação e Diversidades Étnico-Raciais.
71. Mestre em Educação pelo PPGEDUC/UFRRJ na linha de pesquisa Estudos Con-
temporâneos e Práticas Educativas.
72. O negro, de acordo com o IBGE, é aquele que se autodeclara preto ou pardo,
no entanto, o campo da Antropologia Social nos mostra que este vocábulo advém de
uma construção social também; são os cidadãos descendentes de africanos nascidos no
Brasil, filhos da diáspora africana que Siss nomeia como afro-brasileiros. (SISS, 2003)
73. A Lei 11.645, de 10 março de 2008, alterou a Lei 9.394, de 20/12/1996, que já
havia sido modificada pela Lei 10.639, de 9/1/2003, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatorie-
dade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

vezes, por uma boa parte de educadores, vem sendo tratada


de forma descompromissada, às vezes, por desconhecimento,
e outras, simplesmente por uma atitude institucional de não
aplicá-las.
No artigo 26-A da atual LDBEN, passou a versar o se-
guinte:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e


de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório
o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere este arti-
go incluirá diversos aspectos da história e da cultura que
caracterizam a formação da população brasileira, a partir
286 desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e
o negro e o índio na formação da sociedade nacional, res-
gatando as suas contribuições nas áreas social, econômica
e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-
-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão minis-
trados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial
nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras. (BRASIL, 2008)

É importante salientar que esta alteração ocorreu após


muita luta dos movimentos negros e indígenas de nosso país,
essencialmente nas décadas de 1970 e 1980, mas é com o fim
da ditatura militar em meados da década de 1980 que ganha
mais força a luta étnico-racial.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

As diversidades étnico-raciais estão em pauta em muitos


discursos, porém devemos repensar o motivo pelo qual os
vocábulos étnico e racial estão justapostos numa nova pala-
vra composta. Étnico porque vem de etnia, que é aqui co-
locada para identificar aqueles diferentes grupos sociais que
se particularizam por possuírem tradições, cultura, língua e
signos comuns, que a tornam manifesta. A presença dessas
características possibilita aos membros de um grupo étnico
a construção de subjetividades diferenciadas, permitindo-lhes
identificarem-se e, em um movimento inverso, serem também
identificados pelos membros de outros grupos sociais como
singulares nesses aspectos. Nessa perspectiva, a existência, ou
não, de uma comunidade de sangue não é fator determinan-
te. Racial referencia-se aqui a raça, que, nesta perspectiva, é 287
compreendida no campo da antropologia social, operando na
percepção da diversidade fenotípica, como, por exemplo, tex-
tura do cabelo, cor da pele, formato do nariz etc., sinais dia-
críticos que se constituam como determinantes de estrutura
social. (SISS, 2005)
Dessa forma, acreditamos, enquanto educadores antirracis-
tas, que a junção dos vocábulos apresentados ratifica a im-
portância do indígena e do negro no Brasil porque as diver-
sidades não são somente étnicas ou raciais, são étnico-raciais.
No entanto, precisamos aqui apontar que a força antirracista
desta lei tem incomodado inúmeras instituições educacionais,
perpassando as escolas que atendem desde a educação básica
até os institutos de formação de professores e os cursos de
licenciaturas das universidades públicas e privadas de nosso
país. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais (DCNERER) nos mostram que
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade


social e racial, empreender reeducação das relações étni-
co-raciais não são tarefas exclusivas da escola. As formas
de discriminação de qualquer natureza não têm o seu
nascedouro na escola, porém o racismo, as desigualdades
e discriminações correntes na sociedade perpassam por
ali. Para que as instituições de ensino desempenhem a
contento o papel de educar, é necessário que se constitu-
am em espaço democrático de produção e divulgação de
conhecimentos e de posturas que visam a uma sociedade
justa. A escola tem papel preponderante para eliminação
das discriminações e para emancipação dos grupos dis-
criminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos
288 científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista
de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a
conhecimentos avançados, indispensáveis para consolida-
ção e concerto das nações como espaços democráticos e
igualitários. (BRASIL, 2004, p. 6).

É imprescindível perceber que um dos inúmeros desafios que


educadores enfrentam na contemporaneidade é o de conseguir
compreender como educar para uma sociedade diversificada
por gênero, classe social, cultura, raça ou etnia, no intuito de
que, para que isso ocorra, se faça necessário um pensamento
decolonial. Oliveira (2010) nos expõe que decolonizar na edu-
cação implica a construção de outras pedagogias além da hege-
mônica, enquanto descolonizar é apenas denunciar as amarras
coloniais e não constituir outras formas de pensar e produzir
conhecimento. Este “pensar-fazer” decolonial está bem próxi-
mo do que Freire (1987) nos coloca como uma ação crítica.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

A manipulação, com toda a sua série de engodos e pro-


messas, encontra aí, quase sempre, um bom terreno para
vingar. O antídoto a esta manipulação está na organiza-
ção criticamente consciente, cujo ponto de partida, por
isto mesmo, não está em depositar nelas o conteúdo re-
volucionário, mas na problematização de sua posição no
processo. Na problematização da realidade nacional e da
própria manipulação. (FREIRE, 1987, p. 84).

Na expectativa de uma educação decolonial crítica e na


intencionalidade da reflexão enquanto educadores em forma-
ção e formadores de opinião, buscamos aqui apresentar um
pouco sobre as perspectivas do indígena e do negro no Brasil.
289
A moderna investigação historiográfica mostra-nos como,
na colonização, foi essencial, desde o início, o trabalho in-
dígena, chamados negros da terra, como numerosas insti-
tuições e, posteriormente, a legislação contribuíram para
a mestiçagem entre colonizadores e índios, e como esse
mundo complexo, em movimento e ebulição mesmo antes
da chegada do europeu, assim continuaria, desses movi-
mentos e novos centros de poder (como feitorias, missões,
aldeamentos e vilas) surgindo novos povos, ao mesmo
tempo que outros se extinguiam. (LIMA, 2005, p. 238).

Após mais de cinco séculos da chegada dos europeus no


Brasil, evidenciamos a obstinação de não deixar que a do-
minação da civilização hegemônica não se consolide entre o
povo indígena; neste contexto, aqui apresentamos a perspec-
tiva Guarani, conscientes de que seria impossível abordarmos
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

todas as etnias indígenas num único trabalho.


O povo guarani, imbuído de um espírito livre, é resistente
em transmitir sua cultura a cada geração e é livre dos males
que a sociedade moderna vivencia. Segundo Ladeira (2007),
os guaranis contemporâneos que convivem no Brasil podem
ser coordenados em três grandes grupos: Kaiowá, Ñhandéva
ou Xiripá e Mbya, conforme as variantes dialógicas de suas
tradições e seus métodos rituais.
As representações em relação ao território, à cultura e aos
rituais do povo guarani referendam a sua organização social,
jurídica, social e política. A organização do povo guarani diz
respeito a cada grupo Guarani. Segundo Gersem (2006), a
aldeia indígena segue segundo os pleitos internos das comu-
290 nidades, como a disposição diária dos trabalhos coletivos, nas
festas, cerimônias e às demandas segundo o aspecto étnico
diante de outros povos conforme a tradição do grupo.
Os guaranis foram atormentados violentamente em virtu-
de de um contexto imperialista colonizador de grande exter-
mínio. A luta do povo guarani está presente e resistente pela
demarcação e posse da terra. Subjugado, o povo guarani tem
se posicionado obstinado pela manutenção de seu território e
suas tradições.

Se, por um lado, há certo consenso sobre a importân-


cia da pluralidade cultural e étnica que compõe o país,
o que gera simpatia pela diversidade e pelo seu potencial
num mercado ávido por variação de produtos e em ni-
chos de consumo, por outro, essa simpatia não se rever-
te em ações políticas concretas de defesa e proteção às
diferentes culturas e etnias garantindo-lhes as condições
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

de existência e, o mais importante, demarcando as terras


tradicionais desses povos, condição primordial para o seu
bem viver. (HECK et al., p. 2012, p. 16).

O contexto histórico imposto pelo ritmo de degradação


empreendido pela revolução verde74 em prol da expansão da
fronteira agrícola tem revelado um traço inferiorizante a des-
qualificar o saber de culturas ancestrais como a dos guara-
nis. Sendo detentores de hábitos e costumes que reafirmam a
sua estrutura social, sistematicamente vem sendo imposta ao
povo guarani uma redução da percepção da relação “socieda-
de-natureza”, não valorizando as suas raízes e a sensibilidade
natural em relação às plantas e aos animais.
No decorrer da trajetória de nossa civilização, o saber, co- 291
nhecimento acumulado, converge na reprodução social de
uma percepção emoldurada na acumulação tecnológica. Nes-
se sentido, é necessária uma apreciação mais aprofundada em
relação ao paradigma da modernidade, em relação às bases
propostas pelo modelo científico, em relação ao conhecimen-
to que dista dos saberes tradicionais das culturas ancestrais.

É esta ambiguidade e a complexidade da situação do


tempo presente, um tempo de transição, síncrone com
muita que está além ou aquém dele, mas descompassado
em relação a tudo o que habita. Tal como noutros

74. A revolução verde fundamentava-se na melhoria do desempenho dos índices de


produtividade agrícola, por meio de substituição dos moldes de produção locais ou
tradicionais, por um conjunto bem mais homogêneo de práticas tecnológicas, isto é, de
variedades vegetais geneticamente melhoradas muito exigentes em fertilizantes quími-
cos de alta solubilidade, agrotóxicos maior com poder biocida, irrigação e motomeca-
nização (EHLERS,1999, p. 32).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

períodos de transição, difíceis de entender e de percorrer,


é necessário voltar às coisas simples, à capacidade de for-
mular perguntas simples, perguntas que como Einstein
costumava dizer, só uma criança pode fazer, mas que, de-
pois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à nossa
perplexidade. (SANTOS, 2010, p. 15).

A sabedoria dos guaranis é particularizada em virtude da


valorização de sua identidade, cultura, ou seja, de seus sabe-
res, que é transmitida para seus descendentes. A língua gua-
rani tem um papel expressivo na ritualidade e nas cerimônias
que está inserido em seu cotidiano. Neste contexto, o pro-
cesso pedagógico na cultura guarani possui temporalidades
292 específicas; o conhecimento, diferentemente do Jurua75, não
está pautado e centralizado em uma só pessoa e um horário
predeterminado ou marcado por um calendário com dias le-
tivos preestabelecido. Na aldeia, o saber é passado a todos e
por todos e os mais velhos são respeitados, por ser reflexo de
sabedoria e pela grande conexão com Ñhanderu.
A convergência do pensamento colonizador tem apresenta-
do uma abordagem simplificadora e reducionista da perspec-
tiva do conhecimento ancestral da cultura guarani, referen-
dando-a como primitiva. Constituir uma reflexão em relação
ao saber implica uma valorização do saber. A convergência
das visões cosmológicas em relação à variabilidade cultural
75. Os guaranis Mbya, por sua vez, referem-se aos brancos como Jurua. Não se sabe ao
certo desde quando empregaram esse termo, porém hoje ele tem uso corrente e parece
destituído de seu sentido original. Jurua quer dizer, literalmente, “boca com cabelo”,
uma referência à barba e ao bigode dos europeus e espanhóis conquistadores. De todo
modo, o nome jurua foi criado a partir do contato com os brancos colonizadores e
passou, com o tempo, a ser referência utilizada genericamente às outras raças (negros,
amarelos, brancos). (LADEIRA, 2007, p. 39)
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

proporciona uma contribuição para que a dialogicidade de-


termine um senso crítico e problematizador.

As lutas sociais também são cenários pedagógicos onde os


participantes exercem suas pedagogias de aprendizagem,
desaprender, reaprendizado, reflexão e ação. Ele só é re-
conhecer que as ações específicas para alterar a ordem da
partida potência colonial frequentemente identificação e
reconhecimento de um problema, anunciar o desacordo
e em oposição à condição de dominação e opressão, orga-
nizar a intervir; objetivo: derrubar a atual situação e fazer
outra coisa possível. (WALSH, 2012, p. 8)

O povo guarani afirma, segundo os seus costumes, o diá- 293


logo entre todos na aldeia, portanto, o cotidiano guarani está
impregnado de relações místicas advindas da interconexão
com seu território – para o povo guarani, o tekoa, ou seja,
o seu território – supera as percepções dos limites físicos e
geográficos. Conforme Ladeira (2001) nos apresenta, o tekoa
(aldeia) reúne as qualidades tanto físicas e geográficas onde
os modos e costumes guaranis coexistem. As afinidades das
sociedades indígenas com seu ambiente natural são parte ine-
rente de uma representação de mundo que integra o uso da
“natureza”, o modo de vida e a teoria que embasa a vida so-
cial. A partir desse contíguo dinâmico que reúne formulações
transmitidas e projetadas, onde mito e práxis se referendam
reciprocamente, essas sociedades erguem sucessivamente o
mundo e suas representações.
O tekoa abrange não apenas o lugar onde os guaranis resi-
dem; é composto por uma grande família, cada indivíduo que
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

a compõe exerce uma função sociopolítica na qual há uma


identidade compartilhada por todos os guaranis, que pos-
suem laços consanguíneos. Segundo Ladeira (2003), o tekoa,
a sua terra tradicional, vai muito além do espaço habitado; os
guaranis no tekoa desenvolvem sua subsistência onde encon-
tram presente sua cultura, portanto, quando estamos conec-
tados a um espaço que nos permite uma ação a interpretar e
transformar os sujeitos que coexistem no mundo, passamos
a referenciar uma ligação espiritual muito forte, que possibi-
lita nortear as nossas decisões. Para o equilíbrio das relações
do homem com o meio ambiente, é essencial que o processo
educativo esteja pautado em relações dialógicas do ser huma-
no com a natureza.
294 Durante as experiências de campo76, vivenciadas na aldeia
guarani Ara Hovy, no município de Maricá, no Rio de Janei-
ro, e na aldeia Krahô, Aldeia Nova, em Tocantins, foi possível
compreender a contínua interação harmônica das relações so-
ciais, humanas e biológicas com a natureza.
Vivenciamos hoje uma grande perda da dimensão do con-
texto em relação à visão mais ampla das nossas relações com
o ambiente natural. As relações que a sociedade empreende
sobre o entendimento do processo de construção do conheci-
mento é fragmentado e disperso, o que acarreta uma armadi-
lha paradigmática77. Nas culturas indígenas, o conhecimento
76. As experiências de campo aqui citadas foram vivenciadas por Helder.
77. É essa o que chamo de uma armadilha paradigmática que provoca a limitação
compreensiva e a incapacidade discursiva de forma redundante. Produto e produtora
de uma leitura de mundo e um fazer pedagógico atrelado ao “caminho único”, traçado
pela racionalidade dominante da sociedade moderna e que busca ser inquestionável. É
esse processo que vem gerando, predominantemente, ações educativas reconhecidas no
cotidiano escolar como educação ambiental e que essa armadilha aprisiona os professo-
res, apresenta-se fragilizada em sua prática pedagógica. (GUIMARÃES, 2012, p. 124).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

é trabalhado de forma a aglutinar os saberes e toda a existên-


cia na aldeia, ou seja, há uma visão complexa em relação ao
ambiente natural. Estes princípios são fundamentais e estru-
turantes para pensarmos o processo formativo dos educadores
a fim de reconhecer os modos de vida tanto das etnias indí-
genas como africanas.
Em ambas as etnias indígenas, os saberes se organizam ba-
seados pela busca não apenas visando o entendimento dos
aspectos geográficos e ambientais. As peculiaridades de seus
saberes estão em íntima conexão, permite a concepção de li-
berdade e da convivência, da organização social e da harmo-
nia entre todos e o respeito à natureza.
Estes aspectos são determinantes para ponderarmos a re-
lação que a racionalidade científica leva a complexidade do 295
tempo presente. Propondo consolidar como saber único e
verdadeiro, o conhecimento científico tem determinado a do-
minação e submissão das comunidades ancestrais. A socieda-
de, na atualidade, tem valorizado o conhecimento científico
e técnico no processo produtivo, em detrimento aos saberes
das populações indígenas e das múltiplas experiências raízes e
referências africanas.

É bem verdade que, ao fazerem isso ontem, hoje e ama-


nhã, ali ou em qualquer parte, estas forças distorcem
sempre a realidade e insistem em aparecer como defen-
soras do homem, de sua dignidade, de sua liberdade,
apontando os esforços de verdadeira libertação como
“perigosa subversão”, como “massificação”, como “lava-
gem cerebral” – tudo isso produto de demônios, ini-
migos do homem e da civilização ocidental cristã. Na
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

verdade, elas é que massificam, na medida em que do-


mesticam e endemoniadamente se “apoderam” das ca-
madas mais ingênuas da sociedade. (FREIRE, 2011, p.
53, grifo do autor).

Diante da vivência no projeto “Outras epistemologias no


processo formativo de educação ambiental”78, constatamos a
proximidade das cosmovisões indígena e africana. Petit (2015)
elucida, com segurança, esta correlação:

no Brasil de hoje, em que se conquistou uma lei que ins-


titui, pela primeira vez, o ensino da história e da cultura
africana e afro-brasileira nas escolas (10.639/03), torna-se
296 um grande desafio fazer da cosmovisão africana e da tra-
dição oral conteúdos curriculares, uma vez que os progra-
mas escolares têm sido, até agora, sempre eurocêntricos,
baseados em princípios até mesmo antagônicos aos das
culturas negras. (PETIT, 2015, p. 110)

Ressaltamos que a tradição oral é elemento preponderan-


te que aproxima as cosmovisões. Devemos lembrar que, em
nosso país, aos negros libertados não foram oferecidos nem
escolas, nem terras, nem empregos. Após a pseudolibertação,
muitos ex-escravos retornaram às fazendas, ou a fazendas vi-

78. Projeto coordenado pelo Dr. Mauro Guimarães da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ)/ Programa de Pós-Graduação em Educação Contextos Con-
temporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC), financiado pelo CNPq. Projeto
composto por três grupos de pesquisa: Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação
Ambiental, Diversidade e Sustentabilidade (GEPEADS/UFRRJ); Geografia e Povos
Indígenas (GEOPOVOS/UFRRJ) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Ja-
neiro (Unirio), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), o
Grupo de Estudos em Educação Ambiental desde el Sur (GEASur).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

zinhas, nas quais foram escravizados, para voltar ao trabalho


e receber baixo vencimento. Muitos anos após a abolição, os
descendentes dos negros que foram escravizados viviam nestas
mesmas fazendas, com uma vida pouco melhor seus antepas-
sados próximos.

(...) A identidade é expressão de um poder político que


não nos chega senão por meio da luta que se constrói
politicamente. Portanto, não há como fugir do com-
promisso social; aliás, é ele que alimenta novas pers-
pectivas de uma forma de poder que não mais se jus-
tifica pelas relações pessoais, mas pela capacidade de
resolução dos problemas que nos atingem. (GUEDIN,
2012, p. 27). 297

A identidade do negro no Brasil lhes foi negada, primeiro,


porque vieram para cá obrigados, escravizados, em péssimas
condições, condições estas que decretaram a morte de muitos
antes mesmos de aqui chegarem; segundo porque, uma vez
neste país, foram tratados como seres sem alma, subjugados a
seus donos, brancos, capazes de remontar a um passado dis-
tante. Abdias nos relembra que

o branco que aportou no Novo Mundo trouxe consigo


a bagagem milenar da civilização europeia. Não teve ele
trezentos anos de escravidão semianimalizadora. Trouxe
os ensinamentos que a experiência civilizadora lhe dispôs,
fundou o seu lar. Criou os organismos controladores da
sociedade. Com o braço escravo e terra feraz, colheu as
bases da nossa economia, ergueu cidades, extraiu ouro,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

abriu os caminhos de ferro e construiu esse grandioso


patrimônio que representa a nossa pátria comum. Por
isso, o orgulho advindo dessa superioridade consequente
das circunstâncias, que não racial, gerou o preconceito.
(NASCIMENTO, 1968, p. 139).

Por inúmeras décadas, a única história a ser contada nas


escolas era a do branco, superior, sagaz e maravilhosamente
perspicaz, aquele que conseguiu enriquecer-se e empoderar-
-se aqui às custas da escravidão animalizadora que Abdias tão
bem aponta, e do extermínio de inúmeras etnias indígenas.
Temos um compromisso ideológico, epistemológico e políti-
co de denunciar que a democracia racial, parte de uma pers-
298 pectiva sustentada por Gilberto Freyre (1987), em que a so-
ciedade brasileira estaria isenta de conflitos raciais, não existe,
nunca existiu.
Foi por meio de sua tradição oral, especialmente pelo can-
domblé79, que os negros conseguiram manter sua identidade
religiosa. Vale ressaltar que o candomblé não foi a única. Ver-
ger (1981) diz que a presença dos cultos africanos foram uma
consequência imprevista do tráfico de escravos. Foi diante de
muita resistência que os negros que para o Brasil vieram, para
serem escravizados, conseguiram manter os rituais que faziam
às suas divindades na diáspora africana, vindos de diferentes
nações. E em meio a este e outros autores, ao cursar, no se-
gundo semestre de 2013, a disciplina eletiva Educação, Epis-

79. Não só um candomblé; existe mais de um tipo no Brasil, dentre outras


religiosidades, como a Umbanda, Tambor de Minas, Xangô, dentre outros.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

temologias e Religiosidades80 de Matriz Africana81, ministrada


pelo professor Luiz Fernandes de Oliveira no PPGEDUC/
UFRRJ, comecei a perceber como a formação docente emba-
sada na cosmovisão africana atua.
Todos nós que lá estávamos do início ao fim estivemos
juntos, sempre em roda, conversando, debatendo, comparti-
lhando nossas experiências, colocando-nos em xeque a todo
momento. Participamos de uma festividade num terreiro de
candomblé e de um debate crítico com dois Babalorixás e
uma Yalorixá. Não nos foram impostas quaisquer verdades
absolutas que o mundo acadêmico da universidade por diver-
sas vezes nos expõe. Aprendemos em círculo, na perspectiva
da Pretagogia, que Petit só publicaria em 2015.
299
Penso que o primeiro passo é conhecer o que seja tradição
oral na fonte, pois é patente o desconhecimento de nós,
afrodiaspóricos, acerca das nossas origens africanas, ape-
sar das inúmeras manifestações dessa tradição nos mais
diversos eventos e espaços culturais. No Brasil, ainda são
pouco conhecidos os trabalhos que relacionam a tradição

80. Siqueira (2005) afirma que a religiosidade, quando vista como crenças, valores,
conceitos, práticas religiosas, está sendo ressignificada tanto em termos de atribuição
de sentido e, dentre outras dimensões da religião (e da religiosidade), destaca que ela
também pode funcionar como mecanismo de controle social/exploração/expropriação,
podendo, portanto, ser instrumentalizada pelas elites ou grupos dirigentes de uma so-
ciedade, em seu momento histórico.
81. No decorrer das aulas da disciplina Educação, Epistemologias e Religiosidades de
Matriz Africana, cursada por Viviane, no segundo semestre de 2013, foram estudadas
e discutidas as seguintes temáticas: as relações entre ensino religioso e educação; as
matrizes religiosas hegemônicas nos processos educacionais brasileiros; a religiosidade
de matriz africana, historicidade, relações hegemônicas/subalternas e cosmologias; as
razões epistemológicas das matrizes religiosas afro-brasileiras e as relações entre educa-
ção, sujeitos racializados e religiosidades de matriz africana.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

oral africana com as manifestações culturais brasileiras,


identificando quais as características comuns às africani-
dades. Sobretudo, vem-se pensando e praticando pouco a
tradição oral africana como forma de aprendizagem em-
basada na cosmovisão africana e que possa servir de ma-
triz para os currículos escolares e universitários. (PETIT,
2015, p. 111).

Acreditamos neste exemplo de formação docente no Brasil,


uma formação embasada no diálogo, na tradição oral, que
além da História Africana, Afro-Brasileira e Indígena, deve
valorizar a conversa franca entre a teoria e a prática e vice-
-versa.
300
O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo
mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto,
na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o
diálogo entre os que não a querem; entre os que negam
aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham
negados deste direito. É preciso primeiro que os que as-
sim se encontram negados no direito primordial de dizer
a palavra reconquistem esse direito, proibindo que este
assalto desumanize continue. Se é dizendo a palavra com
que, “pronunciando” o mundo, os homens transformam,
o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens
ganham significação enquanto homens. Por isso o diálo-
go é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em
que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos en-
dereçados no mundo a ser transformado e humanizado,
não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

sujeito ao outro, tampouco tornar-se simples troca das


ideias a serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE,
1987, p. 45, grifos do autor).

A formação de educadores passa por um estágio no qual


o questionamento da epistemologia da modernidade, se ma-
nifesta quando não referenciamos seus saberes revelando um
embate epistemológico ao processo de formação dos educado-
res. É importante sinalizarmos a fragilização do entendimento
de uma intencionalidade pedagógica, fundamentada em um
regime de dominação.
Saviani nos coloca como a formação docente ainda está
precária de políticas formativas
301
(...) ao longo dos últimos dois séculos, as sucessivas mu-
danças introduzidas no processo de formação docente
revelam um quadro de descontinuidade, embora sem
rupturas. A questão pedagógica, de início ausente, vai
penetrando lentamente até ocupar posição central nos
ensaios de reformas da década de 1930. Mas não encon-
trou, até hoje, um encaminhamento satisfatório. Ao fim e
ao cabo, o que se revela permanente no decorrer dos seis
períodos analisados é a precariedade das políticas forma-
tivas, cujas sucessivas mudanças não lograram estabelecer
um padrão minimamente consistente de preparação do-
cente para fazer face aos problemas enfrentados pela edu-
cação escolar em nosso país. (SAVIANI, 2009, p. 148).

É fundamental que o processo formativo instrumentalize


uma consciência libertadora que leve o educando a um
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

processo reflexivo. Neste caminho, Sandra Petit (2015) nos


apresenta outra perspectiva para a formação docente, a Preta-
gogia, um conceito ancestral africano, e aponta que

para a Pretagogia é fundamental conhecer as expressões


dessas tradições orais, identificar nelas os marcadores da
cosmovisão africana e extrair desses valores e de práticas
corporais envolvidas, inspirações concretas para a didáti-
ca em sala de aula, como, por exemplo, o uso dos cinco
sentidos, a diversidade de linguagens artísticas, a transdis-
ciplinaridade e até a abolição da própria ideia de discipli-
na a partir de um trabalho baseado em temas geradores,
onde diversas dimensões do conhecimento se façam pre-
302 sentes concomitantemente, sem a excessiva fragmentação
que nós vemos hoje nos currículos escolares e universitá-
rios. É também a oportunidade de chamar mestras e mes-
tres da cultura para dentro da escola, para nos repassarem
seus ensinamentos, e para, também, realizarmos aulas
de campo fora da escola, para vivenciarmos as tradições
no ambiente natural de produção e de criação. (PETIT,
2015, p. 178-179).

No intuito de aplicarmos as leis que complementaram o


artigo 26-A da LDBEN, 10.639/03 e 11.645/08, percebemos
que a Pretagogia demonstra a perspectiva intercultural expos-
ta no trabalho de Oliveira (2010):

(...) as histórias locais podem se constituir, numa perspec-


tiva outra, em interculturalidade efetiva que aponte para
as novas gerações uma multiplicidade de respostas críticas
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

decoloniais que partam das culturas e lugares epistêmicos


subalternos. A educação e a formação docente em His-
tória são palcos importantes dessas perspectivas e, como
vimos nesta tese, os atores que estão envolvidos nesta
discussão começam a se inserir neste cenário para um
diálogo que caminhe para além da simples constatação
da diversidade, ou seja, um caminho de reconhecimen-
to, trocas, intercâmbios e histórias compartilhadas para o
desenvolvimento da razão humana pluriversal. (OLIVEI-
RA, 2010, p. 255).

Acreditamos ser esta a percepção real que deva ser refleti-


da, pensada e repensada na formação de educadores brasilei-
ros, embasadas numa interculturalidade crítica e decolonial, 303
bases estas que foram bastante exploradas na pesquisa de Petit
(2015) ao apresentar-nos a Pretagogia como outra forma de
pensar a cosmovisão africana na formação de educadores.

(...) não acredito em transformações nas quais a forma-


dora e o formador se situam na exterioridade, onde o
docente pretende ensinar sem realizar a partilha dos mar-
cadores da sua própria africanidade, que não exige pig-
mentação negra na pele, mas consciência e capacidade de
identificação desses marcadores. Essa temática, acima de
qualquer outra, não permite se manter numa postura de
espectador ou de pesquisador neutro que só objetiva o
outro. (PETIT, 2015, p. 176)

É nesse campo que deve situar o processo formativo de


educadores, a instrumentalizar a luta permanente por uma
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

disputa que fundamente novos paradigmas. Dessa forma, a


transmissão coletiva dos saberes dos guaranis e das africanida-
des possibilitam valorizar o conhecimento tradicional, na atu-
al sociedade, sobretudo a engrandecer o processo pedagógico
crítico e libertador das amarras opressivas do colonialismo en-
raizado nas práticas de formação de professores na educação
brasileira.

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INTERVENÇÃO DO MOVIMENTO
INDÍGENA NAS ESCOLAS:
DESCONSTRUINDO O PRECONCEITO
ANTES DA LEI 11.645/08

Marize Vieira de Oliveira82


Julio Cesar Araujo dos Santos83

A maioria dos países da América Latina ainda tem “muito a


fazer” para acabar com a violência institucional contra os indíge-
nas, já que são necessários “modelos de educação e saúde intercultu- 307
rais, além de sistemas de Justiça nos quais se aplique o pluralismo”.
Mirna Cunningham84

INTRODUÇÃO

“Somos alimentados daquilo que nos dão.” Essas pala-


vras proferidas por um aluno do terceiro ano do ensino mé-
dio na avaliação de um trabalho sobre a pluralidade étnica

82. É guarani M´biá, professora de História da rede pública SEEDUC-RJ e da SME/


Duque de Caxias. Mestranda em Educação pelo PPGEDUC/UFRRJ e compõe a Se-
cretaria de Assuntos Educacionais no Instituto dos Saberes dos Povos Originários Aldeia
Jacutinga em Duque de Caxias, RJ (ISPOAJ). E-mail: marizemulherbr@yahoo.com
83. Professor de História da rede pública SEEDUC-RJ e da SME/Duque de Caxias. Mes-
tre em Educação pelo PPGEDUC/UFRRJ. E-mail: deepurple85@hotmail.com
84. Nicaraguense, especialista em Assuntos Indígenas e ex-presidente deste fórum na ONU.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

desenvolvida no Centro Integrado de Educação Pública Aarão


Steinbruch (CIEP 201) em 2015, onde trabalhamos, na rede
estadual do Rio de Janeiro, exprime a conflitualidade em de-
senvolver um trabalho docente que acaba por nos aprisionar
em estruturas que dificultam tomadas de consciência crítica
em relação às tensões que permeiam a educação. É nesse con-
texto que identificamos as significativas reações contra as re-
presentações plurais que questionam as pedagogias hegemôni-
cas, na medida em que estas, com frequência, se posicionam
na defensiva contra os coletivos sociais que pressionam por
reconhecimento, pela sua história, buscando espaços nesses
territórios como forma de afirmação e denúncia aos esquemas
de rigidez presentes nas pedagogias que se conformaram em
308 minimizar a importância dos grupos étnicos não contempla-
dos com o pensamento e a episteme do dominador europeu,
designando o que Boaventura (1996, p. 23) denomina como
pedagogia das ausências.
O que nos incomodou e continua incomodando é justa-
mente ter que reconhecer como são cruéis e verdadeiras as
formas institucionalizadas, ainda presentes no ambiente esco-
lar, de socializar o conhecimento, que acabam por alimentar
o preconceito e a desconfiança contra sujeitos historicamente
colocados à margem, desvelando assim as dificuldades que
envolvem os conflitos presentes em trabalhar conceitos que
discutem conteúdos sobre a noção da subalternização étnica
e cultural dos povos aqui discriminados, cimentando, com
isso, a homogeneização cultural, que reforça, ou alimenta na
percepção da construção epistemológica, a invenção do outro
com o marco do paradigma da retórica da modernidade euro-
peia, caracterizada pela colonização, a dominação econômica
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

e epistemológica, assim como a verticalização do diálogo e da


violência.
Nesse sentido, o presente artigo parte do desafio proposto
na disciplina Formação de Professores em Relações Étnico-
-Raciais do Programa de Pós-Graduação em Educação, Con-
textos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC/
UFRRJ) em trazer propostas docentes que evidenciam práti-
cas pedagógicas no ambiente escolar, rompendo com o olhar
eurocêntrico ou com o conhecimento dado que registra a
parcialidade do saber. Nesse contexto, buscamos aqui não só
apresentar as dificuldades vividas pelos docentes em lidar com
pedagogias outras, no caso específico, uma proposta epistê-
mica intercultural crítica que possa se contrapor à negligên-
cia do poder público – nacional e estadual – em relação as 309
mudanças propostas pela Lei 11.645/08, que repetidamente
reforçam políticas coloniais, historicamente marcadas por re-
lações de conflitos nas relações étnico-culturais e que dificul-
tam reflexões teóricas sobre o papel fundamental dos povos
originários em nosso país. Destacamos também a importância
da construção do movimento denominado Aldeia Maracanã
e o processo de luta das várias etnias indígenas que despertou
a atenção mundial em relação ao tratamento dispensado pelo
poder público do Estado do Rio de Janeiro sobre o patrimô-
nio cultural dos povos originais e as ações destes indígenas em
garantir a história e cultura indígena em muitas escolas deste
estado, inclusive a nossa.
O objetivo deste trabalho é apresentar suas dimensões e
seus desdobramentos quanto às questões cruciais em relação
aos paradigmas que possibilitam movimentar novas narrativas
dos povos que sofreram com mecanismos de exclusão e as ati-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

vidades desenvolvidas em uma escola da Baixada Fluminense


aonde destacamos o antes e o depois sobre a aprendizagem
negociada em relação a cultura do outro. Assim como nossos
alunos e alunas, também convidamos o/a leitor/a, a se posi-
cionar sobre novas formas de pensar.

POR UMA EDUCAÇÃO DECOLONIAL QUE


GARANTA A VISIBILIDADE INDÍGENA

Partimos do compartilhamento das experiências vividas


por nós juntamente com estes indígenas que em contexto
urbano resolveram construir a política de socializar, com os
310 educadores e educadoras, saberes tradicionais no que se refere
à cultura indígena, no Estado do Rio de Janeiro, já que a
grande maioria dos educadores das escolas do Brasil, de modo
geral, desconhece a cultura indígena e acaba reforçando este-
reótipos e preconceitos, isto quando simplesmente não dão
visibilidade a ela.
A partir desta constatação, um grupo de indígenas em
contexto urbano decidiu desenvolver projetos que garantis-
sem o debate sobre História e Cultura Indígena nas escolas,
de forma dispersa até 2005, com a construção do Movimento
Tamoio dos Povos Originários.
Em primeiro lugar, entendemos como fundamental des-
construir a História oficial que assenta a História do Brasil
como marco inicial a partir da chegada de Pedro Álvares Ca-
bral, cuja versão é de que ele “descobriu o Brasil”. Ninguém
descobre o que tem dono, portanto, iniciamos este trabalho
com os alunos com a proposta de rediscutirmos o “Descobri-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

mento do Brasil”, não mais sobre a ótica eurocêntrica, mas


a partir da visão de seus primeiros conquistadores: os 1.300
povos, segundo o etnólogo Kurt Nimuendaju (1987:27), to-
talizando 6 milhões de pessoas (FREIRE, 2016).
Os livros didáticos antes da Lei 11.645/08, que torna obri-
gatório o ensino de História, congelava os povos indígenas
no século XV e homogeneizava os povos indígenas que estão
espalhados em todo o território de Norte a Sul do Brasil. A
invisibilidade que atinge os 305 povos indígenas parece de-
monstrar ser uma política que, a nosso ver, reforça os inte-
resses coloniais de dominação do Estado Nacional Brasileiro.
O mais preocupante de tudo é que ainda hoje, passados
516 anos da chegada do europeu nestas terras, do ensino bá-
sico ao universitário, passando pela mentalidade do Estado e 311
também dos gestores de instituições de todas as modalidades
de ensino, a visão é de exclusão e invisibilidade destes po-
vos, o que pereniza o olhar hegemônico ocidental (SANTOS,
2010, p. 37) e, portanto, nos faz pensar que devem ser repe-
lidos; pois se fornecermos uma única visão, a oficial, através
da qual os privilegiados são os opressores, os povos indígenas
fatalmente estarão na invisibilidade, e desta forma, a História
sepulta os fatos e o povo que tornou parte de nossa história
possível.
Hoje, mesmo com a Lei em questão, o que vemos é um
cenário de invisibilidade ou reprodução dos mesmos estere-
ótipos, com poucas mudanças, já que, sem uma política de
Estado que de forma eficaz garanta a capacitação dos profes-
sores, torna-se muito difícil promover a formação de um pen-
samento mais próximo da realidade com relação à pluralidade
de povos que ainda vivem neste território e da multiplicidade
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

de culturas que o Brasil ainda abriga. É importante frisar que


temos mais de 305 povos indígenas falando 274 línguas e os
problemas aqui expostos dificultam a possibilidade de sociali-
zar os ataques que estes povos vêm sofrendo, criando lacunas
sobre o conhecimento das principais lutas e resistências que
os povos indígenas do Brasil têm travado nos últimos anos.
São mudanças consideráveis e ainda é uma realidade distante
de se concretizar, já que nunca foi interessante para o Esta-
do brasileiro valorizar as culturas dos povos indígenas. Seria
perigoso para o interesse do agronegócio, dos madeireiros e
mineradores, que historicamente compõem o poder político
no Brasil.
Assim sendo, o viável para estes grupos que dominam as
312 estruturas de poder, por motivos muito simples para eles, foi
não permitir que o restante da população brasileira se identi-
ficasse com estes povos.
Ciente destas questões, o Movimento Tamoio apostou na
Construção do Instituto Tamoio dos Povos Originários, que
se transformou na Aldeia Maracanã, ficando conhecida mun-
dialmente quando o governador Sérgio Cabral, do Estado
do Rio de Janeiro, comprou o prédio do governo federal em
2012 e expulsou de forma violenta os indígenas que lutavam
pela construção de um Instituto de Promoção e Difusão da
Cultura Indígena. Apesar da violência, continuamos o traba-
lho nas escolas em todos os níveis. Por estas razões, tornou-
-se também importante debatermos estas questões em sala de
aula, desde o pré-escolar às universidades em todo o Estado
do Rio de Janeiro. A partir da Lei 11.645/08, pudemos ga-
rantir a discussão nas escolas sobre a história dos povos indí-
genas por outro olhar: O olhar dos que resistem!
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Neste sentido, nos apresentamos enquanto militantes da


questão racial relatando a experiência a seguir: a nossa voz
parte e afirma a condição de quem se reconhece como edu-
cadora guarani, indígena em contexto urbano e integrante da
Aldeia Maracanã, e também de um docente afro-brasileiro,
militante da luta contra o preconceito racial e do diálogo in-
tercultural crítico, mas todos partícipes da luta indígena nas
escolas que trabalham.

313

Crédito: Marize Vieira de Oliveira

ALDEIA MARACANÃ: UMA HISTÓRIA


EM CONSTRUÇÃO

Em 20 de outubro de 2006, um grupo composto de 17 et-


nias indígenas resolveu, no Primeiro Encontro do Movimen-
to Tamoio, ocupar o prédio do antigo Museu Nacional do
Índio, situado na Rua Mata Machado, Maracanã (em frente
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ao portão 13 do Estádio Mário Filho – Maracanã). Qual o


objetivo destes povos?
Em primeiro lugar, construir no prédio que abrigou o pri-
meiro Museu do Índio, abandonado há trinta anos, um Insti-
tuto de Promoção e Difusão da Cultura Indígena na Capital
Cultural do Brasil, Rio de Janeiro. Decisão amadurecida a par-
tir dos trabalhos que estes grupos desenvolviam há anos nas es-
colas não indígenas no Estado do Rio de Janeiro. Nestas esco-
las, como já observado, reproduzia-se o imaginário do europeu,
do conquistador; existia a completa ignorância dos professores
e alunos sobre os povos que ainda habitam este imenso país,
vivendo no território correspondente à terra de Pindorama na
época da chegada dos portugueses neste território.
314 Ao que parece, mesmo com a luta que ainda continua e
com toda vigilância, já que foi garantido o salvamento do
prédio que seria implodido, e sua transferência para a Secreta-
ria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, os povos indíge-
nas, supostamente, foram colocados em compasso de espera
pelo poder público, mas a resistência indígena não deve ser
subestimada, logo, espera-se que a garantia dada seja cum-
prida, pois os grupos indígenas presentes na celebração do
acordo ainda aguardam a restauração do prédio.
É importante lembrar que a missão de produzir um projeto
para o prédio foi aceita e construída pelas lideranças da Aldeia
Maracanã, e endossada por várias lideranças indígenas de Norte
a Sul do Brasil, representando mais de cinquenta etnias de todo o
país, reunidas em assembleia na cidade do Rio de Janeiro para o
Seminário de Construção do Centro de Referência da Cultura dos
Povos Indígenas, no dia 18 de dezembro de 2013, com a então
Secretária de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Adriana Rattes.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Portanto, só falta agora que o governo do Estado do Rio


de Janeiro, na pessoa do atual governador Sr. Luiz Fernando
Pezão, libere as verbas para restaurar o prédio e honre com a
palavra empenhada (quando ainda era vice-governador) com
os povos indígenas. Mas a História dos Povos Indígenas é fei-
ta de muita luta e igual resistência, portanto, continuamos
o trabalho nas escolas destacando esses contextos e questio-
nando a negação histórica sobre determinados sujeitos e suas
lutas. Essas estratégias de construir uma pedagogia outra, em
grande parte nos parecem uma forma consistente de descons-
truir o modelo posto como hegemônico, e tem puxado um
diálogo em nossos trabalhos e em apresentações que temos
levado a outros estados do país.
O sentimento de pertencimento a uma diversidade cultural 315
representada pela ancestralidade indígena e africana, especifica-
mente neste texto representada pelos mais diversos povos indí-
genas, permite que construamos a identidade brasileira como
sociedade multicultural e pluriétnica, rica e forte. Esse senti-
mento permite rechaçar os apelos do imperialismo das nações
europeias e norte-americana, que tentam influenciar o povo
brasileiro a partir do currículo que, no Brasil, ainda é eurocên-
trico. Nesse sentido, é possível inferir que sobre o continente
americano o que mais se estuda é a História europeia e a norte-
-americana. É a partir desta constatação que necessitamos lutar
por uma proposta decolonial para o currículo educacional bra-
sileiro, que garanta a diversidade que temos, construindo em
nosso povo a consciência de que os povos indígenas tiveram
e ainda têm papéis de suma importância na construção da so-
ciedade brasileira. Esse entendimento repercute a ideia de que:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

[...] Os movimentos sociais trazem indagações e dis-


putas para o campo dos currículos e da docência. Os
movimentos indígena, quilombola, do campo afirmam
direitos à terra, territórios, à igualdade, às diferenças,
às suas memórias, culturas e identidades e introduzem
novas dimensões nas identidades e na cultura docente.
(ARROIO, 2011, p. 11)

São essas lutas dos movimentos que garantem, através das


ações afirmativas, a mudança dos perfis de docência, diversi-
ficando os currículos, e dessa forma, são os movimentos indí-
genas que vêm trabalhando em uma perspectiva de formação
do docente para garantir a implementação da Lei 11.645/08
316 no espaço escolar.
Hoje os indígenas formam uma população que, segundo o
último Censo do IBGE (2010), totaliza 305 grupos étnicos
indígenas no Brasil, falando 274 idiomas, número que exclui
aquelas faladas pelos índios isolados, uma vez que eles não
estão em contato com a sociedade brasileira e suas línguas
ainda não puderam ser estudadas e conhecidas. Ainda não dá
conta da população verdadeira indígena em nosso território,
pois há apenas dois censos o quesito “indígena” foi coloca-
do para centro de cidade e, mesmo com o Brasil ratificando
tratados internacionais que garantam a autodeclaração, como
a Convenção 169 da OIT85, ainda perdura o preconceito e
a discriminação contra os indígenas em contexto urbano,
que muitas vezes negam sua etnia com medo de serem alvos
da discriminação, violência e exclusão, por serem indígenas.
85. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), garante a
autodeclaração dos povos indígenas.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Portanto, os indígenas em contexto urbano são duplamente


discriminados: por não serem aldeados por vários indígenas
aldeados e pela população não indígena que negam seu direi-
to de pertencerem a este grupo étnico, pelo que lhes foi ensi-
nado nas escolas, em sua família e nos grupos sociais de que
fazem parte com poucas exceções. Estes tipos de violências
étnicas foram os responsáveis pela população indígena que
veio para o contexto urbano se colocar como pardo, como
podemos observar:

desde a última década do século passado vem ocorrendo


no Brasil um fenômeno conhecido como “etnogênese”
ou “reetinização”. Nele, povos indígenas que, por pres-
sões políticas, econômicas e religiosas ou por terem sido 317
despojados de suas terras e estigmatizados em função dos
seus costumes tradicionais, foram forçados a esconder e a
negar suas identidades tribais como estratégia de sobrevi-
vência – assim amenizando as agruras do preconceito e
da discriminação – estão reassumindo e recriando as suas
tradições indígenas. (LUCIANO, 2006, p. 28)

Podemos afirmar, a partir desta análise, que, segundo os


estudos do IBGE 2010, “a distribuição espacial da população
indígena é o resultado, assim, não só do processo histórico
de ocupação socioeconômica do Brasil, como da tendência à
crescente afirmação da identidade cultural e territorial dessa
população ao longo do tempo”. (IBGE, 2010, p. 9)
Por esta realidade perversa, um fato nos chama a atenção:
a Região Norte tem a maior população indígena do país e
também a maior população de pardos do Brasil.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO INDÍGENA - 2010

318
Fonte: IBGE

POPULAÇÃO RESIDENTE POR COR OU RAÇA


E RELIGIÃO - BRASIL E GRANDE REGIÃO - 2010

Variável = polulação residente (percentual)


Cor ou raça = Parda
Religião = Total
Brasil 43,42
Norte 67,19
Nordeste 59,78
Sudeste 35,97
Sul 16,70
Centro-Oeste 49,45
Fonte: IBGE
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

POPULAÇÃO RESIDENTE NO BRASIL,


POR RAÇA/COR DA PELE - 2010

Raça/cor da pele Número absoluto Proporção


Branca 91.051.646 47,73
Parda 82.277.333 43,13
Preta 14.517.961 7,61
Amarela 2.084.288 1,09
Indígena 817.963 0,44
Total 190.749.191 100

O Brasil nunca trabalhou com a categoria Genocídio para


a população indígena, e o Estado brasileiro implementou his- 319
toricamente uma política de extermínio e desindigenização
do povo brasileiro que manteve e aprofundou a política de
apresamento e de invisibilidade dos Povos Originários por al-
gumas razões:

1º − A política de “integrar” o indígena, dando carta


branca aos jesuítas inicialmente e depois a outras ordens
de catequese, para que estes povos abandonassem sua
cultura;
2º − A negação de ser indígena a qualquer etnia que sa-
ísse de sua aldeia e fosse viver fora dela, para redução de
seu número;
3º − A política de miscigenação, para assim negar a
identidade indígena e, desta forma, usurpar as terras
para o avanço das culturas de exportação, mineração e
do gado;
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

4º − Garantir a invisibilidade desta cultura milenar, que


é um dos pilares da cultura atual, reforçando estereótipos
e preconceitos, garantindo o não sentimento de pertenci-
mento a estes povos do restante da população brasileira.

A primeira grande prova do processo de negação dos povos


que habitavam este continente e estas terras foi explicitada
nos documentos e ainda hoje é possível encontrar em alguns
livros didáticos de História: Descobrimento da América pelos
Espanhóis e o Descobrimento do Brasil pelos Portugueses. Se os
livros didáticos, antes da Lei 11.645/08, homogeneizavam os
povos indígenas que estão espalhados em todo o território de
Norte a Sul do Brasil, ainda hoje as epistemologias encobrem
320 esses sujeitos sócio-históricos e suas lutas de resistências, assim
como suas formas de produzir conhecimento. Somente essa
perspectiva de conhecimento permite e nos dá a certeza de
que realmente é impossível descobrir uma terra onde viviam
aproximadamente 6 milhões de pessoas.
Hoje, mesmo com o estatuto da Lei, o que vemos é um ce-
nário de invisibilidade que continua na reprodução dos mo-
delos e da lógica implementada pelo olhar colonial, reforçado
pelas poucas mudanças apresentadas pela política de Estado,
que não tem garantido a capacitação dos professores sobre as
mudanças que alteraram a LDBN/96 com a Lei 10.639/03 e
a sua complementar, a 11.645/08, que passou a incluir a edu-
cação indígena no currículo do ensino básico, sublinhando a
eficácia legal em discutir a questão da Educação das Relações
Étnico-Raciais na Educação, consolidando de vez uma modi-
ficação obrigatória na formação de professores, assim como
na possibilidade de estabelecer um diálogo que permitisse in-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

verter o discurso sobre as questões que por muito tempo con-


figuraram e deram legitimidade ao situar a invasão e a ocupa-
ção dos territórios dos Povos Originários pelos europeus.
Nessa perspectiva, inferimos que não é e nunca foi interes-
sante para o Estado brasileiro valorizar as culturas dos povos
indígenas, porque nunca foi interesse do Estado aceitar que
os portugueses, e depois os seus descendentes, implementa-
ram o maior genocídio da história do mundo: o holocausto in-
dígena no continente americano. Porque mostrar um povo que
o restante do Brasil pudesse se apaixonar e se identificar seria
perigoso para o interesse do agronegócio, das hidrelétricas,
dos madeireiros e das mineradoras, e do Estado, que produz
as leis, e que é majoritariamente composto pelos representan-
tes desta classe social. 321

UMA EXPERIÊNCIA INDÍGENA NO CIEP 201:

Crédito: Marize Vieira de Oliveira


DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Como professores de História, nossa vivência com o currí-


culo mostrou-nos o quão invisível se torna a questão indígena
no processo histórico do Brasil.
Se antes da Lei 11.645/08 congelavam os indígenas no sé-
culo XVI, agora, falam ainda de forma periférica, sobre os
Povos Originários deste país. Como não chamar de genocídio
o grande extermínio de povos que aqui viviam?
Como não fazer uma conexão entre as ações do Estado
na Ditadura Militar que exterminou e também expulsou boa
parte dos indígenas para dar aos latifundiários as terras outro-
ra dos Povos Originários?
Não podemos entender a história verdadeira deste país sem
perceber as violências praticadas contra os povos indígenas
322 em todo o processo de desenvolvimento da nação brasileira,
que se perpetua na medida em que outras formas de pensar
continuam subjugadas. Dessa forma:

O pensamento moderno (incluindo aí a moderna peda-


gogia) opera em um sistema de distinções visíveis e invi-
síveis estabelecidas a partir de linhas radicais que dividem
a realidade em dois universos distintos, irreconciliáveis:
o universo “deste lado da linha” e o “do outro lado da
linha”. “A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desapa-
rece enquanto realidade, torna-se inexistente e é mesmo
produzido como inexistente.” (SANTOS, 2010, p. 32)

Ainda citando Boaventura de Sousa Santos:

A apropriação e a violência tomam diferentes formas na


linha abissal jurídica e na linha abissal epistemológica.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Mas, em geral, a apropriação envolve incorporação, coop-


tação e assimilação, enquanto a violência implica destrui-
ção física, material, cultural e humana. Na prática, é pro-
funda a interligação entre a apropriação e a violência. No
domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso
dos habitantes locais como guias e de mitos e cerimônias
locais como instrumentos de conversão, à pilhagem de
conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, enquan-
to a violência é exercida através da proibição do uso das
línguas próprias em espaços públicos, da adoção forçada
de nomes cristãos, da conversão e destruição de símbolos
e lugares de culto, e de todas as formas de discriminação
cultural e racial (2010, p. 38).
323
Assim trabalhou o Estado brasileiro em toda a História
do Brasil, no sentido de invisibilizar a tal ponto os povos in-
dígenas que hoje, no imaginário social, indígenas estão no
meio do mato, lá longe na Amazônia, e não têm nada a ver
conosco, como se o restante da população estivesse comple-
tamente à parte destes povos. Ainda pelo resquício do ima-
ginário social construído na velha pedagogia, estes povos são
apenas animais, sem cultura, que vivem no meio do mato e
matá-los é como matar outro animal qualquer, como atestam
situações vividas em Mato Grosso do Sul, região de grande
concentração do agronegócio, onde a violência já se tornou
institucional, existindo fortes indícios da omissão de juízes na
violência praticada contra os povos indígenas. Sem falar que,
no Mato Grosso do Sul, a violência contra o povo Terena e
Guarani e Kaiowá se arrasta há séculos, impondo aos guaranis
uma violência considerada política de genocídio.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

A banalização da vida, o ódio e o preconceito racial contra


os povos indígenas iniciou este ano de 2016 deixando um
rastro de morte para o povo indígena. O menino Vitor, de
apenas 2 anos, da etnia Kaingang, foi degolado nos braços da
mãe enquanto mamava, em plena rodoviária de Ibituba, SC.
Na mesma aldeia, alguns dias depois, uma criança de colo
morreu por desnutrição.
Em Belo Horizonte, o número de Krenaks que vêm sendo
vítimas de assassinatos e de “atropelamentos” é preocupante.
A ponto de a própria população dizer que “eles estão sendo
mortos porque são índios”.
Segundo o CIMI (19/1/2016):

324 15/5/2016 – mais um indígena foi assassinado em Belo


Horizonte, na Rua 21 de Abril, na região central da Capital.
O indígena de aproximadamente 55 anos de idade, ainda sem
identificação, sobrevivia naquela região como morador de rua,
reconhecido como uma pessoa tranquila e pacífica, sem ante-
cedentes criminais. Ele dormia na calçada quando um jovem se
aproximou e iniciou um ataque covarde e cruel, com um chute
e mais vinte pisadas em sua cabeça. O indígena ficou agonizan-
do na calçada por cinco horas. Levado ao hospital, não resistiu
aos ferimentos e faleceu. O assassino é um jovem bem-apes-
soado, que agiu por ódio, preconceito e racismo. Comporta-
mento este que está se tornando comum em nossa sociedade,
principalmente contra indígenas, negros/negras, profissionais
do sexo, homossexuais, negando-lhes a cidadania e o direito
humano de existir em uma sociedade mais tolerante.
Por estas e muitas outras situações de extrema violência
como o Relatório Figueiredo (2015), que consta de 7 mil
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

páginas, com relatos dantescos sobre as violências praticadas


contra os povos indígenas de todo o Brasil, as denúncias
vão desde calçadas humanas promovidas com metralhadoras
e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais em
povoados isolados e doações de açúcar com estricnina, este
texto que foi redigido pelo procurador Jader de Figueire-
do Correia, está sendo analisado pela Comissão da Verdade,
que apura violações de direitos humanos cometidas no pe-
ríodo de 1946 e 1988. Portanto, estes são mais documentos
que precisam ser analisados pela sociedade brasileira, prin-
cipalmente pelos intelectuais das universidades, para que a
História do Brasil seja reescrita e que o termo genocídio seja
colocado nos livros didáticos com relação aos povos indí-
genas. Desta forma, os alunos terão acesso a uma realidade 325
mais próxima da verdade, porque achamos que nossos alu-
nos precisam criar uma consciência crítica sobre a questão
racial, pois não podemos mais tratar como comum, ou ape-
nas silenciarmos diante de tantos abusos, de negação aos di-
reitos humanos, garantidos em nossa Constituição Federal,
contra os povos indígenas.
No início deste trabalho no CIEP 201 Aarão Steinbruch,
em Duque de Caxias, os alunos não eram diferentes das de-
mais pessoas de senso comum; tinham uma visão bastante
preconceituosa com relação à questão indígena e foi com este
projeto que pudemos perceber quanto o preconceito estava
arraigado neles, ou simplesmente perceber o olhar de indife-
rença sobre este debate. Como metodologia, utilizamos dois
métodos: o Dialético, na medida em que tudo se transforma
permanentemente, tudo se relaciona e estas transformações
impulsionam as relações e as lutas dos contrários. Segundo
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Foucault, é necessário trabalhar para estabelecer a desconstru-


ção de certas “verdades” para depois auxiliarmos na recons-
trução sob outras bases; e a segunda ferramenta foi o método
Comparativo, já que este busca compreender a realidade a
partir das comparações entre os grupos, fenômenos, locais ou
tempos históricos diferentes.
Este projeto garantiu uma abordagem mais real sobre a po-
pulação indígena, para os professores e alunos. Em encontros,
primeiro com alguns professores, na reunião geral, mesmo
que de forma breve, mostramos o projeto e sua importância;
e depois, com os alunos em sala de aula, trabalhamos a partir
do que eles sabiam sobre os povos indígenas, com métodos
de pesquisas, debates, filmes, cantos, danças, vocabulário e
326 expressões incluídos em nosso idioma (português), até a cul-
minância do trabalho com várias turmas e professores, socia-
lizando para toda a escola esta experiência com as turmas do
ensino médio.
Estes encontros, quer sejam na sala, quer sejam com os
professores do CIEP, sempre tiveram a participação do Movi-
mento Tamoio, da Aldeia Maracanã, composto por indígenas
de várias etnias. Nestes trabalhos, os alunos construíam um
prazer de saber mais e mais sobre povos dos quais só ouvi-
ram (quando ouviram) falar coisas ruins. Os trabalhos produ-
zidos pelos alunos (pinturas, grafismos), foram expostos em
área comum a todos os alunos ao longo da rampa do CIEP.
Em outro momento, já em sala, pedimos aos alunos que ex-
pusessem seus pensamentos após este trabalho: O que eles
pensavam sobre a questão indígena antes do projeto e o que
pensavam após o trabalho? Pedimos que explicassem o que
tinha mudado. Pudemos concluir, neste e em outros traba-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

lhos desenvolvidos em parceria com o Movimento Indígena,


que ao entrarem na cultura indígena de forma propositiva e
entenderem um pouco este imenso universo, os alunos não
só começaram a perceber a importância e a beleza da cultura
indígena, como também, naqueles que em sua família existe o
elemento indígena, construir o sentimento de pertencimento
a esta cultura.
A partir desta mudança de visão, a discriminação e o pre-
conceito cessam. Porque só podemos gostar daquilo que co-
nhecemos. Estas mudanças de visão puderam ser constatadas
através dos trabalhos desenvolvidos por eles, expressando suas
vivências e a mudança de pensamento.

327
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que a Lei 11.645/08, ao reforçar novos prota-


gonismos, como as lutas dos povos africanos e indígenas, no
ambiente escolar anima as demandas e compromissos de pro-
fissionais engajados em processos políticos que rompam com
o caráter conservador em que foram moldados os saberes da
nossa escola. Nesse sentido, o passado colonial brasileiro de
opressão e de genocídio deve ser encarado como uma pro-
posta de reflexão sobre a formação do país e a construção
étnica do povo brasileiro. Nesse sentido, é fundamental que a
prática docente possibilite visibilizar outra pedagogia referen-
te a trajetórias, conhecimentos, experiências que insiram no-
vas dinâmicas e questionem os paradigmas de ausências que
configuraram e se materializaram em conhecimento ou olhar
hegemônico.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

O projeto que apresentamos nesse breve trabalho se esfor-


çou em apontar possibilidades que confrontam o currículo
eurocêntrico e as formas que ratificam a cultura colonial, ou
seja, configurações alternativas que buscam instigar os discen-
tes a ter uma leitura crítica do mundo, buscando considerar
as tensões presentes nas lutas que os grupos indígenas e afro-
descendentes, vítimas do colonialismo, desenvolvem contra
a mentalidade presente na colonialidade, principalmente em
relação à produção de saberes que reforçaram a subalterniza-
ção e estereótipos dos povos oprimidos por esse modelo. Com
base nessa reflexão, e como parte de uma educação engajada e
legítima em espaços negados, tentamos também apresentar as
estratégias presentes nas lutas dos povos indígenas quando o
328 Estado se faz presente e tem que negociar interesses do capital
que conflitam com a ancestralidade dos povos tradicionais.
Por fim, destacamos a importância de projetos e discussões
pedagógicas no espaço escolar que reforçam o respeito à nossa
pluralidade étnica construída no diálogo intercultural crítico,
ou seja, onde os grupos historicamente vítimas das distinções
presentes na violência da exclusão do capitalismo e do co-
lonialismo possam, efetivamente, desconstruir o estereótipo
do selvagem difundido pelos livros didáticos sobre os povos
indígenas e estabeleçam novas formas de construir o saber.
A nosso ver, as possíveis tensões provocadas pelas urgências
docentes em assumir posturas que problematizem a noção do
conhecimento universal se configuram em novas formas de
pensar e de aprender, ou na sabedoria das palavras do aluno,
são novas formas de alimento. Assim, para nós, as possibili-
dades de promover o acesso sobre a história indígena significa
reconhecer este projeto como uma ferramenta emancipatória
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

de dignidade e de horizontalidade do diálogo a partir do olhar


de quem sempre resistiu à parcialidade da “cultura legítima”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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331
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

DOCENTES NO CURSO DE TURISMO


DA UFRRJ: REFLEXÕES A PARTIR DA
LEI FEDERAL 12.711/2012

Ricardo Dias da Costa86

INTRODUÇÃO
333
O debate sobre a implantação e implementação de políti-
cas de ação afirmativa na educação superior no Brasil já não
é tão recente, pois existe há mais de 10 anos, mas mesmo
assim desafia a sociedade e o Estado a enfrentarem o proble-
ma das desigualdades raciais e sociais, principalmente aquelas
relacionadas a igualdade de oportunidades de acesso às uni-
versidades. Por muito tempo, aprendemos a conviver com um
sistema educacional altamente desigual e altamente seletivo,
organizado sob a égide do liberalismo mediante o pressuposto
da igualdade de oportunidades. Este sistema, que tem funcio-

86. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contempo-


râneos e Demandas Populares (PPGEDUC). Mestre em Turismo e professor assistente
do curso de Turismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)/Cam-
pus Nova Iguaçu. Vice-coordenador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e In-
dígenas (Leafro-Neabi-UFRRJ). Pesquisador do Observatório das Políticas de Demo-
cratização de Acesso e Permanência na Educação Superior (OPAA/UFRRJ). Integrante
do Grupo de Pesquisa Educação e Relações Étnico-Raciais (GPESURER). Pesquisador
do Núcleo de Pesquisa em Turismo (NEPET).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

nado com a lógica da exclusão social e uma dinâmica institu-


cional fundamentada na ideologia do racismo, passa, desde o
final do século passado, por um momento de reestruturação.
O propósito deste trabalho, que tem caráter exploratório,
é refletir sob o olhar da Lei Federal 12.711/2012, também
conhecida como “lei de cotas”, a relação existente entre os
professores do curso de Turismo da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e a temática, bem como
os seus desdobramentos na formação acadêmica dos alunos
deste curso. Estes desdobramentos podem ser entendidos sob
vários prismas, tais como mobilidade social, inserção no mer-
cado de trabalho ou sucesso acadêmico. Este sucesso não de-
pende somente do aluno, mas, sim, de vários fatores, como
334 família, emprego, estrutura administrativa da universidade e
a sua estrutura física e pedagógica, dentre outros. Ao corpo
docente cabe, além das atividades em sala de aula, reconhecer
as potencialidades individuais de cada um, criando meios que
facilitem o processo de ensino-aprendizagem.

CURSO DE TURISMO DA UFRRJ


E A LEI FEDERAL 12.711/2012

A área de estudo voltada para o Turismo existe hoje com


oferta de cursos em todos os níveis, desde a graduação até o
doutorado, tanto na modalidade presencial quanto a distân-
cia, bem como bacharelado e licenciatura. Os currículos dos
cursos de graduação, bacharelado, presencial em Turismo têm
estruturas curriculares diferenciadas, mas apesar desta caracte-
rística, oferecem um espaço privilegiado para a discussão da
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

questão étnico-racial brasileira, tendo em vista a sua inser-


ção na grande área das Ciências Sociais Aplicadas. As relações
interpessoais e de mercado que se constroem no desenvolvi-
mento da atividade turística, que envolvem o turista e o pro-
fissional da área, apresentam-se como fatores motivacionais
para a discussão das ações afirmativas e seus desdobramentos
nos cursos de Turismo. Ainda há que se considerar que, se
por um lado a temática não seja discutida na bibliografia tu-
rística no Brasil, a sua abordagem ajudará na formação crítica
dos alunos deste curso e, por conseguinte, em melhores opor-
tunidades de ingresso no mercado de trabalho.
A UFRRJ foi uma das primeiras instituições a adotar a Lei
Federal 12.711/12 com seu percentual máximo, e tão logo o
governo federal a editou, o Conselho de Ensino, Pesquisa e 335
Extensão (CEPE) da UFRRJ deliberou como segue:

O Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFRRJ, reu-


nido na manhã do dia 6/11, aprovou 50% de cotas sociais
e étnicas conforme prevê a Lei 12.711/2012, que institui as
cotas. Ou seja, o máximo que deveria ser atingido em 4 anos.
Em consonância com a Lei 12.711, de 29 de agosto de
2012, a UFRRJ reservará no mínimo 50% (cinquenta por
cento) das vagas para ingresso em 2013-1, por curso e tur-
no, para candidatos que tenham cursado integralmente o
ensino médio em escolas públicas, inclusive cursos de educa-
ção profissional técnica, observadas as seguintes condições:
- no mínimo 50% (cinquenta por cento) das vagas de
que trata o caput serão reservadas aos estudantes com
renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula
cinco) salário-mínimo per capita;
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

II - no mínimo 51,8% das vagas de que trata o caput se-


rão reservadas para autodeclarados pretos, pardos e indí-
genas, conforme o último Censo Demográfico divulgado
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
para o Estado do Rio de Janeiro.
Nas duas primeiras chamadas do SISU 2013-1, a UFRRJ
destinará 10% (dez por cento) das vagas destinadas à ampla
concorrência dos seus cursos de Licenciatura para candida-
tos que sejam professores em atividade na rede pública de
educação básica sem formação adequada à LDB 9.394/96”
(grifo do autor) (SISS, PACE, COSTA, 2016)

Nesse exercício analítico não podemos nos esquecer que,


336 em um país de industrialização tardia como o nosso, as de-
sigualdades sociais e étnico-raciais condicionam, de forma
significativa, as desigualdades de realização educacionais dos
diferentes sujeitos que acessam as universidades públicas bra-
sileiras (SISS e BARRETO 2014), o que implica a necessida-
de peremptória de participação dos professores, do curso de
Turismo da UFRRJ, no processo de ensino e aprendizagem
com a percepção da importância da ação afirmativa como fa-
tor de mitigação das desigualdades sociais e étnico-raciais.

POLÍTICAS DE DEMOCRATIZAÇÃO
DO ACESSO NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO:
A LEI 12.711 OU LEI DE COTAS

A Lei Federal 12.711, promulgada no ano de 2012, co-


nhecida como “lei das cotas”, regulamentada pelo Decreto
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

7.824 e Portaria MEC 18 no mesmo ano, dispõe sobre o


ingresso nas universidades federais e nas instituições federais
de ensino técnico de nível médio, e deve ser inserida numa
reflexão mais ampla no contexto das políticas de ação afir-
mativa no Brasil.
As ações afirmativas compreendem políticas de reconheci-
mento e de algum tipo de reparação num contexto social de
injustiças e desigualdades. Segundo MUNANGA (2003), são
ações (governamentais ou não) que visam oferecer um tra-
tamento diferenciado a grupos e/ou indivíduos que tenham
sido historicamente discriminados e excluídos.
As políticas de ação afirmativa não devem ser desen-
volvidas exclusivamente pelas instituições públicas, mas
também pela sociedade civil, visto que suas implicações 337
atingem os mais diversos segmentos da sociedade. É bom
lembrar que

Num país onde os preconceitos e a discriminação ra-


cial não foram zerados, ou seja, onde os alunos bran-
cos, pobres e negros ainda não são iguais, pois uns são
discriminados uma vez pela condição socioeconômica
e outros são discriminados duas vezes pela condição
racial e socioeconômica, as políticas ditas universais
defendidas, sobretudo pelos intelectuais de esquerda e
pelo ex-ministro da educação Paulo Renato, não tra-
riam as mudanças substanciais esperadas para a po-
pulação negra. Como disse Habermas, o modernismo
político nos acostumou a tratar igualmente seres de-
siguais, em vez de tratá-los de modo desigual. Daí a
justificativa de uma política preferencial no sentido de
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

uma discriminação positiva, sobretudo quando se trata


de uma medida de indenização ou de reparação para
compensar as perdas de cerca de 400 anos de decola-
gem no processo de desenvolvimento entre brancos e
negros. É neste contexto que colocamos a importância
da implementação de políticas de ação afirmativa, en-
tre as quais a experiência das cotas, que, pelas experi-
ências de outros países, se afirmou como um instru-
mento veloz de transformação, sobretudo no domínio
da mobilidade socioeconômico, considerado como um
dos aspectos não menos importante da desigualdade
racial (MUNANGA, 2001, p. 33)

338 No Brasil, país multirracial e multiétnico, as políticas de


ação afirmativa que centralizam o debate político e acadêmico
sobre o combate às desigualdades sociais e educacionais, bem
como a democratização do acesso ao ensino superior, é a da
modalidade cotas ou reserva de vagas considerado o mais po-
lêmico dos diferentes tipos de ação afirmativa. As políticas de
ação afirmativa são adotadas em vários países como medidas
mitigadoras dos pesados custos sociais que foram impostos a
populações que foram colonizadas externa e internamente, de
acordo com Silvério (2002).
As instituições de ensino superior do Brasil, desde 2001,
têm adotado algum tipo de ação afirmativa como resposta às
pressões dos movimentos sociais, em especial o movimento
negro. O panorama nacional dessas políticas era bastante va-
riado, prevalecendo, na maioria das Instituições Federais de
Ensino Superior (IFES), o tipo de ação afirmativa na forma
de cotas, reserva de vagas e/ou bônus, numa conjuntura mar-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

cada pelos ecos de Durban87 quando, pela primeira vez na sua


história, o Estado brasileiro reconheceu os efeitos do racismo
e a necessidade de adoção de medidas que pudessem minimi-
zar ou mitigar as consequências dos seus efeitos na população
afro-brasileira (SANTOS, 2012).
A Lei Federal 12.711/12, que depois de treze anos em
tramitação no Congresso Nacional foi sancionada pela então
presidenta Dilma Rousseff no dia 29 de agosto, dispõe que
as universidades públicas e os institutos de ensino técnicos
federais são obrigados a reservar em seus concursos seletivos,
o mínimo de 50% (cinquenta por cento) das vagas para estu-
dantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas; destas, 50% (cinquenta por cento) das va-
gas devem ser reservadas para estudantes oriundos de famílias 339
com renda per capita familiar igual ou inferior a um salário-
-mínimo e meio, como demonstra a figura 1. Para o preen-
chimento dessas vagas, por curso e turno, a lei prevê que cada
IES deverá considerar a proporção da população preta, parda
e indígena (PPI) mínima igual na unidade da Federação onde
se encontra instalada, segundo o último censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

87. Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofo-


bia e Intolerância Correlata realizada na cidade de Durban, África do Sul, em 2001.
Esta Conferência recomendou que os Estados “apoiados na cooperação internacional,
considerassem positivamente a concentração de investimentos adicionais nos serviços
de educação, saúde pública, energia elétrica, água potável e controle ambiental, bem
como outras iniciativas de ações afirmativas ou de ações positivas, principalmente, nas
comunidades de origem africana” (ONU, 2001) [ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS. Declaração e Programa de Ação. Conferência Mundial de Combate ao Ra-
cismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Durban, África do
Sul, 2001]
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

FIG. 1 MODELO EXPLICATIVO DA APLICAÇÃO


DA LEI FEDERAL 12.711/2012

Quantidade de
vagas no curso

no mínimo
50%

Alunos de Demais
escola pública vagas

50%

Renda < 1,5 Renda > 1,5


salário-mínimo salário-mínimo
per capita
no mínimo
340 % IBGE

Pretos, pardos Demais Pretos, pardos Demais


e indígenas vagas e indígenas vagas

Brasil escola UOL <http://bit.ly/2eWEsSw>. Acesso: jul 2016.


Fonte: MEC

A despeito das diferentes interpretações que possam existir


sobre a aplicação desta legislação de cotas pelas IFES, o MEC
- Ministério da Educação - oferece em seu sítio um exemplo
para aplicação da Lei 12.711/12. No caso do estado do Rio de
Janeiro, em uma universidade onde serão oferecidas 100 vagas,
50 serão destinadas para alunas de escolas públicas (cotistas)
e as outras 50 para a ampla concorrência. Das vagas para os
cotistas, 25 serão para estudantes com renda familiar menor
ou igual a 1,5 salário-mínimo per capita e as outras 25 para
estudantes com renda familiar maior a 1,5 salário- mínimo per
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

capita. Estas deverão ser preenchidas pelo proporcional da pre-


sença de pretos (P), pardos (P) e indígenas (I) no estado, con-
forme o censo de 2010 do IBGE. No caso do estado do Rio
de Janeiro, a soma PPI chega a 51,80% da população total,
isto é, 13 vagas a serem distribuídas para PPI (vide figura 2).

FIG. 2 – MODELO EXPLICATIVO DA APLICAÇÃO DA


LEI 12.711/2012 NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Quantidade de
vagas no curso
100

no mínimo 50%
Demais 341
Alunos de vagas
escola pública 50 50

no mínimo 50%
Renda < 1,5 Renda > 1,5
salário-mínimo salário-mínimo
per capita
25

no mínimo % IBGE no mínimo % IBGE


Demais Demais
Pretos, pardos vagas Pretos, pardos vagas
e indígenas e indígenas
13 12 13 12

Exemplo:
RJ
51,80% Pretos,
Pardos e Indígenas

Fonte: SEPPIR <http://bit.ly/2e7agWD>. Acesso: jul 2016.


DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

O CURSO DE TURISMO DA UFRRJ


E A LEI FEDERAL 12.711/2012

O interesse acadêmico pelo fenômeno turístico no Brasil e


no mundo ainda pode ser considerado recente. Na educação,
o interesse pelo estudo da atividade turística e seus desdobra-
mentos teve início com a implantação do primeiro curso de
Turismo oferecido no Brasil pela então Faculdade Morumbi,
em 1971, sediada em São Paulo capital. O cenário sociopolí-
tico do momento era propício, como segue:

Os primeiros cursos de Graduação em Turismo no Bra-


sil, implantados em meio a uma conjuntura de ditadu-
342 ra militar de modelo desenvolvimentista, foram criados
dentro de uma perspectiva tecnicista e mercadológica, os
quais procuravam atender a uma demanda de trabalho.
O Brasil foi o primeiro país a criar cursos de turismo
de nível superior, porém, baseados nos cursos técnicos.
Havia um certo preconceito, principalmente de uma elite
(que casualmente foram os primeiros alunos dos cursos
de turismo), em relação aos cursos técnicos. Desse modo,
criou-se um curso técnico mascarado como de nível su-
perior. O início dos cursos de Turismo no Brasil ocorreu
juntamente com o movimento de expansão e profissio-
nalização do ensino superior, com o desenvolvimento da
atividade turística e com a criação do currículo mínimo
dos cursos de turismo. (HALLAL et al., 2010, p. 12)

Em 2006, em função do projeto de extensão das universi-


dades federais, na UFRRJ colocou em funcionamento o novo
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

campus na cidade de Nova Iguaçu, que iniciou suas ativi-


dades com um instituto denominado Multidisciplinar, e este
com seis cursos, como indica o quadro 1:

QUADRO 1 – OFERTA DE CURSOS

Bacharelado Licenciatura
Turismo* História
Administração Matemática
Ciências Econômicas Pedagogia
* Este curso é oferecido na modalidade presencial, pois a UFRRJ também oferece o curso de
Licenciatura em Turismo na modalidade de Ensino a Distância (EaD).
343
Fonte: Projeto pedagógico do curso de bacharelado em Turismo (UFRRJ,
2009, p. 7)

O curso de Turismo, que foi criado para atender a uma


demanda existente no estado do Rio de Janeiro e em sua re-
gião metropolitana, deu início às suas atividades em abril de
2006. Seu Projeto Pedagógico de Curso (PPC) foi elaborado
baseado nas competências e habilidades exigidas do futuro
profissional que constam das Diretrizes Curriculares Nacio-
nais. Assim, o objetivo geral do curso é

proporcionar condições para que os futuros profissionais


desenvolvam sua capacidade crítica e reflexiva acerca do
fenômeno turístico, em suas vertentes relacionados ao
planejamento e desenvolvimento da atividade, geren-
ciamento e operacionalização das rotinas profissionais e
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

compreensão das variantes socioculturais nela envolvidas.


Deverá proporcionar também a sensibilização e capacita-
ção para lidar de maneira criativa com essa diversidade
não apenas fazendo com que deixe de ser uma dificul-
dade, mas sendo capaz de torná-la um potencial para a
atividade turística, notadamente no caso brasileiro e flu-
minense. (UFRRJ, 2006, p. 5)

Segundo o PPC do curso de 2006, havia duas áreas de


concentração: Gestão de Empresas Turísticas e Turismo e
Desenvolvimento Sustentável, que no seu processo de rees-
truturação, em 2009, foram substituídas por eixos de forma-
ção: Planejamento e Desenvolvimento Sustentável, Gestão
344 de Empresas Turísticas e Turismo e Sociedade. Esses eixos de
formação conferem à estrutura curricular do curso um espa-
ço aberto às demandas contemporâneas dos campos de co-
nhecimentos e de atuação profissional. Assim, o curso busca
atender a anseios diversos com relação ao desenvolvimento da
sociedade brasileira e fluminense, primando pela formação de
egressos capazes de dialogar com a pluralidade e diversidade
dos desafios do mundo contemporâneo.
Como na maioria dos cursos de bacharelado, não só da
UFRRJ, o PPC em vigor não contempla a abordagem étnico-
-racial em nenhum de seus eixos. O perfil do alunado dos cur-
sos superiores mudou em função da Lei Federal 12.711/12,
que em seu artigo 1º diz:

Art. 1o As instituições federais de educação superior vin-


culadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada
concurso seletivo para ingresso nos cursos de gradua-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ção, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por


cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursa-
do integralmente o ensino médio em escolas públicas.
(BRASIL, 2012, p. 1)

Dados fornecidos pela Pró-Reitoria de Graduação da


UFRRJ nos apresentam o seguinte cenário para os anos de
2013/2014 no curso de Turismo:

GRÁFICO 1 – PERFIL DOS ALUNOS INGRESSANTES


2013/2014 NO CURSO DE TURISMO

345

Fonte: Pró-Reitoria de Graduação da UFRRJ, 2014.

Esta lei traz em sua concepção a indicação de que em um


prazo de dez anos a contar de sua publicação sofrerá, por par-
te do executivo, uma revisão no programa, o que obriga as
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

instituições a repensarem em como tratar essa nova leva de


alunos que em todos os semestres chegam às portas da uni-
versidade ávidos por conhecimento e em busca de melhores
condições de vida e trabalho.

O PAPEL DO PROFESSOR NO CURSO


DE TURISMO: REFLEXÕES

Um componente nesta questão tão importante quanto


o aluno é o professor e a sua formação, bem como os seus
valores sociais, morais, éticos, que vão nortear sua trajetó-
ria profissional e influenciar sua maneira de ver o mundo
346 e de discutir suas disciplinas e suas ideias em sala de aula.
Este profissional, que tem fundamental participação na vida
do aluno, deve ter uma formação que ultrapasse as raias do
conhecimento específico, ele tem uma função social muito
importante. Cabe ressaltar que as práticas pedagógicas têm
um caráter didático-pedagógico que dialoga com os compro-
missos acadêmico-profissionais do curso, fazendo com que a
relação ensino-aprendizagem se transforme em fator de cres-
cimento pessoal e profissional dos alunos. A busca por uma
melhor escolaridade revela a importância dos estudos para a
melhor inserção e remuneração no mercado de trabalho, o
que não significa que, mesmo para igual nível de escolariza-
ção, as desigualdades por cor e por sexo não persistam. A área
de turismo, na qual o profissional lida frente a frente com o
seu cliente no seu dia a dia, exige de ambas as partes uma in-
teração, que vez por outra os coloca diante de uma realidade
social com fortes características excludentes.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Apesar dos dados do IBGE88 mostrarem que o Brasil con-


ta hoje com uma população com mais de 205 milhões de
habitantes e que mais de 50% da população se autodeclara
negra (pretas e pardas, de acordo com o sistema de clas-
sificação do IBGE), estas características não se constituem
em motivo de preocupação no momento de formulação dos
Projetos Pedagógicos dos cursos de Bacharelado, especial-
mente nos cursos de Turismo. Prosseguindo em nossa aná-
lise, utilizando o preceituado por Santos (2002) no que diz
respeito à obtenção de vantagens sociais, aquisição de bens
e serviços ou mesmo em termos de exclusão dos seus direi-
tos legais e legítimos, podemos agregá-los em um só grupo,
uma vez que o racismo no Brasil não faz distinção signifi-
cativa entre pretos e pardos. A discussão da temática não se 347
esgotou e tampouco é negligenciada pelos pesquisadores do
assunto, como podemos ver:

Em perspectiva histórica, o acesso e permanência dos


afro-brasileiros ao sistema educacional brasileiro, em
qualquer os seus níveis, nunca se deu de forma tranqui-
la. No caso do ensino superior brasileiro, a exclusão é
notória, as universidades brasileiras sempre conviveram
tranquilamente com os elevados índices de desigualdades
étnico-raciais brasileiras, principalmente quanto às desi-
gualdades de acesso e permanência dos afro-brasileiros ao
ensino superior. (SISS, BARRETO, 2012, p. 56)

88. Dados obtidos no sítio do IBGE. Disponível em: <http://bit.ly/2d16JKH>


Acesso: ago 2016.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Dialogando com Nóvoa (1999) e SAVIANI (2009), vere-


mos que área da educação no Brasil, assim como em países
europeus, vem trazendo para o campo de formação de pro-
fessores instituições que não são propriamente ditas da área,
e sim mais de “mercado” (grifo do autor). A universidade
pública brasileira se mantém à margem desta situação, mas
um componente se apresenta como fator complicador para o
bom e interessado desempenho do professor em sala de aula:
as condições de trabalho. Em seu artigo “Formação de profes-
sores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto
brasileiro”, Saviani (2009) aponta:

Ao encerrar esse trabalho não posso me furtar de cha-


348 mar a atenção para o fato de que a questão da formação
de professores não pode ser dissociada do problema das
condições de trabalho que envolvem a carreira docente,
em cujo âmbito devem ser equacionadas as questões do
salário e da jornada de trabalho. Com efeito, as condições
precárias de trabalho não apenas neutralizam a ação dos
professores, mesmo que fossem bem formados. Tais con-
dições dificultam também uma boa formação, pois ope-
ram como fator de desestímulo à procura pelos cursos de
formação docente e à dedicação aos estudos. (SAVIANI,
2009, p. 153).

A universidade pública brasileira ainda é uma instituição


conservadora e que traz em sua estrutura a dificuldade de dis-
cutir, na área de formação de professores, não especificamente
para os cursos de Turismo, mas também neles, a abordagem
da educação para as relações étnico-raciais, bem como a pre-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ocupação com os desdobramentos desta ação em sala de aula


para um contingente de cotistas PPI que ingressou na univer-
sidade por intermédio da Lei Federal 12.711/12.
O corpo docente do curso de Turismo da UFRRJ, ofere-
cido pelo Instituto Multidisciplinar do campus Nova Iguaçu,
é formado por quinze professores89 com a seguinte titulação
acadêmica:

Mestrado90 – 2
Doutorado – 13
Doutorado com Pós-doutorado – 2
Total de docentes – 15

Na pesquisa, que foi aplicada a 14 professores utilizando a 349


ferramenta de pesquisa disponibilizada no Google Drive, obti-
vemos o retorno de 10, ou seja, 71% deles responderam.
Das 6 perguntas que foram realizadas, 50% respondeu que
não leu o texto da Lei 12.711/12, mas 9 (64%) deles são a
favor da lei, sendo que somente 1 não tem opinião formada
sobre o assunto. Mesmo tendo 8 (57%) deles que não se
interessam em saber se em suas turmas há alunos cotistas, 7
(50%) abordam as temáticas das relações étnico-raciais em
suas aulas, 2 não o fazem e 1, às vezes. Já para as duas últimas
perguntas, os gráficos 2 e 3 apresentam as respostas.

89. Este número se refere a professores específicos do curso, visto que o corpo docente
é composto também por professores de outros departamentos.
90. Entre os professores mestres, há um que está em fase de doutoramento.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

GRÁFICO 2 – VOCÊ ACHA QUE OS ALUNOS


COTISTAS SÃO MENOS PREPARADOS QUE
OS DEMAIS?

Fonte: pesquisa do autor 2016


350

GRÁFICO 3 – VOCÊ ACHA QUE HÁ


DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO MERCADO
DE TRABALHO TURÍSTICO?

Fonte: pesquisa do autor 2016


DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para não concluir, pois o assunto é instigante e estimula


calorosos debates no corpo docente do curso, podemos perce-
ber que apesar da metade dos professores não conhecer a Lei
12.711/12, estes mesmos docentes ou não, abordam a ques-
tão étnico-racial em suas disciplinas e o mesmo percentual
que entende que os alunos cotistas são bem preparados reco-
nhece que o mercado de trabalho que os espera tem discrimi-
nação racial. Esses dados, que são preliminares, demonstram
a importância do papel do professor na formação dos alunos
de um curso superior que pretendem ingressar na área pro-
fissional e se posicionar em uma sociedade ainda excludente
sobre o ponto de vista étnico-racial. 351
O professor tem a capacidade de desmitificar os valores
que os currículos, muitas das vezes, apresentam como gerais
ou hegemônicos. (SISS, BARRETO, 2012, p. 54). Nesse con-
texto, cabe ressaltar mais uma vez a importância da formação
e ação do professor e dos estudantes em um amplo compro-
misso com o alto nível da qualidade social da educação e seus
desdobramentos, como assinala SILVA (2009)

A qualidade social da educação escolar não se ajusta, por-


tanto, aos limites, tabelas, estatísticas e fórmulas numé-
ricas que possam medir um resultado de processos tão
complexos e subjetivos, como advogam alguns setores
empresariais, que esperam da escola a mera formação de
trabalhadores e de consumidores para os seus produtos.
A escola de qualidade social é aquela que atenta para um
conjunto de elementos e dimensões socioeconômicas e
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

culturais que circundam o modo de viver e as expectativas


das famílias e de estudantes em relação à educação; que
busca compreender as políticas governamentais, os proje-
tos sociais e ambientais em seu sentido político, voltados
para o bem comum; que luta por financiamento adequa-
do, pelo reconhecimento social e valorização dos trabalha-
dores em educação; que transforma todos os espaços físi-
cos em lugar de aprendizagens significativas e de vivências
efetivamente democráticas. (SILVA, 2009 p. 225)

Não podemos esquecer que a expressão “acesso e perma-


nência com sucesso”, principalmente quando nos referimos
a jovens, de baixa renda, negros, moradores da Baixada Flu-
352 minense, onde se localiza o campus Nova Iguaçu da UFRRJ,
está intrinsicamente relacionada a um aprofundamento no
foco da democratização deste acesso ao ensino superior e às
correlações que se estabelecem entre educação, classe e renda.

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355
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

POÉTICAS ORAIS AFRICANAS


PARA PENSAR “FORMAÇÃO DOCENTE
E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS”

Messias Braz Santos91

Este artigo tem como proposta a utilização das poéticas


orais por parte do professor como sua prática docente na im-
plementação da Lei 10.639/03. Antes, porém, vejamos o que
357
diz a referida lei:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental


e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º  O conteúdo programático a que se refere o ca-
put deste artigo incluirá o estudo da História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º  Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-
-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currí-
culo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e
de Literatura e História Brasileiras. (Brasil, 2003)

91. Especialista em Relações Étnico-Raciais – UFF.


DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Não há dúvida quanto à importância dessa lei e a signifi-


cativa e decisiva participação do Movimento Negro para essa
conquista, que não só beneficia a população negra, que era
marginalizada dos programas de educação do Estado, como
toda a população brasileira. A superação do racismo não é
boa apenas para nós, os negros, é boa para o Brasil.
Essa conquista também trouxe responsabilidade, pois ago-
ra o professor precisa se preparar para atender a essa deman-
da. O que era antes tema de debates, discussões, embates e
conflitos agora se tornou realidade. Hoje podemos contar a
nossa História, acusar os nossos algozes, dizer quem são os
verdadeiros heróis e apontar os bandidos. Homens, mulheres,
reis, rainhas e príncipes, antes invisibilizados, agora colocados
358 nos seus lugares de honra e reconhecimento.
Quem é o porta-voz dessas vozes silenciadas por mais de
quatro séculos? Quem é o agente de mudança e transforma-
ção de uma sociedade que queremos livre de preconceito e
que respeita a diversidade? É a professora ou o professor, de
quem se espera uma percentagem maior de responsabilidade
no processo da mudança que esperamos.
Porém, não basta apenas reconhecer a importância do
professor nesse processo de transformação; faz-se necessário
oferecer oportunidades concretas para que ele se sinta seguro
para lidar com as questões que colocam o grupo social negro
em grande desvantagem em relação aos demais grupos sociais
da população brasileira.
A professora Fernanda Felisberto (2010), abordando a te-
mática da formação docente, com recorte racial, nos diz o
seguinte: “o não domínio da temática por parte de muitas(os)
requer uma imersão nesta temática para estar apto para en-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

frentar os conflitos e demandas que o tema das relações ra-


ciais e literatura coloca no cotidiano.” (FELISBERTO, 2010,
p. 35-36)
O que Felisberto nos chama a atenção é que, sete anos
após a promulgação da Lei 10.639/03, ainda há necessidade
de uma chamada, um apelo ao corpo docente para um po-
sicionamento político diante dos avanços que a lei propõe e
de um comprometimento para fazer valer o que está escrito.
Obviamente, não estamos descartando nem desconsiderando
a importância e participação das universidades, dos NEABI´s,
dos programas de formação continuada etc. que têm como
proposta a formação e preparação dos professores. Instituições
que desenvolvem pesquisas, fomentam programas dentro das
universidades para a produção de conhecimento, oferecem 359
cursos de extensão, além de organizarem encontros regionais,
nacionais e internacionais.
O que estamos considerando aqui é que, dada a importân-
cia da lei, levando em conta todo o investimento financeiro
e de pessoal, se o professor não se sentir incomodado com a
exclusão social a que é exposta a população negra, se não for
tocado pelo número absurdo de jovens negros que são assas-
sinados, se o descaso da saúde da mulher negra por parte do
poder público não o indigna, então todo o esforço feito para
a sua formação, todo o dinheiro empregado, todo o pessoal
mobilizado será inútil. Não surtirá qualquer efeito.
A nosso ver, além dos programas com vistas à formação
dos professores, fazem-se necessárias iniciativas que valorizem
o trabalho docente com melhores salários, melhores condi-
ções de trabalho, diminuição da carga horária, respeito às
peculiaridades de cada município, cada escola e cada profes-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

sor. Um NEABI em cada unidade escolar poderia fortalecer


o sentido de pertencimento tanto para os professores quanto
para os alunos. Além dos NEABI´s em cada unidade, seria
criado também um NEABI regional que daria apoio ao NEA-
BI da unidade escolar. O NEABI distrital receberia apoio do
NEABI municipal. Por fim, um NEABI representando toda a
Baixada Fluminense, com sede no Instituto Multidisciplinar
– UFRRJ.
Esses núcleos poderiam gerar: mobilidade dos professores;
a possível redução de prazo para o atendimento das reivindi-
cações diante do poder público; trocas de experiências e co-
nhecimentos.
A luta está apenas começando. Nascimento (2008) refle-
360 te sobre essa questão de o docente assumir uma postura de
enfrentamento diante do desafio que é dar sentido à lei na
sua prática cotidiana, isto é, na relação com seus alunos que
costumeiramente são vítimas de preconceito por causa da sua
opção sexual, sua religiosidade, sua história, sua cor “e nesse
enfrentamento o ponto de partida é, conscientemente, fazer
a opção ética pela igualdade de tratamento e de reconheci-
mento, pelo respeito às diferenças, pela multiplicidade e, pois,
por uma educação democrática e cidadã”. (NASCIMENTO,
2008, p. 49)
Sabemos da importância da lei, do seu impacto na popu-
lação negra marginalizada, não só no indivíduo negro em sua
individualidade, como também no povo negro enquanto gru-
po étnico. E reconhecemos ainda que esse resultado positivo
se deve ao fato de essas pessoas, negros e negras, entenderem
que não basta ter uma lei que nos beneficie; faz-se necessário
exigir do poder público o cumprimento dela.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Tentando ver a situação de uma maneira menos etnocên-


trica e nos afastando um pouco desses grandes centros de dis-
cussões e dos debates calorosos e emancipatórios, do ponto
de vista geográfico, nos perguntamos: os professores que estão
em derredor desses grandes centros, e aqueles que lecionam
e moram em lugares distantes, têm acesso a todo esse tipo de
conhecimento que está sendo produzido? E aqueles que têm
acesso estão refletindo esse conhecimento, têm se incomoda-
do com ele?
Temos diante de nós dois grandes desafios: o primeiro é
produzir material acadêmico de fácil compreensão e que seja
capaz de fisgar o docente, ou seja, material de boa qualidade,
excelente apresentação e que dialogue diretamente com a sua
prática cotidiana. Provocar um amor à primeira vista. 361
O segundo desafio é fazer com que esse material chegue às
mãos desses professores. Para isso, podemos dispor das redes
sociais, das escolas, da internet, das secretarias de educação,
das universidades, e principalmente daqueles professores que
são multiplicadores.
Tendo em vista a formação docente e a indicação de pos-
síveis caminhos para auxiliar o professor na sua luta contra
uma sociedade machista, sexista e eurocêntrica é que propo-
mos o uso das poéticas orais africanas e afro-brasileiras como
um dos recursos para a implementação da Lei 10.639/03.
Para este trabalho, vamos privilegiar apenas duas categorias
das poéticas orais, quais sejam: mito e lenda.
Quais recursos estão à disposição do professor para a im-
plementação da Lei 10.639/03 na sua prática docente? Como
desconstruir conceitos equivocados e distorcidos sobre a Áfri-
ca e os africanos expostos pela mídia e pelos livros? Como
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

tornar esse conteúdo atraente para seus alunos e como fazer


para que eles valorizem seu pertencimento racial? Como au-
mentar a autoestima dos seus alunos a partir dos conteúdos
sobre África e cultura afro-brasileira?
A partir de que momento comecei a pensar sobre a questão
racial? Quando essa temática passou a me incomodar? Passei
a refletir sobre essas questões quando descobri, aos 34 anos,
meu pertencimento racial. Foi na década de 1990, quando
participei de um curso de especialização sobre relações étnico-
-raciais no Programa de Educação sobre o Negro na Socieda-
de Brasileira (Penesb/UFF).
Posteriormente, participei como aluno especial do mes-
trado do PPGEDUC/UFRRJ – de três disciplinas: Religio-
362 sidade, Racismo Epistêmico e Formação Docente, todas com
foco na questão racial – com o professor Luiz Fernandes de
Oliveira.
Com o aprofundamento das discussões sobre “Formação
docente e relações étnico-raciais”, surgiu a proposta de pro-
duzirmos algo que estivesse de acordo com as questões que
debatemos e compartilhamos com os colegas em sala de aula,
ou seja, que também transpusesse os muros da universidade e
chegasse às mãos dos professores, daqueles de quem falamos
ao longo do segundo semestre de 2015. Era encontro semanal
com cinco horas de calorosas e provocadoras discussões, sob a
regência do professor Luiz Fernandes.
Sou assinante da revista Nova Escola e, sempre que a rece-
bo, noto que há pouca referência aos negros, seja enquanto
profissionais da educação, seja como alunos ou ainda como
cidadãos comuns. Parei para pensar que se uma revista tem a
proposta de falar sobre a educação fundamental, como não dá
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

visibilidade ao segmento negro? Resolvi então fazer uma ve-


rificação. A minha “pesquisa” consistiu em fazer um levanta-
mento de imagem humana nas páginas da revista entre maio
de 2015 e maio de 2016. A intenção era verificar, além das
imagens, as referências ao 13 de maio e ao 20 de novembro,
ou seja, nesse período privilegiamos dois “maios” e um “no-
vembro”. Outra verificação foi sobre quem está na capa da
revista nesses dez números de publicação. Qual é o lugar do
negro nesta revista no período pesquisado?
Não levei em conta as faixas etárias. Sendo criança, jovem
ou adulto, a ausência dos negros nas páginas de uma revis-
ta sobre educação fundamental atenta contra a diversidade
e contra a pessoa humana. Outro critério adotado foi con-
tabilizar as imagens mesmo quando se repetiam, tanto para 363
negros quanto para brancos. Cada ocupação do espaço pelo
branco representa a exclusão do negro daquele espaço, seja ele
simbólico ou não.
Dividi a tabela por grupo étnico e por gênero. Apresento
o total de imagens por grupo étnico e também por gênero. O
resultado se encontra na tabela abaixo:
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

TABELA: INVISIBILIDADE DO NEGRO


NA REVISTA NOVA ESCOLA NO PERÍODO
DE MAIO DE 2015/MAIO DE 2016

MESES BRANCOS TOTAL PRETOS* TOTAL CAPA OBSERVAÇÃO

M F M F Reportagem sobre
Maio refugiados e sobre
Ano 30 134 12 Branco uma professora de
Nº 282 45 89 4 8 Angola. Não se falou
sobre o 13 de maio.
Junho/Julho Tema: “Violência:
Sem imagem
Ano 30 64 53 117 50 7 57 como escrever outra
humana
Nº 283 história”
Agosto
Professora branca Tema: “Construtivis-
Ano 30 63 140 203 3 10 13
e uma aluna negra mo na prática”
Nº 284
Setembro Branco – (Foto de
Tema: “Ela quer
Ano 30 36 125 161 9 4 13 uma menina de 1
colo...e muito mais!”
Nº 285 ano e um mês)
Outubro
Tema: “O lado bom
364 Ano 30 62 135 197 17 20 37 Branco
da rotina”
Nº 286
Tema do mês:
“Educadores que
transformam”
Novembro Nenhum professor
Sem imagem
Ano 30 72 163 235 36 26 62 citado, que teve pro-
humana
Nº 287 jeto elogiado, citou o
20 de novembro nem
trabalhou a questão
racial
Dez/15Jan/16
Tema: “Inclusão: um
Ano 30 74 154 228 29 17 46 Branco
trabalho coletivo”
Nº 288
A imagem (3x4)
de um homem
Fev./16
negro no canto Tema: “Olimpíadas
Ano 30 51 59 110 14 7 21
inferior esquerdo na sua aula”
Nº 289
reporta à gestão
escolar
Preto (Imagem
Março de 16
de uma jovem, Tema: “De olho na
Ano 31 16 33 49 6 18 24
supostamente formação”
Nº 290
professora)
Abril de 16 Há uma breve
Ano 31 16 21 37 11 12 23 Branco reportagem aos
Nº 291 quilombos
Maio de 16
Tema: “Alfabetização
Ano 31 25 52 77 3 6 9 Branco
sem guerra”
Nº 292

*De acordo com o IBGE, pretos e pardos entram em uma única categoria: “pretos”.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Alguns dados nos chamam a atenção quando associamos a


questão racial com o conteúdo da revista. Os resultados che-
gam a ser alarmantes, considerando que se trata de apenas um
ano de publicação. Temos 1.024 imagens de mulheres bran-
cas contra 317 de mulheres negras. Quando nos referimos aos
homens, temos 524 imagens de homens brancos contra 182
imagens de homens negros.
Se pensarmos em uma publicação específica, como a do
mês de setembro de 2015, temos 125 imagens de mulheres
brancas contra quatro imagens de mulheres negras! Uma re-
vista com circulação em todo o território nacional que não
representa a mulher negra. Essa postura, consciente ou não,
tem efeito desastroso na população negra, pois atinge nossa
autoestima, coloca em dúvida nossa capacidade intelectual e 365
nos exclui do processo de mudança do país via educação.
Essa invisibilidade fica patente quando nos damos conta
de que os meses de maio e novembro, em que se espera uma
alusão ao tema de África, abolicionismo, consciência negra
etc., não são mencionados. Notamos que nas capas de maio
de 2015 a imagem é de uma professora branca; na capa de
novembro de 2015 não há imagem humana, e a de maio de
2016 tem uma aluna branca. Das dez capas, seis têm imagens
brancas, em duas não há imagens humanas, e uma divide a
capa com uma pequena aluna negra e uma professora branca.
Apenas na capa de março de 2016 há a imagem de uma jo-
vem negra (supostamente uma professora) com um binóculo
na mão. Não vejo uma alusão imediata deste binóculo com o
ofício do magistério.
Com a constatação desse breve levantamento sobre a ques-
tão racial na revista Nova Escola, podemos mensurar a urgên-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

cia de se oferecerem recursos aos docentes comprometidos


com a igualdade de direitos e o respeito à diversidade, para o
enfrentamento dessas questões.
Minha contribuição é no sentido de propor ao professor a
pesquisa, a leitura e a utilização das poéticas orais africanas e
afro-brasileiras em sua prática docente. Como já mencionei
anteriormente, privilegiarei mito e lenda africanos e afro-bra-
sileiros como categorias das poéticas orais.
Poéticas orais são o conjunto de lendas, mitos, poesias,
contos, rezas, ritos, fábulas, via de regra, comum a todas as
culturas. São narrativas que preservam a memória, as tradi-
ções, a conduta e a religiosidade de um povo.
Justifico a minha proposta para o uso das poéticas orais
366 por duas razões principais. Primeiro, porque essas narrativas
permitem apreender com mais facilidade conceitos complexos
e desconhecidos.
Ponciano (2016) admite a importância da transmissão de
conceitos científicos complexos, mas também entende que a
utilização das poéticas orais pode facilitar na apreensão desses
conceitos.

Já as poesias, mitos, contos e outras formas de expressão


artística conseguem se conectar e despertar o interesse de
todas as faixas etárias e em todos os lugares, sendo uma
forma diferente de “pensar o mundo” e fazer uma leitura
da realidade através da linguagem poética, do encanta-
mento, do imaginário. (PONCIANO, 2016)

Conteúdos de ensino que causam estranhamento ou resistên-


cia por parte de alunos, e até de alguns professores, podem ser
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

abordados de maneira mais informal através dessas narrativas.


Algumas informações equivocadas veiculadas pela mídia sobre
o continente africano, dados sonegados ou ignorados sobre a
história da África por algum manual didático, constituem uma
evidência da falta de contato que a sociedade tem com esse tipo
de conteúdo. Para muitos alunos, (negros e não negros) os úni-
cos contatos sobre a cultura africana e afro-brasileira se darão
por meio dessas fontes que acabamos de citar.
Reitero a utilização das poéticas orais como fonte de pes-
quisa para o professor e, consequentemente, como recurso di-
dático para corrigir os diversos tipos de equívocos praticados
contra a história do povo negro.
Para justificar minha segunda razão, recorro novamente à
professora Ponciano (2016): 367

Quando revisitamos os mitos para analisar as representa-


ções da realidade associadas às Geociências, encontramos
diversas histórias que foram utilizadas para explicar a ori-
gem e o funcionamento do universo e do planeta Terra,
além de questões que envolvem a evolução dos seres vivos
e a nossa relação com vários outros elementos da Nature-
za. (PONCIANO, 2016)

Ponciano (2016) se refere, no texto acima, aos mitos da


região Norte do Brasil, especialmente os mitos amazônicos se-
lecionados por tratarem de eventos geológicos. Ela coordena
um grupo de contadores de histórias que utilizam essas poé-
ticas orais para ensinar, em espaços formais e informais, sobre
vulcanismo, origem das montanhas, fossilização, maremotos,
tsunamis e até placas tectônicas.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Minha segunda justificativa passa por essa pertinência das


narrativas de proporcionar formas alternativas de pesquisa,
ensino e divulgação por parte do professor no exercício do
seu magistério. A seleção dos mitos vai depender da com-
plexidade do assunto que o professor queira tratar, pensando
especificamente na implementação da Lei 10.639/03.
Esse projeto coordenado pela professora Ponciano é da
UNIRIO, está em andamento, o grupo está atuando e a di-
vulgação desses conceitos das Geociências a partir dessas nar-
rativas está sendo feita.
Participei, em 1992-1993, de um projeto de divulgação
científica no Museu de Astronomia e Ciências afins. Numa
fase do projeto, utilizamos narrativas indígenas para ensinar
368 conceitos de Astronomia. Falávamos de alfabetização cientí-
fica e a utilização das narrativas indígenas era um elemen-
to fundamental para erradicar o analfabetismo científico dos
alunos e visitantes do Museu.
As histórias eram escolhidas pelos coordenadores do pro-
jeto, e eu, na condição de bolsista, fazia a apresentação desses
conceitos científicos dentro do planetário. Professores e alu-
nos ouviam a mesma história e aprendiam os mesmos concei-
tos. Esperava-se que os professores aprofundassem a discussão
sobre o assunto da apresentação em sala de aula.
Dois projetos valorizando a importância das narrativas
como recurso para ensino de conceitos complexos como a
Geociência e a Astronomia. Estamos falando de projetos em
duas instituições federais que são referência de ensino, pes-
quisa e extensão.
Qual a diferença da minha proposta para as duas supraci-
tadas? Em ambas, o professor é colocado como mero expecta-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dor, não vai muito além disso. Ele não participa das escolhas
das narrativas, não interfere nos objetivos do projeto e nem
avalia a complexidade e pertinência do assunto para ele e para
seus alunos.
Outra diferença é o método que eu proponho para aborda-
gem das poéticas orais tendo em vista a implementação da Lei
10.639. Aqui o professor é sujeito da sua prática pedagógi-
ca. Ele garimpa, seleciona, pesquisa, aprofunda os conceitos,
conta a história. Ele é um professor-pesquisador-narrador.
Passemos agora para a proposta de atividade utilizando as
narrativas africanas. O primeiro conto, “A lenda do tambor
africano”, remete-nos a várias questões importantes no que se
refere à discussão e reflexão sobre a questão étnico-racial. O
segundo conto, “Histórias de Orixás”, é um mito de origem, 369
e pode-se levantar, após uma pesquisa criteriosa, a discussão
sobre as religiões de matriz africana, entre outros assuntos.

O MÉTODO PROPOSTO

Neste ponto da atividade, queremos propor o que chama-


mos de TEIA: Texto, Explanação, Implicações e Atividades.
A proposta é fazer analogia com o trabalho da aranha ao tecer
a sua teia.
Utilizamos os seguintes critérios para a seleção dos contos:
narrativas que, diretamente ou de maneira subjetiva, fazem
referência aos aspectos cultural, religioso, histórico e geográfico.
Cada aspecto será subdividido em três itens, quais sejam:
Texto, onde serão abordados Aspectos gerais do conto; na Ex-
planação, faz-se um Recorte do texto; nas Implicações, propo-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

nho questões sobre o Texto-conto escolhido; em Atividades,


os alunos são levados à ação, à prática.
Por Aspectos gerais do conto, nos referimos ao seu caráter
cultural, religioso, histórico e geográfico. Recorte seria uma ca-
racterística cultural, que sobressai do povo a quem o con-
to se refere. Implicações/Atividades são sugestões de possíveis
questionamentos, procedimentos e atividades que o professor
pode adotar para levantar as questões que poderão deflagrar
uma reflexão sobre o conteúdo da narrativa, tendo em vista a
valorização da cultura afro-brasileira e africana.
Certamente, as sugestões acima não são fechadas nem
exaustivas. Podem ser flexíveis e poderão ser apresentados
outros caminhos para melhores abordagens sobre o tema em
370 questão.

A PRÁTICA: O MÉTODO
EM FUNCIONAMENTO

Reproduziremos os contos para, em seguida, propormos as


possíveis contribuições para a reflexão, análise e valorização
da cultura afro-brasileira e africana. Reconhecemos que os
contos de literatura oral se prezam não só para entretenimen-
to, mas também como textos para uma leitura sistemática e
crítica da cultura de sua origem e de sua inserção.

1. Lenda do tambor africano

Dizem na Guiné que a primeira viagem à Lua foi feita pelo


Macaquinho de nariz branco. Segundo dizem, certo dia, os
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

macaquinhos de nariz branco resolveram fazer uma viagem


à Lua a fim de trazê-la para a Terra. Após tanto tentar subir,
sem nenhum sucesso, um deles, dizem que o menor, teve a
ideia de subirem uns por cima dos outros, até que um deles
conseguiu chegar à Lua.
Porém, a pilha de macacos desmoronou e todos caíram,
menos o menor, que ficou pendurado na Lua. Esta lhe deu
a mão e o ajudou a subir. A Lua gostou tanto dele que lhe
ofereceu, como regalo, um tamborinho. O macaquinho foi
ficando por lá, até que começou a sentir saudades de casa e
resolveu pedir à Lua que o deixasse voltar.
A Lua o amarrou ao tamborinho para descê-lo pela corda,
pedindo a ele que não tocasse antes de chegar à Terra e, assim
que chegasse, tocasse bem forte para que ela cortasse o fio. 371
O Macaquinho foi descendo feliz da vida, mas na metade
do caminho, não resistiu e tocou o tamborinho.
Ao ouvir o som do tambor, a Lua pensou que o Maca-
quinho houvesse chegado à Terra e cortou a corda. O Ma-
caquinho caiu e, antes de morrer, ainda pode dizer a uma
moça que o encontrou que aquilo que ele tinha era um tam-
borinho, que deveria ser entregue aos homens do seu país. A
moça foi logo contar a todos sobre o ocorrido.
Vieram pessoas de todo o país e, naquela terra africana,
ouviam-se os primeiros sons de tambor.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

TEXTO
(ASPECTOS EXPLANAÇÃO
IMPLICAÇÕES/ATIVIDADES
GERAIS DO (RECORTE)
CONTO)
Música e Arte. Especialmente Pesquisa de outros instrumentos de
o instrumento, sua função e origem desse país a que refere o conto
importância dentro da formação e de outras regiões da África. Pode-se
do povo africano, sua sonoridade. falar sobre o Agogô, o Banzá (nosso
Data provável do seu surgimento reco-reco), o Bongô e o Caxixi.
no Brasil. Principais escritores, o
Cultural mais importante poeta e/contadora Apresentar uma música em esses
de histórias. instrumentos estão sendo utilizados.
Esse instrumento em especial deu
origem a outros instrumentos? Como
era e como é a confecção desse
tamborinho especificamente? Vida
cultural etc.
Som e ritmo associados à Igrejas, escolas de samba, blocos
religiosidade. Se é utilizado, carnavalescos, grupos folclóricos
em qual ou quais rituais essa podem ser pesquisados para saber o
sonoridade é aplicada. O material valor cultural desse instrumento na
com que é confeccionado o vida daquela comunidade.
instrumento está diretamente
ligado a qual elemento do panteão Apresentação de outros instrumentos
da mitologia africana? africanos. Se possível, apresentar sua
372 sonoridade.
Religioso Outro segmento religioso
ou social se apropriou desse Para grupos de adolescentes e adultos,
instrumento e o descaracterizou recomenda-se visita a museus e
de sua religiosidade? Ou terreiros em que esses instrumentos
mantiveram sua matriz religiosa? possam ser vistos no seu contexto
Se esse instrumento faz parte do religioso.
cerimonialismo das religiões de
matriz africana, que elemento tem
a autorização para tocá-lo?
Pode-se discutir sobre a descoberta Estabelecer um quadro histórico
e colonização da Guiné; sua dos principais fatos desde seu
colonização; Independência; forma descobrimento até hoje. Como a nação
de governo; atual governante. sofreu com a exploração de africanos
para serem escravizados em outros
países. Há algum acordo diplomático
Histórico do país com Brasil?
Número de membros desta nação
que residem no Brasil. Agendar uma
entrevista com um guineano ou uma
guineana para conversar sobre sua
cultura.
Extensão territorial; número de No país dentro continente africano.
habitantes; escolaridade; poder Principais diferenças entre nação e
econômico; analfabetos; principal continente; fronteiras com outros
Geográfico riqueza do país; principais países; distância em quilômetros até
problemas sociais; expectativa de o Brasil.
vida; universidades.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

APROFUNDANDO A DISCUSSÃO

Para aprofundar a discussão, proponho a leitura de “Histó-


rias de Orixás (mito de origem)”.

2. Histórias de Orixás (mito de origem)

Oxumarê: No princípio quando não havia separação entre o


Céu e a Terra,
Oxalá e Odudua viviam juntos dentro de uma cabaça.
Extremamente apertados, um contra o outro.
Odudua embaixo e Oxalá em cima.
Eles tinham sete anéis. 373
À noite eles colocavam seus anéis, e aquele que dormia por cima
sempre colocava quatro anéis, e o que ficava por baixo colocava
os três restantes.
Um dia Odudua, deusa da Terra, quis dormir por cima
Para poder usar nos dedos quatro anéis.
Oxalá, o deus do Céu, não aceitou
Tal foi a luta que travaram os dois lá dentro
Que a cabaça acabou por se romper em duas metades,
A parte inferior da cabaça, com Odudua, permaneceu embaixo,
E a parte superior, com Oxalá, ficou em cima,
Separando-se assim o Céu e a Terra.

Em primeiro lugar, o professor apresenta o Texto que foi


previamente escolhido e o lê para a turma. Já discutimos, nes-
te trabalho, os critérios para a escolha dos contos. Vamos uti-
lizar o texto acima: Histórias de Orixás (mito de origem).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Em seguida, a professora ou o professor fará uma Expla-


nação sobre o mito (texto). Neste ponto, pode-se falar sobre
a África cosmogônica, sobre a África na época da escravidão;
a vida desses africanos escravizados aqui no Brasil; da África
de hoje e toda a sua riqueza cultural. Sobre a geografia do
continente africano; da África como berço da humanidade a
partir do mito de origem que foi escolhido; dos países de fala
portuguesa; das religiões de matriz africana etc.
Feita a Explanação, o professor pede aos alunos as Impli-
cações das informações que receberam. Como é passada na
mídia a imagem da África? Quais conceitos essas imagens
querem criar? E a escravidão do povo africano, como se re-
flete nas relações étnicas hoje no Brasil? Como são vistos os
374 adeptos das religiões de matriz africana? Há tolerância?
Aqui pode dar uma boa discussão sobre racismo e precon-
ceito racial; tolerância religiosa; discurso eurocêntrico etc. A
professora pode direcionar a reflexão para apenas um ponto
que julgar mais relevante ou pode deixar a discussão “pegar
fogo”.
Finalmente, com Atividades, a TEIA se completa, ganha
sua forma. Na sala de aula, a professora pode encorajar seus
alunos a manifestar sua opção religiosa. Talvez no primeiro
momento alguns escolham ficar no anonimato. Talvez haja
alguém que prefira falar em particular com o professor para
sentir sua reação e apoio. A distância entre o discurso e a prá-
tica do professor é colocada à prova neste momento. É hora
de apoiar. Fazer valer o seu discurso.
Outra atividade pode ser pedir aos alunos que falem se
já passaram por algum tipo de discriminação: por ser pobre,
rico, por morar na periferia; por ser gordo, negro, magro etc.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Para atividade extraclasse, os alunos podem pesquisar contos


africanos e trazer para serem lidos ou expostos no mural da
sala ou da escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta de um envolvimento com as questões que di-


retamente nos dizem respeito requer de nós uma postura de
enfrentamento e resistência, para que alcancemos uma socie-
dade menos injusta, menos preconceituosa, menos racista e
tolerante à diversidade. Outra postura é a de manter nossa
sensibilidade, nosso amor, para não aceitarmos esse tratamen-
to desumano dispensado à população negra como natural. 375
Manter essa sensibilidade à flor da pele ajuda também a nossa
postura crítica.
O professor é peça-chave nesse processo de enfrentamento
e resistência, mas para isso ele precisa de todo tipo de apoio:
solidariedade, suporte técnico, formação acadêmica e ótimas
condições de trabalho. Cabe à universidade um papel funda-
mental, que é compartilhar com esses docentes a sua prática
pedagógica e as dificuldades enfrentadas no chão da escola,
bem como suas atividades que têm dado resultados.
Na verdade, quando propomos o uso das narrativas, esta-
mos entendendo que isso pode contribuir significativamente
para a formação do professor e com grande possibilidade de
formar alunos críticos e engajados no processo de resistência
contra qualquer tipo de ameaça aos direitos até agora con-
quistados.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

QUANDO A “ACADEMIA” SE APROXIMA


DA ESCOLA: RELATOS DOCENTES E SUAS
PERCEPÇÕES ACERCA DE PROCESSOS
FORMATIVOS E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
PARA UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

Ana Paula Cerqueira Fernandes92


Sandra Regina de Souza Cruz93

Estamos construindo uma massa crítica, pós LDBEN. 379


Esse é um processo, uma construção histórica de negociações e
estabelecimento de acordos possíveis a cada avanço coletivo. O
risco é essa massa crítica repetir os vícios da velha educação
bancária, da velha escola ainda existente, dos velhos processos
pedagógicos. Nossa tarefa, enquanto uma nova geração crítica, é
reinventar e inventar um “outro” modo de ser docente.

(Luiz Fernandes de Oliveira)

92. Professora da Universidade Estácio de Sá e da rede estadual do Rio de Janeiro. Dou-


toranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Contextos Con-
temporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
93. Professora das redes: municipal de Educação de Nova Iguaçu e estadual do Rio de
Janeiro. Graduada em História com curso de aperfeiçoamento em Educação e Diversi-
dade Étnico-Racial pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

POR UMA NOVA DINÂMICA ACADÊMICA

A epígrafe acima resume de forma bastante objetiva o ci-


clo de estudos que deu origem e serviu de motivação para a
escrita deste breve artigo, cuja redação, no coletivo, já reflete
o esforço de colocarmos em prática muitas das lições que
experimentamos enquanto professores/ pesquisadores/ eter-
nos aprendentes. Este artigo tem por objetivo retomar as-
pectos centrais das discussões que foram propostas ao longo
da disciplina Formação Docente e Relações Étnico-Raciais
ofertada como tópico especial no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em Educação Contextos Contemporâneos e
Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio
380 de Janeiro (PPGEDUC) durante o segundo semestre letivo
de 2015.
É preciso reconhecer que a condução dos encontros, sob
a responsabilidade do professor Luiz Fernandes de Oliveira,
contribuiu de forma significativa para que o coletivo envol-
vido nos debates pudesse experimentar um formato acadêmi-
co mais dinâmico e inspirador. Dinâmico por possibilitar ao
grupo não apenas momentos de reflexão teórica, mas, sim,
de muitas trocas e socialização das ações que os “discentes/
docentes” vinham desenvolvendo em seus territórios de tra-
balho. Inspirador na medida em que, como mediador do
conhecimento, sua atuação docente foi bastante significativa
ao estimular e contribuir para mudanças no/do grupo. Ao
longo deste artigo, buscaremos retomar pontos centrais das
discussões proferidas durante os encontros semanais, trazendo
aspectos centrais dos textos teóricos revisitados em diálogos
com as intervenções cursistas. A dinâmica acadêmica estabe-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

lecida, segundo a percepção dos alunos, foi de fundamental


importância para o estabelecimento de uma prática dialógica
(FREIRE, 1996), conforme o relato a seguir:

Luiz é um professor que se envolve de tal maneira conos-


co que às vezes esquecemos que ele é o professor, dando-
-nos voz, anotando nossas falas, observando nossos po-
sicionamentos, nosso crescimento, tanto pessoal quanto
acadêmico. Posso dizer, sem medo, que sou outra pessoa
após cursar estas duas94 disciplinas.
Relato de Viviane Almeida

A composição eclética da turma, que aglutinou docentes


dos mais diversos segmentos educacionais desde a educação 381
básica, passando pelo ensino profissionalizante, e ainda com
docentes que atuam em instituições de ensino superior, possi-
bilitou o redimensionamento dos temas propostos, amplian-
do os debates teóricos e articulando-os aos diversos campos
de atuação profissional. Vivenciamos um ciclo de estudos
que, efetivamente, contribuiu para nos instrumentalizar no
sentido de compreendermos a relação intrínseca que deve ha-
ver entre a teoria e a ação, para assim não cairmos nas arma-
dilhas que afastam a universidade e seus saberes acadêmicos
do mundo real.
Neste contexto, a disciplina vinha ao encontro desta bus-
ca por uma constante formação qualitativa que nos formasse
para a realidade escolar e social na qual estamos inseridos/as.

94. A professora Viviane também faz referência em sua fala a outro ciclo formativo
ministrado pelo professor Luiz Fernandes em 2013, quando ofertou a disciplina Edu-
cação, Epistemologias e Religiosidades de Matriz Africana.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Esta percepção fica evidenciada no relato da professora uni-


versitária Simone:

A minha inserção nesta disciplina foi com o objetivo de


buscar um aprofundamento na área das Relações Raciais
para o Curso de Formação de Professores. (...) Como
uma aluna e pesquisadora iniciante só tenho a dizer que
todas as aulas foram de suma importância para o meu
crescimento profissional, pois as aulas me inquietaram e
me mostraram (como no texto de Nóvoa) que o excesso
do discurso em sala e as pobrezas das práticas me fazem
repensar a minha atuação de formadora de formadores.
Relato de Simone Ricci
382
O desenrolar das aulas durante o semestre assumiu um
perfil inovador, em que todos os alunos inscritos, para além
do compromisso com a rotina acadêmica de leituras e produ-
ção focada no ambiente acadêmico, foram convidados para
participar das “rodas de troca e conversa” que propuseram
um diálogo entre a teoria estudada e a práxis pedagógica dos
sujeitos envolvidos. Foram momentos densos de informação,
em que cada elemento convidado elencava para o grupo as ra-
zões que os tocavam para assumirem a condução de processos
de mobilização social e muita militância política em favor de
uma educação outra, combativa e antirracista.
Vivemos momentos raros durante os encontros de estudo,
quando pudemos experimentar uma “desobediência acadê-
mica95” ao nos tornarmos os protagonistas de nós mesmos,
95. A expressão é um jogo de palavras a partir da referência conceitual de “desobediên-
cia epistêmica” (MIGNOLO, 2008) abordada por Luiz durante os encontros.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

prática pouco observada nos contextos da Academia, onde o


foco de interesse sempre recai sobre o debate, leitura e crítica
das produções teóricas de renomados autores. A responsa-
bilidade deste protagonismo reforça o compromisso ético e
profissional com a reflexão, tal como evidencia a fala da pro-
fessora Ana:

Penso que a profissão docente já venha com a “marca


d’água” da reflexão, mas o tom das relações étnico-raciais
precisa estar ainda mais em evidência. A disciplina nos
oportunizou este diálogo tão caro a todos nós que esco-
lhemos o front da educação para as relações étnico-raciais
como bandeira de luta. Sim, uma bandeira de luta em prol
de um mundo outro! (...) O balanço que fica é extrema- 383
mente positivo, mas também de alerta! Positivo, pois per-
cebo que pudemos formar redes para troca e produção de
conhecimentos; ficando o alerta de que é preciso ampliar
espaços de debate com este viés em nossa universidade.
Relato de Ana Paula Fernandes

Em tempos de cibercultura (SANTOS, 2010), sabemos


que há uma tendência quase naturalizada de que o caminho
para estreitar laços inclua as relações estabelecidas nos ciberes-
paços. Assim a turma, para ampliar o ambiente de troca que
acontecia na universidade, lançou mão de um recurso digital
para promover outros debates que ampliaram as redes de dis-
cussão temática. E aos poucos fomos esboçando a construção
de uma rede educativa, de um espaço multirreferenciado de
trocas e aprendizagens, sendo tais redes os “espaços-tempos”
onde pudemos ampliar nossos conhecimentos relacionados
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

aos pontos abordados durante as aulas. Acompanhando con-


versas mediadas pelo computador, onde a ferramenta explo-
ratória foi o Facebook96. Observamos a riqueza dos discursos
lá depositados, os quais evidenciam o compromisso coletivo
frente aos pontos elencados também durante as aulas.
Assim como a disciplina ofertada na universidade, o gru-
po fechado97 criado na rede social do Facebook denominou-
-se Formação Docente e Relações Étnico-Raciais. O fluxo
de informações e debates instaurados pela turma extrapolou
os textos, mas sem perder o foco das discussões que fazem
fronteira com o universo das relações raciais. Repensar o
processo de construção identitária foi ponto de pauta sem-
pre presente em nossas conversas, tal como aparece no regis-
384 tro de Fabiana:

Olhar as questões acerca do negro fez com que eu enxer-


gasse, em minha própria história, os preconceitos e discri-
minações que os nordestinos também sofrem. Consegui
perceber que os espaços que lhes são “concedidos” são
também os subalternizados, que as estereotipações antes
interpretadas como “brincadeiras” ou sua linguagem uti-
lizada como instrumento constante do campo da comé-
dia, para formulação de incontáveis piadas e inferioriza-
ções, também são fruto destas construções. Tais questões,

96. Criado em 2004, o Facebook é gratuito para os usuários e gera receita proveniente
de publicidade, incluindo banners e grupos patrocinados. Os usuários criam perfis que
contêm fotos e listas de interesses pessoais, trocando mensagens privadas e públicas
entre si e participantes de grupos de amigos. A visualização de dados detalhados dos
membros é restrita para membros de uma mesma rede ou amigos confirmados, ou pode
ser livre para qualquer um.
97. <http://bit.ly/2dx9j9W>
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

tanto para negros como para nordestinos – assim como


para qualquer etnia submetida a estes processos – “natu-
ralizam-se” sob o mesmo âmago: a dominação e a manu-
tenção de privilégios.
Relato de Fabiana Lima

Desta forma, como acabamos de anunciar, para a constru-


ção do presente artigo e inspiradas na intensidade dos debates
abertos no/pelo grupo, estabelecemos diálogos entre os teóri-
cos analisados durante o curso e os sujeitos militantes que em
seus discursos transbordam uma práxis pedagógica que nos
convida a refletir e acreditar na possibilidade de inventar um
“outro” modo de ser docente.
385

CONVERSAS CRUZADAS: DIALOGANDO


COM OS NOSSOS MESTRES

De onde eu falo... Eu não falo “de” ou “sobre”


o negro; mas eu falo com.
(Úrsula Farias)

A práxis construída seguiu as trilhas já apontadas por Frei-


re (1988), que anunciava a necessidade de transformação so-
cial e apontava a educação como caminho possível e viável. O
conjunto das obras analisadas durante o semestre versou sobre
o papel da formação docente para a construção de uma pe-
dagogia outra, combativa aos preconceitos e conectada à luta
antirracista, buscando assim inspiração em referências funda-
mentais propostas por Paulo Freire e que ainda hoje guardam
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

uma atualidade e relação de proximidade com as abordagens


da vertente teórica da interculturalidade crítica.
Os relatos pontuam a importância do trato das diversida-
des culturais na educação escolar e reconhecem a necessida-
de das abordagens que contemplem a questão indígena, um
dos eixos temáticos também abordados durante a disciplina.
Ela foi ainda mais convidativa por conta das contribuições
e questões trazidas para a roda de nossas conversas semanais
pela pesquisadora Kelly Russo, da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, e a liderança indígena Doethyró (Car-
los Tukano). Os convidados nos fizeram refletir de forma
mais sistemática sobre a urgência da garantia de direitos dos
povos indígenas de nosso país, também invisibilizados his-
386 toricamente. O professor Helder, ao fazer um balanço da
disciplina, comenta:

A disciplina Formação Docente e Relações Étnico-


-Raciais proporcionou o debate a fim de consolidar o
processo formativo dos educadores que realizaram a dis-
ciplina, tanto em relação às questões indígenas quanto
as questões pertinentes às relações étnico-raciais em sua
amplitude. (...) Nessa disciplina pude enraizar meus co-
nhecimentos em ambas as temáticas, o que me trouxe
um novo olhar a fim de trazer uma posição mais politi-
zada para tais questões.
Relato de Helder Sarmento

É sabido que a busca por processos educativos culturalmente


referenciados tem se intensificado nos últimos anos, o que no
contexto brasileiro estimulou a execução de ações por parte
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

do governo no sentido de contemplar a temática, sendo a Lei


10.639/0398 um exemplo do atendimento a esta provocação.
Müller & Coelho (2013) reforçam o quanto é importante
compreendermos o contexto de promulgação da referida lei
como parte de um cenário mais amplo de políticas de ação
afirmativa para reparação de erros históricos cometidos contra
a população negra, historicamente subalternizada na história
brasileira. As autoras esclarecem que a Lei 10.639/03 é uma
oportunidade para se repensar a questão da inclusão sob uma
nova perspectiva, qual seja aquela compromissada com a al-
teração epistemológica do/no currículo escolar (MOREIRA,
2005), um território sempre em disputa, conforme também
nos alerta Miguel Arroyo:
387
Na construção espacial do sistema escolar, o currículo é o
núcleo e o espaço central mais estruturante da função da
escola. Por causa disso, é o território mais cercado, mais
normatizado. Mas também o mais politizado, inovado,
ressignificado. Um indicador é a quantidade de diretrizes
curriculares para a Educação Básica, Educação Infantil,
Ensino Fundamental de 9 (nove) anos, Ensino Médio,
EJA, Educação do campo, indígena, étnico-racial, forma-
ção de professores etc. Quando se pensa em toda essa
diversidade de currículos sempre se pensa em suas diretri-
zes, grades, estruturas, núcleo, carga horária; uma confi-
guração política de poder. (ARROYO, 2013, p. 13)

98. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003 - altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temá-
tica História e Cultura Afro-Brasileira.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Assim, as abordagens interculturais no contexto educacio-


nal podem contribuir para enfatizar a importância das relações
de poder entre os diferentes grupos subalternizados ao longo
da história, promovendo a visibilidade e o reconhecimento
do processo de luta política e ideológica de tais segmentos em
favor da defesa de seus direitos.
Para que possamos lidar com a diferença na escola, faz-se
necessário promover esta mudança paradigmática, estabele-
cendo um novo olhar sobre a história; este como possibili-
dade de aprender a partir do princípio da alteridade, onde o
diálogo com os “Outros” seja possível, viável, enriquecedor,
pois, como nos aponta Candau:

388 A nossa formação histórica está marcada pela eliminação


física do “outro” ou por sua escravização, formas violentas
de negação de sua alteridade. Os processos de negação do
outro também se dão no plano das representações e no
imaginário social. Neste sentido, o debate multicultural
na América latina nos coloca diante desses sujeitos his-
tóricos que foram massacrados, que souberam resistir e
continuam hoje afirmando fortemente suas identidades
na nossa sociedade, mas numa situação de relações assi-
métricas, de subordinação e acentuada exclusão. (CAN-
DAU, 2008, p. 17)

A desconstrução dos currículos escolares para a promoção


de um debate intercultural não é tarefa fácil, já que pressu-
põe um giro epistêmico (MALDONADO-TORRES, 2007),
uma tomada de posição que promova a reflexão crítica ao
pensamento hegemônico, historicamente centrado nos re-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ferenciais eurocêntricos. As contribuições de autores como


Oliveira e Lins (2013, 2014) reforçam a importância de tal
deslocamento epistêmico para a construção de um novo ce-
nário educacional no país, sendo a educação para as relações
étnico-raciais um campo fértil para o exercício consciente de
uma desobediência epistêmica que viabilize um pensamento
outro, para um mundo outro, a partir de disputas contra-
-hegemônicas:

Estamos tratando aqui de uma nova política pública


no campo da educação, e que tem como característica
a inovação, a disputa política contra-hegemônica, a des-
construção de conceitos e noções fortemente arraigados -
inclusive no campo educacional e, por conta disso, a pro- 389
posição de novos parâmetros interpretativos e analíticos
alternativos àqueles já consolidados nos estudos históricos
e na educação. (OLIVEIRA e LINS, 2013, p. 14)

No bojo das contribuições de autores que formam o grupo


modernidade-colonialidade, as reflexões de Catherine Walsh
(2005, 2006) para a compreensão da pedagogia enquanto
prática política e culturalmente referenciada é de fundamen-
tal importância. Ela nos convida ao entendimento da pers-
pectiva da interculturalidade crítica como forma possível para
uma pedagogia decolonial, aquela que se origina de/na prá-
xis baseada numa insurgência educativa propositiva, disposta
a mudar/construir novos conteúdos, novos olhares para um
mundo outro. As abordagens que seguem a linha da inter-
culturalidade podem favorecer na construção de um mundo
mais justo, alternativo e politicamente engajado na luta con-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

tra formas de preconceito, discriminação e racismo que per-


meiam as bases da nossa sociedade.
Oliveira e Candau (2010), em artigo no qual analisam as
confluências da pedagogia decolonial no contexto da educa-
ção para as relações étnico-raciais no Brasil, afirmam que as
disputas em torno da Lei 10.639/03 no campo educacional,
além de apresentarem caráter epistemológico e político, tam-
bém se caracterizam como um projeto de existência e de vida
em favor das populações subalternizadas em nossa história.
E, ratificando os princípios elencados por Walsh, retomam as
ideias da autora:

O conceito de interculturalidade é central à (re)construção


390 de um pensamento crítico-outro – um pensamento crítico
de/desde outro modo –, precisamente por três razões prin-
cipais: primeiro porque está vivido e pensado desde a expe-
riência vivida da colonialidade (...); segundo, porque refle-
te um pensamento não baseado nos legados eurocêntricos
ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua origem
no sul, dando assim uma volta à geopolítica dominante do
conhecimento que tem tido seu centro no norte global.
(OLIVEIRA e CANDAU apud WALSH, 2010, p. 27)

Tais projetos de existência e de vida em favor do protago-


nismo das populações subalternizadas vêm sendo construídos
a partir da intervenção sistemática de ações coletivas, de co-
letivos concretos que têm nos movimentos sociais uma força
assertiva. Tais movimentos, como matrizes educativas, contri-
buem para a repolitização do “outro”, daqueles sujeitos histó-
ricos que, em função da atuação do pensamento colonizador,
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

foram enquadrados como objetos de estudo e não sujeitos da


ação. Pois conforme Arroyo (2003):

Os movimentos sociais não deixaram de ter papel peda-


gógico, formaram lideranças também e contribuíram para
educar as camadas populares nem sempre tocadas pela
mobilização operária. Em frentes diversas cumpriram pa-
péis educativos próximos (...). Os movimentos sociais ar-
ticulam coletivos nas lutas pelas condições de produção da
existência popular mais básica. Aí se descobrem e se apren-
dem como sujeitos de direitos. (ARROYO, 2003, p. 32)

Mas, para que possamos enquanto professores promover


tais mudanças significativas em nossos educandos, será pre- 391
ciso reinventar nossa prática docente e assim contribuir para
a reinvenção da escola. Enquanto sujeitos proponentes de
uma prática reflexiva, conforme Henry Giroux, será preciso
desenvolver e/ou se apropriar criticamente dos currículos já
estabelecidos, posto que o professor seja o tipo de profissional
que deve levantar questões sérias acerca do que ensina, sendo
essencial nesta empreitada tornar o pedagógico mais político
e o político mais pedagógico:

Tornar o pedagógico mais político significa inserir a esco-


larização diretamente na esfera política, argumentando-
se que as escolas representam tanto um esforço para
definir-se o significado quanto uma luta em torno das
relações de poder (...). Tornar o político mais pedagógico
significa utilizar formas de pedagogia que incorporem
interesses políticos que tenham natureza emancipadora;
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

isto é, utilizar formas de pedagogia que tratem os


estudantes como agentes críticos; tornar o conhecimento
problemático; utilizar o diálogo crítico e afirmativo;
e argumentar em prol de um mundo qualitativamente
melhor para todas as pessoas. (GIROUX, 1997, p. 163)

A politização do pedagógico pode ser compreendida levan-


do-se em conta a complexidade cada vez mais ampliada do
universo educacional. A instituição escolar nunca foi uma ilha
isolada do seu contexto social, histórico e, por assim dizer,
cultural. A diversidade cada vez maior do perfil de seus usu-
ários, oriundos de diferentes segmentos sociais, passa a exigir
esforços crescentes de atualização não somente da teoria, mas
392 também das práticas docentes. Os processos formativos de
professores também precisam acompanhar com urgência este
movimento de repolitização, saindo da zona de conforto que
historicamente não viabilizou trocas e construção de novos
saberes pedagógicos que dialogam com o mundo.

Ser educadora é um desafio político-pedagógico constante


e cada vez mais árduo diante da demanda social que en-
caramos. A decisão de participar da Disciplina Formação
Docente e Relações Étnico-Raciais como aluna-ouvinte
foi uma decisão que oportunizou-me um debate qualifi-
cado, com muitas trocas de experiências e um divisor de
águas em minha prática docente. Estar em meio a edu-
cadores comprometidos e com realidades e desafios tão
diversos fez-me mais forte no enfrentamento de inúmeras
questões de meu cotidiano profissional e social.
Relato de Sandra Cruz
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Freire (1988) e Franco (2008), para dialogar com dois


dos autores analisados durante a disciplina, nos chamam a
atenção sobre a necessidade de distinguir práxis de prática.
Ambos reforçam o entendimento de que a práxis seja ação
numa perspectiva emancipatória, promotora da autonomia
dos sujeitos.

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista


e libertadora, terá dois momentos distintos. O primei-
ro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da
opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua
transformação; o segundo, em que, transformada a reali-
dade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido
e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de 393
permanente libertação. (FREIRE, 1988, p. 41)

Para Franco, os saberes pedagógicos decorrem de uma


práxis social e histórica onde sujeito e realidade dialogam, se
transformam e são por ela transformados, contribuindo assim
para a enunciação do novo:

Se não houver o exercício da práxis que renove e rearticule


a teoria e a prática, não haverá espaço para a construção
de saberes. Nesse caso, tempo de serviço não se transforma
em saber da experiência, pois esse reproduzir mecânico é
anistórico e não cede espaço para a articulação dialética do
novo e do necessário. (FRANCO, 2008, p. 119)

Antônio Nóvoa aponta que, para a construção de práticas


pedagógicas inovadoras, é preciso garantir o exercício con-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

tínuo da reflexão sobre a experiência. Este posicionamento


diante do exercício profissional docente pode contribuir para
evitar a pobreza atual das práticas pedagógicas, “fechadas
numa concepção curricular rígida e pautadas pelo ritmo de
livros e materiais escolares concebidos por grandes empresas”.
(NÓVOA, 1999, p. 16). Desta forma, podemos afirmar que
estamos diante de um grande desafio, qual seja: a (re)inven-
ção de novas práticas.
Porém, quando o eixo temático proposto são as relações
raciais, o quadro é mais alarmante. Como nos esclarece Pe-
reira (2007), a proposição de novas estratégias referendadas
a partir dos dispositivos que a Lei 10.639/03 estabelece tem
recaído, em grande parte, sob a responsabilidade dos educa-
394 dores categorizados por ele de “agentes da Lei 10.639/03”.

A oferta da disciplina Formação Docente e Relações Étni-


co-Raciais possibilitou o que os autores decoloniais colo-
cam como desobediência epistêmica, pois foi levado para
dentro do ambiente universitário, espaço este de forma-
ção, um debate que coloca em pauta para que estão sen-
do formados os atores que atuarão “no chão da escola”: os
docentes. Vejo como de suma relevância este debate, pois
a implementação da Lei Federal 10.639/03 trouxe muitas
demandas e desafios para dentro da escola e muitas vezes
não sobra tempo de debater de que maneira estes do-
centes estão lidando com as tensões provocadas por esta
mudança curricular. Compartilhar um semestre debruça-
dos sobre estas discussões possibilitou, em primeiro lugar,
uma rica troca de experiências, em que projetos de suces-
so e também aqueles não tão bem-sucedidos puderam ser
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

repensados, de modo a buscarmos juntos qual o melhor


caminho a seguir. Outro ponto que considero importan-
te destacar é o debate acerca da necessidade de “práticas
pedagógicas prontas”, como “receita de bolo”. Este pra
mim foi um ponto da disciplina que gerou reflexões po-
sitivas, uma vez que foi colocado que “na tentativa de
acertar” muitos docentes acabam caindo nos estereótipos
e em práticas que reforçam os conceitos colonizados que
temos da história e da cultura afro-brasileira. Por outro
lado, quando se compartilha “práticas prontas”, ou seja,
exemplos de atividades que contribuem para uma verda-
deira inserção da temática étnico-racial, cria-se uma rede
de conhecimentos pertinentes a uma verdadeira mudança
epistemológica. 395
Relato de Lilian do Carmo

Tem sido este coletivo de educadores os desbravadores


dos currículos no tocante à inclusão da temática de história
e cultura afro-brasileira e africana no chão de nossas escolas.
São eles os sujeitos empenhados na reformulação da prática
docente, com o objetivo de fazer dela uma vivência multicul-
tural, sensível às diversidades que compõem a matriz cultural
brasileira. Os agentes da lei anunciam o desejo de mudança,
o compromisso coletivo que precisa estar na agenda de todo
educador/a, cidadão/ã que queira contribuir para mudanças
efetivas em nossa sociedade no tocante ao combate ao racis-
mo, pois, conforme anuncia a professora Fabiana:

Envolvida nesta dinâmica que cega o indivíduo e o con-


duz à aprendizagem do preconceito, os usos e abusos
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

quanto aos negros e aos nordestinos me eram imperceptí-


veis. Ter contato com os conhecimentos pertinentes à Lei
10.639/03 despertaram-me este novo olhar. Sei que tais
reconhecimentos, leituras e releituras acerca destas ques-
tões serão sempre aprendizado, mas percebo a urgência
da implementação efetiva desta Lei, principalmente em
relação às questões quanto à formação inicial de quem
vai “administrar” o processo de construção destes conhe-
cimentos.
É por isso que hoje escrevo, como estudante de pós-
graduação em Educação, cidadã brasileira, professora no
Colégio Pedro II, mãe de duas filhas, esposa e amiga,
cujas experiências e releituras despertaram tal indignação
396 e inconformismo, que me conduziram a apostar na rele-
vância desta abordagem. É deste lugar que falo!
Relato de Fabiana Lima

Mas esta empreitada ainda está longe de ser satisfatoria-


mente atendida, passados treze anos desde a promulgação da
Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que alterou a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) para in-
cluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática História e Cultura Afro-Brasileira. Reconhecemos
que este precedente legal veio impulsionar um movimento
que não pode mais recuar, sendo preciso para tanto ampliar
as redes de reconhecimento e valorização da população negra
que compõem a nação brasileira, tal como ratifica o Parecer
3/2004 do Conselho Nacional de Educação. É preciso que
tenhamos muitos educadores dispostos a assumir o compro-
misso de Agentes da Lei em seus ambientes de trabalho, pois
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

só assim combateremos o bom combate em favor da descons-


trução do imaginário racista que estrutura as relações sociais
em nosso país. Conforme sinaliza Pereira:

Há os desafios políticos à implementação da Lei


10.639/03. Sem dúvida enfrentados, aqui e ali, de di-
ferentes maneiras, com mais ou menos engajamento,
consistência, regularidade etc. Embora a correlação de
forças seja adversa aos agentes da Lei, é de se notar seu
empenho, crescente qualificação de seus discursos, con-
quistas de espaços, corações e mentes. Esse é o aspecto
dos desafios frente ao qual se sentem bem, sejam os que
já vinham incorporando ao seu jeito a história e cultura
afro-brasileiras em suas práxis pedagógicas, sejam os que 397
foram conquistados recentemente: é um espaço em que,
quase sempre, a luta se dá e pode ser travada abertamen-
te, nos intestinos das decisões em órgãos executivos, nos
debates institucionais e, a despeito de formalismos, em
órgãos normativos da Educação; ou mesmo em escolas,
em salas de professores, nos cotidianos das salas de aula
(PEREIRA, 2007, p. 15)

Como temos visto, um instrumento legal para a promo-


ção da equidade étnico-racial na educação já existe: a Lei
10.639/03, mas o sucesso de sua aplicabilidade deve estar
associado ao movimento de sensibilização, formação e com-
promisso com a efetivação de políticas públicas focadas na
temática da educação para as relações étnico-raciais. Esta sen-
sibilização que passa, obrigatoriamente, pelas escolhas políti-
cas e ideológicas que fazemos em nossas vidas. Tal como nos
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

relata a professora Conceição, cursar a disciplina ultrapassou


a formalidade acadêmica no sentido da obtenção dos créditos
do mestrado. Ela discorre:

Foi a pedido do professor Aloísio que me inscrevi nes-


sa disciplina, apesar de já possuir créditos excedentes e a
ementa não prever inicialmente a discussão da questão in-
dígena. Essa disciplina não seria de meu interesse natural,
considerando que apesar de ter feito o curso normal não
exerço o magistério. Mesmo assim foi gratificante ter con-
vivido com vocês durante este semestre, pude recordar e
aprimorar algumas questões que já havia desenvolvido em
minha monografia na pós-graduação (especialização em
398 literatura infantojuvenil, na UFF) cujo tema era a repre-
sentação do negro na literatura infantojuvenil. Foi grati-
ficante ouvir os relatos das atividades empreendidas pelos
colegas e seus desdobramentos. As leituras propostas foram
interessantes e acrescentaram bastante, mesmo as já lidas
por mim anteriormente, pois assumiam outros contornos,
quando enriquecidas pelos debates em sala de aula. A pre-
sença dos palestrantes abrilhantou muito mais as nossas
discussões e aumentou ainda mais a já alta motivação das
aulas. Motivação essa que ficava evidente quando mesmo
após o término do horário estipulado para as aulas, ainda
ficávamos mais um pouco para garantir a participação de
todos que gostariam de expressar suas opiniões e relatos.
Outro aspecto significativo nas aulas é que, para além do
conteúdo, sempre nos acompanhava uma carga emocional
comum aos apaixonados por suas causas.
Relato de Maria Conceição Silva
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

É PRECISO DIALOGAR E APRENDER


COM QUEM LUTA A VIDA TODA

A discussão dos textos teóricos somados aos relatos


de vida e ação docente contribuiu para uma reflexão
sobre o nosso papel enquanto membro de uma sociedade
racista e intolerante. O que vamos fazer daqui para frente
vai depender de quanto nos sentimos responsáveis por essa
mudança; mudança que deve começar com a gente, nos
despojando de todo o preconceito que foi forjado
ao longo da nossa existência. Acho que eu começo aqui...
Messias Braz

Diante dos relatos aqui apresentados fica a certeza de que 399


encontramos, ao longo deste percurso, docentes cuja marca da
responsabilidade social, histórica e ética para com a construção
de uma educação em bases antirracistas onde a aplicabilidade das
Leis 10.639/03 e 11.645/08 não seja um discurso vazio, de pala-
vras “ocas”, de verbalismo, como já nos sinalizava Freire. Muitos
de nós se descobriram guerreiras/os, militantes, intelectuais or-
gânicos e professores que, acima de tudo, protagonizam desejos
de mudança, e sonham com a construção de um mundo outro.
Cada um de nós trouxe e leva consigo a alegria e a força
necessária para poder acreditar na possibilidade de uma edu-
cação combativa em favor de uma sociedade em que homens
e mulheres não sejam preteridos em função de sua condição
social e autodeclaração de cor. Aprendemos que é preciso fa-
zer diferente, e ao fazer a diferença na vida de nossos alunos e
alunas afro-brasileiros que estão no chão de nossas escolas so-
nhamos poder contribuir para que eles/as se construam como
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

cidadãos por inteiro! Eis o desafio que devemos cumprir! E


para não concluir, mas refletir sempre, deixamos a pureza, a
força e a sabedoria africana do provérbio que diz: A união do
rebanho obriga o leão a ir dormir com fome.

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DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

PERFIL
DOS AUTORES

ADILSON ALVES SANTOS


Mestre em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), Brasil. Especialista em Língua Portuguesa pela Uerj-FFP e em
Relações Étnico-Raciais e Educação pelo Cefet-RJ. Graduado em Letras pe-
las Faculdades Integradas Simonsen. Atualmente trabalha como professor
405
regente nos ensinos médio e fundamental, ministrando aulas de Literatura
no Colégio Estadual Marechal Rondon e na Escola Municipal Governador
Leonel de Moura Brizola. É pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação,
Sociedade do Conhecimento e Conexões Culturais”. Áreas de atuação: Lín-
gua Portuguesa, Literatura e Relações Étnico-Raciais.

ALINE OLIVEIRA GRION


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Con-
temporâneos e Demandas Populares – UFRRJ, com pesquisa em anda-
mento na linha Educação e Diversidades Étnico-Raciais. Graduada em Ci-
ências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com ênfase em Antropologia. Participou
de grupos de extensão e pesquisa cujas temáticas eram educação, ações
afirmativas, diversidade. Tem experiência na pesquisa do tema relações ét-
nico-raciais, atuando principalmente nas seguintes áreas: Raça, Construção
Simbólica do Corpo Negro, Ações Afirmativas.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ANA PAULA CERQUEIRA FERNANDES


Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação,
Contextos Contemporâneos e Demandas Populares – UFRRJ. Mestre em
Educação pela UFRRJ. Especialista em Tecnologias em Educação pela Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (2007). Bacharel
e Licenciada em História pela UFRJ. Professora da Universidade Estácio
de Sá e da rede pública de educação do Estado do Rio de Janeiro, onde
desempenha a função de Agente de Acompanhamento em Gestão Escolar.
Tem experiência em docência superior, gestão escolar, formação continu-
ada e uso de tecnologias de informação e comunicação com ênfase numa
abordagem multicultural.

CECÍLIA CAMPOS SAITU


Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
406 – UERJ (2005). Especialista em Educação e Relações Étnico-Raciais pelo
Cefet-RJ (2011). Atualmente é diretora adjunta na Creche Municipal Parque
Bom Menino, na rede municipal do Rio de Janeiro. Tem experiência na
área de Educação, com ênfase em Educação Infantil e em Relações Étnico-
-Raciais e Educação. Atualmente é mestranda no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares
– UFRRJ, com pesquisa em andamento na linha Educação e Diversidades
Étnico-Raciais.

DANIELLE TUDES PEREIRA SILVA


Pedagoga na Prefeitura de Angra dos Reis, iniciou sua atuação no magis-
tério como professora no Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos
(MOVA), atuou como professora de anos iniciais e tutora presencial do
curso de Pedagogia Cederj/Uerj, além de possuir experiência na adminis-
tração pública. Especialista em Diversidade Cultural e Interculturalidade
pelo Penesb/UFF e em Alfabetização das Classes Populares pela UFF. Pes-
quisadora do Grupo de Pesquisa ALFAVELA – UFF (Alfabetização, Classes
Populares e o Cotidiano Escolar) e do Grupo de Pesquisa em Políticas Pú-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

blicas, Movimentos Sociais e Culturas (GPMC/UFRRJ). Possui experiência


na área de Educação, com ênfase em Relações Étnico-Raciais e Classes
Populares, atuando principalmente com as seguintes temáticas: Diáspora
Africana; Classes Populares; Relações Raciais no Cotidiano Escolar e Ges-
tão Pública e Currículo.

FABIANA FERREIRA DE LIMA


Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janei-
ro (Unirio), sob a orientação da professora doutora Maria Elena Viana Sou-
za. Professora no primeiro segmento do ensino fundamental, lecionando
desde 2009 no Colégio Pedro II. Durante quatorze anos foi docente na rede
municipal de Nova Iguaçu, com experiência extraclasse em: coordenação
de turno, coordenação de Horário Integral, direção adjunta e administrati-
vo. Possui Técnico em Secretariado Escolar. Participou, como representan-
te de campus, no Colégio Pedro II, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros/ 407
NeabCPII. Desenvolve pesquisa no campo da Educação para as Relações
Étnico-Raciais, concernentes ao currículo da formação inicial docente e
práticas pedagógicas. Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públi-
cas, Movimentos Sociais e Culturas (GPMC), coordenado pelo professor
doutor Luiz Fernandes de Oliveira, da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ); e do «Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Étnico-
-Racial GEPEER”, coordenado pela professora doutora Maria Elena Viana
Souza, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

GUDRUN KLEIN
Doutoranda e assistente de ensino em Antropologia Social na Universida-
de de Manchester e bolsista pelo Economic and Social Research Council
(ESRC). Atualmente está no Rio de Janeiro para pesquisa de campo sobre
a implementação da Lei 10.639. Possui mestrado em Antropologia Cultu-
ral e Social pela Universität Wien (2012) com tese sobre as cotas raciais
na UFBA. Atua principalmente nos seguintes temas: Racismo, Educação,
Ações Afirmativas e Descolonização.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

HELBIA SANT’ANA BARRETO GONÇALVES


Graduado em Pedagogia pela Universidade Luterana do Brasil (2010). Atu-
almente é professor de Educação Infantil, na modalidade Integral da Prefei-
tura da Cidade do Rio de Janeiro e professor de ensino fundamental II com
atuação no Ensino de Jovens e Adultos da Prefeitura Municipal de Duque
de Caxias. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação.

HELDER SARMENTO FERREIRA


Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Con-
textos Contemporâneos e Demandas Populares na Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ) na linha de pesquisa Estudos Contemporâneos e
Práticas Educativas (2016). Formado em Engenharia Agronômica pela UFRRJ
(2000), Residência Agronômica desenvolvida pelo Programa de Agroecologia
em Fruticultura e Olericultura (UNACOOP/UFRRJ). Especialista em Gestão e
408 Educação Ambiental pela Faculdade do Vale do Cricaré (2012). Especialista
em Educação do Campo pelo Centro de Educação da UFES (2010). Comple-
mentação Pedagógica em Química pela UNIVEN-ES (2009). Tem experiência
nas áreas de Agroecologia, Educação do Campo, Educação Ambiental e Co-
operativismo. Participante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Ambiental, Diversidade e Sustentabilidade – GEPEADS/IM/UFRRJ.

JANINE GABRIELLE DOS SANTOS


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos e De-
mandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, linha de
pesquisa Educação e Diversidades Étnico-Raciais. Integrante do Grupo de
Pesquisa Educação Superior e Relações Étnico-Raciais (GPESURER). Gra-
duada em Pedagogia pela Universidade Federal de Alfenas (2014). Bolsista
do Pibid (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) no perí-
odo de 2011 a 2014, financiado pela Capes. Foi integrante do programa Pro-
docência no projeto A construção do Currículo Escolar: O desenvolvimento
de competências em foco. Atuou de 2011 a 2014 na Educação Infantil, no
CEMEI São João da Escócia como Auxiliar de Desenvolvimento Humano.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

JACQUELINE DE OLIVEIRA DUARTE FERREIRA


Atualmente é Professor II da Prefeitura Municipal de São João de Meriti.
Possui experiência na área de Educação, atuando na Educação Infantil. Es-
tudante do quinto período de Pedagogia na Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro – Instituto Multidisciplinar. Membro do Grupo de Pesqui-
sa em Políticas Públicas e Movimentos Sociais (GPMC). Pesquisadora do
Movimento “Marcha das Mulheres Negras” sob a orientação do professor
doutor Luiz Fernandes de Oliveira (UFRRJ).

JEFFERSON MACHADO DE ASSUNÇÃO


Graduado em Língua Portuguesa, Língua Espanhola e respectivas Literatu-
ras pela Universidade Veiga de Almeida (UVA). Professor especialista em
Ensino de Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro (Uerj). Mestre em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas
Populares na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professor de 409
Língua Portuguesa e Língua Espanhola no Instituto Federal do Rio Janeiro
(IFRJ). Foi professor de Língua Portuguesa e Língua Espanhola no Instituto
Federal do Maranhão (IFMA), onde desenvolveu projetos de extensão rela-
cionados à Diversidade Sexual e Étnica. Desenvolve projetos de extensão
relacionados à Literatura Barroca e Árcade no IFRJ/Arraial do Cabo e é
membro do NeabiIFRJ/Arraial do Cabo.

JULIO CESAR ARAUJO DOS SANTOS


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Con-
temporâneos PPGDUC da UFRRJ, com preocupação em discutir as rela-
ções Étnico-Raciais na Educação. Atua na área de História na educação
básica como professor regente da disciplina História na Secretaria de
Estado de Educação (Seeduc-RJ) e na Prefeitura Municipal de Duque de
Caxias. Especialista sobre a História da África e do Negro Brasileiro pela
Universidade Cândido Mendes (Ucam). Ao longo desse tempo, tem busca-
do dialogar com atualizações sobre essas dimensões e suas aplicações que
articulem igualdade e reconhecimento das diferenças para potencializar no
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

currículo e formação de professores do primeiro e do segundo segmento


do ensino fundamental da educação básica. Participa do Grupo de Pesqui-
sa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturais sob coordenação
do professor doutor Luiz Fernandes de Oliveira, da UFRRJ.

KÁTIA ANTUNES ZEPHIRO


Mestranda em Educação na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea e Demandas
Populares na linha de relações étnico-raciais. Especialista em Gênero e
Sexualidade pela Uerj. Graduada em História pela Uerj. Atualmente é do-
cente II - História da Prefeitura Municipal de Angra dos Reis. Experiência
na área de Educação, com ênfase em Educação Indígena. Também tra-
balhou com Educação do Campo e Pedagogia da Alternância no projeto
EJA Pescadores.
410
KELLY XAVIER MADALENY
Mestre em Educação pela UFRRJ. Especialização em Educação e Relações
Raciais pelo Penesb/UFF. Professora efetiva na Prefeitura de Seropédica,
atuando na educação infantil. Graduada em Pedagogia pela UFRRJ (2013).
Participa do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais
e Culturais, sob coordenação do professor doutor Luiz Fernandes de Oli-
veira, da UFRRJ.

LILIAN DO CARMO DE OLIVEIRA CUNHA


Graduada em Pedagogia pela Universidade do Grande Rio (Unigranrio,
2010). Especialista em Literatura Infantil e Juvenil - Leitura e Ensino pela
Unigranrio e em Direito e Legislação Educacional pela AVM Faculdade In-
tegrada. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Con-
textos Contemporâneos e Demandas Populares na UFRRJ, com pesquisa
desenvolvida na linha Educação e Diversidades Étnico-Raciais. Supervisora
educacional da Diretoria de Desenvolvimento da Educação Básica e Téc-
nica (DDE) da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) e coordena-
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

dora pedagógica responsável pelo Pronatec/MEC, na mesma instituição.


É responsável pelo acompanhamento das ações relacionadas à temática
étnico-racial, desenvolvidas nas unidades da Rede Faetec, e membro da
Comissão Permanente de Avaliação da Rede. Colaboradora do Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros - Neab/Faetec. Pesquisadora do Grupo de Pesqui-
sa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas - GPMC/ UFRRJ,
coordenado pelo professor doutor Luiz Fernandes de Oliveira. Pesquisa e
escreve sobre Relações Étnico-Raciais e Educação, Racismo Institucional e
Ações Afirmativas no Brasil.

LUIZ FERNANDES DE OLIVEIRA


Graduado em Sociologia na Università degli studi di Roma Tre (1998),
especialização em História da África e dos Negros no Brasil pela UCAM
(2004). Mestre em Ciências Sociais pela Uerj (2002). Doutor em Educa-
ção Brasileira pela PUC-Rio (2010). Professor Adjunto III do Departamento 411
de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade do curso de
licenciatura em Educação do Campo do Instituto de Educação. Professor
do Programa de Pós-Graduação em Educação Contextos Contemporâneos
e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ). Tem experiência na área de
Relações Raciais e Educação. Atua principalmente nos seguintes temas:
Relações Étnico-Raciais e Educação, História da África, Formação Docen-
te, Didática e Interculturalidade.  Líder do Grupo de Pesquisa em Políticas
Públicas, Movimentos Sociais e Culturais e Ogã do Ilê Axé Iyá Nassô Oká
Ilê Osum.

MARIZE VIEIRA DE OLIVEIRA


Graduada em Estudos Sociais com Licenciatura Plena em História pela Fa-
culdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias (1995). Pós-
-graduada em História Social do Brasil pela Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras – FEUDUC. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação em Relações Étnico-Raciais pela UFRRJ. Tem experiência na área de
História, com ênfase em História e Cultura dos Povos Indígenas e Combate
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

à Discriminação de Gênero, Antirracismo e Contra a Homofobia. Professo-


ra de História do ensino médio do Estado do Rio de Janeiro e do ensino
fundamental segundo segmento da rede municipal de Duque de Caxias, RJ.
Tem experiência em produção de seminários sobre as temáticas declara-
das capacitando professores. Foi diretora do Sindicato Estadual dos Pro-
fissionais da Educação do Rio de Janeiro (SEPE) na Secretaria de Gênero,
Antirracismo e Orientação Sexual. Criou o Seminário de Múltiplos Olhares.
Faz palestras em vários municípios do Rio de Janeiro para profissionais da
educação sobre as Leis 10.639/03 e 11.645/08 até o presente momento.
Foi coordenadora da Comissão Estadual da Mulher Trabalhadora da Central
Única dos Trabalhadores (CUT/RJ) de 2001 a 2008 e diretora executiva na
pasta de Políticas Sociais da CUT/RJ de 2005 a 2009. É coordenadora do
Movimento Tamoio dos Povos Originários. É uma das fundadoras da Aldeia
Maracanã. Instituto dos Saberes dos Povos Originários-Aldeia Jacutinga.
412 Faz palestras em escolas e sindicatos, com relação ao combate à discri-
minação racial, sobre a Lei 11.645/08 e de gênero, trabalha com grupos
indígenas em todos os níveis da educação, levando a cultura indígena e
história destes grupos para desconstruir o preconceito contra estes povos
há onze anos. Pós-graduada em História Social do Brasil, cuja monografia
intitula-se: O Negro, o Indígena, o Racismo e a Política de Cotas. Ministra
palestras e formação com professores em como trabalhar a questão indí-
gena em sala de aula.

MESSIAS BRAZ SANTOS


Graduado em Pedagogia (1995) e especialista em Raça, Etnias e Educa-
ção no Brasil (1999) pela Universidade Federal Fluminense. Curso técnico
profissionalizante pelo Instituto Educacional Evangélico de Austim (2006).

NÁGILA OLIVEIRA DOS SANTOS


Mestranda em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Popu-
lares (UFRRJ), integrante da linha de pesquisa Educação e Diversidades
Étnico-Raciais. Pós-Graduada em África/ Brasil: laços e diferenças (UCB),
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

graduada em Ciências Sociais (UFF). Fundadora e editora da revista África


e Africanidades (www.africaeafricanidades.com.br). Atua como docente da
Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro. Tem experiência em
coordenação e avaliação de projetos sociais e políticas públicas nas áreas
de Habitação, Segurança Pública, Educação e Participação Popular. Organi-
zadora da Coleção Cadernos África e Africanidades, com publicação de sete
volumes impressos. Psicanalista clínica associada à Sociedade Fluminense
de Psicanálise Clínica, RJ. Possui publicações nas áreas de educação para
as relações étnico-raciais, africanidades, identidades negras, história do
negro no Brasil, mulheres negras, psicanálise, política educacional, reli­
giões afro-brasileiras, literaturas africanas e afro-brasileiras, mitologia afri-
cana, previdência social e mercado de trabalho.

NORIELEM DE JESUS MARTINS


Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Con- 413
textos Contemporâneos e Demandas Populares da UFRRJ (2016). Espe-
cialista em Diversidade Cultural e Interculturalidades: Matrizes Indígenas e
Africanas na Educação Brasileira pela UFF (2012). Graduada em Pedagogia
pela UFF (2004). Atua na área de Educação Escolar Indígena e Educação
para as Relações Étnico-Raciais. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em
Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas – (GPMC/UFRRJ).

RICARDO DIAS COSTA


Mestre em Turismo e Meio Ambiente pela UNA - Belo Horizonte (2009).
Mestre em Gestión de Actividades y Recursos Turísticos pela UIB - Palma
de Mallorca - Espanha (2003). Graduado em Turismo pelo Centro Universi-
tário Newton Paiva (1982). Atualmente é professor da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Tem experiência na área de agência de
Turismo e pesquisas com ênfase em Turismo, atuando principalmente nos
seguintes temas: turismo como força transformadora, turismo e acessibili-
dade e turismo e relações étnico-raciais. Vice-coordenador do Laboratório
de Estudos Afro-Brasileiro e Indígenas – Leafro-Neabi-UFRRJ. Pesquisador
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

do Grupo de Pesquisa Educação Superior e Relações Étnico-Raciais (GPE-


SURER). Pesquisador do Observatório das Políticas de Democratização de
Acesso e Permanência na Educação Superior da UFRRJ – OPAA. Doutoran-
do do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâ-
neos e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ). Pesquisador do Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Turismo (Nepet).

ROMA GONÇALVES LEMOS


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Con-
temporâneos e Demandas Populares – UFRRJ, com pesquisa em desen-
volvimento na linha 3: Educação e Diversidades Étnico-Raciais sobre Lite-
ratura Indígena Contemporânea e Pedagogias Descolonizadoras. Membro
do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturais
– UFRRJ. Especialista em Educação Infantil pela Pontifícia Universidade Ca-
414 tólica do Rio de Janeiro (2013). Graduada em Pedagogia pela Universidade
Veiga de Almeida (2010). Atua como professora de Educação Infantil na
rede municipal de Educação do Rio de Janeiro. Colabora na construção do
movimento sindical no Sindicato dos Profissionais da Educação do Rio de
Janeiro (SEPE) em defesa da escola pública, gratuita de qualidade.

ROSELÉA APARECIDA DOS SANTOS OLIVEIRA


Graduada em Pedagogia pela UFF (2008). Tem experiência na área de Edu-
cação (anos iniciais), com ênfase em Educação e Relações Étnico-Raciais.
Especialista em Interculturalidades: Matrizes Africanas e Indígenas pela
UFF (2012). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação,
Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC/UFRRJ).
Atua, profissionalmente, como coordenadora do Núcleo de Ações e Políti-
cas Interculturais na Secretaria Municipal de Educação de Angra dos Reis.
O referido núcleo tem como objetivo a implementação das Leis 10.639/03
e 11.645/08 na rede municipal de ensino. Membro do Grupo de Pesquisa
em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturais – GPMC/UFRRJ.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

SANDRA REGINA DE SOUZA CRUZ


Docente no ensino fundamental e médio das Secretarias de Educação de
Nova Iguaçu e do Estado do Rio de Janeiro. Graduada em Licenciatura
Plena de História pela Fundação Educacional Duque de Caxias (FEUDUC).
Especialista em História Social do Brasil, pela mesma. Possui aperfeiçoa-
mento em Educação e Diversidade Étnica pela Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atualmente é integrante do Grupo de Pesquisa
em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturais - GPMC / UFRRJ.
Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História.

SÍLVIA BITENCOURT DA SILVA


Graduada em Pedagogia pela UFF (1998). Especialista em Alfabetização
dos Alunos das Classes Populares pela UFF (2004). Mestranda no Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Deman-
das Populares (PPGEDUC/UFRRJ). Tem Experiência em Educação Infantil e 415
Educação de Jovens e Adultos como professora e como pedagoga em es-
colas públicas que atendem aos anos finais. Membro da direção do Núcleo
do Sindicato dos Profissionais de Educação (SEPE) de Angra dos Reis. É
membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais
e Culturais (GPMC/UFRRJ).

SIMONY RICCI COELHO


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Humanida-
des, Cultura e Artes pela Unigranrio. Mestre em Letras e Ciências Humanas
pela Unigranrio (2011). Pós-graduada lato sensu em Administração, Orien-
tação Educacional, Supervisão Escolar e Pedagógica pela UNIG (2015).
Pós-graduada lato sensu em Administração Escolar pela Universidade Sal-
gado Oliveira. Pós-graduada lato sensu em Literatura Brasileira e Contem-
porânea pela Universidade Iguaçu. Bacharel em Direito pela Universida-
de Iguaçu (1995). Graduada em Letras pela Universidade Iguaçu (2003).
Atualmente é professora Adjunta da Universidade Iguaçu e representan-
te docente da Comissão Própria de Avaliação Institucional (CPA-UNIG).
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Coordenadora do Projeto de Iniciação Científica Relações Étnico-Raciais:


Uma discussão necessária na Universidade (UNIG). Professora Visitante
nos cursos de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa na Uni-
versidade Católica de Petrópolis (UCP/IPETEC). Coordenadora da Forma-
ção Continuada e Pesquisa Educacional na Secretaria Municipal de Edu-
cação (Semed) do município de Queimados, na Baixada Fluminense no
Estado do Rio de Janeiro. Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas
Públicas, Movimentos Sociais e Culturais (GPMC/UFRRJ). Áreas de atua-
ção: Língua Portuguesa, Formação de Professores, Diversidade, Relações
Étnico-Raciais.

TARCISO MANFRENATTI DE SOUZA


Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação,
Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC) pelo Ins-
416 tituto de Educação e Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Ru-
ral do Rio de Janeiro (UFRRJ). Participante do Laboratório de Estudos e
Aprontos Multimídia (LEAM), coordenado pelo professor doutor Valter Filé
(DES/UFRRJ) e do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos
Sociais e Culturais (GPMC), coordenado pelo professor doutor Luiz Fer-
nandes de Oliveira (DES/UFRRJ). Professor de Língua Inglesa da Secretaria
Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ). Professor de Língua
Portuguesa e de Literatura Brasileira da Secretaria Estadual de Educação
do Rio de Janeiro (Seeduc/RJ). Especialista em Educação e Relações Ra-
ciais do Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade Brasileira
(Penesb) pela Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Especialista lato sensu em Língua Portuguesa pelo Liceu Literário
Português (2009). Graduado em Letras/Inglês pela Universidade Castelo
Branco (2014) e em Letras/ Literatura brasileira pela Federação de Escolas
Faculdades Integradas Simonsen (2006). Desde 2006 é professor com atu-
ação no ensino fundamental e ensino médio em escolas da rede pública e
privada de ensino, além de atuar em ONGs e Projetos Sociais.
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

ÚRSULA PINTO LOPES DE FARIAS


Mestre em Educação pela UFRRJ (2015), na linha de pesquisa Educação
e Relações Étnico-Raciais. Especialista em História da África e do Negro
no Brasil pelo Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Men-
des (2008). Licenciada em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Duque de Caxias (2005). No terreno da Arqueologia, trabalhou,
como pesquisadora assistente, no Museu Nacional/UFRJ, em projetos de
investigação sobre a ocupação por grupos sambaquieiros e ceramistas na
região costeira do Estado do Rio de Janeiro. Na AVM Faculdade Integrada
foi, de 2011 a 2013, professora do curso de graduação em Pedagogia e, a
partir de 2014, coordena o curso de graduação em História. Na Faculdade
São Camilo é, desde 2015, professora na graduação em Administração,
tendo lecionado as disciplinas Filosofia e Tópicos de Pesquisa em Adminis-
tração. Desde 1998 é servidora pública da Secretaria Municipal de Educa-
ção de Belford Roxo, onde atua como parte da equipe técnico-pedagógica 417
da Subsecretaria de Planejamento Pedagógico. Nesse setor, coordena ati-
vidades relativas às Relações Étnico-Raciais na Educação e na implemen-
tação de Cursos de Formação continuada de professores na modalidade a
distância. Faz parte, também, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas,
Movimentos Sociais e Culturais da UFRRJ. Tem trabalhos publicados sobre
educação e relações étnico-raciais e história da África no ensino fundamen-
tal e na Formação de Professores.

VALÉRIA PAIXÃO DE V. NEPOMUCENO


Pedagoga formada pela Unirio. Mestranda em Educação na mesma insti-
tuição. Especialista em Educação Especial à Distância pela Unirio e Curso
de Aperfeiçoamento Uniafro, intitulado Política de Promoção da Igualdade
Racial, pela UFRRJ. Possui curso de Extensão em Gestão em Educação
a Distância pela Unirio. Fez parte do Programa Conexões de Saberes, no
grupo de pesquisa de Ações Afirmativas, tendo como extensão o progra-
ma Escola Aberta nos fins de semana com oficinas lúdicas de leituração
e direitos humanos, participou da avaliação do Projovem da Fundação de
DIFERENÇAS ÉTNICO-RACIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Desenvolvimento de Pesquisa/Unirio, tendo experiência na área da Educa-


ção, com ênfase em Avaliação da Aprendizagem. Trabalhou na tutoria do
curso a distância Aperfeiçoamento de Formação de Educação de Jovens e
Adultos para Juventude.

VIVIANE DA SILVA ALMEIDA


Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação,
Contextos Contemporâneos e Demandas Populares na Universidade Fe-
deral Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) na linha de pesquisa “Educação
e Diversidades Étnico-Raciais” (2016). Especialista em Gestão Escolar e
Coordenação Pedagógica pela Universidade Gama Filho (2010). Licencia-
da em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2008).
Atualmente é Técnica em Assuntos Educacionais da UFRRJ. É integrante
do GPESURER - Grupo de Pesquisa Educação Superior e Relações Étnico-
418 -Raciais na UFRRJ.

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