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Histéria das disciplinas escolares: reflexdes sobre um campo de pesquisa André Cherve! At que a histéria do ensino possa avocar uma tradigio j4 amplamente secular, 0 estudo histérico dos contetidos do ensino prim4rio ou secundério raramente suscitou o interesse dos pesquisadores ou do publico. Limitado em geral as pesquises pontuais sobre um exercicio ou sobre uma época precisa, ele nao se eleva ao nivel de s{nteses mais amplas a nao ser em alguns trabalhos, fundamentados em textos oficiais ou programdticos, como os de Falcucci' ou de Piobetta.? Mais recentemente, tem-se manifestado uma tendéncia, entre os docentes, em favor de uma histéria de sua prépria disciplina. Dos contetidos do ensino, tais como so dados nos programas, o interesse entio evoluiu sensivel- mente para uma visio mais global do problema, associando-se as ordens do legislador ou das autoridades ministeriais ou hierdrquicas & realidade concreta do ensino nos estabelecimentos, e, algumas vezes, até mesmo As produgdes escritas dos alunos. E € no grupo do Servigo de Hist6ria da Educagéo que tem se colocado, desde alguns anos, o problema geral: a nocio de hist6ria das disciplinas escolares tem sentido? A histéria das diferentes disciplinas apresenta analogias, tragos comuns? E, para ir mais longe, a observacao histérica permite resgatar as regras de funcionamento, ver um ou varios modelos disciplinares ideais, cujo conhecimento € exploragdo poderiam ser de alguma utilidade nos debates pedagégicos atuais ou do futuro? I.A nogio de “disciplina escolar” Neste campo o historiador € confrontado com um problema pouco usual. Aplicada ao ensino, a noco de “disciplina”, independentemente de toda consideragio evolutiva, nio foi, nas ciéncias do homem, e em particular nas “cigncias da educagio”, objeto de uma reflexio aprofundada. Demasiado Vagas? ou demasiado restritas,* as definigdes que dela sio dadas de fato no estio de acordo a nio ser sobre a necessidade de encobrir 0 uso banal do termo, o qual néo € distinguido de seus “sinénimos”, como “matérias” ou “conteddos” de ensino. A disciplina é aquilo que se ensina e ponto final. Nao se esté muito longe 1 Teoria & Educagao, 2, 1990 77 da nogao inglesa de subject, que esté na base de uma nova tendéncia da histéria da educagio de Além-Mancha, e da qual a definigo se dé pela acumulagdo ¢ associagdo de partes constitutivas.* Retoma entio a0 historiador a tarefa de definir a nozio de disciplina ao mesmo tempo em que faz a sua histéria. 4 hist6ria da palavra disciplina (escolar) e as condiges nas quais ela se impés apés a Primeira Guerra Mundial colocam contudo em plena luz a importancia deste conceito, ¢ nao permitem confundi-lo com os termos vizinhos, No seu uso escolar, o termo “disciplina” ¢ a expressio “disciplina escolar” nao designam, até ¢ fim do século XIX mais do que a vigilancia dos estabelecimen- tos, a represséo das coadutas prejudiciais & sua boa ordem ¢ aquela parte da educagiio dos alunos que contribui Para isso, * No sentido que nos interessa aqui, de “contewidos do ensino”, o termo esté ausente de todos os diciondrios do século XIX, e mesmo do Dictionnaire de VAcademie de 1932. Como se designavam, antes dessa época, as diferentes ordens de ensino? Que titulo geral se dava As tubricas dos diferentes cursos? Nos textos, oficiais ou néo, um grande nimero de fScmulas confusas manifesta @ auséncia e a necessidade de um termo genérico, Eis tres exemplos: “Foi Publicado, este ano, em cada academia, uma brochura dando’ (...) a lista dos cursos agrupados por analogia de ensino”;? “nio se tinham ainda criado os inspetores gerais de todos os graus e de todos os tipos”;* “No segundo ciclo, quatro agrupamentos de cursos principais so oferecidos & opgio dos alunos” 3 Os equivalentes mais freqiientes no século XIX sio as expressdes “objetos”, “partes”, “ramos”, ou ainda “matérias de ensino”,!° Lembremos igualmente aqui um termo que, ainds que tenha totalmente desaparecido neste sentido ao final do século XIX, designa, entretanto, ordinariamente, desde o século XVI, as diferentes disciplinas, ou, mais Precisamente, as composiges dos alunos nessas disciplinas: a palavra “faculda- de”. Assim, 0 ministro Villemain fez-se remeter os melhores exemplares “de cada uma das faculdades seguidas pelos alunos de filosofia, matemdtica especial, rel6rica, etc.”,"" B ainda, em todos 0s tiltimos anos do século: “O aluno que, numa classe, obteve uma mengio no concurso geral de um ano anterior, nfo pode concorrer na mesma faculdade a nio ser para uma meng&o no mfnimo igual”, !2 A aparigao, durante os primeiros decénios do século XX, do termo “disciplina” em seu nove sentido vei, certamente, preencher uma lacuna lexildgica, j4 que se tem necessidade de um termo genético. Ela vai sobretudo p6r em evidéncia, antes da banalizagio da palavra, as novas tendéncias profundas do ensino, tanto Primdrio quanto secundério. Descartemos primeiramente a informagio fulaciosa dos diciondrios etimolégicos? que atribuem a Oresme, no comego do século XIV @ primeira utilizagaio da palavra no sentido de “contetido de ensino”, Dever-se-ia acrescentar ainda que ela parece desaparecer totalmente a ‘seguir do uso para Tessurgir no fim do século XIX, onde & objeto de uma nova criagio, B um empréstimo do latim disciplina, que designa “a instrugao que o aluno recebe do 178 Teoria & Educagao, 2, 1990 mestre”?" Seria uma hipStese plaus{vel se a palavra francesa tivesse aparecido ou reaparecido no século XVI ou XVII, numa época onde a pedagogia se escreve correntemente em Ingua latina:!’ mas este nfo € 0 caso. Um empréstimo a0 alemio' deve também ser descartado, nio obstante a influ&ncia dos pedagogos de Além-Reno uo fim do século XIX. Na realidade, essa nova acepgio da palavra ¢ trazida por uma larga corrente de pensamento pedagdgico que se manifesta, na segunda metade do século XIX, em estreita ligagio com a renovagio das finalidades do ensino secundério do ensino primirio, Ela faz par com o verbo disciplinar, e se propaga primeiro como um sindnimo de gindstica intelectual, novo conceito recentemente introduzido no debate. F durante a década de 1850, que marca o comego da crise dos estudos classicos, que os partidérios das Itnguas antigas comegam a defender a idéia do que, na falta de uma cultura, o latim traz ao menos uma “gindstica intelectual”, indispens4vel 20 homem cultivado."” Paralelamente, a confusio dos objetivos do ensino primdrio durante « década de 1870 leva 2 repensar em profundidade a natureza da formagio dada ao aluno. Até af, inculcava-se. Deseja-se, de agora em diante, disciplinar: “Disciplinar a inteligéncia das criangas, isto constitui o objeto de uma ciéncia especial que se chama pedagogia”, escreve, no rastro de Michal Bréal, o lingista Frédéric Baudry." E Célestin Hippeau, depois de ter criticado & “opiniio que considera este estudo [das I{nguss antigas] como mais conveniente para desenvolver, para exercitar, disciplinar o espfrito do que toda outra citncia", afirma que “por essas palavras de disciplina intelectual, de gindstica do espfrito, segundo a expresso consagrada, entende-se o desenvolvimento do julgamento, da razio, da faculdade de combinag&o e de invengio”.!? Neste novo sentido de exerc(cio intelectual, ¢ primeiro com o matemitico ¢ filésofo Antoine Coumot que a palavra aparece.” Mas € sobretudo com Félix Pécaut,” & com os artesios da renovagio pedagégica de 1889 que ela se deve Propagar como um dos temas fundamentais da nova instrugio primdria” Faltam- the duas etapas a vencer para chegar até nés. Num primeiro momento, ela passa do geral ao particular, © passa a significar uma “matéria de ensino suscet(vel de servir de exercicio intelectual”. Parece que essa evolugio nfo se produz antes dos primeiros anos do século XX. Pode-so falar doravante, no plural, de diferentes disciplinas, Assim, o ministro Steeg, em 1911; “A Universidade fica em harmonia com seu tempo. Das disciplinas passadas, ela 6e empenha em preservar 0 melhor, dando todo 0 seu esforgo para criar as novidades, impostas peta evolugio da sociedade” surpreendente ver a palavra aparecer tio tardiamente no ensino secundério, © qual jamais escondeu sua vocagio em formar os espfritos pelo exercfcio intelectual, A razio desse atraso é simples. Até 1880, mesmo até 1902, para a Universidade no h4 senio um modo de formar os espfritos, nfio mais do que uma “disciplina”, no sentido forte do termo: as humanidades cldssicas, Uma educagio que fosse fundamentalmente matemstica ou cientifica nao deveria ser, Teoria & Educasdo, 2, 1990 179 antes do comeco do século XX, pleramente reconhecida como uma verdadeira formagio do espirito. E somente quando a evolugao da sociedade e dos espiritos permite contrapor & disciplina literaria uma disciplina cientffica que se faz sentir @ necessidade de um termo Benérico, Logo apés a I Guerra Mundial, enfim, o termo “disciplina” vai perder a forca que 0 caracterizava até entdo. Toma-se uma pura e simples rubrica que classifica as matérias de ensino, fora de qualquer referéncia as exigéncias da formaso do espfrito.™ Basta dizer 0 quanto & recente © termo que utilizamos atualmente: no m4ximo uns sessenta anos. Mas, ainda que esteja enfraquecido na linguagem atual, ele nao deixou de se conservar é trazer & Ifngua um valor espectfico ao qual, nés, queiramos ou nio, fazemos inevitavelmente apelo quando o emprega- mos. Com ele, os contetidos de ensino so concebidos coro entidades sui generis, préprios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda tealidade cultural exterior & escola, e desfrutando de uma organizacio, de uma economia interna ¢ de uma eficécia que elas nao parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer & sua prdpria histria. Além do mais, nfo tendo sido rompido © Contato com o verbo disciplinar, o valor forte do termo est4 sempre dispontvel, Uma “disciplina”, é igualmente, para nds, em qualquer campo que se a encontre, um modo de disciplinar o esplrito, quer dizer de Ihe dar os métodos € as regras para abordar os diferentes dom{nios do Pensamento, do conhecimento e da arte, Il. As disciplinas escolares, as ciéncias de referéncia ea pedagogia Estas consideragdes lexicolégicas por certo nio pesam, no debate, seno 0 peso das palavras. Er todo caso Permitem atrair imediatamente a atengio sobre a natureza propria da entidade “disciplinar”. Pois prevalece, no dom{nio dos conteidos de ensino, um consenso que, em geral, mesmo os historiadores do ensino pastilham, e que no foi tecolocado em questo a nio ser a partir de uns quinze anos para cé pelos especialistas de certas disciplinas.% Estima-se Ordinariamente, de fato, que os contetidos de ensino sio imposios como tais & escola pela sociedade que a rodeiae pela cultura na qual ela se banha, Na opiniao comum, a escola ensina as ciéncias, as quais fizeram suas comprovagGes em outro Jocal. Ela ensina a gramtica porque a gramdtica, criagko secular dos lingdistas, expressa a verdade da !fngua; ela ensina as ciéncias exatas, como a matemdatica, e, quando ela se envolve com a matemstica modema &, pensa-se, Porque acaba de ocorrer uma revolugio na ciéncia matemética; ela ensina a histéria dos historiadores, a civilizagZo ¢ a cultura latinas da Roma antiga, a filosofia dos grandes fildsofos, o inglés que se fala na Inglaterra ou nos Estados Unidos, e o francés de todo 0 mundo. & essa concepcao dos ensinos escolares que est4 diretamente ligada a imagem que geralmente se faz da “pedagogia”. Se se ligam diretamente as disciplinas escolares As cigncias, aos saberes, aos savoir-faire correntes na sociedade global, 180 Teoria & Educagéo, 2, 1990 todos os desvios entre umas e outros sio entio atribuidos & necessidade de simplificar, na verdade vulgarizar, para um publico jovem, os conhecimentos que ndo se Ihe podem apresentar na sua pureza e integridade. A tarefa dos pedagogos, Supée-se, consiste em arranjar os métodos de modo que eles permitam que os alunos assimilem o mais répido ¢ o melhor posstvel a maior porgdo poss(vel da ciéncia de referéncia. As disciplinas reduzem-se, nessa hipstese, as “metodologias": tal & na verdade, de resto, o termo que designa, na Bélgica, e mesmo 8s vezes na Franca, a pedagogia, Ao lado da disciplina-velgarizagio 6 imposta a imagem da pedagogia-lubrificante, encarregada de lubrificar os mecanismos e de fazer girar améquina. | Esse esquema, largamente aceito pelos pedagogos, os didéticos e os historiado- res, nfo deixa nenhum espago & existéncia auténoma das “disciplinas": elas nfo Séo mais do que combinagées de saberes e de métodos pedagégicos. A historia cultural de um ado, a histéria ‘da pedagogia de outro, tém, até o presente, ocupado ¢ esgotado a totalidade do campo. E de uma ou de outra que a histéria das disciplinas escolares & tributéria, De um lado, & histéria das ciéacias, dos saberes, da lingua, da arte, ela pede emprestada toda a parte relevante do seu ensino. A histéria da pedagogia, cla solicita tudo o que € parte integrante dos Processos de, aquisiciio, fazendo constantemente a separacio entre as intengdes anunciadas ou as grandes idéias pedagégicas e as priticas reais. Diante dessas duas correntes bem instaladas, ela Se encarrega de estabelecer que a escola nfo se define por uma fungio de transmissdo dos saberes, ou de iniciaco as citncias de teferéncia. O que, apresentado nesses termos abruptos, parece levar a um paradoxo. O exemplo da histéria da gramAtica escolar mostra, contudo, que a prova pode ser fomecida, A escola ensina, sob esse nome, um sistema, ou melhor, uma combinagao de conceitos mais ou menos encadeados entre si. Mas trés resultados da andlise histérica impedem definitivamente que se considere essa matéria como uma vulgarizacdo cientifica. Ela mostra, primeiro, que contrariamente a0 que se teria podido acreditar, a “teoria” gramatical ensinada na escola nao é a expresso das cigncias ditas, ou presumidas “de refertncia”, mas que ela foi historicamente criada pela prépria escola, na escola ¢ para a escola. O que ja bustaria para distingui-la de uma vulgarizagio, Em segundo lugar, 0 conhecimento da gramdtica escolar nfo faz parte — com excegao de alguns conceitos gerais como o nome, 0 adjetivo ou o epitet* — da cultura do homem cultivado. f isto que © ministro da Instrugfo publica dizia jf em 1866: “As criangas de dez a onze anos falam de verbos transitivose intransitivos, de atributos simples e complexos, de proposigdes incidentes explicativas ou determinativas, de complementos Circunstanciais, etc., ete. E necessério nfo ter nenhuraa idéia do espfrito das Criancas, que 6 contrério as abstragdes © &s generalidades, para acreditar que elas Compreendem tais expressdes, que wis ¢ eu, Senhor Reitor, nos esquecemos desde Teoria & Educagao, 2, 1990 18f hd muito; € um puro esforgo de meméria em prol de inutilidades”” Enfim, a propria génese dessa gramética escolar no deixa nenhuma duvida sobre sua finalidade real. A criagio de seus diferentes conceitos tem constantemente coincidido no tempo com seu ensino, sssim como com o ensino da ortografia, dentro de um vasto projeto pedagégico, que é 0 da escola priméria desde a Restauragio, e que traz, nos programas ¢ nos planos de estudo do século XIX, uum t(tulo que nfo faz referencia nem a ortografia nem A Bramética: “os elementos da lingua francesa”. Na sua realidade didética cotidiana, como nas suas finalidades, a gramatica escolar francesa embarcou, de fato, na grande empresa nacional de aprendizagem da ortografia, empresa que nfo tem nada a ver com qualquer vulgarizacio, Poder-se-ia demonstrar, da mesma forma, que os “métodos pedagégicos” Postos em ago nas aprendizagens slo muito menos manifestagio de uma ciéncia assaria de um método pedagégico de assimilacdo da Bramitica, e assim por compreender do funcionamento real dos ensinos, A pedagogia, longe de ser um lubrificante espalhado sobre Q mecanismo, nio € senio um elemento desse mecanismo, aquele que transforma os ensinos em aprendizagens. Sobre a histéria da Franga escolar, sobre 0 francés das redagdes tradicionalmen- te ensinado aos alunos, sobre a cultura latina dos colégios do Antigo Regime, sobre a filosofia “universitéria”, inagurade por Vietor Cousin, poder-se-iam fazer destaques da mesma ordem. Em suma, as disciplinas literdrias no esto sozinhas medem hoje a distincia existente entre 0 “saber eradito” ¢ 9 “saber ensinado”. A concepeio de escola como puro e simples agente de transmissio de saberes tlaborados fora dela esté ne origem de idsia, muito amplamente partilhada no mundo das ciéncias humanes ¢ eatre o grande piblico, Segundo a qual ela é, por exeeléncia, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina. Por mais que cla Se esforce, raramente pode-se vé-la seguir, etapa Por etapa, nos seus ensinos, 0 Progresso das ciéncias que se supe ela deva difundir, Quantos sarcasmos contra 2 gramdtica escolar precederam, nos anos de 1960 ¢ 1970, a introdugéo triunfal da lingifstica estrutural ¢ transformacional! A vaga modemista devia refluir dez anos mais tarde, confirmando assim uma experiéncia hist6rica bem densa; quando certamente por incapacidade dos mestres de se adaptar, € simplesmente porque Stu verdadeiro papel esl em outro lugar, © ao querer servir ae reposigfo para alguns “saberes eruditos”, ela se arriscaria a nio cumprir sua missio, 182 Teoria & Educagao, 2, 1990 TI. O objeto da histéria das disciplinas escolares A histéria dos contevdos de ensino, e sobretudo a histéria das disciplinas escolares, representa a lacuna mais grave na historiografia francesa do ensino, lacuna sublinhuda desde h4 meio século, Afora Ferdinand Brunot, o historiador da lingua, que desempenkou um papel de pioneico na histéria do ensino do francés,” nio é da Universidade francesa que vieram os primeiros apelos em favor dessas pesquisas. E primeiramente um marginal — jé que franco-amerivar no—, Henri Peyre, que, inventariando os trabathes que the pareciam indispensé- veis a uma histéria da literatura, coloca em primeiro lugar a histéria dos estudos: “A histéria do ensino e dos instrumentos de ensino é vergonhosamente negligenciada por aqueles dentre nés que desejam compreender a fundo us escritores do passado".” E, depois, o padre Francois de Dainville, o historisdor dos colégios jesuitas: “Os historiadores das citncias negligenciaram demasiads- Mente até aqui a hisi6ria do ensino das ciéncias”.”' Mais recentemente Jean Ehrard,” Robert Mandrou,” Antoine Léon,* Roger Fayolle,® ¢ outros ainda, manifestaram seu interesse por essa orientagio, A histéria das disciplinas escolares niu deve entretanto ser considerada como uma parte negligenciada da historia do ensino que, depois de corrigida, viria a Ihe acrescentar alguns capftulos. Pois nao se trata somente de preencher uma lacuna na pesquisa, O que est em questo aqui é a prépria concepoao da histbria do ensino. Afora algumas excegdes noldveis, toda a tradicZio historiogedfica francesa na matéria se inspira numa concepsao redutora, Histéria das instituighes educacionais, ela se comporta exatamente como toda histéria das instituighes, judiciérias, religiosas, ou outras. Histéria das Populagdes escolares, nada @ distingno, em seu principio, de todos os estudos sobre os corpos de matérias ou 0S grupos sociais, Quanto & histéria das politicas educacionais ou das idéias pedagégicas, elas nio fazem segredo, nenhuma nem outra, de sua dependancia das rubricas histéricas bem conhecidas. Nem as monografias, nem, a fortiorl, a grandes sfnteses, escapam a estes quadros tradicionais, Enquanto se recusa a reconhever a realidade especifica das disciplinas de ensino, o sistema escolar nilo unerece, de fato, outro tratamento por parte do historiador: ele no é mais do que una instituiggo particular que recebe & pée em contalo dois tipos de populagho, € onde, de acordo com tal politica educacional ou tal orientagiio pedagdgica, ele “ensina” um certo mimero de matérias da qual a natureza nao é de modo algum problemitica, Tudo muda, evidentemente, a partir do momento em que se renuncia a identificar os conteddos de ensino com as vulgarizagdes ou com as aduptagdes. Pois as disciplinas de ensino slo irredutiveis por nutureze a essus categoria historiografficas tradicionais. Sua constituiggo e seu funcionamento colocam de imediato 4o pesquisador trés problemas. O primeiro é 0 de sua génese, Como a escola, sendo a partir daf dosquslificada toda outra instancia, comega a agir para Teoria & Educagao, 2, 1990 183 3 Me o produzi-las? O segundo refere-se & sua fungio. Se a escola se limitasse a “vulgarizar” as ciéncias ou a adaptar & juventude as priticas dos adultos, « transparéncia dos contetidos e a evidéncia de seus objetivos seriam totais. J4 que ela ensina suas prdprias produyées, nfo se’ pode senio se questionar sobre suas finalidades: elas servem para qué? Por que a escola foi levada a tomar tais iniciativas? Em qué determinada disciplina responde & expectativa dos pais, dos poderes publicos, dos que decide? Terceiro e tiltimo problenia, o de seu funcionamento. Aqui ainda, a questiio no teria sentido se a escola propagasse a vulgarizagio para reproduzir a ciéncia, o saber, as priticas dos adultos: a méquina funcionaria tal e qual, e imprimiria nos jovens espiritos uma imagem idéntica, ou uma imagem aproximada, do objetivo cultural visado. Ora, nada disso se passa no quadro das disciplinas. Nao, certamente, que nao haja af um objetivo, Simplesmente, constata-se que, entre a disciplina escolar posta em ago no trabalho pedagdgico e os resultados reais obtidos, hd muito mais do que uma diferenca de grau, ou de precisio. Questio: como as disciptinas funcionam? De que maneira elas realizam, sobre o espfrito dos alunos, a “formagao” desejada? Que eficdcia real e concreta se Ihes pode reconhecer? Ou, mais simplesmente, quais so os resultados do ensino? Essa problemdtica distingue-se de todas as que foram levantadas até 0 presente na histéria do ensino. Longe de ligar a histéria da escola ou do sistema escolar As categorias extemas, ela se dedica a encontrar na propria escola o princfpio de uma investigagfo e de uma descrigdo histérica especifica. Sua justificativa resulta da consideragao da prépria natureza da escola. Se o papel da escola é 0 de ensinar ¢, de um modo geral, 0 de “educar”, como nfo ver que a histéria da fungi educacional ¢ docente deve constituir 0 pivé ou o nucleo da histéria do ensino? Desde que se compreenda em toda a sua amplitude a nooo de disciplina, desde que so reconhega que uma disciplina escolar comporta néo somente as priticas docentes da aula, mas também as grandes finalidades que presidiram sua constituicéo ¢ o fendmeno de aculturagdo de massa que ela determina, entio a hist6ria das disciplinas escolares pode desempenhar um papel importante no somente na histéria da educagiio mas na histéria cultural. Se se pode atribuir um papel “estruturante” a fungdo educativa da escola na histéria do ensino, é devido a uma propriedade das disciplinas escolares. © estudo dessas leva a p6r em evidéncia o cardter eminentemente criativo do sistema escolar, e portanto a classificar no estatuto dos acessérios a imagem de uma escola encerrada na passividade, de uma escola receptdculo dos sub-produtos culturais da sociedade. Porque sio criagdes espontineas e originais, do sistema escolar é que as disciplinas merecem um interesse todo particular. E porque o sistemia escolar é detentor de um poder criativo insuficientemente valorizado até aqui é que ele desempenha na sociedade um papel 0 qual nao se percebeu que era duplo: de fato ele forma nao somente os individuos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global. 184 ‘ Teoria & Educagdo, 2, 1990 Sdaataaasliian Wes ack i As disciplinas escolares que tiveram curso na histéria do ensino francés constituem em cada época um conjunto acabado e com limites claramente tragados. Sua delimitagio ¢ sua designagao realgam problemas de natureza diversa, dos quais a solugio nio pode surgir a nao ser de um estudo detathado de cada caso. Aprendizagem da leitura, “francés”, cosmografia, “histéria geografia”, instrugdo religiosa, filosofia: todas essas matérias de ensino trazem Ge fato sua problemAtica prépria. As primeiras aprendizagens tém 0 mesmo status que 2s outras? A ortografia, a composicao e a leitura de textos sio uma sé ¢ mesma disciplina? Uma disciplina pode, com a “esfera”, limitar-se a uma questiio Snica, como 6 0 caso em muitos colégios do século XVIII? As associagSes terminol6gicas ¢ disciplinares familiares ao ensino francés, como histéria. e geografia, ou fisico-quimica, denunciam a existéncia de disciplinas vizinhas, ou combinadas, ou de uma s6 disciplin? O ensino religioso dos colégios e das escolas antes de 1880 estd sob o dom{nio de uma formacio mais geral e mais decisiva dada pelo padre ou’tem uma real autonomia? $6 a consideragdo da economia intems destes ensinos permite responder a essas questées. Mas 0 quadro geral do exercicio das disciplinas apresenta de imediato uma limitagGo cuja natureza joga um papel determinante na sua génese € nos seus caracteres: & aquela que est4 ligada & idade, A transmissio cultural de uma geracHo & outra pSe em aco processos que se diferenciam segundo a idade dos que aprendem. I provavel que as caracteristicas formais dos docentes para seis anos, dez anos e quatorze anos ndo sejam rigorosamente idénticas. Mas o verdadeiro limiar 6 aquele que separa o ensino das criangas e dos adolescentes do ensino dos adultos. Af est4 um dos aspectos decisivos da histéria das disciplinas escolares, que tem estado hd muito eclipsado por feaSmenos vizinhos muito mais visiveis. Entre 0 ensino primério e o secundério de um lado, ¢ 0 ensino superior de outro (para retomar uma terminologia que niio remonta além dos anos 1830 ou 1840), as diferengas so miltiplas, ¢ importantes. Elas se referem As matérias ensinadas, mesmo se h4 alguns pontos comuns em letras e em ciéncias, 2 qualidade do pessoal docente, aos estabelecimentos de ensino, as relagdes que unem mestres e elunos, € & propria natureza dos piiblicos de alunos, “forgados” num caso, é livres no outro. Mas o essencial nfo est af. O que caracteriza o ensino de n{vel superior, 6 que ele transmite diretamente o saber. Suas préticas coincidem amplamente com suas finalidades. Nenhum hiato entre os objetivos distantes ¢ os contettdos do ensino. © mestre ignora aqui a necessidade de adapter a seu piiblico os conteridos de acesso dificil, e de modificar esses contedos em fungdo das variagdes de seu publico: nessa relacio pedagégica, o contetdo é uma invariante. Todos os seus problemas de ensino se remetem sos problemas da comunicagiio: eles so, quando muito, de ordem retérica. E tudo que se solicita ac aluno é “estudar” esta matéria para domind-la e assimilé-la: € um “estudante”. Alcancada a jdade adulta, ele nio reivindica didética particular & sua idade, Ceitamente, 0 ponto de vista um pouco Teoria & Educagao, 2, 1990 185 a consciéncia profunda de ume diferenciagao clara entre dois tipos de ensino. Face aos ensinos “superiores”, a particularidade das disciplinas escolares consiste em que elas misturam intimamente contetida cultural e formagio do espfrito. Seu papel, elas nio.o exercem sendo nas idades da formagio, sej primdria ou secundéria. E a delicada mecanica que elas pdem em ach Tesproximando suas finalidades daquelas do secundério, transformando em “educagio” © em “formagio do espirito” 0 Gue até entdo no era mais do que “instrusdo” e “aprendizagens elementares” Que vio aclimatar definitivamente o termo aluno no ensino primério. A ligagzo entre “disciplina” e “aluno” é clara, As disciplinas so esses modos de transmissio cultural que se dirigem aos alunos. Foi & existincia das disciplines que historicaments tragou o limite entre Secundério € superior, E alguns projetos atuais de criagdo de “colégios” pucarregados do DEUG (Dipléme d'Etudes Universitaires Génerales) poderiam Tes", ¢ evoluindo gradualmente em diregdo aos ensinamentos cada vez menos disciplinares e, por exemplo, cada vez maig “ei ". A determinacio exata dos timiares carece ainda m todo caso, 0 contexto institucional explica 0 co: XIX, entre @ filosofia “universitéria” francesa e a dos paises vizinhos. A riqueza, & forgca e a diversidade da filosofia ale das quais 0 herco 6 0 ensino superior, a Universi- dade francesa no opde entio sendo um amontoado “eclético” cuja insigne fraqueza te6rica 6 devida & natureza “disciptinar” da criagdo de Victor Cousin, 186 Teoria & Educagao, 2, 1990 escolar” A hist6ria dos contedidos é evidentemente seu componente central, 0 piv6 ao redor do qual ela se constitui. Mas seu papel € mais amplo. Ela se impe colocar esses ensinos em relagio com as finalidades as quais eles esti designados © com os resultados concretos que eles produzem. Trata-se entio para ela de fazer aparecer a estrutura intema da disciplina, a configuragio original & qual as finclidades deram origem, cada disciplina dispondo, sobse esse plano, de uma autonomia completa, mesmo se analogias possam se manifestar de uma para a outra, TY, As finalidades do ensino escolar O problema das finulidades da escola é certamente um dos mais complexos e dos muis sutis com os quais se v8 coufrontada a histéria do ensino. Seu estudo depende em parte da histéria das disciplinas, Pode-se globalmente supor que a soviedade, @ familia, a religido experimentoram, em determinada época da historia, a necessidade de delegar certas tarefas educacionais a uma instituigao cspecializada, que a escola ¢ 0 colégio devem sua origem a essa demanda, que as grandes finalidades educacionais que emanam da sociedade global nio deixaram de evoluir com as épocas e os séculos, © que os comanditérios sociais da escola conduzem permanentemente os Principais objetivos da instrugdo e da educagio kos qusis ela se encontra submetida, A identificagio, a classificagio ¢ a organizagao desses objetivos ou dessas finalidades sio uma das tarefas da histéria das disciplinas escolares. Em Siferentes épocas, véem-se aparecer finalidades de todas as ordens, que, ainda que nfo ocupem o mesmo nfvel nas prioridades da sociedades, sto todas igualmente imperatives. H4, em Primeiro lugar, as finalidades religiosas, fundamentais sob 0 Antigo Regime e, ai6 1882, na escola piblica. Astim, o regulamento modelo das escolas primérias de 17 de agosto de 1851* estipula, em seu artigo 1°: “O primeiro dever do mestre 6 de dar as criangas uma educagio religiosa, ¢ de gravar profundamente em sua alma o sentimento de seus deveres para com Deus, para com seus pais, para com os outros homens © para com eles mesmos.”. As finalidades s6cio-politicas vém a seguir, Os grandes objetivos da Sociedade, que podem ser, segundo as épocas, a restaurago da antiga ordem, a formaco deliberada de uma classe média Pelo ensino secundario, o desenvolvi- mento do espirito patristico, etc., nio deixam de determinar os contetdos do ensino tanto quanto as grandes orientagGes estruturais. Finalidades de cada um dos grandes tipos de easino, primdrio, primério superior, secundério, etc, O século XIX produziu sobre esse tema uma abundante literatura,” e mesmo alguns slogans bem batidos, como a frase de Jules Ferry aos inspetores primtrios € diretores de escola normal: “O que nés vos pedimos 2 todos, é de nos fazer homens antes de nos fazer graméticos”.® Finalidades de ordem psicoldgica. Elas expdem aquelas faculdades da crianga que o primério ou o secundério so Teoria & Educapdo, 2, 1990 187 7, solicitados a desenvolver. “Nao Ihes proponhais jamais assuntos de pura imaginagéo. Nao tendes que desenvolver neles espfrito de invengio, mas q reflexdo, 0 julgamento, o sentimento moral ¢ a faculdade de expressar simples- mente, Claramente, corretamente, 0 que sabem ¢ 0 que pensam”,“' Finalidades culturais diversas reservadas & escola, desde § aprendizagem da leitura ou da ortografia até a formagio humanista tradicional, passando pelas ciéncias, as artes, as técnicas, Finalidades mais Sutis, de socializagio do indivfduo no sentido amplo,® da aprendizagem da disciplina social, da ordem, do siléncio, da higiene, da polidez, dos comportamentos decentes, ett. Sem negligenciar também a fungio de guarda, cujos efeitos sobre 2 organizagio do ensino sio particularmente importantes na escola unidocente do século XIX, Naturalmente, estes diferentes estdgios de finalidades esto em estreita correspondéncia uns com os outros. A instituiggo escolar é, em cada &poca, tributdria de um complexo de objetivos que se entrelacam e se combinam numa delicada arquitetura da qual alguns tentaram fazer um modelo.” B aqui que intervém a oposig&o entre educagio e instrugao. O conjunto dessas finalidades consigna & escola sua funcio educariva. Uma parte somente entre elas obriga-a a dar uma instrugdo. Mas essa instrugio est4 inteiramente integrada ao esquema educacional que governa o sistema escolar, ou o ramo estudado, As disciplines escolares estio no centro desse dispositivo. Sua fungiio consiste em cada caso em colocar um conteride de instrugfo a servico de uma finalidade educativa. Percebe-se entio por que o papel da escola nio se limila 20 exerctcio das disciplinas escolares. A educagio dada e recebida nos estabelecimentos escolares ¢, ¥ imagem das finalidades correspondentes, um conjunto complexo que nfo se reduz aos ensinamentos explicitos ¢ Programados. O ensino cléssico tradicional, Por exemplo, alias tanto sob o Antigo Regime quanto no século XIX, acentuou suficientemente a importancia primordial da educago “moral” que era dada aos alunos em todos os instantes de sua presenga nos locais escolares, para que seja necessério insistir nesse ponto. I Mesmo que as disciplinas escolares, que repousam sobre os ensinos explicitos, nio constituam senZo uma parte da educagao escolar, ¢ mesmo que, por outro lado, grande ntimeco das finalidades impostas & escola nfo encontre seu campo de aplicago a nfo ser num ensino implicit, nos métodos de educagio mais discretos, ou ainda nos princtpios ativos que regem a vida escolar, nada nos impede, ainda essim, de reconduzir cada uma das disciplinas ensinadas & finalidade & qual ela esté associada, dispostos a deixar de lado, por enquanto, a tarefa de cuidar do conjunto deste campo. Limitemos pois claramente o objetivo da histéria das disciplinas escolares neste ponto & pesquisa ou a determinagio exata das finalidades que Ihe cosrespondem. . Neste est4gio, ume Primeira documentaco abre-se imediatamente diante do historiador, a série de textos oficiais programéticos, discursos ministeriais, leis, Ordens, decretos, acordos, instrugées, circulares, fixando os planos de estudos, 188 Teoria & Educagao, 2, 1990 oS Programas, os métodos, os exercicios, ete. O estudo das finalidades comeca evidentemente pela exploragao deste corpus. Af juntam-se ou preferentemente os precedem, os planos de estudos, os tratados de estudos, os “ratio”, os regulamen- {os diversos quie, sob o Antigo Regime, expdem os objetivos que perseguem os colégios das universidades ou das congregagSes, ou as escolas, dos lassalistas ou das Ursulinas, por exemplo. Mas as finalidades de ensino nio esto todas forgosamente inscritas nos textos. Assim, novos ensinos 4s vezes se introduzem nas classes sem serem ex, plicitamen- te formulados.* Além disso, pode-se perguntar se todas as finalidades inscritas Nos textos sio de fato finalidades “reais”. Um exemplo permitiré situar precisamente o debate. A lei Guizot de 1833 ° Estatudo das escolas de 1834 colocam no programa do ensino primério os “clementos da lingua francesa”, quer dizer, a ortografia e a gramitica de acompanhamento. E posstvel afirmar entretanto que, até 1850, e sem divida maic tarde, a grande maioria das escolas francesas, as das zonas rurais, negligenciaram essa parte do programa, ¢ se limitaram ao ensino do catecismo e do ler, do escrever, do contar, A lei Guizot certamente desempenhou um papel importante na extensao do ensino do francés a um niimero erescente de escolas; mas a defasagem entre programa oficial e realidade escolar nio & menos patente e considerdvel. De que lado colocaremos as finalidades? Do Jado da fei ou do lado das priticas concretas? © problema 6 tanto mais delicado quando, na mesma época, uma percentagem JA significativa de escolas, sobretudo nas aglomeragSes importantes, se entrega- ram ao ensino da ortografia e da gramética. Para estas ultimas, nao h4 uma defasagem entre « realidade pedagégica e os programas oficiais, As finalidades as quais elas estio submetidas nio colocam diivida: a ortografia faz doravante Parte das grandes exigtncias. Mas para as outras, as escolas rurais, as eséclas unidocentes, o grosso da tropa? Pode-se afirmar sem mais formalidades que elas estio também “interessadas” na finalidade ortogrifica mas que, afinal, elas nic a levam em conta? A Tesposta a esta questo tem profundas implicacées para a histéria das disciplinas escolares. Uma resposta positiva implicaria em se tomar uma séria distncia com relago As realidades educacionais, em considerar 08 textos oficiais ou ministeriais como & expresso sublimada da realidade pedagdgica e, no fim das contas, em reconduzir a hist6ria das disciplinas escolares & histéria das idéias pedagégicas, Ela obrigaria historiador, por exemplo, a dar importincia, sem nenhuma desconfianga, a toda declaragéo de um determinado ministro encarregado das questées de ensino. Numa circular de 12 de novembro de 1900," o ministro Georges Leygues decide tomar 0 ensino anti-alcoslico obrigatério e conceder-Ihe nos exames 0 mesmo lugar que o francés ¢ a matemftica. Dever-se-ia ver af a expressio de uma finalidade pedagdgica imposta & escola mesmo sabendo-se que © ministério deverd rapidamente voltar atrés diante dos l6bis do élcool? Teoria & Educagao, 2, 1990 189 © problema das finalidades serve entio de revelador, de vanalisudor” como diria a andlise institucional, no momento em que 0 aplicamos aos programas oficiais. A maior parte do Programa da instrugdo priméria contido no Estatuto de 1834 (instrucéo religiosa, ler, escrever) parece corresponder perfeitamente as finalidades incontestéveis da escola contemporénea, Os “elementos da lingua francesa” que esto Préximos aos outros artigos do programa nao tém o mesmo somente de sua fragio mais moderna, ¢ igualmeate a finalidade que buscam imper & escola os efreulos dirigentes da Monarquia de Julho, descendentes do 8nipo dos Doutrindrios, muito ligados ao reerguimento ¢ & extensio da instrucio Primdria, tanto quanto aos limites extremamente estritos que lhe convém impor. Em escala nacional, a inscrigfo dos “elementos da lingua francesa” nos Programas constitui entéo apenas uma finalidade teérica, uma finalidade de objetivo. Nao 6 ainda uma finalidade real. A massa das escolas rurais, que se aplicam em satisfazer ds demandas puramente locais dos pais, do péroco e do comité de delegados cantonais ndo est4 ainda “interessada”, A distingo entre finalidades teais ¢ finalidades de objetivo é uma necessidade imperiosa para o historiador dus isciplinas. Ele deve aprender a distingui-las, MesmO qué Os textos oficiais tenham tendéncia a misturar umas ¢ outras. Deve sobretudo tomar conscigncia de que uma estipulacio oficial, num decreto ou numa circular, visa mais freqientemente, mesmo se ela € expressada em termos Positivos, corrigir um estado de coisas, modificar ou suprimir certas priticas, do que sancionar oficialmente uma tealidade. “Apenas 0 francés ser4 usado na escola”, estipula o regulamento modelo das escolas de 1851: finalidade de objetivo, Trinta anos mais trde ensinava-se ainda em patois ou na lingua regional. Nio podemos, pois, nos basear unicamente nos textos oficiais para descobrir * as finalidades do ensino, Considerar, com Louis Trénard, que as finalidades sio “definidas pela Legislador”® significa envolver-se na historia das politicas educacionais, ndo na das disciplinas escolares. A definigao das finalidades Teais de escola passa pela Fesposta 2 questo “por que a escola ensina 0 que ensina?”, € nao pela questo & qual muito freqiientemente nos apegamios: “que é que a escola deveria ensinar para Salisfazer os poderes publicos?” Isso significa dizer que a escola péde ensinar sem tomar censciéncia do que fazia? Nao se encontra em nenhum lugar a expressio explicita das finulidades reais? O historiador das disciplinas intervém no campo néo somenie enquanto tal, Mas como 0 espfrito clarividente que sozinho é capuz de explicar, demasiado tarde, & escola do passado as finalidades que ela perseguia e que ninguém na €poca podia Ihe expor? Certamente pio. Cada €poca produziu sobre sua escola, sobre suas redes educacionais, sobre os problemas pedagsgicos, uma literatura freqientemente abundante: relalérios de inspegio, projetos de reforma, artigos ou manuais de diddtica, prefécios de manuais, polémicas diversas, rélatérios de 190 Teoria & Educucao, 2, 1990 Presidentes de bancas, debates parlamentares, etc, £ essa literatura que, 20 menos tanto quanto os programas oficiais, esclarecia ox mestres sobre sua fungio e que dé hoje a chave do problema. O estudo das finalidades ndo pode,pois, de forma alguma, abstrair os ensinos reais, Deve ser conduzido simultancamente sobre os dois planos, e utilizar uma dupla documentagio, a dos objetivos fixados e a da realidade pedagégica. No coracio do processo que transforma as finalidades em ensino, hf a pessoa do docente. Apesar da dimensio “sociolégica” do fendmeno disciplinar, é preciso que nos voltemos um instante em diregdo 20 individuo: como as finalidades the 8&0 reveladas? Como ele toma conscigncia ou conhecimento delas? E sobretudo, cada docente deve refazer Por sua conta todo o caminho e todo o trabalho intelectual que levam as finalidades uo ensino? Um sistema educacional nio é dedicado, de fato, & infinita diversidade dos ensinamentos, cada um trazendo « cada instante sua prépria resposta aos problemas colocados pelus finalidades? E com base nesse ponto que se podem apreciar os pesos e a eficdcia real da tradigdo, Enquanto as finalidades se impdem a escola desde decénios, a fortiori desde séculos, & através de uma tradigGo pedagégica e diddtica complexa, ne verdade sofisticada, minuciosa, que elas chegam aos docentes. E niio & aro ver a massa de priticas pedagégicas acumuladas numa disciplina ocultar, para ‘pumerosos professores, alguns dos objetivos sitios que eles perseguem, Agora uma méquina que gira totalmente sozinha, bem ajustada, e bem adaptada a seus fins. A hist6ria da gramatica escolar do francés oferece disso um exemplo Privilegiado. Aperfeigoada e ensinada para servir de auxiliar a0 ensino da Ortografia, que é a Unica finalidade real, ela nfo tardou em ser presa por uma dag finalidades do ensino, desde 0 Segundo Império: e as adverténcias freqiientes da hierarquia universitéria e escolar sobre este ponto"” no consoguiram jamais extirpar essa heresia, A histéria do ensino do latim e das finalidades invocadas freqiientemente para justificé-lo fomece outros exemplos,* A realidade de nossos sistemas educacionais no coloca os docentes, a niio ser excepcionalmente, em contato direto com o problema das relagdes entre finalidades e ensinos, A fungio maior da “formacio dos mestres” é a de thes entregar as disciplinas inteiramente elaboradas, perfeitamente acabadas, as quais funcionario sem incidentes e sem Surpresas por menos que eles respeitem o seu “modo de usar”. Pode-se até perjuntar se a ignordncia das finalidades do ensino no é proporcional uo volume ¢ a0 mimero de drgiios de formacio que presidem 80 funcionamento das disciplinas. No complexo dispositivo instaurado por Jules Ferry, a sucesso em cascata das escolas normais superiores de instrugdo Primiria, das escolas normais primirias ¢ das escolas primérias, escalonando tes niveis de formagio, mantém os instituteurs & bea distdncia do mundo das finalidades, mesmo se sparentemente o papel desta organizacao nio é o de hes esconder tal natureza, As coisas se passam de forma diferente quando & escola sio confiadas Teoria & Educagao, 2, 1990 191 bs finalidades novas, ou quando a evolucio das finalidades desarranja 0 curso das disciplinas antigas. Perfodos privilegiados para o hisloriador, que dispde ento de uma dupla documentac4o, totalmente explicita. De um lado, os novos objetivos impostos pela conjuntura politica ou pela renovagao do sistema educacional tornam-se objeto de declaragées claras e circunstanciadas. De outro lado, cada docente ¢ forgado a se langar por sua prépria conta em caminhos ainda n&o trilhados, ou a experimentar as solugdes que lhe s&o aconselhadas. O turbilhdo das iniciativas e o triunfo gradual de uma dentre elas permitem reconstruir com preciso a natureza exata da finalidade.’* V. Os ensinos escolares ensino escolar é esta parte da disciplina que pée em aco as finalidades impostas & escola, e provoca a aculturaclio conveniente. A descricio de uma disciplina ndo deveria entio se limitar & apresentagio dos contetidos de ensino, 08 quais so apenas meios utilizados para alcangar um fim. Permanece o fato de que o estudo dos ensinos efetivamente dispensados é a tarefa essencial do historiador das disciplinas. Cabe-Ihe dar uma descric& detalhada do ensino em cada uma de suas etapas, descrever a evolugio da diddtica, pesquisar as razdes da mudanca, revelar a coeréncja intema dos diferentes procedimentos aos quais se apela, e estabelecer a ligacio entre o ensino dispensado e as finalidades que presidem a seu exercicio. Nido & intitil lembrar aqui a génese seméntica do verbo que, por exceléncia, designa a atividade pela qual uma corporago profissional especializada forma, informa, transforma as jovens geragdes no sentido preliminarmente definido pela sociedade. Ao lado de instruir, educar, lecionar (apprendre), & 0 verbo ensinar {enseigner) que 0 uso reteve como o correspondente exato do termo disciplina, Ensinar (enseigner), &, etimologicamente, “fazer conhecer pelos sinais”. E fazer com que a disciplina se transforme, no ato pedagdgico, em um conjunto significante que tera como valor representé-la, e por fungao tomnd-la assimildvel. Tem-se desde h4 muito utilizado, nessa acepgao, o verbo montrer. “Montrer as Inguas, a gramética, a aritmética. Montrer como escrever™, diz Littré, A oposigao dos dois verbos ¢ a escolha que foi feita do primeiro sao reveladoras, a0 nivel infinitamente profundo do uso lingiifstico, de uma tomada de consciancia que precisou se realizar em escala nacional. O ato pedagégico & de uma natureza muito mais complexa do que a simples mengao. Ele exige muito mais atividade,” Pde em jogo processos sutis, busca subterfilgios, atribui fungdes a simulacros, Teparte as dificuldades e, procedendo como o puro espfrito cartesiano, produz em seguida enumeragSes completas. Pode-se, a rigor, “montrer™ as letras, ou a esgrima. A leitura, o latim, o céloulo, a ortografia, as Iinguas Vivas, as ciéncias requerem em todo caso um outzo tratamento pedagégico. O mestre faz os alunos adquiri-las apenas depois de as ter decomposto metodicamente em pequenos 192 Teoria & Educagao, 2, 1990 Pedagos que eles assimilam um apés 0 outro. A confusio pedagégica que ocorre na instrucdo priméria no ultimo tergo do século XIX freqiientemente deu, & época, a impressio de que a escola se elevava bruscamente a um nfvel superior de atividade, & o que expressa, em 1877, Octave Gréard, num comentério sugestivo: gracas & renovacio dos métodos, “o instituteur expée, comenta, interroga, (...) em uma Palavra pode-se dizer que comeca a existir em nossas escolas um ensino” 5! Encarregada pela sociedadg de algumas missSes muito Berais que sao as finalidades do ensino, a escola recebe em troca carta branea para regular as modalidades desse ensino, As tinicas barreiras que so colocadas ern sua liberdade de agio nesse campo sio-the impostas pelas outras finalidades, Assim, a Pedagogia do latim nos colégios do Antigo Regime utiliza Por muito tempo as comédias de Térence, pazticularmente. apreciadas pela qualidade de sua lingua classica familiar. Mas deverd renunciar a ‘Térence a partir do século XVIII, na verdade mais cedo, quando es exigéncias da decéncia, ou da Pudicicia, se impordo na boa sociedade, e portanto na formagio das elites. A parte esse tipo de problemas, que coloca em oposi¢lo, na verdade em contradicao, duas das finalidades &s quais ele deve se cubmeter, o sistema pedagégico cria, adota, discute, abandona como entende seus métodos de ensino. A hist6ria das disciplinas escolares expde & plena luz a liberdade de manobra due tem a escola na escotha de sua pedapogia. Ela depSe contra a longa tradigo due, no querendo ver nas disciplinas ensinadas senZo as finalidades que sio efetivamente a regra imposta, faz da escola o santudrio no somente da rotina mas da sujeicio, e do mestre, o agente impotente de uma diditica que Ihe é imposta do exterior. Se se deseja entio, permanecendo totalmente no interior desse quadro rigido, explicar a evolucdo concreta das diferentes disciplinas, nada mais resia, j4 que se fechou toda possibilidade de ver 0 movimento surgir do interior, do que fazer um apelo aos grandes pensadores da pedagogia que Permitem, assim, desbloquear a maquina. A realidade, mostrar-se-4, & muito diferente. Sem duvide, a liberdade pedagégica da instituigaio nfo & a0 nivel dos individuos, mais do que uma meia-liberdade, £ Para eles necessfrio levar em conta o lugar que ocupam a0 lado de seus colegas no mesmo sistema de ensine © as progresses curriculares nas quais eles, em geral, nic intervém mais do que Por uma duragdo limitada. Quando se faz: a quinta ou o CMI" nuim estabelecimen. ee ‘Para esta © para outras refeitneias posteriores as séties do sistema frances o leitor deve ter em mente a seguinte correspondtneia: as cinco séries do ensino elemeniar sio designadas sucessivamente pelas siglas CP, CE1, CE2, CMI, CM2, As quatro séries do Primeiro ciclo do ensino sccunddrio correspondeate ao nosso antigo gindsio ou be thimas séries do nosso atual primeiro grau) sto designadas succssivamente por sexta, quinta, quarts e terceira (N. do E.). Teoria & Educagao, 2, 1990 193 to, recebe-se uma turma de alunos, no comego do ano, € entrega-se-a, no fim, aos colegas do mesmo estabelecimento. Quando se dirige um estabelecimento, como uma congregasio no século XVIII, ou uma Universidade no XIX, se est cerceado igualmente pela pressio que exerce — através das tendéncias dos visitadores, dos inspetores, dos exercicios Publicos, dos concursos e exames — © Conjunto do sistema escolar do qual no se administra setdo uma unidade, freqiientemente até mesmo Oposta ls demais pelas leis da concorrénci Quer dizer que algumas estruturas pedagdgicas dio kos individuos, mais do que outras, a possibilidade de colocar em questio a natureza de seu énsino. O regente Jesufta que acompanha seus alunos da quinta até & tet6rica € menos dependente de seus colegas do que se ele tomasse a scu cargo a cada ano uma classe nova. O instituteur,” mestre de uma classe unidocente, esté na mesma situagio, Sobretudo, os estabelecimentos que, em certas &pocas floresceram as margens do sistema escolar tradicional, apresentam Por vezes as condicées ideais Para. o exercicio da liberdade pedagégica. Parece realmente, por exemplo, que os internatos e os pensionatos do século XVIII, que se desenvolveram ao lado dos colégios tradicionais, ou certos estabelecimentos livres niio-catélicos do fim do século XIX, so os verdadeiros vetores da inovagio disciplinar. Seria postvel citar muitos exemplos andlogos no século XX, Mas por serem particularmente visiveis, estes exemplos nio esgotam a questaio. abundante e de nao renunciar, a nio sez excepcionalment@) a tragar 9 esboco daquilo que serd a solugio do futuro para problemas que niio se colocam a Principio a nao ser Para uma minoria. No ambito de uma finalidade bem definida, a liberdade tesrica de eriagao disciplinar do mestre se exerce em um lugar e sobre um publico igualmente bem determinados: @ sala de aula de um lado, 0 Srupo de alunos de outro, As Pela caractertstica irregular dos livros de aula trazidos pelas criangas. Assim ela se dedica a criar @ impressio de que os mestres de antigamente teriam se safdo melhor se tivessem melhores condigGes de trabalho ¢ de que a antiga pedagogia era, em grande parte, determinada Por consideracSes puramente materiais, ee “Pessoa enesrregada da instrugio das eriangus nas escolas primérias (N. da T.). 194 Teoria & Educaséo, 2, 1990 Argumento bem conhecido, sobre as relagdes de determinacio entre Testrigdes materiais ¢ atividade humana (como o é, alids, o argumento inverso). Mas um argumento, entretanto, muito pouco usual em histéria da educacio para poder aqui pasar em siléncio, Nada permite afirmar que um siibito melhoramento doa locais, do mobilidrio e do material teria modificado substancialmente e duravel- Mente as normas ¢ as prdticas do ensino, O Unico limite verdadeiro com o qual se depare a liberdade pedagdgica da mestre € 0 grupo de alunos que ele encontra diante de si. A recusa em adimithr essa evidéncia est4 na origem de muitas das incompreensdes das quais 0 corpo. docente € por vezes vitima. A atividade do mestre em aula € frequentomente tesumida na expresso “faire cours”, a qual é geralmente entendida como “dicter ua cours”, 9 que mantém um equivoco Permanente sobre a propria natureza da tarefa docente, Certamente a histéria do ensino € abundante em exemplos da cursos efelivamente ditados, Mas, além do fato de que & ocupaciio dos mestres nO se acabava nesse ditado, eles jamais constitutram mais do que uma minoria dos docentes de seu tempo, e se dirigiam em geral As classes superiores, portanto 40s alunos mais velhos, . A atividade magistral geradora das disciplinas escolares se parece muito mais 4 do orador empenhado em convencer ¢ em agradar do que & do Professor du faculdade que, pela vigésima vez, 18 suas notas ou recita as sflabas de um texto ajustado vinte anos antes. A pedagogia est4, sob um de seus aspectos, proxima da retérica.™ Nao essa retrica\ da cdtedra Professoral que os Villemain, og Michelet ou os Cousin adaptaram ao ensino Superior, mas essa parte da rotérica, ou mais ainda, esse espfrito da retérica que se empenha em se engalfinhar com © piblico para fazer penetrar idéias novas nos espiritos, afastando de diante de si todos os obstaéculos Psicolégicos ou epistemoldgicos e, para isso, tomando em conta, durante o percurso, as reagGes que se percebem nesse publico, Ness amplo quadro, @ pedagogia depara-se com problemas idénticos aos da atividade Pastoral, Mas sua tarefa 6 mais drida. Nao se trata de “convencer” dentro da ordem da razio e do dogma. Trata-se de implantar as proprias formas do conhecimento, do taciocinio, da expressio normatizada, até mesmo do. comporta- mento gestual. © “trabalho” —- no sentido forte ~ do mestre é o da tensio de um corpo 4 corpo com 0 grupo. O grupo em si mesmo, enquanto tal, constitui uma pega essencial do dispositive disciplinar. Num dado momento, € um dos alunos que, melhor do que os outros, seja porque é mais forte, seja porque é mais fraco, expressard as dificuldades encontradas, e Pennite assim ao conjunto se beneficiur dos complementos da explicagio. Noutro momento, € 0 grupo que serve de * Substituto & palavra do mestre diante dos alunos em dificuldade, pois 6 melhor que eles préprios afastem sozinhos os obstdculos. A fungio pedagégica do grupo € constante, ainda que disfargada, até mesmo clandestina. Dafa diferenga entre 0 ensino escolar ¢ a preceptoria. Se as finalidades podem Teoria & Educacao, 2, 1990 195 ser idénticas para um e outro, as priticas de ensino nio 0 sio. O preceptor nao ensina como 0 regente de colégio: ele toma'por base evidentemente @ discipling considerdveis, ¢ em particular experimentar as novidades quea Ogia teGricg contemporanea propde, A Preceptoria, como o pensionato livre, e talvez antes dele, é frequentemente um agente ou um retransmissor da inovagfio®, tanto mais que suas finalidades aio Por vezes muito amplas. Aos delfins, aos Principes herdeiros, aos filhos dos nobres, Preceptor do Antigo Regime ensina por exemplo a hist6ria, matéria tio indispensével para eles quanto desconhecida, oy fara, nos colégios. © acidental que um dos Primeiros usos documentados da “redagio” em francés seja destacado Por Bossuet como um meétodo que ele utiliza com o Grande Delfim?* As dificuldades © os problemas com que se depara 0 preceptor néo podem na sua mais tenra infancia €, desse ponto de vista, uma construcao tio artificial awanto o Emilio de Rousseau. A aprendizagem do latimn Para um grupo de alunos 4ue néo conhece uma palavra dele antes de sua entrala na instituiggo coloca problemas muito diferentes. Vé-se que na tradi¢ao francesa, a origem desse ensino perde-se um Pouco na noite do tempo, e que a documentagao disponfvel no esclarece suficientementé a nao ser os estégios j4 evolufdos da disciplina, alunos e de sua Teparticio em classes Por nfveis nfo est4, originalmente, na natureza das dificuldades encontradas, Ea Propria constituicao da disciplina que determina essa importante inovacéo na histéria pedagégica, Note-se que, até o fim do século XIX, a consideracdio da idade nao desempenha papel nenhum nesta Teparti¢fo, nem no secundério fem no primério; encontram-se, em todas as divisdes, variagées consideraveis, podendo essa variacao alcangar dez ou doze anos. No campo das classes, 0 secundério tem sobre © primério um avanco de varios séculos. A organizagio das classes, ¢ sua denominagio atual, esto de fato J colocadas ali desde 0 século XVI. E é nos colégios do século XVII e XVIII que 8 expressio “faire la classe” adquire seu valor Propriamente pedagégico,* Ao contrério, ainda em 1850, a grande maioria das escolas elementares francesas € ainda de classe Unica, sem “organizacio pedagdgica", e condenada seja 20 estilo individual, seja as fSrmulas Precérias. A reparticao dos alunos em diversas divisdes, sob um 56 Mestre, foi no entanto recomendada, e Praticada, tanto pelos Irmaos das escolas cristés quanto pelo ensino miltuo, Mas, para além das cidades ¢ dos burgos, ela nio se difunde a nao ser na segunda metade do século. Quanto ao Préprio termo classe, nio substitui, nem se soma, a nio ser muito tarde, perto de 1880, aos de divisdo e de curso. & Otdvio Gréard que, em Paris e no departamento de Seine, reatiza essa transformagio decisive do ensino Primdrio: “Nés desejarfamos, escreve aos inspetores primérios,* que os estudos 196 Teoria & Educagao, 2, 1990 Primérios se tomassem Verdadeiramenté classes, classes elementares ¢ simples, acessiveis ao maior niimero, mas tendo seu seguimento e seu coroamento, Préprios para formar espftitos esclarecidos sibios, imbuidos de prinefpios exatos,...”, De resto, @ repartigio do ensino disciptinar em classes anuais, ou, frmula freqiiente sob o Antigo Regime, semi-anuais, nio muda a natureza dos proble- es. As solugdes dadas para as dificuldades concretas nao podem ser senio frito da colaboragio de todos os mestres exercendo as mesmas fungdes. A multiplicida- de de iniciativas € a principio a Tegra antes que a confrontacio dos métodos e a difuso dos melhores manuais Produzam a Otimizacio do rendimento. Nesse Processo de comparacio © de selegio, vitios fatores contribuem para a Beneralizacio da melhor solug&o: deslocamento de regentes ou de instituteurs; Visitadores de congregacées; publicacio, desde o século XVI, de manuais Pedagdgicos. O século XIX acelerard esses Processos multiplicando os corpos de inspetores e os organismos de formacio de mestres, conferéncias pedagégicas, tues DOrmais, escolas normais, e desenvolvendo num grau jamais aleangado todas as formas de literatura pedagégica. A instauragio das disciplinas ou das reformas disciplinares é uma operacao de longa durasio, O sucesso ou o fracasso de um procedimento didético nao se manifesta a no ser 20 término da escolaridade do aluno. A reforma do énsino seeundério de 1902, ainda que vivamente contestada desde 0 inicio pelos Partidérios do latim, desembocou na “crise do francés” apenas em 1908, data a partir da qual se tornou €ntio possivel, segundo seus detratores, fazer um balango, catastedfico, depois de seis anos de experimentacio. Um outro fendmeng Poderfamos esperar ver em aco aqui outras leis de mercado, e particularmente a climinagio dos menos competentes. Mas isso significaria fazer Pouco caso, de um Iado das protecies asseguradas aos individuos pelas corporagdes do Antigo Regime, e sobretudo da parte considerdvel de “peitica” que adquire, com os anos um regente ou urn mestre de escola, Nos licenciamentos ou nas demissdes de mais eficazes. Trinta anos, quarenta anos, Cingiienta anos de atividade, ou até mesmo mais: aqui se tem o bastante para avaliar rapidez posstvel na Beneralizasio das inovagdes pedagdzicas. Teoria & Educagao, 2, 1990 197 pedagégicas organizadas durante os meses de verlio terem aprendido ¢ entio terem podido comegar a ensinar a gramdtica, a ortografia, o sisterna legal de pesos e medidas, e a praticar os novos métodos de aprendizagem da leitura. As escolas normais da época, de preferéncia esporddicas, nfo teriam sido suficientes para a tarefa, Quanto aos famosos “hussardos negros” da Republica, eles nio teriam podido ser majoritérios na instrugdo laica antes de 1900 ou 1910, se o movimento nio tivesse sido preparado de longa data, e se a formacio inicial no fosse constantemente reforcada por uma formagao cont{nua. Os processos de instauragio e de funcionamento de uma disciplina se caracterizam por sua precaugio, por sua lentiddo, e por sua seguranga, A estabilidade da disciplina assim constituida no 6 entio, como se pensa seguida- mente, um efeito da rotina, do imobilismo, dos pesos ¢ das inércias inerentes & instituigdo, Resulta de um amplo ajuste que pés em comum uma experiéncia pedag6gica considerdvel; e muito freqiientemente as rivalidades das congregacdes do Antigo Regime tiveram que se tomar indistintas diante do “interesse” dos alunos. Ela se prevalece dos sucessos alcangados na formacdo dos alunos, assim como de sua eficdécia na execugdo das finalidades impostas. Fidelidade aos objetivos, métodos experimentados, progressdes sem choques, manuais adequaddés e renomados, professores tanto mais experimentados quanto reproduzem com seus alunos a diddtica que os formou em seus anos de juventude, e sobretudo consenso da escola ¢ da sociedade, dos professores e dos alunos: igualmente fatores de solidez e de perenidade para os ensinos escolares. Mas essa estabilidade se inscreve, ela prépria, numa transformagio histérica na qual se distinguem vérios perfodos. O nascimento € a instauragio de uma nova disciplina levaram alguns decénios, por vezes meio século. Segue-se o apogeu, mais ou menos durdvel segundo as circunstincias. Varios observadores,* por exemplo, colocaram em tomo de 1840 o apogeu da formagao humanista dada nos colégios da Universidade. Vem depois 0 declinio, ou, se se quer, a mudanga. Pois a disciplina, ainda que pareca imune por todos os Iados, nio 6 uma massa amorfa e inerte, Vé-se de repente florescerem os “novos” métodos, que dio testemunho de uma insatisfagao, e dos quais o sucesso é também o questionamen- to, a0 menos parcial, da tradigfo. Quais sic entdo os agentes de renovagio das disciplinas? As leis que mudam as I{nguas, dizia um obscuro filésofo do século XIX, sao as leis que as criam.* Dé-se 0 mesmo com as disciplinas ensinadas. Sua transformagio como sua constituigao esto inteiramente inscritas entre dois pélos: 0 objetivo a alcangar e a populagzo de criancas e adolescentes a instruir. B af que se devem encontrar as fontes da mudanga pedagégica. Pois 6 ao mesmo tempo através de suas finalidades e através de seus aluncs que elas participam da cultura ¢ da vida social de seu tempo, , A evolugZo da diddtica do latim desde bd trés séculos, por exemplo, esté estreitamente ligada % evolugio dos objetivos culturais desse ensino durante o 198 Teoria & Educagdo, 2, 1990 mesmo perfodo e, em particular, ho curso dos wltimos cento e vinte anos, Mas no € raro verificar-se que os contetidos do ensino se transformam enquanto as finalidades permaneceram imutdveis. Por exemplo, o ensino da ortografia sofreu profundas transformagées desde 0 comego do século XIX, enquanto que a finalidade permaneceu idéntica, mesmo se outras finalidades vieram desde entio diversificar os ensinos primdrio e secundério do francés. A transformacio, social e cultural, dos puiblicos escolares é mais que suficiente para explicar o essencial dessa evolucao. Até A Revolucdo, o ensino da ortografia para a juventude escolar, Para nao fular dos grupos corporativos que, de resto, detém seu monopélio, passa pelo latim, com excecio de uma pequens parte do primério, que se inicia na gramfticn francesa e na ortografia: os Irmios das escolas cristés, as Ursulinas e alguns Pensionatos funcionam um pouco como wm ensino primério superior.® E somente Por volta de 1820 que o ensino primrio “elementar” coloca a ortografia em seu Programa, ou seja, que mais e mais professores se esforgam em ensing-la; debatem-se os métodos, os exercfcios, uma teoria gramatical ad hoc, a do Nodl © Chapsal, dificil, abstrata, rebarbativa, mas na medida para responder as necessidades de um pilblico ainda limitado. Ao redor da metade do século, 0 movimento de escolarizegio ganha ainda em extenséo, e, se se pode dizer isso, em profundidade, j4 que alcanga as camadas ou as zonas mais recuadas, as main atrasadas, as mais patoisantes. A gramética de Chapsal tomma-se na mesma Ocasido inutilizével. A teoria, os exercicios se renovam: 0s novos métodos terfio lugar mais ou menos no infcio do século XX; desde entio eles no mudaram fundamentalmente. Nessas diversas evolugdes, é a transformagio do publico escolar que obrigou a disciplina a se adaptar. As transformagies “culturais” da sociedade francesa ¢ da juventude explicam outras modificagbes que ocorreram desde entio na hist6ria da mesma disciplina. As formas mesnuas do ensino ortogréfico e gramatical tal como ele era praticado por volta de 1880 seriam atvalmente impensdveis. Memorizagio e recitagdo de paginas de gramitica antes mesmo que elas fossem explicadas; intermindvels andlises gramaticais, “conjugagdes” escritas que niio deixavam de lado nenhuma das formas do verbo; ditados pouco compreens{veis, corrigidos pela soletragho sistematica de todas as palavras, sem nenhum comentario: nem os alunos nem os mestres suporiariam mais obrigagées tio entendiantes. Acresoentemos que 0 interesse pelss duples consoantes e pela concordincia do particfpio diminuiu sensivelmente desde a época em que esse ensino ocupava pelo menos um tergo do hordrio, O prolongamento da escolaridade obrigat6ria permitiu, é verdade, escalonar as etapas numa durago mais longa. A transformagio pelo piblico escolar do contetido dos ensinos & sem divida uma constante importante na hist6ria da educagio, Encontramo-la na origem da constituigéo das disciplinas, nesse esforgo coletivo realizado pelos mestres para deixar no ponto métodos que “funcionem”. Pois a Criagao, assim como a Teoria & Educagdo, 2, 1990 199 transformagio das disciplinas, tem um s6 fim: tomar possivel o ensino. A fungio da escola, professores e alunos confundidos, surge entio aqui sob uma luz particular. Nesse processo de elaboragio disciplinar, ela tende a construir 9 “ensindvel”.*' Intervindo assim no campo da cultura, da literatura, da gramAtica, do conceito, a escola desempenha um papel eminentemente ativo e criativo que somente a histéria das disciplinas escolares est4 apta a evidenciar. A funco real da escola na sociedade entio dupla. A instrugZo das criangas, que foi sempre considerada como seu objetivo tinico, nfo 6 mais do que um dos aspectos de sua atividade. O outro, é a criacio das disciplinas escolares, vasto conjunto cultural amplamente original que ela secretou ao longo de decénios ou séculos e que funciona como uma mediagio posta a servigo da juventude escolar em sua lenta progressio em diregéo & cultura da sociedade global. No seu esforgo secular de aculturagio das jovens geracées, a sociedade entrega-lhes uma linguagem de acesso cuja funcionalidade é, em seu principio, puramente transitéria. Mas essa linguagem adquire imediatamente sua autonomia, tornando- se um objeto cultural em si e, apesar de um certo descrédito que se deve ao fato de sua origem escolar, ela consegue contudo se infiltrar subrepticiamente na cultura da sociedade global, VI. Os constituintes de uma disciplina escolar As disciplinas que a escola instaurou e periodicamente reformou para adapté-las a novas finalidades ou a novos piblicos envolvem campos muito diversos. A natureza “disciplinar” dos diferentes contetdos coloca, pois, um problema importante: h4 tragos comuns as diferentes disciplinas? A nogdo de disciplina implica uma estrutura propria, uma economia intema que a distinguiriam de outras entidades culturais? Haveria um modelo ideal da disciplina em diregio ao qual tendem todas as disciplinas em via de constituicio? Atgumas disciplinas so melhor “resolvidas” do que outras? Hé, dito de outro modo, matérias que se prestam mais do que outras a um processo de “disciplinarizaco”? A organizagao interna das disciplinas 6, numa certa medida, produto da hist6ria, que procedeu aqui pela adigdo de camadas sucessivas. Assim, vérias dentre elas conhecem, no século XIX, grandes debates sobre os “métodos”. E faro que esses conflitos no se estabelegam por s{nteses, Conhecem-se, por exemplo, as grandes caracteristicas do ensino tradicional. Ele & baseado na exposigio, feita pelo mestre ou pelo livro, na memorizagio, na recitagdo, e, de um modo geral, nesse princfpio de que, em todas as aprendiza- gens, leitura, latim, célculo, tudo passa pela reflexdo que classifica, identifica, assimila, constréi e controla a todo momento 0 processo de elaboragio do conhecimento. A meméria, a meméria consciente, 6 quem esté no comando. Acctitica desses métodos, jé explicita entre os grandes pensadores da pedagogia, como Coménio ou Rousseau, penetra na escola francesa do século XIX por 200 Teoria & Educagao, 2, 1990 diversas vias € sob diversas denominagdes: “ensino intuilivo", “método intuitivo”,”método socrético”, “método de escolas matenais”, “método maternal”, “natural”, “ativo”, “pratico”, “direto”, “ensino por demonstragao”, “Jigdes de coisas” etc. Em realidade, mesmo os que preconizam essas novidades, muito freqientemente, nfo tardam em recomendar uma mistura harmoniosa com os procedimentos tradicionais. Gabriel Compayré louva os méritos do método socrético, que se desenvolve pela interrogagao; mas é para limitar imediatamente os seus efeitos: “I bem evidente que todas as matérias de ensino nfo comportam © método socrdtico no mesmo grau”. E para acrescentar imediatamente ao capitulo “a arte de interrogar”, um capitulo sobre “a arte de expor”. Mesmo ecumenismo, no fim do século, para encerrar os debates pedagdgicos de ordem muito geral sobre a andlise e a sfntese: “A andlise néo é suficiente, ensina Marion;® ela deve ser seguida da sintese. Pois conhecemos as coisas, se as conhecemos apenas nos seus elementos, se néo as vemos em suas relagdes. $6 a percepgo dos conjuntos conduz & precisiio das idéias, ainda que apenas a percepgao dos detalhes leve a distingui-las”. Naturalmente, nem todos os componentes das disciplinas escolares se reduzem a esse esquema cumulative. Mas 6 provavel que os debates ¢ as solugdes de compromisso tenham contribufde para que se tomasse consciéncia muito rapidamente da natureza obrigatoriamente complexa de uma disciplina de ensino. A partir do Segundo Império, « questo toma-se inclusive objeto de ensino em algumas escolas normais. Veja-se, por exemplo, o Mémorial législatif, adminis- tratif et pédagogique des instituteurs primaries de F.J. Vincent, diretor da escola normal do Ain. “Em todo método, € necesséria a sucesso regular destas quatro coisas: 1. a exposiggo da matéria pelo professor ou o estudo num livro; 2. 4 interrogagio (...); 3. a repetigio (...5; 4. a aplicagio (...),'que exercita o aluno no fazer uso daquilo que ele aprenden”. Citamos anteriormente as observagées pertinentes de Augustin Cournot a propésito do curso de histéria, “que pouco se presta para a determinagao de deveres e de tarefas (...) Aprender de cor um pequeno catecismo histérico, acrescenta, convém apenas 4 primeira infincia e coloca em jogo apenas a - memdria. Redigir com base nas notas da licfo do professor conduz repidamente 4 estenografia, a0 invés de escuté-la e de se assimild-la. Daf as redagdes imensas (...)" A histéria € disciplindvel? Esta 6 a questio que se coloca a0 inspetor geral. Para que uma disciplina “funcione”, & necessério, com efeito, satisfazer as exigéncias intemas que constituem aparentemente o seu “nticleo”. Por nao levar isso em conta, o ensino fracassa, ou nfo atende sendo a uma parte de seus objetivos. " So sobrettudo os inspiradores da escola republicana que, antes mesmo de 1880, colocaram o problema da eficdcia das disciplinas, e mostraram a necessidade de equilibrar judiciosamente as suas partes constitutivas. “Por toda a parte, escreve Ferdinand Buisson, a experiéncia demonstrou que 0 ensino primfrio nfo tem Teoria & Educacdo, 2, 1990 201 sobre uma geragio a influéncia moral que se tem o direito moral de esperar dele, se ele tivesse seriamente penetrado nos espfritos, se tivesse ultrapassado a fase dos rudimentos”." E a revolugio pedagdgica de 1880 seré fundamentalmente, no ensino primério, inas igualmente em certas partes do secunddrio, a emergéncia de novas disciplinas, o enriquecimento de disciplinas antigas ou # ascens#o 20 nivel de disciplinas de formulas pedagdgicas que podiam se vangloriar, até entio, * tHo-somente de uma eficcia limitada. Dos diversos componentes de uma disciplina escolar, o primeira na ordem cronolégica, sendo na ordem de importancia, é a exposic&o pelo professor ou pelo manual de um contewido de conhecimentos. E esse componente que chama prioritariamente a atengo, pois é ele que a distingue de todas as tiodalidades néo escolares de aprendizagem, as da familia ou da sociedade. Para cada uma das disciplinas, 0 peso especifico desse contetido explicito constitui uma varidvel hist6rica cujo estudo deve ter um papel privilegiado na histéria das disciplinas escolares, E uma varidvel que, em geral, pe cm evidéncia slgumas grandes teadéncias: evolugdo que vai do curso ditado para a ligko aprendida no tivro, da formulacio estrita, até mesmo lapidar, para as exposig6es mais flexiveis, da recitagio para a impregnacio, da exaustividade para a selecdo das linhas principais. Independentemente da propria natureza desse conteudo, a questo do peso especffico da parte “tedrica”, ou “expositiva”, da disciplina levanta umn problema importante. Tomemos o exemplo do ensino tedrico da ret6rica no ensino cldssico, testemunhado 20 menos até 0 comego do Segundo Império, Essa antiga prética contrasta fortemente com 0 ensino retérico atual, muito mais difuso, e que reaunciou desde hd muito & aprendizagem pela memorizacio, as subdivisdes sutis, a0 dogma dos trés estilos ¢ aos versos técnicos. A ligacdo estreita que esse ensino tet6rico, passado e presente, mantém com a arte da composiciio e da redagio nos leva perguntar sobre a funcdo que se deve, ou nfo se deve, reconhecer, no “sawoir-faire” que é a composigSo, ao “savoir” que é a retérica. Passou-se, entre 0 século XIX e o XX, do reino da ilusio intelectualista ao triunfo das prdticas funcionais? Se € verdade que nao se aprende a escrever recitando um catecismo teiérico, € necess4rio admitir entio que 4 mesma disciplina tivesse podido permanecer tanto tempo encoberta por um monte de quinquilharias intteis, antes de se voltar a métodos mais sadios? As.disciplinas escolares carregam a marca profunda dos erros teSricos de seu tempo? E, de um modo mais geral, estiiv sob influéncia dos modos psicopedagégicos, ou das “ideologias"? Sabe-se que & uma resposta posiliva a que.a tradigio hist6rica aporta a esses questées, Indiferente & suspeita de cientificismo que arrisca macular sua posi¢o, ela executa num golpe de cancta, em nome das “aquisigées” da ciéncia modema, todos os “erros tedricos” do passado, E de fato, tomando por base 0 perfodo de declinio das praticas antigas, aquele que estd mais proxirno de nés, ela nfo tem dificuldade em estabelocer sobre essa base a superioridade dos novos métodos. 202 Teoria & Educagdo, 2, 1990 Se se quer de fato admitir, ao contrério, que a plena validade de um método pedagégico no pode ser apreciada a nfo ser em seu “auge”, em seu apogeu, hesitar-se-ia sem difvida em se tomar a mesma diregdo. Nada na ciéncia moderna impede de pensar que, em tal época da histéria (século XVIII, primeira metade do século XIX), as elites formadas nos melhores cursos de humanidades nio tivessem podido, a idade da segunda’ e da retérica, encontrar um auténtice proveito intelectual na pratica da composigac estreitamente ligada ao conhecimen- to dos princfpios da retérica. Pode-se, ¢ até mesmo, sem duivida, deve-se, atualmente, recolocar em discuss&o as finalidades especfficas dessa disciplina tradicionf econsiderar que ela é nao somente inaplicdvel, mas igualmente pouco adeplada no nosso tempo. Dever-se-4 entdo admitir que a disciplina mudou porque sua finalidade mudou, e no porque a humanidade do fim do séoulo XX chegou enfim ao reino da ciéncia, & desaparigio das “ideologias”, e & transparén- cia das coisas. A tarefa primeira do historiador das disciplinas escolares € estudar os contetidos explicitos do ensino disciplinar, Da gran:tica escolar até a aritmética escolar, passando pela hist6ria da Franga escolar ou pela filosofia dos colégios, todas as disciplinas, ou quase todas, apresentam-se sobre este plano como corpus de conhecimentos, providos de uma Iégica interna, articulados em tomo de alguns temas especfficos, organizados em planos sucessivos claramente distintos ¢ desembocando em algumnas idéias simples e claras, ou em todo caso encarregadas de esclarecer a solugdo de problemas mais complexos. © estudo dos contetidos beneficia-se de uma documentag3o abundante & base de cursos manuscritos, manuais e periddicos pedagégicos. Verifica-se af um fendmeno de “vulgata”, o qual parece comum as diferentes disciplinas. Em cada época, o ensino dispensado pelos professores &, grosso modo, idéntico, para a mesma disciplina e para o mesmo nivel. Todos os manuais ou quase todos dizem entfio a mesma coisa, ou quase isso, Os conceitos ensinados, 4 terminologia adotada, a colegdo de rubricas € capftulos, a organizagZo do corpus de conheci- mentos, mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exerc{cios praticados sio idénticos, com variagdes uproximadas. Sao apenas essas variagGes, alids, que podem justificar a publicagdo de novos manuais e, de qualquer modo, no apresentara mais do que desvios minimos: © problema do pldgio & uma das constantes da edigéio escolar, A descrigéo € a andlise dessa vulgata sio a tarefa fundamental do historiador de uma disciplina escolar. Cabe-the, se nfo pode examinar minuciosamente 0 conjunto da producio editorial, determiaar um corpus suficientemente representa- tivo de seus diferentes aspectos. A pritica, freqiiente, de uma amostra totalmente aleatéria nie pode conduzir, e niio conduz efetivamente, a nao ser a resultados “Primeira série do segundo ciclo do ensino sccundério (N. do E.). Teoria & Educagto, 2, 1990 203 frdgeis, até mesmo caducos, A experiéncia elementar de todo historiador das disciplinas the ensina que as Vulgatas evoluem ou se transformam. As exigéncias intrinsecas de uma matéria ‘ensinada nem sempre se acomodam numa evolucio gradual e contfnua. A histéria das disciplinas se d4 freqiientemente por alternancia de patamares e de mudangas importantes, até mesmo de profundas agitagdes. Quando uma nova vulgata toma © lugar da precedente, um perfodo de estabilidade se instala, que seré apenas Porturbado, também ele, pelas inevitiveis variagdes. Os perfodos de estabilidade so separndos pelos perfodos “transitérios”, ou de “crise”, em que a doutrina ensinada € submetida a turbuléncias. O antigo sistema ainda continua 14, a0 mesmo tempo em que o novo se instaura: perfodos de maior diversidade, onde © antigo © o novo coabitam, em ProporgGes varidveis. Mas pouco a pouco, um manual mais audacioso, ou mais sistemndtico, ou mais simples do que os outros, deataca-se do conjunto, fixa os “novos métodos”, ganha gradualmente os setores mule recuados do territério, e se impe. Ea ele que doravante se imita, 6 uo tedor dele que se constitui a nova vulgata. Se os contetidos explicitos constituem 0 eixo central da disciplina ensinada, o exercicio € a contrapartida quase indispens4vel. A inversio momentanea dos papéis entre o professor e o aluno constitu o elemento fundamental desse intermindvel didlogo de geragSes que se opera no interior da escola. Sem o exercfcio € scu controle, nio hf fixagao possfvel de uma disciplina. O sucesso das disciplinas depende fundamentalmente da qualidade dos exercicios aos quais elas podem se prestar. De fato, se se chama de exercicio toda atividade do aluno observavel pelo mestre, h4 de se convir de bom grado que copiar o curso através do ditado nfo 6, em si, o mais estimulante dos exerctcios. Ao contrério, a tedaglio ou a composicgo, a andlise gramatical, a traduco do latim, 0 problema de aritmética, colocam em jogo a inven| tividade, a criatividade, a espontaneidade, ou 0 espirito de rigor nas dedugdes ou na aplicagfo das regras. Os exercicios podem entio se classificar em uma escala qualitativa; ¢ a histéria das disciplinas descobre uma tendéncia constante que elas apresentam a melhorar a'posigdo de suas baterias de exercfcios. Assim, a Tenovagao pedagdgica de 1880 proscreve os exercicios “passivos” ¢ dé preferéncia aos exercicios “ativos”.* Nessa hierarquia, a prética da memorizagio ¢ da recitagio do curso se situam preferentemente num degrau modesto, e nio é raro que a evolugao se faca & suas custas. A terminologia pedagégica dé um testemunho disto, Assim, a palavra ligdo nao designava, até o fim do século XIX, nada além da ligdo aprendida de cor e recitada em classe. Era entio um equivalente exato de recitagdo, que designava o desempenho do aluno recitando em classe sua “ligdo” de histéria, de catecismo, de gramdtica, etc. A Pratica da recitagao de belos textos cldssicos, ou de pocsias mais modernas, nao se instala senfo lentamente no ensino primério, © a prépria palavra nao tomard antes do comego do século XX o valor que tem hoje. 204 Teoria & Educagao, 2, 1990 Contetidos expiicitos ¢ baterias de exercfcios constituem entio o nticleo da disciplina. Dois outros elementos vém se acrescentar af, todos os dois essenciais ao bom funcionamento, e alids intimamente ligados aos precedentes. Nada se passaria em aula se o aluno nao demonstrasse um gosto, uma tendéncia, disposigdes para os contetdos e os exercicios que se the propde. As pritices da motivago ¢ da incitagao ao estudo s4o uma constante na histéria dos ensinos. Os pedagogos sabem desde hé séculos que a crianca aprende tanto melhor a ler quanto mais ela tem o desejo de aprender. Rousseau jé o havia dito. Eis as recomendagdes que L.C. Michel faz as mies e aos jovens mestres: “Antes de ensinar a ler e de mostrar as letras a uma crianca, é bom falar-lhe disto varios dias antes e inspirar-lhe um vivo desejo de comegar o estudo da leitura. A crianga que experimenta esse desejo vird com prazer as ligdes, escnta-las-d com atencdo ¢ avidez, e faré progressos muito mais r4pidos do que uma crianga menos bem preparada (...) E importante, nas primeiras ligdes sobretudo, que o pequeno as termine com o pensamento de que ele teve éxito, que se estd contente com ele, € que sinta que j4 aprendeu qualquer coisa que nfo sabia”.” A histéria das priticas de motivagio e de iricitagdo ao estudo atravessa de lado a Jado toda a histéria das disciplinas. Trata-se nfo someate de preparar o aluno para a nova disciplina mas de selecionar, aliés com igual peso, os contetidos, os textos, as narragdes mais estimulantes, na verdade de levar-lhe a se engajar espont&neamen- te nos exercfcios nos quais ele poderé expressar sua personalidade. O debate tedrico sobre 2 duraco desejavel dos procedimentos de estimulagiio em aula nio cessou desde os Jesuitas que estendem ao mAximo a emulagio ¢ a rivalidade, até a pedagogia modema zelosa de “centros de interesse” ou de disciplinas de “prontidao”. . O estudo da evolucao das disciplinas, contedos e exercfcios, mostra que as Préticas de estimulacio do interesse do aluno estio constantemente em aco nos arranjos mfnimos ou importantes que elas sofrem. Toda inovagio, todo novo método chama a aten¢So dos mestres por uma maior facilidade, um interesse mais manifesto entre os alunos, 0 novo gosto que eles vao encontrar ao fazer os exercicios, a maior modernidade dos textos que se hes submete. Lhomond, introduzindo seu manual de gramdtica, que conhecer um extraordindrio sucesso no século XIX, nao visa senfo poupar & infincia “uma parte das légrimas que os primeiros estudos fazem correr”. E Michel, ensinando a leitura aos iniciantes, vai ao encontro de todos os bons métodos em uso: para lhes fazer encontrar, desde a primeira licdo, 6 sentido, e portanto 0 prazer, no que eles Iéem, ele se contenta com quatro letras, com as quais eles soletram e compreendem pupa, pipe, pape, - api, pie etc.” Essa interpretagiio dos fatos educacionais, ¢ do papel da “pedagogia” no ensino se opée, j& se viu, a uma Jonga tradigdo que se baseia sobre um corte estrito entre a instrugio, de um lado, considerada como um contetido, e a pedagogia, de outro, que nfo seria senfio a forma de transmissio desse contetido.” E notdvel Teoria & Educagdo, 2, 1990 205 que, nos debates freqiientemente agitados, partiddrios e advers4rios de novos métodos pedagégicos possam muito bem se entender com relucao a esse ponto. A realidade premente da pritica docente nfo permite essa separagio, a nfo ser comprometendo igualmente a existéncia das finalidades. De dois métodos concorrentes para finalidade' idéntica, no limite € sempre o mais facil, o mais direto, o mais atraente ou o mais excitante que prevalece. Nao se trata af de um escolha, mas de uma fei. A grande transformagio pedagdgica de 1880, que afetou as finalidades 20 menos tanto quanto os métodos, foi em parte respons4vel por esse equivoco, vinculando o termo “pedagogia” & parte mais visivel, quer dizer aos métodos novos. Em todo caso, na ¢poca, os advers4rios da “pedagogia” nao se enganam de alvo: é a evolugio dos contewdos que eles criticam, a0 menos ni ensino secundério, o qual tem a velha tradigio humanista a defender. “Se procuramos estabelecer as responsabilidades”, escveve um professor do lict Montaigne, membro do Conselho superior, “nfo nos enganaremos, atribuind uma grande parte do mal do qual sofre atualmente 0 ensino secunddrio aos tedricos da pedagogia contemporfines (,..) A profissiio de pedagogo nio praticante & cheia de perigos para o espfrito daquele que a exerce e para os infelizes destinados a servir de cobaia para suas experiéncias”.” E exorta a passar imediatamente as coisas sérias, acusando os renovadores de querer destruir os estudos cldssicos. Ultimo ponto importante na arquitetura das disciplinas: a fungio que af preepchem as provas de natureza docimolégica’. As necessidades de avaliagio Gs snes nos exames internos ou externos engendraram dois fenémenos que pesam sobre 0 desenrolar das disciplinas ensinadas. O primeiro, é a especializa- gio de certos exercicios na sua funcdo de exercicios de controle. O “ditado de ortografia” est4 entre eles, e deve sem diivida sua origem a essa fungZo, mesmo se sua utilizagio nas aulas, no século XIX e XX, exceda muito muito a esse papel. O segundo fendmeno é 0 peso considerdvel que as provas do exame final exercem por vezes sobre o desenrolar da classe e, portanto, sobre o desenvolvi- mento da disciplina, ao menos em algumas de suas formas, Inscrito no exame do certificado de estudos™, o ditado torna-se a partir de 1880, irremovivel das classes de final de estudos, e das outras, apesar das novas palavras de ordem pedagégicas que procuram privilegiar a redagiio.™ Nao que o ditado seja o melhor exercfcio de ortografia, mas porque se deve preparar bem os alunos para essa “Referente 2 docimologia, em francés docimologie (=estudo cientifico dos exames © dos concursos), provavelmente um neologismo nessa Iingua, pois o Larousse (Lexis) registra seu uso inicial como sendo 1960. Sem registro em portugués, ao menos no Aurélio (N. do B.). . “Isto €, Certificado de Estudos Primérios (CEP), exame conduzindo a um certificado efetuado ao final do curso prim4rio, nio mais existente no sistema atual (N. do E.). 206 Teoria & Educagdo, 2, 1990 prova, fundamentalmente docimoldgica. A instituigdo dos exames, com suas restrigdes espectficas, nao deixa de introduzir graves alteragdes no curso normal da prética disciplinar, e a critica dos exames nfo esperou 0 baccalauréat” para se manifestar. Os exerefcios ptiblicos, ou “exercicios literérios", que encerram © ano escolar no século XVIII, nao escaparam disso.”’ O desenvolvimento, desde 1830, das priticas de “bachotage”"* obrigou os poderes publicos a corrigir muitas vezes o regulamento para proteger as disciplinas. Permanece © fato de que as provas finalmente destinadas ao exame ou 40 concurso concentram.em tomo delas a atengio ¢ o interesse do mestre e dos alunos, influindo mesmo, no total, sobre as classes anteriores. A solidariedade de fato que se instaura entre pritica disciplinar e preparagio para o exame disfarga muito freqiientemente mutagdes profundas. A dissertagZo latina que permanece inscrita no programa do baccalauréat até 1880 € prova de exame porque é praticada: na aula de retérica, ou é 0 inverso que € verdadeiro? Impossfvel responder com certeza a essa questio. Mas, ao menos nos perfodos de declinio, imp3e-se a impressfio de que o exame, pelo peso de sua propria estrutura, freia as evolugGes que, sem ele, seriam sem divida mais répidas e mais claras, Toda disciplina deve entio contar com essa varidvel docimolégica que os respons4veis pelas decisées se esforgam por reduzir. Se se descartam os esfeitos de bachotage e de frenagem, cujo prejutzo pode ser controlado, o que caracteri- za, no fim das contas, esse corpo estranho que vem se misturar & vida intima do processo disciplinar 6 a proeminéncia de um exerc{cio no qual os desempenhos dos alunos devem poder ser apreciados seja por ordem de mérito, seja com mengées, niimeros ou letras. O que se resume 2 dizer que, a menos que se escape de qualquer avaliagio, todo ensino, por natureza qualitativo, deve resgatar em seu aparelho didético zonas quantitativas ou quantificdveis que possam fomecer escalas de medida, A hist6ria dos exames, marcada pela luta contra as prdticas de bachotage, faz aparecer um esforgo constante para reaproximar as provas de avaligao das grandes finalidades da disciplina, A disciplina escolar & ento constitufda por uma combinagio, em proporgdes varidveis, conforme o caso, de vdrios constituintes: um ensino de exposigo, 03 exercicios, as praticas de incitago e de motivacdo e um aparelho docimoldgico, os quais, em cada estado. da disciplina, funcionam evidentemente em estreita colaboracdo, do mesmo modo que cada um deles est4, & sua maneira, em ligago direta com as finalidades. “Diploma ¢ grau atribuldos aos estudantes aprovados num exame & salda de seus estudos secundérios, dando direito ao ingresso automAtico ns universidade (N. da T.). ~Preparagdo intensiva para um exame, em particular 0 baccalauréat ou uma de suas matérias, fazendo apclo sobretudo & meméria (N. da T.) Teoria & Educagao, 2, 1990 207 VIL. A aculturagio escolar dos alunos A terceira parte da hist6ria das disciplinas escolares nos faz sair do ensino propriamente dito para ir observar os seus efeitos. A assimilagao efetiva do curso, e a aculturacfo resultante constituem, de fato, uma garantia de que a palavra do professor foi entendida, ¢ de que a disciplina realmente funcionow. No caso inverso, quando a corrente nfo passa, nfo se poderia talvez falar de “disciplina”, quaisquer que sejam de resto os esforgos do professor e dos alunos, Sabe-se atualmente que aquilo que o aluno eprende nfo tem grande coisa a ver com o que o professor ensina: a psicopedagogia e a psicologia da aprendizagem se interessam de perto por essa questo.” Sabia-se isso, alids, desde Sécrates, para quem o mestre pode no méximo fazer nascer do aluno sua propria verdade, e a revolugio pedagégica de 1880, reabilitanda o que se chamava entio de “método socrdtico”, nfo ignorava esse ponto fundamental da pedagogia, que precisa, parece, ser lembrado petiodicamente, tanto mais quanto a propria evolugio das disciplinas tende a ocult4-lo. A defasagem, freqiientemente considerével, entre o “ensino” ¢ a “aprendiza- gem”, reveste-se de aspectos diversos. O aspecto sociolégico ¢ quantitativo mais visfvel € 0 fracasso escolar de uma fragZo mais ou menos expressiva da classe. Tal como observado pela hist6ria das disciplinas escolares, 0 fracasso escolar 6 deliberadamente organizado pelo sistema educacional. O paradoxo dessa formulacio quase provocativa nfio deve mascarar.a verdade profunda. A infinita diversidade dos espiritos, das faculdades, dos “dons”, das atitudes que os professores encontram diante deles no contexto escolar constitui um parametro fundamental para o estabelecimento e a fixagio das etapas de uma disciplina. Se 6 provavelmente verdadeiro que todo espfrito normalmente constitufdo pode aprender tudo o que se ensina na escola, € também exato que, no momento de fixar a norma de progressio na disciplina, a escola é constrangida, por razbes diversas, a determinar um nfvel médio de progressio ao qual no poderio se adaptar sendéo uma parte dos alunos. £ sem dtivida no ensino secundério do século XIX que o problema do fracasso escolar, que nio tinha esse nome 2 época, colocou-se nos termos, senfo os mais graves, ao menos os mais claros. O atraso media-se, alids muito menos em termos de fracasso no baccalauréat do que em termos de resisténcia ou inaptidio para a formagdo humanista. Sua amplitude n&o era menos considerfvel e era normalmente estimada em trés quartos do efetivo.” O elitismo proclamado dos professores de liceu e de alguns ministros 6 um dos aspectos mais marcantes desse ensino secundério do século XIX, que 0 opde nitidamente ao do século XX. Eo debate sobre o fracasso escolar nos liceus, embora nfo estivesse em primeiro jugar na ordem do dia, nio é menos constante ao longo de ‘todo 0 século, com numerosos professores, em particular no ensino privado, recusando-se a se resignar a priticas que eles consideravam injustas. A evolugio dos conteitdos 208 Teoria & Educacao 2 1990 disciplinares na segunda metade do século seré muito amplamente determinada pelo cuidado em expandir a uma quantidade maior de alunos os beneffcios da instrugao secundéria. Entre 1880 ¢ 1390 é que se operaré a reviravolta da hierarquia e da pedagogia oficial. “De qualquer modo, afio é & instrugdo priméria, que nfo se deve contentar com os primeiros da classe, mas 4 instrugo secundéria, que se pede, ao contrdrio, que suscite talentos nascentes para enriquecer as carreiras liberais”, escreve ainda, em 1880, um inspetor da academia num manual de grande difusio.” A quem Henri Marion responde um pouco mais tarde: “Colocar em principio, como alguém o fez, que, em toda classe, um tero dos alunos trabalha pouco ou nada, quaisquer que sejam os programas e métodos, dando a entender que a Universidade no pode seniio se sujeitar a esta Iei e lavar as mios em conseqiiéncia, € render-se verdadeiramente a tarefa demasiado fécil".” Em resposta, ¢ ensino primério do século XIX oferece uma imagem elogiiente da uta contra o elitismo. Travada muito cedo," ela serd um dos eixos da politica educacional do ministério 20 menos a partir de Victor Duruy. Os inspetores gerais da instrugo primdria sio unanimemente hostis, af compreendidos os mais conservadores dentre eles, a tudo o que possa valorizar em excesso os melhores alunos e reproduzir no contexto da aula as clivagens sociais. E gracas a eles que 0 certificado de estudos triunfard sobre o concurso departamental das esculas. A renovacio pedagdgica de 1880 seré, sobretudo nos seus aspectos disciplinares, 0 resultado dessa politica. A histéria do fracasso escolar est4 entio estreitamente ligada & hist6ria das disciplinas. Mas a diferenca entre ensino e aprendizagem nao se limita a esse aspecto quantitativo. Se o fracasso escolar 6 primeiramente um fracasso do ensino, e do professor, 0 sucesso do mesmo ensino nio € jamais a transmissio, tal qual, do saber magistra! no espfrito do aluno: é uma transformagio qualitativa que se opera a cada vez. “Nés constatamos todos os dias, escreve Antoine Prost,** que os alunos sabem de coisas que nio Ihes foram ensinadas, e que eles nio sabem de outras coisas que se atribuiu no entanto so seu aprender. O modo como os alunos constroem seu saber evidencia evolugdes complexas e mal conhecidas onde 0 ensino do professor intervém sem que ele mega exatamente como”. Cabe a histéria das disciptinas escolares encarregar-se do problema e estudar 4 natureza exata dos conhecimentos adquiridos e, de um modo mais geral, da aculturagio realizada pelo aluno no contexto escolar. Ela deve reunir ¢ tratar a totalidade dos testemunhos, diretos e indiretos, que dio conta da eficécia do ensino, e da transformacio efetiva dos alunos. Os trabalhos dos pr6prios alunos sio evidentemente a fonte primdria. O conjunto da produgio escrita realizada pelos alunos desde h& quatro séculos se eleva a cifras imensurdveis, Péde-se estimar, por exemplo, em quatrocentos milhdes o nimero de cépias que devem ter sido redigidas em 250 anos (de 1600 Teoria & Educagdo, 2, 1990 209 a 1850) apenas na classe de ret6rica.” Toda essa documentagio, afora algumas excegdes, parece ter desaparecido, e a taxa de conservacao desse imenso corpus deve aproximar-se de 0,001%. Basta dizer o particular interesse de que se revestem as raras jazidas de cdpias ou de cadernos que apresentam as garantias minimas de representatividade: pois nfo se poderia, neste caso, depositar confianga nas “boas” cépias, por vezes publicadas na imprensa, ou conservadas _nas encadernagées de optisculos, nem nos cadernos de “bons” alunos zelosamente arranjados em arrodrios ou guardados em sétios. A documentagio primdria deve entio freqiientemente ceder lugar a uma documentagio secunddria, aquela dos relatérios de inspegio ou de bancas de exame, das sinteses, dos prefacios de manuais, dos artigos de imprensa ou da literatura especializada. Com a condigiio de que elas sejam passadas no crivo de uma critica adequada, a coleta de todos os dados parciais € um indispens4vel complemento do estudo histérico das disciplinas. Deve-se, por exemplo, levar em conta o testemunho do professor Gaullyer estimando, ao redor de 1720, em 8.000 © niimero de versos que um aluno aprendia por ano," como também o de Christian Carlez que, estudando as cépias dos candidatos & substituigio dos professores jesuftas em Bretagne em 1762, constata que varios dos que foram admitidos no conseguiram compor senao dois versos latinos. Ainda mais steis sio, seguramente, os dados arranjados em séries. E 0 caso dos relatérios dos inspetores de academia da seguuda metade do século XIX, conservados nos Arquivos nacionais, ou publicados nos boletins departamentais, A partir de uma documentagio fornecida por seus inspetores primérios, eles constroem um quadro anualmente renovado do estado dos conhecimentos elementares adquiridos pelos escolares de seu departamento. A reconstituigio dos dadbs faltantes é aliés do Ambito do possivel, em certos casos. Resta alguma parte dos pacotes completos de cépias de certificado de estudos entre 1880 ¢ 1940? Talvez nos arquivos departamentais? Mas quande os temas, os dados numéricos e os resultados si0 conhecidos, 0 que parece ser freqiientemente 0 caso, deve-se poder recompor os desempenhos globais de uma mesma banca ou de um mesmo departamento. Talvez mesmo uma reconstituigao mais precisa seré poss{vel um dia se a endlise informatizada de corpus diferentes nas mesmas disciplinas em épocas diversas permitir estabelecer as constantes, as curvas de variagdo cronolégica e as extrapolacGes. estudo da aculturagiio real dos alunos dos séculos passados permitird, em primeiro lugar, terminar de uma vez por todas com um certo nimero de mitos sobre o nivel de conhecimentos ¢ de cultura que se supde eles tenham alcangado. As taxas exatas de fracasso escolar nas diferentes épocas ¢ nos diferentes tipos de estabelecimentos podem ser determinadas com wma bos aproximagao. Para os outros alunos, aqueles que tiraram proveito de sua escolaridade, resta saber igualmente o que eles aprenderam ali. Ora, de fato parece que sobre esse ponto tenha operado, de um modo constante, 210 Teoria & Educagéo, 2, 1990 uma forte tendEncia a supervalorizar o passado: nfo hé provavelmente época onde essa tendéncia nfo seja stestada. Ela se manifesta em geral, devido a dbjetivos polémicos evidentes, sob uma forma comparativa, como argumento a servigo da tese da queda do nfvel dos estudos ou dos conhecimeatos. Algumas sondagens precisas reduzem bom numero destas afirmagdes ao estado de cindidos atos de £6. “O latim”, escreve, por exemplo, Paul Soudée,"” “era para o aluno no século XIX como uma segunda lingua materna (...) da qual ele chegava 4 se servir correntemente”. Situac&o que prevalecia provavelmente sob o Antigo Regime, @ sem divida nao além do século XVII! E que dizor dessas afirmagées sucessivas ao longo do século XIX e do XX, segundo as quais nfo se sabe “mais” a ortografia? Trocando umas pelas outras, elas parecem enviar a uma idade de ouro situada num perfodo precedente, o século XVIII talvez. (2), onde é patente que « ortografia nao era conhecida © praticada sendo por uma percentagem muito escassa de franceses. Resta um problema delicado, nesse campo dos conhecimentos adquiridos. Se se admite que as finalidades impostas & escola tém por objeto nio somente instruir as criangas ¢ os adolescentes, mas também Ihes dar um cultura s6lida, pode-se questionar se os desempenhos realizados no contexto escolar, cu ao termo da escolaridade, sio representatives da cultura ulterior do individuo ou, segundo a palavra de Edouard Herriot, ele teré esquecido tudo. Naturalmente, os exercicios escolares, quer eles tratem de andlises gramaticais ou de problemas de tomeiras, nio constituem em si mesmos ¢ cultura visada; eles sio somento uma mostra juvenil de um acesso a essa cultura. Nao se poderia fazer nenhuma censura & escola pelo fato de os adultos cultivados serem, em geral, incapazes de satisfazer &s provas escolares de sua juventude: o exercicio é feito para ser esquecido. & cerlo, entretanto, que ele produziu no tempo desejado 0 efeito desejado? Conhece-se suficientemente 0 efeito “cachorro sabido,” devido ao adestramento efémero, obtido em certos contextos pedagdégicos ¢ sobretudo docimolégicos, para que nao se coloque a questiio. Ora, n&o faltam testemunhos para pOr em contradigo os desempenhos escolares de uma geragio com a cultura que depois seré a sua na idade adults, A Universidade da Restauragao e dz Monarquia de Julho forma incontestavelmente uma elite de jovens numa “cultura” latina e grega, Tornados adultos, os mesmos nAo terio em sua biblioteca sendo tradugdes.® “Quanto go latim, escreve um membro do Instituto,” se h4 duzentas pessoas em Paris e quinhentas na Franga que o Iéem para seu prazer, & dizer muito”. O que ndo significa, é bem verdade, que esse ensino tenha fracassado, mas ao menos que no se poderia deduzir, a partir da instrugiio recebida, as formas precisas da cultura definitivamente adquirida, As taxas de analfabetismo observadas na chegada ao servico militar na segunda metade do sécula XIX nao equivalem, como se poderia pensar, As taxas de abstengio escolar dos mesmos jovens oito ou dez anos antes. Multiplos testemunhos atestam que o “saber escrever”, ou o “saber ler”, é freqiientemente Teoria & Educagao, 2, 1990 211 perdido entre dez @ vinte anos porque se deixou a escola demasiado cedo ¢ porque se cessou totalmente de praticar. E entio somente a uma certa distancia que podem ser realmente e definitivamente apreciadas 2 natureza eo grau exatos de aculturagao realizados pela escola. Para nfo sermos acusados de negligentes, vamos enfim, ao cap/tulo das seqtielas diversas do processo de aculturagio, alguns efeitos perversos, que sio sem diivida observdveis nos exemplos precedentes. Numerosos docentes notaram, no século XIX & mesmo mais cedo, que o trabalho escolar sobre a gramitica, a ortografia ou os textos cldssicos criava entre os alunos um desgosto profundo e definitivo por essas matérias. O 6dio pela litoratura antiga por vezes viria daf, a tal ponto que “eles olhariam como um suplicio retornar avs autores gregos e latinos” uma vez safdos do colégio.” 0 efeito tio conhecido, e tio antigo, que alguns nfo hesitam em atribuir a essa preocupacio as enérgicas decisdes oficiais tomadas no comego do século: ter-se-iam afastado deliberadamente os autores franceses do programa das classes, por se temer “ver as obras primas de nossa literatura envolvidas numa proscrigao geral”.” Oestudo histérico da cultura escolar recebida pelos alunos constitui, na histéria das disciplinas escolares, 0 terceiro elemento do trfptico. B somente entio que se pode dar uma resposta & interrogagfio de partida: o ensino “funcionou”? As finalidades foram preenchidas? As priticas pedagégicas se mostraram eficazes? Raros so os historiadores do ensino que tém levantado 0 problema.” E no entanto, quantas construges foram arquitetadas sobre a cultura que se supe ter a escola criado entre os alunos ou, 20 inverso que ela nfo teria sido capaz de suscitar! Nao h4 uma sé guerra, uma s6 revolugao, polftica ou literdria, uma sé “crise”, intelectual ou cultural, cuja responsabilidade nfo tenha sido, num momento ou noutro, imputada & escola, Nao sem razio, sem difvida, em muitos dos casos. f & hist6ria das disciplinas escolares que cabe arbitrar a posteriori este genero de debate, no limite de seus meios, quer dizer, de sua documentacio. ne eee dk yeiit wide te a ‘patie’ Beak! VII, Disciplinas escolares e educagdo: problemas de distribuigiio Toda sociedade que dispde de um aparelho escolar determina com uma grande clareza a porcdo de educago que the confia. A instrugio religiosa é uma matéria escolar desde as origens do ensino primdrio até 1882. Nessa data, a combinagio das disciplinas ensinadas vai opor claramente uma escola “catélica” que continua a tradicfo antiga, € as escolas “publicas” que eram quase todas catélicas até entio, mas que doravante se abstém de propor este ensino aos pais. £ aos ministros do culto que incumbe entio a tarefa que precedentemente recafa nos mestres de escola. Essa “desescolarizagao” da sociedade, no sentido que Illich” deu ao termo, foi sentida como uma transformagio cultural capital. O processo inverso de “re-escolarizagio” da sociedade nfo é raro, também. Os colégios do século XVI e XVII no recebiam em princfpio senZo alunos tendo 212 Teoria & Educagdo, 2, 1990 uma instrucéo elementar compreendendo os “nidimentos”, quer dizer os principios da gramitica latina. Assiste-se pouco a pouco a criaglo das sextas e das sétimas, que dispensam as familias desses primeiros ensinos. Mas apesar de sua origem antiga, seré necessdrio esperar até 1814 para ver a classe de sexta reconhecida definitivamente como uma classe que fazia parte integral do curso secundério. Isso 6 suficiente para mostrar a que ponto os limites educativos tradicionalmente fixados no sistema escolar estio profundamente inscritos nas mentalidades e constituem, na cultura nacional, um ponto de referéncia freqiientemente julgado imutével. A lista das disciplinas suscetfveis de serem ensinadas pela escola é, também, de uma grande estabilidade. Desse ponto de vista, a centralizacio e a padroniza- fo universitdrias 2s quais o Primeiro Império deu um impulso decisivo escondem um pouco hoje a abundanica de modelos escolares que viviam ou vegetavam sob © Antigo Regime. Essa diversidade considerdvel explica a obrigago que sentiam 0s principaux” dos colégios,, os diretores de escola e mesmo os magisters de aldeia, de anunciar ao piiblico a lista exata das matérias que propunham & sua clientela. Mas todas essas matérias estavam homologadas como matérias de ensino escolar, e dispunham de uma pedagogia adaptada. Resta 0 fato de que distingdo entre as matérias de ensino no cessou de se expressar em tragos mais e mais claros no interior do sistema escolar, ¢ particularmente no nfvel secundério. As fronteiras entre francés, latim, histéria € filosofia, por exemplo, sio atualmente tracadas no somente pelos programas © horfrios, mas também pelas didéticas, pelas categorias de docentés ¢ pela grande especializagiio que receberam na universidade. Essa 6 uma situagio recente. Até 1880, a mesma licenga em letras permitia ensinar todas essas disciplinas ¢ mesmo a religido. A diferenciagao das carreiras docentes, ligada & criagio da agrégation™ em 1766, nfo seré alcancada antes do comego do nosso século. Ocorria o mesmo com os programas. Fazia-se hist6ria em Tito-Livio ¢ no Discours sur l'Histoire universelle, filosofia em Cicero ¢ em Fénelon, latim nas Maximes tirées de U'Ecriture sainte ¢ grego nos Actes des apdtres. Quanto 2 propria organizagio desses ensinos, eles nao se apresentavam na justaposigo estritamente igualitéria que sugerem hoje os quadros de distribuigio do tempo. A disciplina fundamental, ou de preferéncia a Unica, eram as humanidades cldssicas. Em tomo dos grandes autores latinos, cixo deste ensino, estavam dispostas a gramAtica, indispens4vel propedéutica que durava pelo menos trés ‘Diretores dos antigos colégios municipais (N. da T.). “Concurso que permite aos candidatos aprovados serem professores no ensino secundério ou, em direito, medicina e em farmécia, ensinarem no ensino universitério (N. da T.), Teoria & Educagdo, 2, 1990 213 anos, a histéria, apoiada sobre a cronologia ¢ sobre a geografia, a prosédia, a verificagdo, a retérica, ciéncia do verso e da prosa, assim como os exercicios condizentes, Vinham em seguida a gramética ¢ os autores gregos (no século.XIX, pelo menus) e os autores franceses, imitadores dos antigos, dos quais e leitura supunha-se ainda realgar a gléria de seus predecessores. Certamente tinha-se bastante consciéncia da existéncia de “matérias” diferentes. Mas sua especializagao devia ser um processo a longo prazo. As relagdes entre ‘o ensino da histéria e o do latim, por exemplo, atualmente nfo tem muita coisa a ver com aquilo que eram no século XVIII e ainda no século XIX, quando.as duas matérias estavam estreitamente imbricadas e quando o mesmo professor se encarregava dessa dupla tarefa, mesmo apés a criagdo da agrégation de hist6ria em 1830. O ensino das matérias ensinadas simultaneamente no mesmo estabeleci- mento constitui em cada época uma rede disciplinar que nao deixa de exercer uma influgncia mais ou menos forte sobre cada um de seus constituintes. A histéria de uma disciplina escolar no pode entio fazer abstrago da natureza das relagdes que ela mantém com as disciplinas vizinhas. As diferentes matérias que esto atualmente em vigor no ensino secundério sao, JA se viu, correntemente designadas como “disciplinas” desde a Primeira Guerra mundial, aproximadamente. Elas correspondem mais au menos ao que foi chamado neste texto de “disciplinas escolares”. No entanto nio as recobrem totalmente. As grandes finalidades educativas, que sfo as iniciadoras das disciplinas, nfo sio, em seu principio, impostas individualmente a cada mestre, a cada um segundo sua especialidade. E a instituigio escolar que elas sio atribuidas, cabe a esta reparti-las como entenda sobre seu pessoal docente. Ora, se a antiga polivaléncia dos professores do secundério se vé consideravelmente restringida desde dois séculos, restam disso, ou restaram durante muito tempo, os vestigios, caracteristicos de uta tradi¢io nacional. Todos os pafses que ensinam o latim ¢ o grego nfo associam inevitavelmente essas linguas antigas com © ensino da lingua nacional. A histéria, desembaragada da “cronologia”, nao é por toda parte ligada & geogrufia nas carreiras dos professores. O importante no estd af. Se se colocam sistematicamente face a face a primeira € a terceira parte da andlise disciplinar, o plano das finalidades e o plano da aculturagao, esté-se no direito de se questionar se esse processo fundamental do qual a escola € a pega essencial sempre encontra sua realizugdo através dos contetidos de ensino nomeadamente designados e explicitamente consignados a essas diferentes tarefas. Mais do que outros, o ensino do francés levanta este tipo de consideragdes. Tomemos um exemplo preciso: aprender a redigir, a compor, a “escrever”, no sentido amplo, Af esti incontestavelmente ums tarefa que @ sociedade impés, em algumas épocas & escola, ou a certas escolas; ¢ ao deixar © ciclo escolar, qualquer que soja a duragio, os alunos adquiriram na matéria uma competéncia, que alguns podem achar insuficiente, mas esta 6 uma outra questo. Essa competéncia foi, no essencial, adquirida no coatexto escolar. E de 214 Teoria & Educugdo, 2, 1990 fato, se & verdade que se desenvolveram no corpo social outras insténcias de aquisigao para esta aprendizagem, outras modalidades de execugdo, isso se refere essencialmente aos adultos que, no local de trabalho, nos estégios, nas formugdes especificas, nas redes associativas, sindicais ou polfticas, nos cursos de redacdo de teses de algumas universidades cientfficas, podem efetivamente se iniciar numa Prdtica que cles niio desenvolveram suficientemente na idade escolar. No que se refere & aprendizagem escolar, geralmente se considera que é a classe de francés e, no secundério, 0 professor de franc8s, que sio responséveis Por esse aculturagio. & se dar pouco valor ao papel que podem desempenhar, na matéria, todos os outros ensinos dispensados, Pois todos, mais ou menos, contribuem, 2 sua maneira, para fixar no espirito dos alunos os elementos constitutivos desta competéncia. E alguns dentre eles tém todas as chances de ter melhor éxito nisto do que o ensino de frances propriamente dito. O gosto pela exatidéo e a preciso do vocabulério é freqitentemeate nas disciplinas cientfficas que se contrai. Os habitos de clareza e de recusa as ambigiidades na formulagio de enunciados cabem de preferéncia a0 Professor de matemética. Que se pense tanibém no papel que péde desempentiar, nos séculos XVIII © XIX, a versio latina como principal exerefeio escrito de francs: hoje em dia € a versio de Ifngua viva que a substitui, Juntemos todos os exercicios escritos de elocugio e de exposigao nas outras disciplinas, da exposigio & interrogagio escrita ou 20 dever de matemstica,™ A apreadizagem da escrita € muito amplamente repartida sobre 0 conjunto dos ensinos, que trabalham, discretamente, 6 verdade, mas com uma eficécia provavelmente considerivel, para a forniagao “retérica” do aluno. Em tomo de uma mesma finalidade colaboram aqui os diferentes ensinos. A mesmna “disciplina”, no sentido forte do termo, repartiu-se entre a quase totalidade das “matérias”, ou daquilo que se convencionou chamar atualmente as “disciplinas”, no sentido fraco. Essas mantém entio entre elas uma “solidariedade didética” cuja importancia deve tanto menos ser negligenciada quanto estes fenémenos arriscam a passar desapercebidos. Naturalmente, o francés goza na circunstincia presente de uma posigio particular, eas mesmas conclusées seriam mais delicadas de estabelecer pars as disciplinas mais especializadas. Mas além de a histéris, 8 geografia, a filosofia (Por antecipacio), as linguas antigas e as Nnguas vives poderei se prestar a um apoio miftuo, os processos interdisciplina- tes foram muito pouco esclarecidos Para que nfo se reserve a essa rubrica “transversal” um lugar na hist6ria das disciplinas. A nogio de solidariedade didatica €, de fato, capaz de sozinha explicar o feadmeno, importante na cultura antiga, de geragdes inteiras de alunos formados unicamente no latim e de onde safram nossos grandes escritores cldssicos. O corolério da solidariedade diditica é a ambigilidade de algumas rubricas, da qual se pode questionar se, por tris de uma denominagio wnica, elas néo escondem duas ou trés disciplinas distintas. Sobre este ponto, a evolugao da terminologia é por vezes esclarecedora, Nos Programas oficiais de instrugio Teoria & Educagto, 2, 1990 215 priméria do século XIX, os “elementos da I{ngua francesa”, que datam de 1833, quer dizer a ortografia e a gramitica, cedem lugar em 1882 & “lingua francesa”, cuja definiggo acrescenta, A precedente leitura e explicagio dos textos, a recitagHio, a redagio, Muito significativamente, nos dez ou quinze anos que precedem esta data, cada vez que um inspetor quis tomar uma iniciativa oficial, mais local, para promover em sua circunscrigao o ensino da redacao, ele precisou inserevé-la na rubrica “gramética”, para nfo se colocar em contradi¢io com a fegulamentagio oficial.™ Desligando-se, em 1882, da tutela “gramatical”, a redacho, ¢ toda a nebulosa pedagogia que a rodeia, parece indicar claramente que ela constitui doravante mais uma disciplina inteiramente & parte, respondendo a ums finalidade totalmente nova. Recoloquemos agora a escola na sociedade, e as aprendizagens escolares no conjunto das aprendizagens da crianga e do adolescente. O historiador & entio confrontado com um fenémeno capital: a anexacio a0 patrim6nio escolar de novas disciplinas no curso da histéria moderna e contempordnea. E ele nao pode éludir um problema teérico: a escola pode ensinar tudo? A natureza “escolar”, ou “disciplinar”, do tratamento ao qual ela submete as aprendizagens lhe impede, por princfpio, de pretender jamais anexaz certos domfnios? Todas as aprendiza- gens skio, ou niio, “disciplinariziveis"? B Le Play que colocou o problema nos termos mais claros." Como observador perspicaz dos equilforios que asseguram a estabilidade do corpo social ¢ dos mecanismos que registram a aco de seus diversos componentes, ele se questiona sobre a fungiio respectiva da famflia, da sociedade e da escola na educagiio, e ele sa dedica a pdr em evidéncia os limites intrinsecos de todo ensino escolar. Naturalmente sua obra est4 marcada com o selo de um caracterizado conservado- rlamo; ele considera que a escola deve antes de tudo exercitar a meméria, que ela tom pouca agio sobre a inteligéncia, que cla nfo pode agir sobre os sentimentos, © conclui pela necessidade de restituir o ensino a0 clero e pela critica da obrigatoriedade escolar e da gratuidade. Mas sua defini¢ao do ensino escolar nio 4, apesar das aparéncias, um trufsmo: “O campo do ensino é determinado entre todos 08 povos pelas mesmas condizées: ele compreende os conhecimentos que podem ser inculcados pelas ligSes do mestie mais eficazmente do que pela vida". Ele também est convencido de que “z natureza dos homens e das coisas #6 opord sempre 8 que 2 juventude adquira nas escolas a verdadeira ciéncia da vida", B, diante de todos aqueles que desejam estender 0 campo de intervengio da escola, ele conclui que “nio haveria quase nenhuma utilidade, mesmo que essa empresa fosse praticdvel, em estender bruscamente o campo do ensino muito além dos limites indicados pela tradigao geral”. f destino desses pensamentos nfo conformistas cair no esquecimento por menos que a seqiiéncia imediata da hist6ria faca aparecer suas lacunas ou seus vicios: e & bem isso que se passou com Le Play, vitima, se se pode dizer, do triunfo da renovagdo pedagdgica de 1880. No h& por que no reter, entretanto, a parte de verdade que sua conclus&io propde & 216 Teoria & Educagde, 2, 1990 nio ver o numero de confirmagdes que ela péde receber na histéria de nosso ensino. A acuidade do problema posto pelas novas disciplinas amplicu-se consideravel- mente na segunda metade do século XX. Para no reter sendo os fatos que alimentaram a crénica ao longo dos quinze witimos anos, estd-se seguro de que se possa ensinar na escola e no colégio 2 leitura dos jomais,™ a lingiifstica estrutural, a matemttica moderna, a hist6ria dos Annales ou a informética? Muito mais grave ainda, ¢ incontestavelmente mais antigo, é o problema: a escola pode ensinara lingua nacional nas regides onde se fala o patois ¢ as Ifnguas regionais? ‘A escola poderia ensinar 0 francés se os aiunos j4 nfo o sabem? Questio paradoxal, no entanto crucial, pela qual nem os didéticos, até esses ultimos tempos, nem os historiadores da lingua, se mostraram jamais muito interessados. Considera-se geralmente, seja para felicité-la, seja para criticé-la, que a escola priméria foi o agente essencial de difusio da Iingua nacional no interior do hexdgono. Mas abundam testemunhos sobre 0 fracasso do ensino do francés na Bretagne, em Flandre, na Alsace ou no pafs basco, durante todo 0 século XIX. “Pedia-se ao ensino alguma coisa que ele no podia e nfo pode jamais oferecer; nio se muda a lingua de uma populicio pela escola, como acreditavam seriamente os dirigentes de entio”, comenta Paul Lévy.” Incapaz de quebrar a resist8ncia dos padres que exigiam o ensino do catecismo na Ifngua local, o inspetor da academia Anthoine escrevia, em 17 de janeiro de 1874, ao préfet do Norte: “para chegar a triunfar sobre o flamengo, eu conto acima de tudo com o servico militar universalizado: voltar-se-ia do regimento sabendo um pouco de francés, e compreendendo que 6 bom sabé-lo”." E na intengdo dos alunos dessas provincias que o inspetor Irenée Cerré regulamentard, alguns anos mais tarde, 0 “método maternal”. © mesmo probiema coloca-se aliés para algumas “disciplinas” aparentemente comprovadas ¢ homologadas. E 0 caso da hist6ria, que nao soube encontrar 20 Jongo da evolugZo pedugégica um estatuto disciplinar sélido, ou melhor, encontrou vérios, 0 que ver a dar no mesmo, Seguindo Cournot," Langlois e Seignobos denunciaram, no final do século XIX, a falta de tradigdo pedagdgica nesse ensino.'® A “crise” atual do ensino de hist6ria, sucedendo a outras crises, parece confirmar essas andlises antigas: 0 desequilfbrio interno da disciplina, favorecendo determinade componente us custas de um outro, nao permite a ela produzir os éfeitos buscados de modo que ela se beneficie, por parte dos alunos, de uma iotivagdo suficiente, seja pelo fato das circunstancias histéricas, seja pelo fato das “qualidades pedagdgicas” do mestre. Multiplicar-se-iam facilmente os exemplos de ensinos que tiveram tentativas abortadas, fracassos, ensinos que nZo “pegaram”, enquanto que outros, apesar do cardter um pouco voluntarista da decisio inicial, souberam encontrar, a0 lado das disciplinas experimentadas, seu lugar no sistema de ensino. Os estudos precisos sobre uns e outros deveriam permitir avaliar as condigdes exatas de Teoria & Educacdo, 2, 1990 217 possibilidade de intervengio da escola num campo pedagégico ou diditico novo, Veja-se 0 ensino do sistema legal de pesos e medidas, posto no programa em 1833. Apoiado numa lei que impée este sistema & sociedade francesa a partir de 1840, apoiado nas escolas normais, que comecam a se propagar, nas conferéacias pedagégicas, que iniciam os mestres nesta nova ciéncia, ele se instala firmemente nos exercfcios de célculo, e daf ndo saird mais: € um sucesso. Veja-se, ao contrério, o ensino do “anti-alcoolismo”, lancado também muito deliberadamente pelo ministério nos wltimos anos do século para tentar conter os estragos do alcool em que as estatfsticas colocavam a Franca em primeiro lugar, A determinacao do ministro nZo coloca nenhuma diivida: “O ensino anti-alcodlico no deve ser considerado como um acessério. Desejo que ele tome nos nossos programas um lugar oficial do mesmo modo que a gramitica ou a aritmética, Minha intengio 6 a de colocar a aprovagZo desse ensino nos exames que concluem nossos diferentes cursos de estudos primérios ¢ secundérios”.!* Os Programas de vdrias disciplinas sio modificados para integrar esse novo contetido. Mas os Iébis do Alcool serio mais fortes: é, rapidamente, um fracasso. Permanece um ultimo fenémeno que afeia profundamente o deseavolvimento, © curso, ¢ mesmo a existéncia das disciplinas escolares, e que no foi suficiente- mente sublinhado até aqui. Quando uma disciplina, que niio era dispensada até entéo, se instala solidamente na instituigio, quando ela produziu seus efeitos sobre uma geragfo inteira de alunos, Por vinte ou trinta anos ao menos, ela é forgosamente recolocada em questo por seu Pr6prio sucesso. Sua existéncia continuada nfo € automética, como se poderia ser tentado a crer. Pois ao término desse perfodo probatério, ela se dirige a partir de eutio ds criangas ou aos adolescentes cujos pais e o meio familiar receberam uma aculturagio que fazia falta totalmente ts familias dos alunos de trinta anos antes. Uma parte, a0 menos da disciplina, est, entrementes, integrada as aprendizagens familiares ¢ sociais, Os alunos beneficiam-se entio de uma “pré-aculturagio”, ou de uma “peri- aculturagdo”, que enriquece um pouco mais a bagagem que levam consigo para a escols, O ensino é, pelo menos, facilitado; as etapas so transpostas com mais vivacidade; os bloqueios de antigamente desaparecem, E a disciplina deve mudar seus métodos. Por vezes mesmo, ela desaparece dos programas, e cede lugar a outrus urgéncias, nao tendo sido necessfria senSo uma rodada para modificar a cultura da sociedade global, E 0 caso do ensino dos pesos e medidas, Ele é estipulado na lei Guizot de 1833, no estatuto das escolas de 1834; estf, em 1850, entre as cinco disciplinas fundamentais do ensino primdrio da-lei Falloux. Desaparece, com Jules Ferry, das grandes linhas do programa, que nic o mencionz mais a nio ser no interior de cada curso, na rubrica “célculo aritinético”. 6 que, nessa data, a metrologia revoluciondria tinha vencido a partida, ¢ ela nfo se destaca mais nos planos de estudo senio a titulo de aplicagao, Os efeitos da penetragdo das disciplinas escolares no interior do corpo social 218 Teoria & Educagdo, 2, 1990 nem sempre sio assim tao visfveis. A escola continuou a ensinar a leitura mesmo quando todos os pais jf sabiam ler. Mas nio hd mais muito em comum entre a alfabetizagio de uma crianga proveniente de um meio e de uma sociedade analfabetos e a aprendizagem da leitura nas nossas sociedades modernas."™ A cultura da sociedade pesa completamente sobre as disciplinas ensinadas, a partir das primeiras aprendizagens, EB, de resto com igual peso, toda disciplina deve, por assim dizer, rever sua cdpia ao cabo de trinta ou cingiienta anos de exercfcio, A didética nova, que assume entio a substituiggo, cessa de ser confrontada com as rudezas do engajamento pioneiro dos comegos, Nio € raro que essa mutago disciplinar seja entio imputada & influgncia, a0 pensamento ¢ & a¢io de determinado grande nome da ciéncia, da psicologia ou da pedagogia. O estudo preciso dos fendmenos inerentes ao sistema educacional © a cronologia exata da disciplina, ao contrério, freqientemente pocm em evidéncia o papel desempenhado pelo estrito mecanismo da cultura escolar ¢ da cultura da sociedade, Resta estabelecer as responsabilidades exatas de uns ¢ Outros, sem aumentar excessivamente © papel das idéias pedagégicas, como se tomou habito de longa data, Conclusiio A hist6ria das disciplinas escolares, colocando os contetdos de ensino no centro de suas. preocupagGes, renova as problemiticas tradicionais. Se é verdade quea sociedad impée & escola suas finalidades, estando a cargo dessa ultima buscar naquela apoio para criar suas préprias disciplinas, hd toda razlo em se pensar que € a0 redor dessas finalidades que se elaboram as politicas educacionais, os Programas ¢ os planos de estudo, e que se realizam a construgdo e a transforma- gio histéricas da escola. : Mesmo alguns grandes fenSmenos de ordem sécio-cultural, como a freqiiéncia sazonal & escola a0 longo do século: XIX, podem ser explicados pela evolugio das disciplinas escolares, E no entanto, 0 que seria mais sdlido, eparentemente, do que a explicacio tradicional baseada no cariter cfclico dos trabalhos do campo, da criagio dos animais, no aumento da necessidade de mio-de-obra no fim do inverno, e na ajuda que os pais encontram entio em seus filhos e filhas de idade escolar? Estimavse que é Jules Ferry quem teria posto fini a estes hdbitos inveterados, decretando autoritariamente a obrigatoriedade escolar. Uma outra interpretagio € possfvel, a qual tem & vantagem de nio repousar exclusivamente no medo polfcia, Ela & sugerida, desde o Segundo Império, por toda a ala partiddria da instrucio priméria que procura lutar contra a queda sazonal da freqiiéncia, e encher as escolas tanto no verio quanto no inverno, So as crianges deixam a escola a partir da chegada dos dias bonitos, é porque elas no aprendem nada ali, € porque elas ali perdem seu tempo, Se os pais as eaviam durante os meses ociosos para recolher alguns res{duos de instrugio nfo & sento Teoria & Educagdo, 2, 1990 219 porque elas nfo tém nada de melhor a fazer nesse momento. Os bons instituteurs sabem cuidar das criangas até o vero, pois os pais esto entZo convencidos da utilidade desse pequeno sacriffcio.'* Duas explicagdes se opSem entGo, Uma baseada no estado dos campos e da sociedade rural. A outra nos contetidos da instrugiio no desenvolvimento das disciplinas escolares, Hi boas razBes para se pensar que as agitagdes pedagégicas ligadas a0 desenvoivimento da escola republicana jogam af um delicado papel determinante. E 0 verdadeiro mérito de Jules Ferry é sem divida ter compreendi- do que a transformacao das disciplinas escolares era uma condigio indispensdvel para a aplicacio da lei da obrigatoriedade, A historiografia do ensino deu crédito & idéia de que « disciplina é a mesma coisa que essa mensagem que um adulto transmite As criangas, a disciplina nao constituindo senio a culminagZo de um longo processo que acabou por colocar criangas e disciplinas frente A frente. A histéria das disciplinas escolares nio a confirma, Ela mostra, por exemplo, que a disciptina é, por sua evolugao, um dos elementos motores da escolarizagio, € que sé encontra sua marca em todos os niveis e em todas as rubricas da histéria tradicional do ensino, desde a histéria das construgGes escolares até a das polfticas educacionais ou dos corpos docentes. As disciplinas escolares intervém igualmente na histéria cultural da sociedade. Seu aspecto funcional é o de preparar a aculturago dos alunos em conformidade com certas finalidades: é isso que explica sua génese e constitui sua razio social. Mas se se as consideram em si mesmas, tornam-se entidades culturais como outras, que transpSem os muros da escola, penetram na sociedade, 6 se inscrevem entio na dinamica de uma outra natureza. No momento, é a este segundo aspecto que é necess4rio tomar em consideragio. Que imagem, por exemplo, os colégios do Antigo Regime deram a seus alunos da cultura e da literatura latinas? Sabe-se que, nesse campo, a religido, os bons costumes, as conveniéncias ¢ as exigéncias da retérica combinaram seus efeitos para selecionar os autores ou os textos acima de qualquer suspeita. A obra mestra que ilustra perfeitamente essa politica educacional é a outrora famosa Selectae de Heuzet,!” que deveu & sua perfeicao ter sido utilizada durante dois séculos no ensino secundério, A cultura latina desses colégios 6 a Roma pag anunciando o ¢ristianismo e, na impossibilidade de antecipar 2 santa Trindade, praticando j4 as grandes virtudes enaltecidas pelo Cristo. Essa teoria, provavelmente jamais ensinada explicitamente, mas presente em todos os instantes da vida escolar e nas entrelinhas dos textos estudados, tomou-se evidentemente como sendo a verdade sobre a Roma antiga ¢ tomou-se parte integrante da cultura cldssica, Eis aqui uma construggo puramente escolar, totalmente artificial, ¢ sabiamente colocada a servigo da religifio e da moral, que terminou por se impor a0 conjunto das pessoas cultivadas. E contra esse artefato que alguns grandes pensadores ou historiadores constroem sua obra. NZo se pode compreender o sentido profundo e a importincia histérica das Considérations de 220 Teoria & Educagdo, 2, 1990 Montesquieu’ ou, no século seguinte, da Cité antique de Fustel de Coulanges, se no se os recoloca na ambiéncia cultural na qual apareceram. Seria posstvel citar numerosos outros exemplos da pressiio que a disciplina exerce sobre a cultura de seu tempo. Eles vio desde o simples conceito criado pelas necessidades de uma causa pedagdgica pouco confessével até a “doutrina” global que extrui sua forga de sua situagéo de monopélio. A gramatica latina do Antigo Regime teve necessidade durante dois séculos da nogo de partfcula: ela conseguiu até mesmo coloc4-la nas obras mais respeitaveis, até que uma andlise mais rigorosa fizesse justica a essa mistificagZo. A gramitica escolar das funcdes, surgida na segunda metade do século XIX, impés-se por muito tempo, entre a gramdtica geral, carente de herdeiros, e os primeiros estruturalistas, como a tinica teoria gramatical existente. A filosofia cousinienne, arranjada para uso dos colégios, conseguiu esterilizar emplamente a reflexdo filos6fica na Franca, retardar a penetracio do kantismo, e fazer passar por uma concep¢ao unitéria do mundo dos valores uma “doutriria” que se intitulava “eclética”. Os exercfcios tradicionats do ensino escolar, se nio se prestam 2 observagdes estritamente idénticas, nao deixam de influir consideravelmente sobre certas praticas culturais. Somos tentados a reencontrar em certos passatempos muito apreciados sobre as palavras e as letras as seqiielas de exercicios escolares caros ao ensino francés: mas nfo nos manifestaremos sobre isto na auséncia de sélidos estudos comparativos. B provavel que os hébitos retricos da dissertagfio em trés partes tenham marcado duravelmente a prosa francesa. E quase certo que a aprendizagem universitéria ou escolar da lingua escrita, desde os manuais de versio do Primeiro Império até As priticas da redagio e da dissertasio literéria surgidas sob a Terceira Republica, teaham deixado sobre o uso escrito do francés e sobre a prépria lingua uma marca durfvel, talvez mesmo indelével. Quando se reencontram nas cartas dos soldados da Primeira Guerra mundial os clichés que a redacao da escola priméria instalou e ensinou como elegancias de estilo,!” tem- se a medida da influéncia que os sub-produtos da escola exercem sobre as praticas sociais e sobre a propria lingua, Resta um ultimo ponto, cuja importincia, salvo algumas exceges,"° jamais preocupou os historiadores da literatura: a interpenetracao entre a cultura escolar ea atividade literfria. Por que Esther ¢ Athalie sio as Mnicas obras dramAticas que permancceram constantemente no programa das classes durante todo o século XIX? E por que sio de Racine, ou por que foram destinadas a uma exploragéo escolar? & por acaso que a primeira grande epopéia francesa, la Henriade, composta por um antigo aluno dos Jesuftas para rivalizar com Virgilio, entrou desde 0 século XVIII nos programas escolares,'"' e fez, nos colégios, o essencial de sua carreira literfria, até 1835? Esta obra nfo remonta, antes, & histéria do ensino, mais do que & histéria da literatura?!" B as circunstincias de sua génese ¢ & sua organizagio interna que as disciplinas escolares devem o papel, subestimado, mas considerdvel, que elas desempenham Teoria & Educagdo, 2, 1990 221 na histéria do ensino e na histéria da cultura. Fruto de um didlogo secular entre 0s mestres € os alunos, elas constituem Por assim dizer 0 cédigo que duas geragées, lentamente, minuciosamente, elaboraram em Conjunto para permitir a uma delas transmitir A outra uma cultura determinada, A importancia dessa criacdo cultural é proporcional & aposta feita: nfo se trata nada menos do que da Perenizacao da sociedade. As disciplinas sio 0 prego que a sociedade deve pagar 2 sua cultura para poder transmiti-la no contexto da escola ou do colégio. Notas 1. Clément Facueci: L'Humanisme dans Venseignement secondaire en France ao XIX" sidcle, Paris, Toulouse, 1939, 2. J.B. Piobewta: Le Baccalauréat. Paris, 1937, 3. “Conjunto especifico de conhecimentos que tem suas caracteristicas préprias, sobre 0 Plano do vasino, da formacdo, dos mecunismos, dos métodos e das matérias.” Guy Palnade: Interdisciplinarité et idéologie, Paris, Anthropos, 1977, p. 22, 4. “A disciplina é uma unidade metodol6gica: ela é a ‘regra’ (isciplina) comum a um Conjunto de matérias reagrupadas para fins de ensino (discere)." J.-P, Resweber: La Méthode interdisciplinaire. Paris, P.U.P., 1982, p. 46. 5. Para Ivor Goodson, por exemplo, os “subjects” “are not monolithic entities, but shifting amalgamations of sub-groups and traditions.” School subjects and curriculwn change. Case studies in curriculum history. Londres, Croom Helm, 1983,p.3, 6. B ainda o Unico sentido dado & “disciplina escolar” no Nouveau dictionnaire de pédagogie et d'instruction primaire, publicado Por Ferdinand Buisson em 1911. Bo de Foucault, em Surveillir et punir, 7, Circular de 24 de margo de 1884, 8. Francisque Bouillicr: Souvenirs d'un vieil universitaire, Orléans, 1897, p. 38, 9. Deereto de 31 de maio de 1902, 10, Por exemplo, o estatuto de 1821 estipula: “Espera-se Que todos os alunos sigam todas % aries do ensino de suas respectivas classes”. Decreto de 4 de setembro de 1821. 11. Circular de 1 de julho de 1839. Ci. também P. Lorain: Tableau de Vinstruction primaire en France. Paris, 1837, p. 115: “A escrita, nas escolas em que ela existe, Ecralmente nio € s freuldade de ensino mais negligenciada”. 12, Circular de 20 de feverciro de 1895. 13. CL. ainde Trésor de ta langue francaise, verbete “disciplina”. 14. Por oposigio & doctrina, “a instrucéo relativamente Aquele que a dé". Gardin- Dumesnil: Synonymes latins, 1777; eitado da 49 edi 815, 15. Cf. Claude Baduel, “Disciplinae instiuendae orationis”, “as disciplinas do ensino do discurso,a gramética, w Jisléhica, a retdrica” (De officio et rmunere eorum gui juventutem erudiendam suscipiuns, Lugduni, Gryphium, 1544). Cf, igualmente o tratado De disciplinis de Vives, 16. Disciplin, ov Disziplin, “Lehrzweig, Wissenschaft”, Weigand: Dewisches Worterbuch, dite Aufl., Giessen 1881. 17. CE., por exempo, o abade J. Verniolles: Essai sur la traduction considérée comme le Principal exercice des classes supérieures. Paris, 1856, P. 24. Raoul Frary a denunciaré 222 Teoria & Educagao, 2, 1990 com pertinéncia: “E porque 0 coroamento dos estudos latinos falta a dezenove vigésimos dos alunos que se imaginou, alids muito tardiamente, essa teoria da gindstica intelectual” La Question du latin. Paris, 4 ed., 1887, p. 117. 18, Questions sculaires, A propos du livre de M. Bréal et de la circulaire di: 27 septembre 1872, Paris, 1873, p. 6. 19, L ‘Education et Vinsiruction considérées dans leurs rapports avec le bien-étre social et le perfectionnement de Vesprit humain. Paris, 1885, p. 300. 20. “Os cursos especiais de histéria tem 0 grave inconvenientc de se prestar mal & determinagao de deveres ou de tarefas, que sio o fundo da disciplina escolar © o verdadciro modo de formar os espiritos”, Des institutions d’instruction publique en France. Paris, 1864, p. 82. Cf. também Considévations sur la marche des idées. 1872, ‘4, p. 172, 21. Cf. Etudes au jour le jour sur Uéducation nationale. Paris, 1879, p.99. 22. B além disso secundéria, Por exemplo, em Gabriel Compayré: “As humanidades constituirdo sempre uma excelente disciplina, apropriada 4s mil maravilhas ts faculdades da crianga”. Eudes sur lenseignement et sur l'éducation, Paris, 1891, p. 169, 23. Carta aos peticiondrios thes solicitando, em nome dos interesses do francs, reexaminar a reforma de 1902. Bulletin administratif, 1911, (89, pp. 640-644, Cf, também Paul Van Tieghem: “Legatério universal das antigas disciplinas fo latim, a gramitica, etc.] abolidas, diminuidas ou transformadas, ele {0 francés] deve representar- nos 0 equivalente de tudo 0 que s¢ sacrificou para enriquecé-lo”. “E isso que & a classe de francés”, Revue univesitaire, 1909, t.1, p. 312. 24."No momento em que nko h& candidatos numa disciplina, hf lugar, contudo, para evitar toda incerteza por ocasigo do controle das tarefas, para estabelecer um relatério 2plicando a mengio NULO.” Circular sobre 0 concurso geral, 17 de abril de 1929, 25. Os LLR.E.M, parecem ter desenipenhado um papel pioneiro neste ponto, como em outros. 26. Os quais, pensando bem, rementam 2 mais alta antiguidade. 21. Circular sobre 0 estudo da gramética nas escolas, 7 de outubro de 1866. (Sou eu que sublinho,) 28. Yves Chevallard: La Transposition didactique. Du savoir savant au savoir enselgnt, Grenoble, La Pensée sauvage, 1985, A nogio dc “transposicéo diddtica” foi introduzida por Michel Verret (Le Temps des études, Atclict de Reproduction des thtses de Lille, 1975, p. 140). . 29. Cf. seu Histoire de la langue francaise des origines 4 nos jours, surgido cm Colin & partir de 1905 (23 volumes). 30. L'lufluence des littératures antiques sur la litérature francaise moderne. Etat des travaux, New Haven, Yale University Press, 1941, p. 9. Seria fundamental saber, acrescenta cle, “como se operou, ¢ depois persistiu, essa escolha que hd muito tempo {ez de Xenofonte ou de Isécrates 0 modelo da prosa grega (e daf ume influéncia podeross sobre a prosa francesa) ou de Cicero 0 ideal de todos os professores de tradugio latina. Pois 2 acio considerdvel exercida sobre a prosa francesa (e estrangeira) pela lellura assidua do latim ¢ do grego nio foi jamais suficientemente determinada”. Ibid., p. 18, 31. Revue d histoire des sciences et de leurs applications, 1954, t. VII, p. 6. 32. “Se € verdade que toda histéria literéria séria deveria apoiar-se sobre uma hist6ria do ensino, a histéria da literatura ndo aneagada, 20 menos na época modems e contempurh- Teoria & Educagdo, 2, 1990 223 naa, do estar desprovida de matéria: programas ¢ instrugdes oficiais, assuntos de exame 8 de #0nournos, livretos de distribuicao dos prémios, cursos pUblicos ou cadernos de notas, Vslamunhos individuais sobre o ensino recebido ou dado, ete.” “La littérature francaise dy XVIII sitcle dans l'enseignement secondaire tn France au XIX* tidcle: te manuel de Noll & La Place, 1804-1862", Transactions of the fourth international Congress of the Eakightenments, nox Studies on Voliaire and the eighteenth century, Bd. por Th. Bettrmann, Oxford, 1976. 93, La France auc XVIP et XVIIF sidcles. Paris, P.U.F., Nouvelle Clio, 1967, pp. 280- a, 44, Introduction & histoire des faits éducatifs, Paris, P.U.P., 1980, p. 132. 35, “Les Confessions dans les manuels scolaires de 1890 & nos jours” in: Oeuvres ef eritiqutes, WM, 1, Lecture‘des Confessions de J.J, Rousseau, 1978. 36, Dietlonnaire des synonymes de la langue francaise. Paris, 2 ed., 8.v. écolier, 37, Mleve (aluno): “Aquele que recebe a instrugdo num liceu, num colégio, num internato, fuina escola especial, como a Escola politécnica, a Escola normal, etc.”. Dictionnaire de ba langue francaise, 38, Bulletin administratif, 1851, p. 368. 439, Cf., para o sccundério, Viviane Isambert-Jamati: Crises de la societé, crises de Venselgnement. Paris, P.U.F., 1970. 40, Conférences pédagogiques de Paris en 1880, Rapports et procés-verbawx. Paris, 1880, p. 265, 41. Monticur de Vinstruction primaire du département de UEure, 1875, p. 13. 42, Cf., sobre este ponto, Pierre Bourdieu, “Systtmes d’enscignement et systtmes de penndo”, Revue internationale des sciences sociales, XIX, 1967, pp. 367-388. Cf., por exemplo, V. ¢ G. de Landsheere, Définir les objectifs de l'éducation, Paris, P.ULF., 1975; Antoine Léon, op.cit., cap. V, Les objectifs de l'enseignement. 44, Enoontrar-se-4 um exemplo adiante, p. 216 . 45, Cf. adiante, p.218. 46, “Les finalités de I’'enseignement primaire de 1770 & 1900” in: Actes du 95° Congres nallonal des Sociéiés savantes, Reims. 1970, p. 34. 41. Cf., por exemplo, circular de 20 de agosto de 1857, relativa & direcio pedagégica das eacolas primérias (Circulaire et instructions, .5, pp. 149-153). 48. Cf, os destaques de Edmond Goblot, em La Barridre et le niveau (1925), Paris, Montfort, nova ed., 1984, pp.81-82. 49. Au relages hist6ricas que se tramam entre as finalidades ¢ os ensinos constituem um campo de pesquisas relativamente freqientado, com o desenvolvimento do marxismo na Universidade francesa desde o fim da Segunda Guerra mundial, Dedica-se a analisar 0 papel educacional da escola no interior de uma sociedade de classes, ¢ a servico da classe dominante, Consagrada reproduco das relagdes sociais, a escola ve-se essencialmente ‘encarregada de inculcar uma “idcologia” suscetivel de perenizé-las ou de reforgé-las. Pede-te entio 20 historiador pare “compreender as ideologigs em ago num sistema sducacional” (Georges Snyders: La Pédagogie en France aux XVII et XVII sidcles. Paris, P.U.F., 1965, p. 2). Uma variante mais recente da mesma orientagio, inspirando-se nas “citncias da linguagem”, dedica-se a auscultar 0 “discurso” escolar, o dos manuais em particular, Supde-se que a andlise de contetido, ou de discurso, deve revelar as formas cacolares da ideologia (Cf. Dominique Mainguencay: Les Livres d 'école de la République, 224 : Teoria & Educagao, 2, 1990 1870-1914, discours et idéologie. Paris, le Sycomore, 1979). Scus resultados so, em geral, sem surpresa, Ela mostra facilmente que o sistema educacional no € protegido contra as crengas, os preconceitos, os erros, as concepgics do mundo em que se banha a sociedadeambiente. Fazendo isso, ela passe & boa distincia dos fenmenos propriamente “educativos” que resultam da execucio das outras finalidades. igo de ensinar por G. de Landsheere: Ensinar € conduzir voluntariamente © aluno em diregio a0 conhecimento, de modo directo, impondo-o a ele, ou indireto, fazendo-o descobri-lo” in: Giles Dussault, Marcel Leclere, Jean Brunelle, Claire Turcotte: LAnalyse de l'enseignement. Monteéal, Presses de l'Université de Québec, 1973, preficio. Si. L'Instruction primaire a Paris et dans le département de la Seine en 1875. Paris, 1877, p.102. 52. Cf. Alexander Bain: La Science de l'éducation. Paris, 1879, p.172; Gabriel Compayré: Psychologie appliqué a l'éducation. Paris, Delaplane, s.4., 4 ed., t. Il, p.124. 53. Cf., por exemplo, a importincia que tiveram, nos colégios, certas obras redigidas Pelos preceptores para seus alunos, como os manuais do abade Fleury, o Discours sur Vhistoire universelle, 0 Télémaque, os Dialogues des morts ou as {abulas de Fénclon. 54, *Nés contamos ao principe de viva voz tudo o que sua meméria é suscetivel de reter: depois pedimo-lhe que repita; em seguida cle redige uma parte em francés, ¢ a traduz em latim: isto & a matéria de um tema.” (Lettre & Tanocent XII, em latim, Oeuvres complates, 1863, XI, p.7). 55. Cf. Henri Marion: “No liceu, o que quer que seja 0 que se ensina, é necessério faire la classe, B necessério fazé-la mesmo nas classes cm que se tem de faire un cours. Ea forma por exceléncia do ensino secundério”. L'Education dans l'Université. Paris, 1892. 56. Circular de 14 de agosto de 1869 (Bulletin de U'instruction primaire de la Seine, 1869, p.309), em que ele apresenta um balango do primeiro ano de aplicagio de sua reforma. 57. Os inventérios da situaco das escolas primfrias da segunda metade do século XIX apontam mestres de escola tendo passado dos 80 anos. O instituteur Néra, que dirige uma pequena escola de Venddme em 1973, tem 83 anos e 51 anos de servigo: “Velho bom homem cujas forgas estio no fim”, comenta o inspetor primério (Arquivos nacionais, F'7 10502). 58. Por exemplo, J.-J. Weiss: “L’éducation classique et les exercices scolaires, Le discourn”, Revue des dew: mondes, 15 de setembro de 1873, p.394: “Quanto a vocago, quanto & arte de ensinar, quanto As matérias de ensino, o ponto culminante foi atingido a0 redor de 1840, Em nenhuma parte no mundo ¢ivilizady, se distribuia & juventude um ensino mais completo ¢ mais harménico*. 59, Adolphe Garnier: Traité des facultés de lame. Paris, 1852, t. 11, p.490. 60. A subdivisio dos ensinos primérios em “elementar” € “superior” data da lei Guizot (28 de junho de 1833), 61. Royer Fayolle mostrou o embarago dos professores diante da leitura em classe das Confessions, uma obra “dificilmente escolarizvel”, diz ele, num sentido aproximado (art. cit. p. 67). 62. L’Education intellectuelle et morate. Paris, 1908, p. 152. 63. Op. cit., p.385. 64, Bourg, 1864, p. 73 65. Op. cit., p. 82. Teoria & Educagdo, 2, 1990 225 66. Cf, adiante, p. 217, 67. Rapport officiel sur I'instruction primaire & Viena (1876), ia: F. Pécaut: Eudes au Jour te jour, p. 83. 68. Cf, por exemplo, F. Alengry: Psychologie et éducation. 1906, t.lll, p. 116. 69. “Por recitagdo, escreve ainda em 1903 um inspetor primério, é necessdrio entender no a ropetigdo das ligdes da véspera, mas 0 estudo dos trechos escolhidos de poesia ou de prosa.”B. Poirson: L'Ecole primaire, Bpinal, p. 79. 70. Méthode de lecture, de prononciation et d'orthographe. Guide du matire. Paris, 1846, ‘p.19. ‘71. Op. cit., pp.31 em diante, 72. A oposicio é, por exemplo, claramente apresentada na obra de Jean-Claude Milner: De I'école. Paris, Le Seuil, 1984, p78. 73. P. Clairin: Un peu de vérité sur Venseignement secondaire. Paris, 1897, p, 11. 74, E que vém do alto: “Vés compreendestes, diz Jules Ferry aos inspetores ¢ aos diretores de escolas normais (2 de abril de 1880), que & necessdrio substituir os antigos Procedimentos que consumem tanto tempo em vio, 0 velho método gramatical, o ditado - © abuso do ditado - por um ensino mais livre, mais vivo ¢ iais substancial”, (Discours et opinions. Paris, 1895, t.lll, p.521). 75. “As preparagGes que esses tipos de exercicios sio freqientemente fruto de um ano (..) niio constituem mais do que uma prova muito duvidosa dos progressos das crisnges @ quem nao se deve fazer abandonar © principal por um quarto de hora de giéria.” (Réflexions des régents du collége de Blois sur la déscrtion du collége, dezembro de 1766, in A, Dupré: “Recherche sur l'ancien colldge de Blois", Revue des societés savanies des départements, 1867, .6, pp-592-627). 76. O termo niio data senio de 1892. A princfpio se dizia “chauffage* (aquecimento). 71. Ch, por exemplo, Philippe Perrenoud: La Fabrication de Wexcellence scolaire. Gentve, Droz, 1984, pp.234 em diante. 78. Cf., entre outros, os testemunhos de Pottier, professor de segunda em Henri IV (Observations sur les inconvénients du systéme actuel d instruction publique, 1821, p.32), ou de Tailefer, inspetor da academia de Paris (De quelques améliorations @ introduire dans Vinstruction publique, 1824, pp.95, 339). No que se refere ao século XVIII, os Tablettes du clergé ¢1 de la religion (1.2, 1822), consideram que sornente um tergo dos alunos acompanhava corretamente; “os outros recitavam, sem diivida, suas ligdcs, ¢ explicavam algumas frases de seus autores. mas seus deveres no cram jamais corrigidos: eles nem mesmo cram lidos” (p.96). ' 79. Paul Rousselot: L Ecole primaire, essaide pédagogie élémentaire. Paris, 1880, 3° cd., P.6. Michel Bréal nio diz outra coisa: “No liceu, preocupa-se sobretudo com os alunos de elite (...) enquanto que o ensino primdrio superior deve visar 20 grande nimero” (Conférences pédagogiques faites aw: instituteurs délégués a expositions universelle de 4878. Paris, 1878, p-219). 80. Op. cit., p.262. 81. Cf. circular de 22 de setembro de 1845, proibindo que se estabelcga nas escolas de ‘meninas qualquer distingdo entre as alunas indigenies ¢ as alunas pagantes (Bulletin universitaire, 1845, pp.145-146). Trinta anos mais tarde, ela nem sempre ere respeitada numa parte do ensino das congregagdes. 82. “Rapport des commisions sur les finaltés de 'enscignement de histoire” in: Colloque 226 Teoria & Educagéo, 2, 1990 sur Uhistoire ei son enseignement, 19-20-21 de janeiro de 1984. Montpellier. CNDP, 1984, p.137. 83. Cf. Pierre Albertini: L’enseignement classique a travers les exercices manuscrits des 2laves, 1600-1940. Petit, INRP, 1986, p.11. 84. Os depésitos feitos pelos estabelecimentos de ensino pelos organismos administrati- vos nos Arquivos depertamentais apés a circular ministerial de 28 de abril de 1970 comportam um certo ntimero de tarefes dos alunos, af comprecndidas as tarefas de exame Cf. sobre este ponto, Héléne Benrckasse © ‘Thérése Charmasson: “Archives de Fadministration et des établissements scolaires: bilan de dix ans de versements”. Histoire de I"éducation, sbril de 1983, pp. 49-82. 85. Cf. J. M. Drevon: Histoire d’un collége municipal (...) L'insiruction secondaire & Bayonne avant 1789. Agen, 1889, p.412. 86. Une réforme scolaire au XVIII sidcle. Cacn, 1892. 87. L'Ecole multiple, Etude sur le passé ei Uavenir de notre enscignement,Paris, 1936, P.16. E no entanto o autor, professor honorfrio em Louis-le-Grand, tinha estreado em 1889. Comparar com as declaragSes da época, elas também contestaveis, sem davida. Cf. adiante, p, 212. 88. Cf. Adeline Daumard: La Bourgeoisie parisienne de 1815 4 1848. Paris, SEVPEN, 1963, p.353, 89. Charles Lenormant: Essais sur l'instruction publique, réunis et publiés par son fils, Paris, 1873, p.50. O texto foi esorito entre 1845 e 1852. CF. também Cormenin: “Ao fim de dez anos de estudos no melhor colégio da Franga, um escolar comum é completamente incapsz de ler Hordcio ¢ Tito-Livio sem preparagio”.(L’Education et lU'enseignement en matiére d instruction secondaire, por Timon, Paris, 1847, p.80). 90. Abade J, Verniolles, op, cit., pp. 156-157. 91. F.G, Pottier, op. cit., p.32. 92. B 0 caso de Jacqueline Freyssinet-Dominjon (Les Manuels d'histoire de U'école libre, 1882-1959, Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 1969, p.23). que assinala as conclusées dos analistas da Sociedade das NagSes tendendo a destacar a decisiva importincia dos manuais e, em particular, dos manuais de histéria na formagio da crianga, 93, Ivan Illich: Deschooling society. New York, Harper and Row, 1971, trad. fr. Une societé sans école, Paris, Le Seuil, 1971. 94. o papel que desempenhava, no século XIX, a “redacdo de histéria”, feita apés 0 curso de histéria pelo aluno, Bla € entéo unanimemente considerada como a preparacio 4 “elocugiio" escrita: “E apés ter-se excreitado varios anos na redacdo que se aborda a somposigao propriamente dit, quer dizer o discurso ¢ a dissertagao”, escreve Petit de Julleville (Le Discours francais et la dissertation francaise, Paris, 1868, pp.27-28). 95. Estuda-se, por exemplo, nas conferéacias pedagégicas, “o papel da redac&o no estudo ds gramitica” (cf. Cuissart « Berthon [Ville de Lyon] Conférences pédagogiques des instituteurs talgues, Lyon, 1879, p.254).. 96. Frédéric Le Play: La Réforme sociale en France déduite de observation comparée des peuples européens, Paris, 1866, 2 ed., LMI, pp. 73-121. 97. Ibid.,pp. 75-77. 98. Como o declarava jé em 1903 Georges Fonsegrive (Comment lire les journaux). Cl, mais recentemente, Danie] Morgaine: Le Journal des l’école. Paris, Alain Moreau, 1977. Teoria & Educagdo, 2, 1990 227 99, Histoire linguistique d'Alsace et de Lorraine, T.ll: De la Révolution francaise a 1918, Paris, 1929, p.48. 100, Arquivos nacicnais, F'7 9270A. O ensino da lingua nacional no contexto do exército nou afasta das disciplinas propriamente “escolarcs”. Mas a histéria do ensino do francés fo poderd evitar esse desvio, estando provado que as modalidades de aquisig&o da lingua af ne rcvestiam da forma de um ensino, Uma coisa é certa: 0 ensino do francés para as tropes coloniais na primeira metade do século XX parece ter tido, em seus princfpios ao manos, uma destacdvel qualidade pedegsgica, € ter posto em acto os métodos mais modemos. Cf, o Reglement provisoire du 7 juillet 1926 pour Uenseignment du francais ux milliaires indigenes (Paris, 1932, 168 p.), publicado pelo Ministério da Guerra. O problema do ensino da lingua nacional, ¢ em particular de seu ensino aos homens no axdrelto, 6 daqueles em que a educagio comparada pode trazer uma contribuigio ou uma Ajuda importante & histéria das disci Cf. Joshus Fishman: “Am&nagement et norme Ungulatique” in: La Norme linguistique, Ed. Bédard ¢ J. Maurais ed., Gouvernement du Québec, Conscil de la langue francaise, 1983, pp.383-394; ¢ a revista Mother tongue tducatton Bulletin; Pedagogie de la langue maternelle, p.p. Association internationale de Ungulstique appliquée, Faculté des sciences de I'éducation, Université de Montréal, Canada. 101, Cf. anteriormente, p. 201. 102, Ch.-V. Langlois, Ch. Seignobos: Introduction aux études historiques. Paris, 1898, PP.212-283. Mesmo aspecto da questio nas instrugGes oficiais de 1890: “O perigo, no ‘enalno da histéria, € a inércia dos alunos.” 103. Cf. Michelle Perrot: “Les finalités de l'enseignement de l'histoire” in: Colloque sur alnoire...,op. cit., p.40. Cf. também René Girault: L'Histoire et la géographie en question. Ropport ax: ministre de i'Education nationale. Paris, ministére de "Education fationale, service d'information, 1983, 201p. 104, Circular relativa a0 ensino anti-aleodlico, 12 de novembro de 1900 (Bulletin administratif, 1900, t.LXVIIL, p.913; assinado: Georges Leygues). 105. Cf. Jean Hébrard: “Les nouveaux lecteur": Roger Chartier, Henri-Jean Martin: Histoire de Védition francaise. Paris, Promodis, 1985, t. III, p-p.471-509. 106, Cf., por exemplo, o Plan d'études pour les écoles primaires. Paris, 1868, pp.17-18, rudigido pelo inspetor geral J.J. Rapet. O regimento modelo das escolas primarias de 17 do agosto de 1851 jf estipulava: “Seré atribuigio do instituteur envidar todos os esforgos para conservar ox alunos na escola durante a estacio de vero” (art.42). 107, Selectae ¢ profanis scriptoribus historiae. Paris, Estienne, 1727. Ultima edigio, 1927. A primcira frasc, atribuida A Cicero, poe ingenuamente uma maidscula na palavra deus, transformando assim 0 grande orador em tedrico do monotefsmo. 108. Talvez ocorra o mesnio com a Histoire du déclin et de la chute de l'Empire romain da Gibbon, O problema é remetido aos historiadores das disciplinas escolares inglcsas, 109, Cf. Gérard Baconnier, André Minet, Louis Soler: La Plume au fusil. Les poilus du Midi a travers leur correspondance. Toulouse, Privat, 1985. p.71. 110. Cf. antcriormente, pp. 183. 111, Cf. Augustin Sicard (Les Etudes classiques avant la Révolution, 1887, Reprint Slatkine, 1970, p.154), que sublinha a unanimidade existente nos colégios do século XVIII com relagio a esse titulo. 112. Inerrogando-se sobre as razies do sucesso de Voltaire no século XIX, Theodor 228 Teoria & Educagdo, 2, 1990 Zeldin se surpreende que sua obra mais freqiientemente editada tenha sido entio L ‘Histoire de Charles XII (Histoire des passions frangaises, 1848-1945.T.4: Coldre et politique. Paris, Le Seuil, 1979, p.164), deixando, entretanto, de fornecer uma interpretagdo. Uma 86 explicagio: Charles II ficou, ao longo do século XIX, quase constantemente no Programa do ensino secundério, na classe de quarta, na de terecira, ou na de segunda, ¢ SoU sucesso editorial ¢ simplesmente escoiar. Qa Este artigo foi inicialmente publicado na revista Histoire de l'éducation, n® 38, maio de 1988. Transcrito aqui com as améveis autorizagdes do autor e da diregio daquela revista. Tradugio de Guacira Lopes Louro. Q André Chervel 6 pesquisador do Service d'histoire de l'éducation ~ institut national de recherche pédagogique, Paris, Franca. Teoria & Educagdo, 2, 1990 229 Nt Editor Tomaz Tadeu da Siva Conseiho Eoftoria! Antonio Fiavio B. Moreira, Eliane Marta Teixeira Lopes, Guacira Lopes Louro, Maria ‘Alice Nogueira, Menga Lidke. Projeto Grafico Aidanei Areias Teoria & Educagéo ¢ publicada ‘duas vezes a0 2n0 Assinaturas Pedidos @ informagoes ‘sobre assinaturas devem scr enviados a: Teoria & Educae5o Rua Ludolto Boehl, 756/305 91720 - Porto Alegre - RS Teoria & Educagdo ogo & vendida de forma avulsa _

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