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\e js puri — Pept Jormabinn® y Pl © (ven Caio Prado Jr. O QUE E FILOSOFIA, (ic Rt editora brasiliense Copyright © by Cao Pra i, 1981 ‘Neahuma pate dese publica pose ser gavada, armazenada em ssemas eens, oteeoind, reproduids por meiosmectnicen om outos ieee se autoriajdo pv tor, Primeia eso, 1981, 34" repress, 2007 Reviso: Jord Andrade Cuesta: Ei Damiani (Capa montages: 123 (igo 27/ Arias Grifcos Pra Sie, Calo. 1907-1990. ( gar ¢flosota Calo Pra Snir -- Sto Paulo : Brasiense, 2007. - (Colegio pritirs pasos: 37) 30 eine dao. de 1981 ISBN ES 11010078 1. Filosofia IT. Se. 07.8250 epp- 101 {indices para catlogo sistemstico ‘lest Teocla 10) ettorabrasiiense 5, ‘Ron Ain 22-Tatuape- CEP 03510010 -Sio Paulo - SP FouefFax (0x1) 6198-1488 swortaitorabrsitente.com be vraria basen ‘A. Azevedo, 44 Tatu CEP 0390-000 - Sto Paulo - SP Fone/Fex (xl) 6197-0054 livrasrastiense @edioetasiente.com.be O QUE E£ FILOSOFIA?* Nao precisamos buscar na infinidade de conceitos de “Filosofia” — talvez um para cada autor de certa expresso, ¢ que & vagueza das formulagées acrescentam as vezes até posigdes contraditorias — no precisamos procurar af a incerteza e impre- iso que reinam e, sobretudo em nossos dias, no que concerne 0 objeto da especulacao filos6tica. Muito mais ilustrativa é a consulta aos textos losbficos ou qualquer exposigo ou andlise do desenvolvimento histérico do assunto. De tudo se tata, podese dizer, ou se tem tratado na “Filosofia”, e até os mesmos assuntos, ou aparen- temente os mesmos, s80 considerados em perspecti- vas de tal modo apartadas uma das outras que ino se combinam e entrosam entre si, tornando-se impossivet contrasté-las. Para alguns, essa situacdo 6 no apenas normal, mas plenamente justificdvel, + Texto orginsimente pubicado no Almanague, n® 4, Ed Bra Viens, 1977, A Filosofia seria isso mesmo: uma especulagdo infinita e desregrada em torno de qualquer assunto (u questo, ao sabor de cada autor, de suas prefe- rénclas e mesmo de seus humores. Hd mesmo quem afirme ndo caber 8 Filosofia “resolver”, & sim unicamente sugerir questées € propor proble- mas, fazer perguntas cujas respostas nio tém maior interesse, @ com o fim unicamente de estimular a reflexio, agucar a curiosidade. E i se afirmou até que a Filosofia néo passava de uma “‘ginéstica” do pensementa, entendendo or isso o simples exercicio e adestramento de uma funggo ~ no caso, o pensamento em vez dos musculos — sem outra finalidade que essa Apesar, contudo, de boa parte da especulacdo filoséfica, particularmente em nossos dias, parecer confirmar tal ponto de vista, ele certamente néo é verdadeiro. Hé sem divide um terreno comum onde a Filosofia, ou aquilo que se tem entendido como tal, se confunde com a literatura {no bom sentido, entenda-se bem) ¢ ngo objetiva realmente conclusio alguma, destinando-se téo- somente, como toda literatura, @ par do entre. timento que proporciona, evar aos leitores ou ‘ouvintes, a partir destes centros condensadores da cia coletiva que sf os_profissioneis do pensamento, levar-lhes impressées @ estados de espirito, emogdes e estfmulos, dividas e inda Mas esse terreno que a Filosofia, ou pelo menos aqjuile que-se tem entendido por “Filosofia”, Ccompartilha com @ literatura, no 6 toda Filosofi nem mesmo, de certo modo, a sua mais impor- tante e principal parte, E nem ao menos, a meu ver, com todo interesse que possa representar, constitui propriamente “Filosofia”, ", @ deveria antes se confundir, na classificagio, e as vezes até mesmo na designag0, com a mesma literatura ‘com que ié apresenta tantas afinidades. Mas conserve embora a Filosofia literdria sua qualificagdo e status, & necessério que a par dela @ com ela se desenvolva também uma Filosofia de outro teor que dé resposta, © na medida da possivel, precisa, as questies ‘que efetivamente ela se propdem. A Filosofia pode a rigor ser tratada literariamente, como pode sélo a Ciéricia 0 conhecimento em geral, Mas que isso seja forma, endo fundo. Esse fundo é outra coisa ‘que, apesar de tudo, x percebe em todo verdadeiro filés0f0, por mais que se disfarce num pensamento confuso, disperso, sem objetivo desde logo aparente e seguro. Que se percebe sobretudo 1a Filosofia em conjunto como maneira espectfica de tratar dos assuntos de que se ocupa, por mais variados © dispares que sejam. Com’ toda sua heterogeneidade, confuséo e hermetismo de tantos de seus textos vazados em linguagem acess{vel unicamente a iniciados ~ ou antes, por eles julgados acessiveis, mais do que acessiveis de fato — com tudo isso, a Filosofia encontra Tessonancia tal que, se ndo fosse outro o motivo, cent Caio Prado ity que & Fitosofia 7 Caio Prado 30 que & Filosofia 48 ‘por si bastaria para comprovar que nela se abrigam questées que dizem muito de perto com interesses @ agpiragdes humanas que devem, por isso, ser atendidos, e néo frustrados pela auséncia ou desconhecimento de objetivo e rumo soguros da parte daqueles que se ocupam do assunto, Mas onde encontrar esse “objeto” ‘Gitimo e profundo da especulacio filoséfica para 0 qual Converge © onde se concentra a variegada proble- mitica de que a Filosofia vem através dos séoulos @ em todos os lugeres se ocupando; e de que trata? E muito importante determiné-lo, porque isso Pouparia esforcos que to freqlientemente S@ perdem em indagapdes indteis ou mal propostas; © que, concentrados na diregéo de um. alvo legitimo e claramente definido, reuniriam ‘um ‘méximo de probabilidades de” atingirem esse alvo, ou pelo menos de o aproximarem, Existiré Contudo esse objeto central e legitimo de toda @ especulagdo filos6fica, um denominador comum que embora disfargado e mal explicito, orienta mais ou menos inconscientemente aquela espe. culacdo? Acredito que sim, © a sua determinagdo constitui tarefa necesséria e preliminar da inda. $2480 ilosbtica; ©, certamente, mesma que nio Chegue logo a uma precisdo rigorosa (se é que ela € Possivel), seré por certo de resultados altamente fecundos. © Ponto de partida dessa ser, para nada perder em obj determinacao deve idade, a conside- do © exame do proprio conteddo © desenvol- eee eee ee @ do Conhecimento em geral. Mais comumente a Filosofia é tide como uma complementagio da Ciencia e da elaboragio cognitiva em geral; como seu coroamento @ sintese. Esse conceito da Filosofia se encontra aligs mais ou menos expres- simente formulado em boa part das defines icagGes que dela se dio, e partidas dos mais semis atc aie "hs mesmo o séc, XVII, © talvez 0 sequinte, Filosofia ainda se confundia ‘com Ciéneia; ¢ das fifosofias particulares (como por exemplo a “‘filosofia qu{mica”, que no é sendo a nossa Quimica, Simplesment) pessavase impereptvelmente para assuntos gerais que se enquadrariam melhor rnaquilo que hoje entenderiamos mais especi fe como “Filosofia” Que a Filosofia 6 Conhecimento, e que de certa forma se ocupa dos mesmos objetos que as ciéncias gm geal, ndo hi vide. Mas tudo ent nes restrigio “de certa forma”. Isso porque a Filosofia no & e no pode ser, logo veremos por que, simplesmente profongamento da Ciéncia, “superciéncia” que a ela se sobrepée © que a complete. Néo hé lugar para esse simples proton: gamento. Ou melhor, qualquer legitimo prolon- gamento da Ciéncia 6 e sempre seré, tudo indica, énci outra coisa. Isso se pode econcluir do fato que 0 desenvolvimento da Ciéncia, quando Caio Prad HO que & Fllosofia u se excluem indevidas extrapolagéee sempre fener ace emg Nzagéo. E mio ha nenhum ponto tixado, no Pessd, ou pravsvel no Tuten fe Fronteira difusa_naquele processo além do quel Go caberia mais falar em Ciencia propriamente, A histéria da Ciéncia nos mostra que sua marche 6 ,Proaresso vo uniformemente no. sentido de slaboragdo de conceitas, ou melhor “conceltuagdor cada vez mais abstrats © geral, Isto 6, de sisteres conceptuais mais inclusivos, que por isso meena cobrem_@ reprosentam conjuntos mais. amples da Realidade universal — néo no sentido de tae extensos simplesmente, quantitativamente maionee © sim mais complexos © abcangentes, de felgdes mais diferenciadas. Comparem-se a esse propécite 08 dois setores do Conhecimento que se entontnrs Gontemporaneamente nos extremos da. lishe ascendente do. progresso.cientifico: de ‘tum lade 8s Ciéncias sociais, de outro as fisicas. No primers dlesses setores encontramo-nos em face de any conhecimento empiric ainda solidério, ‘direw @ no se englobam em sistemas amy z iplos copazes de formarem, por sua vez, outros tantos eoncvitos de mais elevado nivel de abstrago e generalidade. Confrontese essa situago com a das Ciéncias {isicas e de seus imponentes sistemas conceptuais que cobrem e compreendem, representando-os conceptualmente, extensos e amplamente diver- sificados aspectos e feigies da Realidade universal. Considerese em particular 0 progresso recente dessas Ciéncias no sentido de uma precipitada gene- ralizacdo, que jé hoje compreende (embora ainda falte um bom caminho para a complementacdo @ integracdo sistemética total do assunto) o conjunto das Ciéncias fisi algumas décadas passadas em esferas estanques e impenetréveis uma 8 outra. Observando-se esses fatos da marcha progressiva do Conhecimento © da Ciéncia, o que se verifica & a homogeneidade desse progresso. E dai s¢ Pode concluir a respeito da homogeneidade também do conhecimento cientifico, de sua atureza, cardter e estrutura, que so sempre tuniformes e do mesmo padrio. Onde pois o hiato ou transformagio qualitativa _suficientemente acentuado para justificar, nesse processo de desen- volvimento e aprofundamento do Conhecimento, a eventualidade da fixago de limites além dos quats j6 no se trataria mais de “Ciéncia” e sim de outra disciplina? Outra ordem de Conhecimento que caberia & Filosofia? Essa indagagdo sem resposta plausivel leva 3 conclusio de que a Filosofia ndo @ endo pode ser simples. prolon- gamento do conhecimento cientifico, nada mai Que um ponto de vista essencialmente de Objetos de que se 0 vista mais geral e amplo, mas gual natures, dos mesmos hjet0s do que se ocupa a Ciéncia. E simplee Ciencia ¢ ado ha por que inlutia em suc ae de sconhecimentos além da Ciéncia, A Filesetc Outre cos, ou eto ndo tem rao de exon Aquilo de que’ se ocuparia um simples praia Gamento ou generalizagio do conhecimenns Giemtiico no merece outro nome que “cisente simplesmente. . sumariamente, ¢ Sunto de que se existéncia prépria Nao seria simples- elo objeto, pela matéria ou ass cupa, que a Filosofia, para ter @ se legitimar, se ha de distinguir, 8m geral, no haveria mister dela; i Skea re is raedo do Conhecimento néo. segue caminnos art a Ne ee. cs C,Ctdinério da Ciéncia, outro distnto deste que se va correntemente na elaboragao cientitice € que por ser assim distinto caberia a Filosofia” E certo que @ elaboracdo cientifica se resling través de procedimentos virios, que a. etl ersten ae B tratados usuais da Légica elementar costumam considerar © enumerar esses ““métodos” — se é ue merecem a designago. Mas essas diferengas no sfo essenciais, Tratase antes de técnicas, digamos assim, de investigado ¢ exame dos fatos considerados. “Téticas ou estratégias, por assim dizer, de abordagem desses fatos pela inquiricao ientifica, O essencial do process de elaboragao cientéfica digna desse nome e legitima é funda- mentalmente 9 mesmo em qualquer terreno. © que se procura e 0 que se obtém com essa elaborago nao somente no apresenta disparidade essencial alguma, como néo se percebe au concebe onde e de que modo essa disparidade se poderia insinuar, Ndo 6 com ela pois que se lograré discemnir e determinar uma ordem de conheci- mentos distintos dos da Ciéncia e nevessitando por. isso de outra disciplina, que seria a Filosofia. E assim pelo seu objeto, 6 somente por éle, que a Filosofia se hé de distinguir da Ciéncia, © com isso se legitimar como disciplina a parte. Mas se a Ciéncia cabe, como objeto, a Realidade universal, {sto 6, 0 Universo e sou conjunto de ocorréncias, feigdes, circunsténcias que envolvem e também compreendem o Homem, 0 que ficard de fora para eventualmente constituir objeto proprio da Filosofia? Note-se que estamos aqui empregando, a expresséo “ciéncia” onde deverfamos com mais propriedade dizer “‘Conhecimento”. 1380 Porque Ciéncia no é sendo Conhecimento 4 Calo Prado 9 que € Flosofia 1s matizado, © advertida @ intencionalmente elabo- rado, ndo se distinguindo sendo por essa sister. tizagdo em nivel elevado e elaboracéo intencional do Conhecimento comum ou vulgar, aquele de que todo ser humano é titular, por mais rudimentar Que seja seu nivel de cultura, O Conhecimento essencialmente de uma s6 natureze, e por mais slementar ¢ grosseiro que seja, tem fundamental. mente © mesmo caréter do mais complexo refinado conhecimento cientitico. Nao hd, alids, ‘nenhuma fronteira marcada, ou possivel de marcar, nessa complexidade, nem mesmo separacéo poss/vel, Pois © conhecimento cientifico de hoje sero vulgar de amanha. Assim sendo, as nossas consideragdes acima se aplicam néo especialmente ao conhecimento cientifico, e sim 20 Conhecimento em geral, ocupe le © plano hierdrquico © o nivel de importancia Que ocupar. E, reformulando nessa base 2 nosse questo, dirfamos: qual 0 possivel objeto do Conhecimento que néo seja objeto do Conheei. mento? Pergunta aparentemente sem sentido dentro dos cénones légico-lingitsticos ordinérios mas que $¢ resolve simplesmente, © veremos que historicamente também, no fato de que além do Conhecimento dos objetos ordindrios do Conheci. mento ~ as feigées e ocorréncias do Universo em que existimos © de que participamos — pode haver, ¢ efetivamente hd ainda, reflexivamente, um Conhecimento do préprio. Conhecimento | fealmenteé 0 que se verifica no desenvolvimento wistoen do penuament humano logo que 0 pprogresso_do Conhecimento atinge certo nivel Isto 6, um retorno reflexivo da elaboragao cogni tiva sobre si mesma, pasando 0 proprio Conheci mento a se fazer objeto do conhecer. Fato esse suficientemente marcado para dar lugar a uma ordem de cogitagdes bem caracterizadas e distintas do Conhecimento ordindrio. E se bem que pensa- dores e elaboradores do Conhecimento no se tenham desde logo dado plenamente conta da diferenciagéo © particgo interior dos objetos de gue ss ocupavam [do que as restariam mak entendidos e confusdes de largas conseqiiéncias a sua obra néo deixard de refletir a duplicidade do assunto tratsda e 0 novo rumo que tomava © pensamento © elaboragdo do Conhecimento; isto é, a par do Conhecimento, a do Conhecimento do Conhecimento. O que cronologicamente coinci- de no, Mundo Antigo (e nfo tor sido por certo uma simples coincidéncia) com a eclosgo daquilo que seria havido como “filosofia’. Veremos isso com suficiente clareza para uma primeira abordagem do assunto, assim penso, numa suméria recapitulacdo, a largos tragos, das linhas mestras e momentos culminantes e decisivos do pensamento e elaboraedo do Conhecimento nas sociedades que mais contribuiram, até os ‘908808. dias, para a evolucdo em conjunto e conformago da cultura moderna; e que vem a ser aquela que, brotada no seio das civilizagdes do Mediterraneo oriental, se difundiria pela Europa ocidental e daf para o mundo todo, Mas em que consiste ou pode consistir esse Conhecimento do Conhecimento cuja génese @ vicissitudes sofridas no curso de sua evolugao Se trata para nos aqui de examinar? Ou, em outras palavras, que vem a ser Conhecimento como {objeto do Conhecimento”? Em primeiro lugar, estd claro, a natureza do Conhecimento, sei Processamento. Dito de outro modo: o que vem 3 $2F 0 fato ou ato de “conhecer”; e como se realiza esse fato, qual @ sua seqiiéncia — sua génese, seu desenvolvimento e seu desenlace; em que vai dar, |ss0 é como se apresenta e configura na sua Coneluséo como corpo de g.qual 0 processo afinal se dirige e em que se torna, So essas as questBes que se agrupam na disciplina ordinariamente conhecida por Teoria do Conhe. Cimento, epistemologia ou mais genericamente. Gnosiologia. Disciplinas essas que constituem, segundo consenso generalizado, capitulos ds Filosofia. Até a, portanto, no haverd divergéncias aprecidveis que comegam dai por diante. Hé os Que restringem a Filosofia a isso mesmo, © até menos, como os logicalistas que fazem da prépria Teoria do Conhecimento, e pois da Filosofia que 2 ele ‘se reduziria, uma simples analise logico- critica da linguagem ou simbolismo em que o Conhecimento ea Ciéncia em particular se T da Filosofia que, a julgar pelos assuntos nela tratados, ou pelo menos sob sua responsabilidade, a rane forma com isso 0 papel da Ciéncia cujo objeto néo se distinguiria essencialmente do seu. Filosofia e Ciéncia, distintas embora quanto a perspectiva uma @ outra da mesma Realidade universal. Jé bem como a confusio roinante no seu ponto de partida entre os objetos respectivos do Conheci- mento (que seria em particular a Cléncia) e o Conhecimento do Conhecimento, ou Filosofia. até lias de hoje. "ratty a om oie, Lae aeetnes speeseeh cea] conccerrs piesa ocupar com assuntos da algada da Ciéncia néo se justifica. Nesse ponto os logicalistas, que partem dessa questo para seu programa de limitagdo do campo da Filosofia, tm plena razdo. Quando: a Filosofia se ocupa dos objetos da Ciéncia, a saber, das feigdes e fatos do Universo, suas conclu- a ie Caio Prado» que é Filosofia 18 ses $0 sempre desmentidas em prazo mais ou menos dilatado, mas sempre fatal. Como se depreende claramente da histéria ds Ciéncia, ¢ sobretudo da Fisica moderna, a Filosofia, ou aries 08 fil6sofos, no que se refere sua atuagdo no campo cientifico, ndo tém feito mais que consagrer velhas @ ultrapassadas concepedes, disfarcando-as ‘am princ{pios absolutos com pretensies & validade eterna. E sob esse disfarce que as rudimentares © grosseiras nogdes fisicas de Aristoteles atraves, saram 08 séculos; © mais tarde a Mecénica newto nniana foi erigida em “verdade’’ final e absolute, Assim tem sido. porque, tratando de objetos que nfo sfo seus, @ portento sem condicées para fazé-lo, a Filosofia néo podia dar, como no du, em outra coisa que vestir hipéteses clentifices de trajes filossticas, fazendo deles “‘principios” dentro dos quais aquelas hipéteses se “petriticam”, nna sugestiva expressdo de P. Franck.! . A Filosofia, embora ultrapassando largamente aquilo que de ordinério se trata na teoria do nhecimento, conserva-se dentro © no ambi do Conhecimento como objeto. Isso 6, ssannnn S Cincia © 0 Conhecimento em geral, em que a iéncia constitui o setor organizado sistemat? zado, tém por objeto as feigSes © ocorréncias do (1) Phllop Franck, Maden Science and its Philesoohy, Herverd Univarity Pras. Cambeldge, 1980, p, 214. J Universo que envolvem o Homem e de que ele também participa, 0 objeto da Filosofia & precisa- mente esse “conhecimento” de tais feigdes @ cocorréncias. E assim Conhecimento desse Conheci- mento. E isso ndo apenas por ser essa, para a Filosofia, a perspectiva prépria para a considerago @ exame das questées que nela legitimamente se propée. Mas ainda, e sobretudo porque esse tem sido 0 seu campo de ago, mesmo quando, por uma falsa perspective ¢ involuntéria confusdo, aparenta dela se afastar. A Filosofia sempre se ocupou, de fato, do Conhecimento em si ¢ todes suas impli- cages, embora freqlientemente julgue, ou melhor, julgam os filésofos seus autores estarem tratando de outro objeto. € aliés dessa confusio que tesultam e sempre tém resultado os mal-entendidos Que viciam a especulacdo filos6fica ¢ a tornam, em ‘téo grande parte e alto grau, imprecisa e ambiaua, Infestada de debates estéreis © questdes initeis © insoldveis. O que, além do mais, faz perder de vista, ou propée de forma defeituosa algumas das questdes essenciais da Filosofia. Bem como erturbe a elaboragdo cientifica, como to freqi temente tem acontecido, como teremos ocasido de referir e jé foi lembrado no caso da Filosofia de Aristételes e da Mecénica de Newton. Vejamos como isso ocorre, Procurarei aqui clarear e explicar a confusdo bésica que vicia a generalidade da especulacio filoséfica, para em seguida mostrar como ela efetivamente se vem 19 Caio Prado 19 que é Filosofia a indo no curso do desenvolvimento histérico da Filosofia. © Conhecimento, como objeto do Conhecimento, se propde em seqiiéncia ao conhecimento da Realidade universal exterior a0 ensamento elaborador.? Esse conhecimento da Realidade se apresenta na conceituacéo que, elaborada na base da experiéneia do individuo Pensante, reflete, ou melhor, representa na esfera mental dese individuo pensante as feigdes e ocorréncias da Realidade. Desse primeiro momento Ou nivel da atividade cognitiva {isto é, a elaboragéo da conceituagéo representativa da Realidade), 0 instrumento dessa atividade, que é 0 pensamento elaborador do Conhecimento, se volta sobre si Proprio © toma reflexivamente por objeto aquele mesmo contetido conceptual ou Conhecimento or ele elaborado. Trata-se de uma posi¢go como que critica, que objetiva de um lado, e entre Outros, aferir de um modo geral a seguranca, & Ponderar o valor e alcance do Conhecimento adquirido e por adquirir; e, de outro, visa e se propée dar ao Conhecimento expressiio conveniente (em especial e fundamentalmente pela linguagem (2) Esa restredo do pensamanto “saboradr" & necoméri © pensomento am sl, abstrapdo felt do ato de eleboraréo do Conhecimento, perticia des ocortncie do Universo come 1 damais, E saré objeto legitime da Citnci, da Prcologie particu pois discursiva) e ordenar e sistematizar a conceituagdo que compe 9 Conhecimento. Iss0 tudo para, no contexto geral do proceso cognitivo, aleancar © seu fim primordial (que 6 0 do “conhecer” como fungao e constituinte essencial da natureza tumana), fim primordial de determinar e orientar devida- mente 0 comportamento do Homem. Nao entraremos aqui no pormenor desses pontos a fim de ndo particularizar a exposicio e perder com isso de vista 0 conjunto e 0 essencial do assunto que diretamente aqui nos interessa, e que vern a ser a duplicidade dos niveis em que opera o ensamento elaborador do Conhecimento, e 0 que essa duplicidade significa. Repetindo, temos de um lado, como ponto de partida, 0 nivel do conhecimento direto e imediato das feigées & ovorréncias da Realidade que se trata de conhecer, is50 6, aquilo que ordinariamente entendemos simplesmente por “Conhecimento”, © Ciéncia em particular. Temos de outro, e em seguida, um segundo nivel sobreposto ao primeiro, e no qual 0 Pensemento se ocupe jé no diretamente com as feiges © ocorréncias da Realidade, mas com 0 Conhecimento acerca dessas feigbes e ocorréncias.. No primeiro nivel, © pensamento estard se apli- cando a esfera objetiva e exterior ao ato pensante, eran al never eee hs an ot ‘Seroyal po oe oO No outro, se aplicaré a si préprio, ou antes, 20 seu contedido — e, note-se bem, propriamente como s0_conteddo, jé desligado ‘da Realidade que representa, = conteido de Conhecimento ou onceituagso representativa da esfere objeth Sleborade'ne curso de sua atviade no Primeiro nivel. Mas, aplicando-se embora a0 seu contetdo de Conhecimento e conceituagio, ou seja, a esfera subjetiva, © pensamento iré por forea se referir, embora indiretamente, aos objetos daquele Conhe. cimento —. que so, repetimos, as feigdes o ocorréncias da Realidade que the séo exteriores. 's80 6 Sbvio, pois pensamento ou conhecimento no existem em estado “puro” e vazio de repre sentagdo conceptual das feigées e ocorréncias do Universo. Nao existem mesmo, ‘ais quais faculdades” potenciais do individuo pensante © conhecedor, 8 parte dessa representagio que ‘hes concede a substancia de que se constituem, Essa situagdo @ por sua propria natureza fonte de confusio entre as duas esferas, @ subjetiva e a objetiva. E deriva dai a impressfo e ilusio que tio a Clin, 6 Pacools am puta. Mx nee exo ‘2 comico wm ts for © ate eta ae ito 4 nn posta de ura flo, eccrterrae Gare 1a coma 2 stants da obeded de ua ge cacao 2 Caio Prado J que é Filosofia Jortemente se ancoraria na Filosofia, e que consiste em tratar de um objeto julgando tratarse de outro. Ou melhor, simplesmente ignorar a distingao e oscilar dubiamente entre um e outro; ocupar-se do Conhecimento e conceituacio que 0 compée, como se tratasse das feigdes © ocorréncias da Realidade exterior ao pensamento representados conceptualmente por aquele Conhecimento. Caso flagrante disso, que refiro a titulo de ilustragdo bem esclarecedora dessa confusio, 6 0 conceito “matéria”, que vem constituindo através dos séculos um dos principais divisores do pensamento filos6fico; © a respeito do qual 25 partes que ‘contender incessantemente no conseguem sequer r com clareza 0 que esté sendo debatido. © que torna o debate, no mais das vezes, em infindéveis monélogos que se desenrolam parale- lamente uns aos outros, @ sem correspondéncia 110 mais das vezes entre si. Cada qual trata respecti- vamente de assuntos que néo coincidem, embora essa coincidéneia esteja sendo presumida. (© desentendimento nesse caso tem suas raizes nna consideracdo de “‘matéria” de angulos distintos, ‘em que se mesclam em proporcdes varias, conforme os fil6sofos, de um lado a perspectiva de algo exterior € que @ expresso “‘matéria”” designaria (substéncia corpérea ou sensfvel ... componente primério @ original do Universo... substratum de todas as coisas ...), de outro lado 0 conceito propriamente de ““matéria” — como se dé quando Caio Prado 10 que é Filosofta 2s se trata de contrastar 0 conceito “matéri Sutras conceitos, como seja “espirito”, “idéia’”, “forma’’; ou entéo quando com 0 conceito dé ‘matéria se integra um sistema conceptual, como se dé com a nogdo aristotélica de “‘potencialidade Para receber forma’’. Note-se bem que nio se trata af unicamente, nem mesmo essencialmente, de diferenca de sentido, de acepcao da palavra “matéria”, pois se fosse apenas isso 0 acordo ainda seria possivel, pelo menos no que se refere as premissas da discussfo, seu ponto de parti A divergéncia 6 muito mais profunda, pois dis respeito & “localizaggo”, digamos assim, daquilo que se designa por “‘matéria’. Localizagio essa ue, Nos casos extremos mais puros, seré alterna ivamente: ou entre objetos ou feigdes naturals exteriores a0 pensamento; ou, no caso contrério, entre ‘elementos conceptuais. Na maioria dos textos filosoficos em que ocorre 0 conceito “matéria” uum exame atento e devidamente alertado revela essa indistingao entre 0 conceito propriamente & om si, de um lado; e doutro, 0 objeto da Realidade exterior que ele representa, ou que deveria ou Poderia referir e representar. Naturalmente os filésofos julgam sempre, ou parecer julgar ao se referirem a “matéria’", estarem tratando de Objetos exteriores. ao penamento e incluidos na Realidade e ‘Mas 0 que fet No cato da matéria como no de outro conceito qualquer da mesma natureza amb(gua — é projetarem seu pensamento econetuagle. no. mundo, exterior, eatarem assim, como inclu(do nese mundo exterior, 0 que realmente constitui um fato de seu pense mento, um conceito.* . ; ‘A confuséo entre esfera subjetiva e objetiva vai dar assim na projecdo da primeira na segunda; a projegio da conceituaggo no mundo exterior a0 pensamento. Fato esse que tem papel essencial em todo, detenvolimento histérico do pensamento wesmo dizer que o comum Gos" concopden gers acorea do ealsase Too tanto no nivel da Filosofia e da Ciéncia, como no das concepeées vulgares) se acha fortemente influenciado por essa verdadeira inversdo idealista pela qual se recria no exterior do pensamento lum mundo feito imagem desse pensamento. Isso 6, modelado e configurado segundo padres conceptuais. Engels, © primeiro, que eu saiba, a assinalar essa inversio idealista, assim = descreve: “Primero fabrrica-s, tirando-o do objeto, o conceito desse objeto; depois inverte-se tudo, e mede-se rticularmente ustrtivo ot termes confusos om que se ° 12 0 debate acerca de “matérla’’, é ¢ longamente disputada rai correst do paava, Caio Prado Jb que & Fitosofia ) sata © objeto peta sua copia, 0 conceito" Daqueles padres conceptuais pelos quais se modela a Realidade, 0 mais importante 6 natural mente 0 da linguagem discursiva, na qual e através da qual @ conetituagéo, no mais das vezes, s¢ formalize e exprime.’ Esta a tazda principal por ue encontramos a nossa concepedo corrente & ordingria do Universo fundamentsimente confor mada por estruturas verbais. E através de formas verbais que 0 realismo ingénuo {que esponta- eamente, e na base de nossa educagdo e formacio ordinéria, & de todos nds) enxerga 0 Universo 20 interpreta; e € na base delas que se dispdem as feicdes © ocorréncias da Realidade universal. € daf que deriva, entre outras, a nosdo de um mundo constituido de “coisas’ e “entidades”” bem Aiscriminadas e separadas entre si; coisas & entidades essas de cujas “qualidades” e compor- (5) Engels. Wt &. Odtving boulevere ta science (ant.Dibving), ‘rad, fences, Pas, 193, 1, 138 (6) Na scape aqu adotad,reservaae a desinaeio de “concito” u “conceltuaeso" 3 representaréo mental des ororrancias 4 ctunsténeias em goal do Universo, Aqullo om uma aie ‘ordinariomante st entonde por "dia", A tinguager siscur- iva ~ tal como autos vrbals,grfiat © demas, como em paricatar » pinipal elas (Gepcis de dheursva, » gat & © simbolismo matenadico — a Haguagem cscursve conta ‘expr formal, So ¢, siete» meslatmerta anes 808 ‘entidos, dt conosituagso, cE Engels 2” Caio Prado B que ¢ Filosofia tamento resultam os fatos, feigdes e circunstancias em geral do Universo. Mal se disfarca nessa con- cepco ingénua ¢ integrada tanto no pensamento filos6tico profissional, como no ordinério e vulgar, ‘mal se disfarga af 0 modelo que o inspira, a saber, @ estrutura gramatical do sujeito e predicado, seus elementos constituintes essenciais: substan- tivo, adjetivo, verbo, Temos af os materiais com que’ se constitui e concebe ordinariamente 0 Universo, com as circunsténcias que nele se verificam e ocorrem. Os substantivos se faro nas coisse e entidades em que o Universo ¢ discrimi- nado ® dividido; os adjetivos sero as qualidades com que se revestem aquelas coisas e entidades; 8 08 verbos, finalmente, designero (e a rigor “sero” mesmo) a ago das mesmas coisas ¢ entidades; ago essa com que se descreveré 0 ‘comportamento do Universo . . Essa maneira de proceder, isso é, de inverter @ ordem do processo do ‘Conhecimento que, originando-se na Realidade exterior ao pensamento elaborador, retorna € se projeta afinal sobre essa mesma Realidade e a modela segundo seus padres, esse procedimento tem na Filosofia rafzes tao fortes que a encontramos mesmo naqueles setores que mais diligentemente procuraram se libertar dos preconesitos e distorgdes da Filosofia cldssica = que vem a ser aliés a Metafisica aristotélica que consagrou filosoficamente © projetou pelos séculos afora @ até nossos dias, como aliés veremos f f i adiante, a confustio das esferas subjetiva e objetiva do pensamento @ Conhecimento. Assim os logica- listas que fundamentalmente visavamn desfazer aquelas distorges através do correto emprego da linguagem simbélica “perfeitamente”” construfda fe 80 essa corregdo © perfeigio que sobretudo visam em seus trabalhos) acabam concebendo e construindo com todas as pegas esse mundo ideaimente modelado para ser adequadamente escrito por aquela linguagem “perteita”” por eles pretendida. A abertura do Tractatus Logico- Philosophicus de Wittgenstein (0 evangelho, pode-se dizer, do logicalismo) nos dé conta dese mundo ideal, num encadeamento de proposigées, tal qual normas de um texto legal — segundo o estilo tio caracteristico do autor — cuja inspiracso fem modelos e padres puramente gramaticais 6 patente e inconfundivel. Numa consideragéo bem alertada e atenta ierpretagio do desenvolvimento histérico da Filosofia, vamos encontrar a comprovacSo no somente de que 0 verdadeiro objeto dela é 0 Conhecimento em si, e no dos objetos desse Conhecimento que sé0 os fatos, feicdes ou circunstancias em geral da Realidade exterior ao pensamento elaborador (embora freqientemente, ¢ mesmo no mais das vezes isso tenha passado despercebido), veremos no somente isso, mas ainda que foi e ainda é precisamente essa incom- proensio ou falta de rigorosa diseri art as esferas objetiva e subjetiva, que se encontra na base dos matentendidos e confusées que permeiam e viciam o pensamento filosdtico, tornando tdo precéria a realizagdo da tarefa que the incumbe. Come foi notado, e procuraremos comprové-lo agora com os fatos historicos, a Filosofia tem suas origens e ponto de partida quando o pensamento investigador do Homem se volta reflexivamente sobre si préprio e seu conteddo de.conhecimentos 8 elaborados e conceituados, ou em vias de elabo- Fagdo, a fim de aferi-los, compreender o pracesso de sua_elaboragdo, conceder-Ihe seguranca orientagdo adequada para a utilizaggo prética que se destinam. E para realizar isso, organizé-los ® concatené-los devidamente na sua expresso verbal. Transfere-se entéo o pensamento investi- Gador para outro nivel. Isso é, da consideragdo das feigbes fatos da Realidade exterior, bem como da atividade elaboradora do Conhecimento dessa _Realidade, passe-se para a consideragio desse mesmo Conhecimento em si, ¢ proceso de sua elaboracdo. t3s0, contudo, no se perceberd lenamente desde logo, dando lugar a canfusio das esferas subjetiva (objeto da Filosofia) e objetiva (objeto da Ciéncia). © com isso se baralham os distintos niveis de elaboragdo do Conhecimento, Observemos essa seqi a primeh mento filos6fico jé no desabrochar da Filosofia grega. Nesse preliidio do que seria a matriz principal de todo yensamento ocidental através dos séculos, verifica-se muito bem aquela transi¢ao da elabora- Go cognitiva para novo nivel que seré 0 da Filosofia que entéo se inaugura. . Esse momento se situa nos chamados “f(sicos de Mileto”, e vaise sobretudo revelar na natureza do problema central proposto por esses precursores da Filosofia grega, e€ que seria o seu ponto de partida. A saber, 0 problems da ““substéncia’ Universal que daria origem a todas as coisas e as teria constituido. Tales diré, como se sabe, que & 2 gua. Anaximenes, o ar; Anaximandro, uma substincia indefinida, apeiron. ‘Como se explica a proposicdo desse problema da existéncia de ume substincia universal origindria de todas as coisas? E 0 que no tem preocupado devidamente os historiadores da Filosofia, como se @ questiio. se apresentasse espontaneamente_@ fatalmente, sem necessidade de maior explicacéo. Entretanto, as circunsténcias em que ela se prope, tanto seus antecedentes como seu desenvolvimento futuro nos dizem muita coisa a respeito, e mostram que 0 pensamento grego se engajara af em nova 640 que embora preparada e condicionada pelo que’ a precedera, assumia outro sentido bem dliverso do anterior. Os milésios trouxeram grande contribuigéo, como se sabe, para a Ciéncia e 0 Conhecimento dos fatos da Natureza. Mas o tema | Caio Prado Hque € Fuosofia 3 gue 0s ocupe centralmente e que diz respeito & “substancia” constituinte do Universo representa sem diivida alguma coisa bem diferente e um novo caminho imprimido @ seu pensamento. Constitui erro, assim penso, & imperdodvel anacronismo Considerar — como freqientemente se tem feito ou elo menos insinuado — que os pensadores gregos estivessem preocupados com a substancia ou elemento constituinte do Universo com 0 mesmo esp{rito com que 0s fisicas da atualidade e de um século para cé investigam as “particulas’” ou outras ocorréncias de cujas estruturas, disposiggo @ comportamento no plano microscépico, resultam 08 fatos observados no plano macroscdpico que & © nosso usual de todos os dias. Estruturas e comportamento esses com que se torna possivel explicar tais fatos, ou antes representé-ios con- ceptualmente (mentalmente) e formalizar e exprimir essa representagio que os descreve através do simbolismo matemético. Evidentemente Preocupages dessa natureza eram completamente estranhas, como no podia deixar de ser, 20s ensadores gregos. Nem possuiam eles iastro suficiente de conhecimentos para cogitar delas, nem tampouco a maneira de propor o sssunto © em seguida desenvolvé-lo apresentam a mais Temota analogia com o que ocorre nos procedi- ‘mantos da Ciéncia de nossos dias. De fato, o que os pensadores que se ocupam do assunto tém em mira 6 exsencialmente uma questo gnosiolégica que constituiré o pano de fundo de todo debate, ¢ tema central da Filosofia grega em geral. J em outra oportunidade procurei desen- volver esse assunto” que consiste resumidaments no seguinte. Trata-se em suma e esquematicamente de explicar como neste mundo tdo variado e em permanente fluxo e transformargo; onde as feicdes naturais se apresentam aos sentidos ndo somente sob tal multiplicidade de aspectos a ponto de funca se assemelharem perfeitamente entre si; como também porque se modificam sem cessar; trata-se assim de explicar como é possivel neste mundo to variado e variével, multiforme e em fluxo e transformagéo permanentes, como. & possivel um verdadeiro e legitimo Conhecimento ue implica uniformidade e permanéneia, condigdes essas_indispenséveis para. a caracterizagdo e identificago dos objetos daquele Conhecimento, Todo Conhecimento comeca necessariamente por essa_caracterizagdo e identificago dos objetos que se trata de conhecer, o que somente & conce- bivel na uniformidade e estabilidade detes. Os milésios responderdo a essa questo, que é, como se vé, fundamentaimente gnosiolégica — tratase no essencial de estabelecer e fixar as ‘condigBes do Conhecimento — responderéo com (1 Diaétce do Conhecimento, 1965 (68 ed), 1,177 ()_Mals tarde, at sempre na mesma tins de pensamento, r @ sua substéncia material ou assemelha Breoncherd para. eles a tunelo de repress substrato permanente e estével do Universo que faz ossivel © Gonhecimento. Com isso os milésios avara bem mostra da’ ingenuidade de sues concepees sinda preses inteiramente a um vel rudimentar € grosseiro de Conhecimento nfo liberto do empirismo de seus cdmecos, e confun dido por #0 com os dados diretos & imediatos dos sentidos com que a Homem entra em primeira € original contato com a Realidade exterior, Uma nova gerago de pensadores mais maduros ue segue esses procursores ese inaugura. ne segunda metade do VI sée. A.C. procurard dar a Guestéo uma resposta mais profanda — embora a mesclem ainda, em grandes proporeées, com as osseiras concepites dervades dos milion cepeses esses que somente desapareceréo obra de Platio, A multiplcidade einstabildade dos feigdes naturais seré por eles atribuida a ilusdo dora dos sentidos. Por trés dessa lusio, dirdo eles, se abriga a verdadeira Realidade, onde se vt me fat od tina SLi ‘Sire © ue vture ature 9 murs sett Atte ew pose ries “Seah eos Ie oan wise er Ss a ne ‘ase sen or natrt ogee uno ca 1S ibsis do cue ot om permenant aro arb, x. etic ond Theat hs cio mn ‘que é Filosofia encontram a uniformidade e permanéncia que se ‘rata de apreender e que proporcionardo 0 legftimo Conhecimento. A idertidade dese princfpio ideal (ou pelo menos semiideal, como € 0 caso dos mais antigos pensadores desse fase), princt- io unificador da Natureza, variaré segundo os fil6sofos: sero 9s ndmeros, para Pitdgoras; 0 SER, para Parménides; 0 Logos para Heréclito; © Nous para Anaxégoras... Mas seja qual for a hatureza atribufda ao principio _unificador, ele mal disfarca © em Gltima insténcia se confunde sempre com 0 pensamento. E a salucéo do pro- blema da uniformidade na multiplicidade, e da permanéncia no fluxo das coisas e feicbes do Universo, #2 transferird para o plano do pensa- mento do Homem, exibindo-se com isso 9 natu- eza do que seria a Filosofia ¢ seu objeto, que no consistia, como poderia 8 vezes parecer 2 primeira vista, e nas concepeées grosseiras dos milésios podia mesmo iludir, no consistia nas felg&es da Natureza. O objeto de que se ocu- am os pensadores que mereceram, e com acerto, 8 qualificaggo de “filésofos” (pois de outra forma setiam, como realmente os houve, simplesmente homens de ciéncia,. esse objeto eram 0 pensa- mento @ 0 produto da elaboracdo desse pensa- mento que vem a ser 0 Conhecimento. Is50 6 patente sobretude, e por isso 0 destacamos aqui, naqueta concepgo que mais se projetaria no ‘futuro desenvolvimento da Filosofia, e Low 36 Gurante séculos constituiria, podemos dizer, seu tema central. Refiro-me 20 SER de Parmé. niides, que 6 afinal, e sem embargo da tempestads verborragica que a Metafisica desencadearia em torno do assunto?, ndo 6 senéo exnressio goral i680 mental com que se quali- identificam as feigdes da Natureza, ¢ com isso so caracterizam, determinam e fixam. © SER ¢ originariamente a cépula (verbo) com que formalmente se exprime a qualificardo 6 s designa a identificagio (a érvore & um vegetal, 2 homem ¢ racional, isto com que escrevo é uma esferogréfica...}. Nio pode haver davida que Parménides pressentiu “com sua _concepeio, confusamente embora, mas com mais clareza que qualquer de seus contempordneos, que a questio Central proposta pelos milsios se situava efetiva mente no plano conceptual. Que se tratava, para empregarmos uma linguagem no caso anacrdnica, de "um problema da “teoria do conhecimento’” O pressentimento de Parménides — que alids ficard nisso, degenerando em sua esdrixula © grossoira lmagem de uma “esfera imévei, sem principio sem fim” — encontraré seu intérprete — em Seguimento aos Sofistas € sobretudo Sécrates (9) Heidegger chega consierar 0 “problems! do SER, © centro ty Floto, @ entende que 2 & palava SER nib exon, no exstra © Homem como tall : em Plato, ; No vemos equl entrar no exame da filosof Platénica. Ela se resume no essencial, pode-se dizer, na observagdo de Raphael Demos: “A filosotia de Platdo se sumariza na vida da razo" Nao importa que Plato tenha hipostasiado a Razéo, fazendo dela um mundo supra-sensivel & parte: 0 mundo das Idéias que faz contrapeso & contrasta com o mundo sensivel; que cons protétipo de que esse mundo sensivel néo é senso imperfeita reprodugao. Esse mundo das Idéias no 6 sendo 0 pensamento, a fungdo pensante e a atividade racional do Homem. E é desse pensamento disfergado, sublimado e substancializado que 0 filésofo se ocupa. E se ocupa num exame que, desbastado do floreio em que este poeta que fai Plato 0 envolve, revela efetivamente, e com precisfo e seguranca, alguns dos aspectos exsenciais da atividade do_pensamento na estruturagio do Conhecimento. Em particular, 0 processo mental da identificagio e qualificaggo fundamento e ponto de partide de tod? atividede racional na (1 Te Dato Pa amt in eb 8. owe, Wain ~ er Pa Pl 0 mans tov 2050 Ini no 620980 un sito, ume gue, soo € 9 cae sgniens, Tobe expe po cote ue comer inna 20 Hote". Alfed Weber (Ctio Pradofque é Filosofia 39 laboragdo e expresso do conhecimento, encontra em Platdo um analista seguro. E foi a compreensio esse process que permitiu a Plato abrir ae Perspectivas para a formulagio da légica formal Gue, jf delineada e potencialmente contida na Sra te {lés0f0, saré desenvolvide por’ seu lo sucessor Aris j forma finale acabada, we we Ihe dard Se alguma divida houvesse, nos fil acerca da natureza e do objeto da Filosofia neste sua fase preliminar e ponto de partida do que seria © pensamento grego, essa divida se desfaz inteina. mente na consideragdo e exame da obra platonice ue consistiu em continuar e prolongar a linha de desenvolvimento daquele pensamento, procurande, © com grande sucesso, dar resposta as perguntas nele propostas, Aquilo de que Platéo se ocupe em continuagdo aos pensadores que o precederam, © que constitui o objeto essencial e Fundamental de sua obra, contribuigio méxima para a cultura, sao © pensamento © 0 Conhecimento tal como’ nde 2 mesma sola ge dete su 'rscdoura 38 © centralizada, como vi Droblema da unidade e permandne na dhersace, e fluxo em que a Natureza se apresenta ‘aos senti- dos, “unidade e permanéncia”” essa que jd se fixara {no consenso Geral, ou pelo menos decisivamente J dominante) no SER de Parménides, que no vem a ser sendo — isso também se consagrara — 0 universal, idéntico e permanente, em contraste com 0 particular dado na percepcdo sensivel © diverso e em transformagdo constante. Universal que se revela e representa na Idéia, no conceito. E daf que Platio parte, O que, traduzido para nossa linguagem ordinéria e corrente, vai dar em ue as Idéias do platonismo néo so outra coisa mais que aquilo que entendemos por Conheci mento. Plato exterioriza suas Idéias e thes concede uma existéncia extra-humana. Mas vistas mais de perto @ no quadro de nossas concepeies atuais (que tém atrés de si a alimenté-las e a thes darem bbase, noo esquecamos, a longa experiéncia, aprendizagem © progres

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