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ke RE) PYRE er LE YUE S SAGRADAS ESCRITURAS: Centralidade e Autoridade numa perspectiva anglicana if 05 Igreja Episcopal Anglicana do Brasil Centro de Estudos Anglicanos Apresentacao Uma das maiores preocupagées expressas na Ultima reuniao do Grupo Consultivo do CEA foi a necessidade de se explorar mais didaticamente a Biblia. Desde o Seminario Marcas do Anglicanismo, percebeu-se que a abordagem da Escritura como fonte de nossa Teolo- gia, como substrato de nossa Liturgia, carrega consigo os riscos da du- biedade hermenéutica. Existem os que entendem que a Biblia ¢ 0 “texto”. E, como tal, esquecem a “floresta”, com sua diversidade de cores e enfoques. Ou- tros, porém, a encaram de maneira superficial, com medo quem sabe de “mergulhar” nas suas profundezas e descobrir que para além do texto ha um propésito. Quem sabe, nao precisamos resgatar a visio de que, ao invés de ser um “ponto de chegada”, a Palavra de Deus seja concre- tamente o “ponto de partida” da nossa espiritualidade E com essa preocupagao que publicamos este quinto niimero da série REFLEXOES, dedicado a Escritura. Trata-se de uma traducao, feita por D. Sumio Takatsu, de um texto do Prof. Frederick H. Borsch, intitulado “Todas as coisas necessdrias a Salvagéo”. Complementando a tradugao, temos dois textos que pertencem a tradigao anglicana, construida na tltima década: A Conferéncia de Lambeth de 1988 e o Relatério de Virginia. Esperamos que esses textos sirvam como importante ferramenta para nossas liderangas. E, como parte de nossa metodologia de traba- lho, aguardamos a manifestagao daqueles que quiserem destacar pon- tos ou fazer sugest6es sobre aspectos nao contemplados nesta edi¢do. Em Cristo Jesus, Senhor Nosso Rev Francisco de Assis da Silva Coordenador TODAS AS COISAS NECESSARIAS PARA A SALVACAO Frederick Houk Borsch O estado atual anglicano com referéncia ao lugar da Biblia na Igre- ja desenvolveu-se dentro da histéria dos latitudinarios - tedlogos do século XVIL, que apelavam 4 Escritura, Razao e Igreja, e interessados no saber humano. Temos reconhecido as razGes politicas e historicas - que remon- tam, no minimo ao século XVI - de certo grau de ambivaléncia e medidas de ampla tolerancia na compreens&o do cardter da autoridade e inspiracao da Biblia. Na medida em que os anglicanos podiam concordar que a Biblia tinha papel central e, de certo forma, crucial na fé e na pratica ( especial- mente, na adorago), talvez esse fosse mais o que poderia esperar. “Nao existe um dogma exato sobre a inspiragdo que se espera receber como exi- gido de um eclesiano” que Charles Gore sustentava com certo orgulho. E dia, também que “certamente, ninguém tem o direito de impor nos seus seguidores qualquer crenga particular sobre a inspiracao, sua natureza ¢ seus limites”. A necessidade tornou-se, em certo sentido, uma virtude na medida em que a Biblia veio a ser mais amplamente acessivel em inglés ¢ mais gente aprendia ler. A capacidade da maioria dos individuos para ouvir e ler a Biblia ¢ tomar decises espiritualmente orientadas por si mesmos com um minimo de orientagao da parte da lideranga da Igreja foi conside- rada, no minimo, em algumas partes da Comunhao Anglicana como sendo um sinal de fortalecimento, sinal de maturidade que ela esperava de seus membros. “A dispersao da autoridade no anglicanismo esta enraizada na convic¢ao de que os cristdos para os quais as Escrituras sao lidas em sua propria linguagem (especialmente, no contexto da liturgia) so capazes de discernir os essenciais da fé’ (S. Sykes) Ha, todavia, perigos ébvios envolvidos em tornar escritos selecionados tao centrais da vida da comunidade de crentes e deixa-los suas interpretagdes tao abertas. A centralidade pode sugerir a muitos uma compreensao de que a Biblia pode e deve ser usada com tamanha autorida- de legalista que outros nao estiio desejosos de aceitar. Ou algumas partes da Biblia sao usadas dessa forma e outras partes sem muita reflexdo prévi e aprofundada e pode-se resultar em confusio de argumentos e falta de integridade. As Escrituras podem tornar-se uma causa de divisio, ao invés de fonte de unidade da comunidade e de comunidades da Igreja. Um perigo oposto esta em que a Biblia podera ser altamente hon- rado, mas nao levado a sério, profusamente mencionada, mas nao aplica- da para a fé e pratica com rigor e consisténcia. Na medida em que os marés do relativismo, o método cientifico e critica historica tornam mais problematicas as formas pelas quais a Biblia é ouvida, entao a Biblia vem a ser mais reverenciada do que lida. As mais variadas tradugdes apare- cem e as encadernagao fica mais bela cada dia, a Biblia fica nos estantes. As passagens das Escrituras sao mais veneradas nos oficios littrgicos da Igreja do que ouvidas e expostas. Como, entao, a biblia pode ter o lugar de autoridade na vida da Igreja e de seus membros outra que bajulagao? Nao ha divida que as Igrejas da Comunho Anglicana vivem hoje com a maioria desses perigos e, com freqiiéncia, passam por eles, as vezes, severamente. Ha horas em que os perigos se juntam e as pessoas sentem-se dogmaticamente espancadas com a Biblia que nao se lé, A Escritura pode ser usada para atacar ou apoiar quase qualquer idéia por aqueles que conhe- cem os pedacinhos do contetido da Biblia sem dar atengdo a qualquer prin- cipio de interpretagao. Nao obstante, é 0 argumento deste capitulo que ha muito na abor- dagem anglicana contemporanea da Biblia que pode ser reconhecido afir- mativamente como sendo corretamente orientada pela propria Escritura, pela experiéncia de seu uso e pela reflexdo com sabedoria e oragdo sobre a fungao da Biblia na fé e vida cristas. Os perigos que estéo envolvidos em aceitar a fungao central e nica na fé crista, embora ainda se faga sua auto- ridade relativa a outros aspectos da experiéncia crista, sio riscos que de- vem ser assumidos. SE, todavia, a Biblia deve ter o seu papel proprio, me- didas devem ser procuradas para contrabalangar, ou, pelo menos, minimizar os riscos, Procedamos lembrando-nos de certos aspectos histéricos e carac- teristicos da Biblia. Entao, consideremos como a Escritura pode melhor ser considerada como uma fonte inspirada de revelagao para a Igreja e como pode ser vista sua autoridade. Reflitamos, finalmente, sobre a compreen- sao ¢ medidas que a Igreja de hoje poderia usar para assegurar a fungao propria da Biblia. NAS COMUNIDADES DA FE A Biblia surgiu da experiéncia das comunidades que acreditaram que Deus estava misteriosa e decisivamente presente e ativo entre elas. E de importAncia critica lembrar-se de que as comunidades da fé precederam Acomposi¢do da Biblia e eram contextos de seu desenvolvimento e redagao. Durante os estagios em que foi composta a Biblia ( no periodo de mil anos) as comunidades interagiam com as partes da Biblia que ja haviam sido escritos e faziam comentarios desses textos e aditamentos. Como a Igreja surgiu apds a vida, morte ¢ ressurreigao de Jesus, a unica Escritura que ela conhecia era a Escritura do judaismo. Os escritos do Novo Testamento eram, de certa forma, comentarios das Escrituras mais antigas a luz do evento de Cristo, mas também trouxeram mudanga na in- terpretacao da estéria de Israel para os cristaéos. Entéo, naturalmente, era ainda um periodo de varios séculos antes da Igreja chegar a uma concor- dancia aproximada sobre quais livros deveriam ser considerados como ten- do autoridade para a fé cristé. Através desse periodo, mais especialmente em seus estagios iniciais permaneceu um senso vigoroso de que 0 que tor- naya uma pessoa crista foi o contato pessoal com o Cristo ressurrecto por meio da comunidade continua dos discipulos e 0 conhecimento das estérias basicas e ensino da fé por meio dessa comunidade. Entre as primeiras gera- Ses dos crist4os foi nas palavras ditas e nao nas escritas 0 Cristo vivo foi melhor encontrado se ganhava um senso da presen¢a de Deus no mundo. O Deus que nfo poderia ser visto nem capturado nas formas fixas de declara- des escritas poderia ser ainda ouvido na dindmica das comunidades em continua pregacfo e “re-narragfio” de suas estérias. S6 gradualmente as Escrituras vieram ocupar o seu lugar como fonte de inspiragao e testemu- nho da fé que poderia ser dito estar em mesmo nivel do continuo ensino oral da comunidade, as quais poderiam ser usadas nfo sé como guia, mas também corretivo desse ensino oral. Desde esse tempo, no interior da mai- oria das tradigdes cristas, houve, no minimo, certa consciéncia de que a Biblia é 0 livro da comunidade e deve estar, de alguma forma, em dialética com a continua comunidade de fé para sua propria compreensio ¢ interpreta- ao. Talvez, deve ser lembrado acima de tudo que o melhor meio da conti- nuidade do cristianismo e sua propagacao (pelas razGes teoldgicas e praticas) 0 de pessoas para pessoas. Ei nesse contexto a Biblia encontra seu papel mais tradicional. DIVERSIDADE NA BIBLIA Observamos que a Biblia foi composta no decorrer de um periodo de dezenas de séculos. Ela tem sua procedéncia nas diversas culturas e varias linguas. Mesmo 0 Novo Testamento, num periodo relativamente breve, reconhecemos que diversas comunidades e perspectivas influiram fortemente no que foi escrito e na maneira de sua apresentagao. Certamen- te, o grupo que recebeu a Carta aos Hebreus parece muito distinto daquela que recebeu a Carta de Tiago. A comunidade crista em Corinto deve ter se diferenciado amplamente daquela que, primeiro, ouviu 0 Evangelho de Mateus. Os quatro Evangelhos sao transformagao em textos escritos de uma histéria de varias décadas de ensino, controvérsia, perseguicio, do recontar, e da adogao de forma, que resultaram em énfase muito particulares. Também os diferentes autores do Novo Testamento tiveram sua atitude dis- tinta para com as Escrituras judaicas e aplicaram-lhes métodos diferentes de interpretagao. A consciéncia dessa diversidade tem causado, as vezes, angustia aos crentes que esperam encontrar na Biblia um testemunho mais univoco da forma e cardter da fé. Todavia, essa mesma consciéncia tem sido ilu- minac4o e auxilio para outros que tentam entender construtivamente a diversidade de énfases existentes no cristianismo, e, em particular, na Comunhao Anglicana. Se o cristianismo tinha, desde o inicio, alguma coisa dessa natureza, talvez, tal pluralismo pode ser observado como teo- logicamente e historicamente benéfico - um dado que no é um desenyol- vimento posterior, mas que é esséncia da experiéncia crista. Independen- temente de nossa reagao para com a diversidade e pluralismo na biblia, devem eles ser tratados, todavia, como uma das realidades hist6ricas para a interpretagao biblica. Por vezes, essa diversidade pode ser acolhida com facilidade: dife- rentes perspectivas sobre Jesus aprofundam a compreens&o de alguém a respeito de tudo que Jesus pode significar para a humanidade. No entanto, noutras vezes, a Escritura parece falar com tais diferentes vozes a ponto de ser ambigua, pelo menos, se nao paradoxal ou até contraditéria. Deus ¢ suas criaturas humanas tém alguma forma de semelhanga e relagao. Deus pode ser falado antropomorficamente. Todavia, Deus e seus caminhos sao completamente diferentes, virtualmente incognosciveis a parte da revelagao. Deus é um Juiz severo e implacavel, mas sua misericérdia é generosa e acima da medida humana. Seres humanos, suas acgdes e escolhas esto qua- se inteiramente sob controle divino. Nao obstante, os seres humanos sao Tesponsaveis pelo que fazem. Ja comegou o Reinado de Deus, porém esti no futuro. Pode-se falar dele como um lugar e como experiéncia interior, Jesus é plenamente humano e, também, Ele é plenamente de Deus. Pode-se fazer das aparentes contradigdes paradoxos e, entao, resol- ve-las, porém, pode-se comecar reconhecendo que o proprio carater dialético de tao grande parte da Biblia tem esse Propdsito. Parece afastar a quem deseja ter respostas faceis ¢ estabelecer solugGes para as questées € preocu- pagées religiosas. Talvez, especialmente, no ensino de Jesus aparece, as vezes, resposta ambigua estudada, pardbolas e enigmas, que inicialmente interrompem aqueles que buscam Tesposta direta as suas perguntas: Como 6 o reinado de Deus? Que devo fazer para herdaro reinado de deus? Quantas vezes o meu irmao contra mim e devo perdoar? Por que comes com os pecadores e publicanos? A resposta de Jesus sdo palavras e ages que falam nos cegos que véem, € nos surdos que ouvem, enquanto os que tém aparentemente boa visdo € audicdo nao enxergam Jesus e nem o ouve. Os que anteriormente eram considerados inaceitaveis sentam-se agora 4 Mesa. A calamidade deve ser vista como uma nova oportunidade. H4 repentina e misteriosa abundan- cia e maravilhosa graga. Suas pardbolas comecam freqiientemente em meio as circunstAncias do cotidiano: nas fazendas, nos cam pos, com dois irmaos, refeicao, semeadura e colheita. Mas, na medida em que as estérias progri- dem elas sofrem voltas e reviravoltas. Na medida em que a estéria parece menos plausivel na sua superficie, aparecem estalos no que antes se pensa- va ser uma realidade aparente e 0 ouvinte é indagado a procurar uma verda- de mais profunda. E convidado a ter parte em varias figuras na estéria e compartilhar sua experiéncia. O movimento metaférico no coragao da pa- rabola atrai o ouvinte para ver se ele pode perceber novas possibilidades com respeito a presenga e atividade misteriosas de Deus no mundo - o que Jesus falou como sendo o reinado de Deus. E como se dissesse que se al- guém olhasse sé a superficie da coisas nao tem olhos para ver e ouvido para ouvir como Deus estd presente em sua cria¢do. O processo tem sido descri- to como o de “reorientago por meio de desorientagdo” Para alguém se tornar consciente do reinado de Deus é preciso um novo ouvir, uma nova visdo € uma nova esperanga (0 que os Evangelhos denominam de metanoia, arrependimento - mudanga de coragao e mente). Mui freqiientemente as parabolas trabalham com a inverséio, apon- tando para a consciéncia de que a atividade do reinado de Deus é surpreen- dente e inesperado. O inesperado exige, também, resposta. Novas formas de relacionamento entre senhores e escravos, irmaos, pais ¢ filhos referem- se a uma nova ordem do reinado. O tema repetido das pardbolas enyolvem ter, perder, e achar, ou esconder e descobrir. Deve-se procurar, embora a descoberta possa vir como dom, Este processo nao ¢ apenas um tema, mas também a estrutura de muitos dessas estérias: o ouvinte deve procurar 0 sentido. As estérias sugerem mais do que isto: as verdades mais essenciais ¢ fundamentais da vida nao podem ser facilmente expressas ou prontamen- te apreendidas. Deve-se fazer a busca. PARTICIPACAO POR MEIO DA NARRATIVA E preciso investir-se - participar para entender. Genuino conheci- mento e entendimento vém sé por meio da participacao. A narrativa e 0 uso aliado do simbolo e metafora convidam continuamente essa participagao. E bem possivel acreditar que essa € uma entre muitas razdes porque muito da Biblia esté na forma de estéria e que todas elas estfio colocadas na mol- dura do drama biblico de um perdido e encontrado, vida perdida ereerguida. Naturalmente, isso é verdade também com o Antigo Testamento e varios comentaristas recentes tém ajudado os leitores a perceber como pequenas fendas nas estdrias, ambigiiidades envolvidas nos didlogos ena apresentagao das personagens, mudanga de perspectivas e outros aspectos do contar a es- toria atraem as pessoas a narrativa ¢ insinuam as verdades e mistérios a res- peito da vida que podem ser expressos em nenhuma outra forma. Os intérpretes estao ajudando os leitores a ouvir modulagées da Biblia que eram mais acessiveis as primeiras geragdes. Durante iiltimos dois séculos varios movimentos culturais e intelectuais levaram os crist’ios a crer que havia apenas duas perguntas importantes deve-se perguntar di- ante das passagens biblicas: isto aconteceu ? (ou como aconteceu?) e o que significa? Considerando os beneficios potenciais ¢ os desafios dos novos meétodos histéricos, a primeira pergunta tornou-se o foco predominante os criticos liberais e conservadores, Ent&o, como outras disciplinas e areas da pesquisa humana tornou-se mais orientadas para produzir respostas as perguntas e apresentar as afirmacées em linguagem proposicional, tam- bém pareceu importante ser capaz de expor as verdades biblicas nas formas semelhantes. A narrativa veio a ser considerada secundaria. A tarefa do expositor consistia em extrair o sentido da narrativa e depois a estéria po- deria ser descartada ou usada para fins de ilustracdo. Isso era alguma coisa como alguém que pudesse exaurir o valor do Rei Lear investigando suas raizes nos antecedentes histéricos, ento, se extrai a mensagem de que o verdadeiro amor nao fara sua propaganda em seu beneficio e pode desco- brir isso tarde demais. A estéria serA preservada so para ilustrar esses pon- tos principais. Felizmente, houve sempre os movimentos em ago que ajudaram os anglicanos a preservar a consciéncia da primazia da narrativa na teologia biblicamente fundamentada - teconhecimentos de que as estérias da Biblia nao sao ilustragdes da Palavra de Deus. Elas sao a Palavra. Aqui o conservadorismo geral de muitos estudiosos e eclesianos ingleses nao tem sido sem beneficios. Foram menos ligeiros para crer que novas abordagens de estudo biblico fossem todo-suficiente - que nao houvesse outras formas de conhecimento. Aqui, também, os dons competentes de narrativa e poe- Sia ajudaram na consciéncia de que a estériae a metafora proporcionavam meios de compreensao que nao poderia ser plenamente compreendida pe- las linguagens da légica, da ciéncia ou do empenho com a exatidao histori- ca. A descrigfo apocaliptica e as estérias da criagao, por exemplo, soaram cordas mais ricas de significado o povo havia ouvido suas Personagens Poéticas e simbélicas mais profundas, A apreciagao da capacidade da me- tafora dizer 0 que de outra maneira nao poderia ser dito o mesmo pensado ajudaram a preservar a linguagem religiosa de se tornar ou idolatrica ou irrelevante. Deus é pai, mas no deve ser Deus identificado literalmente com idéias humanas de um pai. A atividade e presenga de Deus sao reinado e banquete, mas de maneiras que, ao mesmo tempo, so semelhantes e diferentes que as metaforas conotam. As metéforas sé vivem quando ha participagao em sua criatividade criadora de tensao, A heranga ou presenca entre os anglicanos de Shakeaspeare, Donne, Herbert, Milton, Carew, Blake, Keble, Trollope, Austen, Elliot, Auden, Lewis e Paton preservam essa cons- ciéncia aguda. O maximo valor em relagao a isto tenha sido, provavelmente, o papel central da biblia na liturgia. A leitura regular da Escritura no contex- to dramatico da adoragdio comunitaria junto com os temas e figuras bibli- cos nas palavras da liturgia através do ciclo do ano cristo pode causar uma nova capacidade de ouvir o poder narrativo da Biblia. Este ato de conhecer pelos participantes da adoragao e pela congregacao os ajuda a interpretar as oportunidade contemporaneas do servico, dos sofrimentos e auséncia de Deus, no entanto, um senso da proximidade de Deus, tudo a luz do drama biblico, Os temas, metdforas e tramas das estérias da Escritura (nao apenas © seu significado superficial, mas no nivel mais profundo de sua leitura e oitiva) sao catalisadores para contar novas estérias da fé e graca nas suas vidas. Assim a Escritura forma o carater da comunidade e dos individuos nela, moldando sua compreensio do bem edo mal e informando o caminho que eles vivem e as escolhas que eles fazem. HISTORIA E ESTORIA Esta abordagem da Escritura como narrativa e como formas de parabola e poesia no contexto narrativo nao responde a todas as nossas indagag6es. A maioria das pessoas do século XX tm preocupagées a respei- to da relagao da Biblia com a histéria e sua autoridade sobre suas vidas que exige estudo histérico, formas de exegese e andlise a luz da experiéncia e uso da razio. Em alguns casos, tal como a estoria de J6 ou a parabola do filho prédigo, qualquer relagao da estéria com 0 evento histérico pode nao ter importancia. Em outros casos, tais como a estéria do nascimento virgi- nal de Jesus é possivel que os leitores reconhecam junto com William Temple que as questées histéricas, embora nao sejam irrelevantes, poderi- am nos levar a nao alcangar o propésito teoldgico central das narrativas. No entanto, quando se abordam a maneira como Jesus enfrentou a morte, e a ressurreigao a maioria das pessoas sente 0 aperto das preocupacées histé- ricas de modo mais agudo. Em todas essas instancias, os discipulos de hoje podem encontrar o grande valor na informagao reunida pelos arquedlogos, socidlogos, histori- adores da literatura e outros estudantes da Biblia e suas colocagées. A in- formacao pode, acima de tudo, ajudar-nos a reconhecer, as vezes, quao grande distancia existe entre as formas contemporaneas de ver o mundo e as do passado. Entao, o leitor informado da Biblia reconhece quao facil- mente algumas das preocupacées e atitudes originais dos escritores bibli- cos podem ser mal interpretados. De muitas maneiras, viviam num mundo, 0 passo que os discipulos de hoje vivem num mundo muito diferente. A visao de ambos ¢ limitada dentro de seus horizontes particulares. Essa consciéneia pode ajudar-nos em conseguir perspectiva sobre nossas maneiras de ver o mundo - lembrando-nos de que propriamente o nosso ponto de vista é relativo ¢ altamente condicionado por muitos costu- mes contemporaneos ¢ convengées de educa¢ao e cultura. A Biblia tem a vantagem de pertencer a nenhuma cultura contemporanea e assim desafia todos os povos a néo ser prisioneiros da visao da vida de hoje. Esse desafio pode levar aos esforcos construtivos de ver como os horizontes do presente e do passado possam tocar, causando alguma Participagao. Suas vidas po- dem adquirir maior profundidade e¢ tonalidade de cores, por meio de me- Thor compreensao do mundo dos primeiros discipulos - suas circunstancias e formas de ver e interpretar as coisas. Considerando a crenga de que existe alguns aspectos da natureza humana mais duradouros que so compartilha- dos por muitas geragdes e eras, pode-se chegar a ver, ouvir e sentir alguma coisa do mundo deles. No entanto, trazemos A meméria de que os dados ¢ anilises hist6ri- cos nao podem por si mesmos criar essa visdo, E também preciso ter 0 esforgo imaginativo e 0 veiculo da imaginagio - a maquina do tempo - 0 qual é a participacdio na narrativa, Tanto a compreensdo historica e 0 engajamento direto com o0 texto sdio necessarios para a leitura plena e equi- librada da Biblia. Entretanto, mesmo esta abordagem equilibrada nao serd uma res- posta definitiva a todas as questoes dificeis que a mente inquiridora traz A Biblia a respeito da relagao da estoria da Biblia com Os eventos histéricos. Alem dos abismos profundos na compreensao criada pela distancia dos séculos, pode-se reconhecer que os escritores biblicos nao estavam pensan- do em termos das questdes indagadas pela mentalidade historicamente trei- nada de nossos dias. Muitas das estérias poderiam ser melhor denominada de “similares a hist6ria” do que a histéria nos termos atuais. A maioria das narrativas biblicas poderia ser melhor descrita como estérias que utilizam os elementos histéricos ao invés de historia na forma de estéria. Os eventos que aconteceram na historia serviram como catalisadores das estérias que foram transmitidas e, mais tarde, tomaram a sua forma por meio de experi- éncia da fé que a comunidade teve. Qualquer esforco humano de relatar e entender envolve, naturalmente, tal processo de interpretagio em maior ou menor grau. Mesmo o que se est vendo e ouvido no presente momento é determinado, em grande parte, pelo que se procura e pela forma com que foi treinado para perceber por meio de memoria ¢ intelecto, Neste sentido, compreendemos que todo o conhecimento € resultado de interpretacdo, porém esse esforgo interpretativo parece ter sido importante na formacao das intuigdes e estérias biblicas. Quando se indaga como a Biblia pode ser pensada como uma obra inspirada, é possivel que seja mais util focalizar o processo interpretativo. INSPIRACAO Tem-se formulado uma variedade de consideragdes sobre compre- ensao da inspiragao da biblia. As vezes, a énfase recai nas proprias palavras como sendo inspiradas e portadoras em si mesma da revelagao. Talvez, noutro extremo do espectro o destaque esteja na presenga de Deus nos even- tos especificos que o povo de Deus relatava, entao, da forma melhor que pudesse. Um ponto de vista anglicano mais comum ¢ uma énfase interme- didria na Escritura como sendo a Palavra de Deus porque “Deus inspirou os autores humanos”. Isto deixa mais abertos os problemas tais como - de que modo se pode conhecer que Deus agiu numa circunstancia particular e se esse evento deve ser relatada com exatidao para ser fonte de inspiragao futura. Também, nao se exige uma crenca na inerrancia verbal da Escritura. Examinando mais estreitamente, pode-se sugerir que o proprio pro- cesso interpretativo ¢ a inspiragdo - essa capacidade distintamente humana para contar a est6ria acerca do que aconteceu - que é mais particularmente o dominio da atividade reveladora de Deus. Com efeito, da perspectiva huma- na, ha muitas vias em que a interpretagao € 0 que acontece quando a mente procura propiciar a conectividade e significagao 4 experiéncia presente, ali- nhando-a com o passado por meio da memoria, com o futuro pela imagina- go. Talvez deva-se reconhecer que a inspirapao do Espirito de Deus (em cuja imagem somos criados) esteja na capacidade humana de dar forma de estéria aos acontecimentos ¢ dos meios afins de interpretagao. Talvez mais particularmente, deve-se conceber 0 Espirito Santo aquela atividade “media- dora” de Deus, que possibilita a interacao humana com os eventos do mundo material e criar oportunidade de propiciar a esse mundo o significado. A énfase aqui recai, claramente, numa visio mais subjetiva do que objetiva de inspiracdo, mas, porque ela tende a localizar a atividade de Deus entre 0 que acontece no mundo material @o mundo humano de inter- Preta¢do, 6, pelo menos, estd relacionado com a objetividade e subjetivida- de. E possivel que a vantagem dessa posigao esteja nas pistas que ela pode proporcionar aos discipulos de hoje, sugerindo-Ihes como eles podem ali- nhar suas expectativas da inspirag&o que vem da Bibliacom a atividade de Deus entre aqueles que compuseram a Biblia. E por meio do processo interpretativo que se realiza a inspiragdo. Existe interagao entre a estériae Os eventos que os discipulos procuram, consideragao entre a narrativa (e outras formas de interpretacao) e 0 que acontece, sobre tema, propésito e significado. Nesta batalha para usar palavras ¢ estérias para entender que o cristo créem que ouviram Deus. Visto desta forma, nao sé a obra de interpretagdo é considerada inevitavel, mas também é avaliada como a arena principal da ago do Espi- rito Santo. Aqueles que hoje considerariam a Biblia como inspirada podem confirmar esse senso de inspiragao em sua propria experiéncia. Com efei- to, a tinica forma de legitimar a inspirac¢do da Biblia é por meio de tal correspondéncia na experiéncia atual da interpretagao da Biblia ¢ da vida. Mais uma vez, faz-se idéia de como e Por que a participacao é exigida e a estrutura narrativa é tao importante. Na medida em que se torna parte do processo interpretativo, o que foi mais uma observacao pode ser aprofundada ao ponto de adquirir percepgao paraa sua propria vida. Entao, Se essa percepedo parece ser um dom e ter parte na verdade que é essencial atoda a vida, sera denominada de revelacdo. Porém nao ha tal revelacdo sé Por uma mera leitura ¢ oitiva. Ela nao toma o seu assento em cima de uma pagina impressa. Deve-se entrar e mergulhar. E uma espécie dessa experi- éncia que mais exatamente pode ser chamada oitiva fundamental da Biblia. Eisso que se espera que a Biblia faca para os cristdos - ajuda-los a desco- brir, ver, ouvir e encontrar perspectiva sobre questées de importancia fun- damental para a vida. Nem todas as questdes a respeito do relacionamento com o evento hist6rico, interpretagao e inspiragdo sao assim respondidas. Ainda pode- mos desejar uma correlagao mais estreita entre a estéria semelhante a his- toria da Biblia € 0 que podemos considerar como histéria real. Todavia, demos nos lembrar de que 0 que os autores biblicos procuraram relatar é 0 que pode ser designado de “historia efetiva”- isto é, o que eles consideram como 0 pleno significado dos eventos na inter-relaco com o modo como eles creram ser guiados por Deus para interpreta-los e com a forma como seu entendimento dos propésitos divinos os levou a perceber 0 mundo em torno deles. Qualquer outra forma de narracdo seria senao deslizamento sobre a superficie dos eventos e passar por cima do seu potencial para se tornar parte do processo de revelacao. Somos lembrados com Bispo Gore de que nenhuma doutrina ou teoria de inspiragao se exige dos anglicanos. Provavelmente, nenhum pon- to de vista possa ser adequado a tal amplo tépico que trata de como os humanos chegam a conhecer (e pensar sobre 0 conhecimento) e da possibi- lidade da presenga de Deus no mundo ¢ da interagao com a experiéncia humana. Também é verdade, provavelmente, que a nossa bordagem do problema da inspiragdo deve mudar, na medida em que a nossa viséo mun- do passe por alterag4o - na medida em que, neste caso, vivamos em dife- rentes mundos. Entretanto, o nosso debate sobre este ponto nao nos permi- te uma atitude ampla para com a inspiragao que se focalize sobre a relagao entre o proceso interpretativo e experiéncia e Deus em acdo nesse encon- tro vivo. Permite, sim, 0 escopo de um senso da presenga divina em relagao com Os eventos ¢ entre os que compuseram a Biblia por meio de suas pala- vras registrada. O debate, também, tem ressaltado, acreditamos, corretamente © modo com que a participagao no processo interpretativo seja necessaria para que a revelacao aconteca. Por outro lado, a Escritura convida essa parti- cipacdo e pode atrair seus ouvintes por meio das narrativas. Porém, é tam- bém essencial que os ouvintes se dediquem, pelo menos, a expectativa de que a revelacao pode, ent&o, acontecer. A disposigao e 0 desejo de ouvir Deus sao requisitos. Nestes termos a Biblia fala de fé para fé. OUVINDO NA COMUNIDADE DE HOJE Como parte de sua dedicagao a pessoa participaré na comunida- de da fé. Foi na comunidade que se formaram primeiro as tradigdes. Desde 0 comego, a compreensio e interpretagio dependeram, em gran- de medida, do fato de que as tradigdes foram ouvida e refletidas em comunidade, Foi, especialmente, ai que as narrativas foram conhecidas como modelo ou estérias mestras da fé, pelas quais se esperava que a reyelagao ocorresse quando contadas e ouvidas de novo. O exemplo principal dessas estérias mestras para a adoracgao da comunidade é a Ceia do Senhor. Pela sua celebragio (re-edigao, memorial, etc. Nota do tradutor) litiirgica, os cristdos experimentam, novamente, a presenga do seu Senhor, se lembra de sua Paix4o, morte e ressurrei¢do e antecipam a comunhdo do novo tempo. Embora, de dife- rentes maneiras outras estérias (ensinos, ordculos, hinos, e leis que vem com elas) sao re-experimentadas como eventos de palavra ou discurso em comunidade. A comunidade da-lhes 0 contexto vivencial e signifi- cado. E pela fala e relacéo humanas que a Palavra de Deus é melhor ouvida. Essas estérias, profecias, dizeres e cang6es criam e moldam re- ciprocamente a comunidade e ajudam dar-Ihe seu cardter e sua identi- dade continuadora. A meméria do éxodo, exilio, Moisés, Davi, Jeremias e Jonas, narrativa de nascimento humilde de uma crianga, das refeigdes compartilhadas, o pao e o yinho, a Cruz, e a nova esperanga vibrante que se seguiu - no caminho a Ematis e Damasco: sem o conhecimento e sem partilha dessas estéria nao haveria comunidade, Mesmo quando os individuos léem a Biblia privativamente, eles a léem como participan- tes das estérias da comunidade. Suas leituras s4o informadas pela expe- riéncia de suas comunidades ¢ a influéncia de sua leitura nos contextos de suas vidas particulares ¢ levada de volta para sua vida em comum com outros cristaos. Novamente deve-se enfatizar que se tornam mais vivas nao quan- do sAo observadas apenas nas paginas, mas quando a voz viva da-lhes uma nova vida. Como as palavras e partituras de uma cangao sé podem ser apreciadas limitadamente por meio da leitura com olhos e devem ser ouvidas, se desejar conhecer a cangao, também as narrativas, cangdes e poemas Biblicos devem ser executados, se as pessoas devem participar neles. Pela experiéncia do contar e ouvir as estérias, elas se tornam os sacramentos da voz do Espirito de Jesus é levada para a comunidade. E pela comunidade ajudada pela biblia que o Jesus vivo é ouvido - e nao de outra forma. Pelo encontro humano e pela partilha das estorias da fé bi- blica podem-se acender novas pardbolas da fé e esperanga. ESCRITURA, RAZAO E TRADICAO Obviamente, continuam as tensdes na interpretagao da Biblia. Ha- vera difcrengas entre pessoas, entre as comunidades, entre a compreensao tradicional ¢ a de hoje. Essas coisas nao sao novidade. Observamos que essas tensdes j4 existiam na Biblia. Elas sao criativas, tornando pessoas e comunidades insatisfeitos com interpretagdes demasiadamente cOmodas e levando-as a ponderagao mais profunda. O que é vital 60 didlogo - a dispo- sigdo de ouvir e esperar ouvir de novo. As raz6es humanas sero parte do didlogo interpretativo - tanto quanto foi importante na formagio da Biblia. A experiéncia crista contem- poranea - os desafios e oportunidades da continua comunidade cristi - in- fluira na interpretacZo, como também os primeiros crist&os deixaram as suas marcas sobre a composicao dos materiais biblicos. A experiéncia do passado da Igreja no seu uso da biblia e na formagdo das liturgias, dos credos, das posigdes doutrinarias influirao no curso da compreensao con- tempornea da Biblia. E isto que se tem denominado de consenso dos fi cis, e € obra de todo o povo de Deus guiado pelo Espirito Santo, homens e mulheres de oragao, estudiosos, pregadores, santos, os dedicados as obras de caridade, e cuidado pastoral, e qualquer fiel envolvido no mundo do trabalho, estudo, e do viver e do amar didrios. Em nossa geraco, estamos aprendendo novamente que os pobres entre nds e os que experimentam a desvantagem ¢ opressao so importantes no trabalho de ouvir e interpretar a Biblia. Os bispos (com seus auxiliares) sio a continuidade visivel desse oficio de ensino e interpretacéo. Também, a biblia esté em didlogo com eles - provocando e exortando, agindo como critico da Igreja contemporanea. Nesse processo a Igreja esta envolvida nado meramente na recitagio das verdades, mas em viagem de descoberta. E assim que Leonard Hodgson descreveu a aventura da fé biblica: ONovo Testamento mostra a tentativa de fazer caraoucoroa do que aconteceu sob a base de sua compreensdo judaica de Deus e do universo. Assim, longe de nos ter dado explanagéo plena e final do significado de nossa fé, eles estavam tomando os primeiros passos para suas descobertas, iniciando um processo que, sob a orienta- ¢Go do Espirito Santo, continuou desde entéo e ainda esté em andamento...temos de levar em consideracGo como a compressGo disso pelos cristdos neo-testammentdrios foi aprofundada e enriquecida na experiéncia de seus sucessores e ainda esta sendo aprofundada pela nossa experiéncia da vida no mundo de hoje. A nossa sede por alguma forma mais certa de autoridade nao é provavelmente respondida neste didlogo. O que acontece quando nos en- contramos em controvérsia a respeito de um artigo de fé, a pratica da Igreja ou questao de ética? Qual é principal e deve ter precedéncia na decisao: a biblia, tradig¢éo ou raz%o junto com experiéncia? Quem decide? Na avaliagao contemporanea da heranga anglicana e das Igrejas Epis- copais um dos meus colegas nesta série de ensaios expde essas prioridades: Escritura ¢ Tradigao tém prioridade sobre a razio e a experién- cia, .. No entanto, devemos reconhecer uma outra prioridade, a pri- oridade da percepeao. Somos, acima de tudo, gente que racioci- na, € experiente... Também, o desenvolvimento humano tem seu lugar de prioridade... A tradigao entendida em termos de autoridade da Igreja, vem primeiro transmitindo a Escritura para nds, convencendo-nos de sua natureza até que afirmemos suas verdades pela experiéncia... O autor estava muito consciente do que estava dizendo. No didlogo de nossa experiéncia e raz4o com a tradigo ¢ Escritura seria um equivoco conceder a uma delas a primazia absoluta. Elas funcio- nam melhor e melhor promovem a maturidade do discipulado cris- tao quando eles dan¢am uma com a outra em “interagdo criativa”. No entanto, ha razées porque a Biblia deve ter certas formas de primazia. A razao ¢ tradi¢ao mudam. Experiéncias variam, mas a Escritura é feita Canon, uma espécie de régua, padrao de fé, E para ela que os cristaos continuamente voltam para medir seu discipulado. A Biblia contem as es- torias mestras compartilhadas em comum por todos os cristaos de diferen- tes culturas e tempos que propiciam a identidade e exemplos de vida fiel. Essas estorias oferecem 4 comunidade sua mensagem basica de esperanga e desafio, julgamento e graga. Elas proporcionam a linguagem comum de fé para todos os cristaos. A Biblia tem, também primazia por causa de seu carter narrativo essencial. Através de sua narrativa semelhante a vida ela lembra continua- mente os cristaos que é na experiéncia da vida que Deus é mais provavel- mente conhecido. Generalizagdes esforgos analiticos para afirmar verda- des mais abstratas tém seu lugar importante, mas elas sao reflexdes secun- darias sobre as particularidades da vida onde Deus é vivido como sugere narrativa biblica. Esta semelhanca com a vida tem, além disso, a inteng¢io de ajudar os discipulos na base nas particularidades da vida cotidiana como parte de seus esforgos para responder a Deus e servir os outros. A énfase biblica no amor ao préximo, na pratica da justiga, em falar a verdade com amor, em ter fome e sede pela retid&o, em fazer paz no tem a intengio de viver em teoria, mas em meio ds frustragdes ¢ esperanga de ver os minutos passarem ¢ alteragao no seu bolso de cada dia. Com suas ambigilidades, ironias, incertezas e paradoxos, a narrati- va também nos lembra continuamente que ha muito a respeito de Deus e de sua presenga no mundo que os humanos nao entendem. Esta nao é tinico fator, mas é um fator muito importante que a Biblia pode levar aqueles, de outro modo, mui facilmente domesticam Deus para seus propésitos a ter entendimento a respeito de Deus. Entretanto, logo que se admitam essas formas de primazia, deve- se, também, reconhecer, de novo, que a Biblia deve ser sempre interpretada por meio da razao e da experiéncia cristé antes que seja conhecida como revelacdo. Nao se trata de perguntar se dever proceder dessa forma. Todos nds o fazemos. A quest&o tem a ver com de que modo, consciente e com fidelidade se faz a interpretacao. 17 Assim, a danga emaranhada continua - cheia de cortesias e mesu- ras - dentro da comunidade da fé, que sé ela pode tomar decisdes acerca de sua f€ e pratica. Conduzida no seu ensino pelos bispos como representantes visiveis da continuidade e unidade tradicionais da Igreja, com o uso da experiéncia e raziio e com a Biblia como Canon das estérias-modelos, a_ comunidade dos discipulos procura conhecer ¢ fazer a vontade de Deus. Embora os cristios possam ter preferéncia por outra forma ( queiram rece- ber uma forma mais absoluta de autoridade), este é evidentemente a forma que Deus deseja que a autoridade seja experimentada pelos seus seguido- res. Orientada pela Biblia e guiada pelo Espirito Santo, a autoridade se desenvolve no interior da comunidade. DIRIGINDO-SE NA DIRECAO DE DEUS Entretanto, tensdes referentes 4 autoridade e uso da Biblia pode ainda se tornar destruidoras se a biblia a for usada erroneamente. No perio- do da Reforma, a biblia foi ouvida e proclamada equilibrar de certos aspec- tos do que foi considerado de tradigao errénea, inclinagao infelizmente fortalecida uma tendéncia de usar a Biblia como um livro de resposta com textos comprobatérios com referéncia 4s questdes de vidae pratica da I gre- ja. Muitos herdeiros da Reforma usaram a Escritura para estabelecer os argumentos tantos grandes como pequenos, inconscientes ou ocultando-se dos fatos de que eles tinham, também, de recorrer a raz4o e A sua propria experiéncia e compreensao de suas tradigées para interpretar a Biblia. O resultado compreensivel foi o processo que dividiu o Cristianismo refor- mado em centenas de denominagées, cada qual afirmando ser mais biblica- mente baseada. ; No entanto, a Biblia nao é um livro de resposta. Ela pode falar vigorosamente a um bom niimero de questdes ¢ preocupagGes contempora- neas, mas a sua voz ser distorcida quando for solicitada a dar resposta especifica as questdes que seus autores humanos nem mesmo tinham en- tendido, Além disso, nao é intengdio principal da Biblia ser um livro de resposta cm seu tempo. Se fosse, s6 se poderia imaginar que teria sido escrita de modo diferente. Ha, por certo, passagens (especialmente, nas partes mais antigas do Antigo Testamento) que fala especificamente as quest6es particulares, porém com mais freqiiéncia o ensino tem cardter mais geral. Pode-se ouvir, nos Evangelhos, 0 esforgo deliberado da parte de Je- sus esvaziar as preocupagdes daqueles que desejavam Dele o pronuncia- mento nova lei ou um novo cédigo ético. Por meio de perguntas e estérias Ele pede dos que Dele aprenderiam a pensar na autoridade e responsabili- dade em novas ¢ diferentes formas. A estoria mestra neste respeito é a Pardbola do Bom Samaritano, colocada contexto do didlogo entre Jesus e um mestre da lei, que tipifica u individuo que procura usar a lei como Arbitro absoluto de sua vida (Le 10.25-37) Jesus ouve a pergunta inquiridora ( Que farei para herdar a vida eterna?) como um convite para um debate sobre a lei e qual delas tem precedéncia. O mestre da lei sabe que os mandamentos do amor sio soberanos, mas ele sente a necessidade de encontrar uma forma de sua aplicagao legalista. Jesus pareceu ter ouvido o mestre e sua necessidade com muita atengo. Ele reconhece que o mestre esta, na realidade, per- guntando o oposto do que ele pensa estar indagando. Sua preocupagao nao consiste em saber que sao todos os proximos que ele possa amar. Ao invés disso, ele deseja saber a quem ele deve amar e a quem ele pode desconsiderar como préximo e colocé-lo fora de sua preocupacio ética. Ele realmente quer saber “quem nao é meu proximo?” Confrontado com todos os que poderiam exigir dele caridade e bondade, o mestre da lei quer uma lei religiosa para poder dizer a quem pode colocar fora de sua preocupagao embora ainda se considere como uma pessoa ética. Jesus responde com a estéria de uma pessoa ferida que foi socorri- da por alguém que nao precisava levantar a questio do mestre da lei. A parabola muda dramaticamente todo o foco da discussao da preocupacao negativamente orientada sobre o ser ético paraa possibilidade de praticara bondade de modo genuino. Os ouvintes tornam-se conscientes de que seu problema nao esté tanto em nao saber o que fazer ou como deve-se portar. A dificuldade deles esta na falta do poder de tentar amar seu proximo como asimesmos. Evidentemente, Jesus nao teve a intengao de apresentar uma nova série de leis ou sistema ético.. Suas estérias nao proporcionam tanto as respostas, mas a dire¢ao em que a pessoa deve enfrentar a descoberta do 90 verdadeiro cardter da vida eterna -a vida do reinado de Deus. Temos obser- vado que Ele exigiu a metanoia - arrependimento que leva uma nova ma- neira de ver a vida eo viver, a retido que exceda a dos escribas e fariseus (Mt 5.29), no mais numa lei escrita, no poder do cuidar de outrem, do perdao, da aceitagao e da cura. “A Biblia”, disse Phillips Brooks, “€ como um telescépio. Se al- guém olha através telescdpio, ele yé o mundo paraalém do proprio telescd- pio. Mas se ele olha para o telescdpio, ele nao veranada sendo 0 telescdpio. A Biblia é esse através da qual se deve ver o além, mas a maioria olha para elae vé apenas a letra morta.” Com efeito, imaginar e adorar um Deus que poderia, de alguma forma, ser definido pelas palavras humanas seria uma forma de idolatria que nao leva ao crescimento e 4 maturidade humanos, mas A estreiteza e morte. Nao é intengo da Biblia ser um cddigo escrito que mata, mas um veiculo do Espirito Santo que da vida.(2Co 3.6). A Bi- blia aponta para além de si mesma como a Pardébola do Bom Samaritano para a pessoa ferida, para aquele que tem o poder de curar. A pessoa ferida é0 Cristo em todos os famintos e sedentos, forasteiros, doentes, prisionei- ros, a quem os discipulos devem servir. (Mt 25.35-36) Também Jesus esta na Parabola como alguém que estende a mao em compaixdo. Nao apenas Ele contou as estérias, mas na memoria dos discipulos Ele era o Bom Samaritano para o Bartimeu e Zaqueu, e para o paralitico e pessoa endemoninhada, mulher siro-fenicia, Maria Madalena e para muitos outros. O mesmo da lei é indagado se nao desejaria agir como 0 Bom Samaritano (a palavra é repetida quatro vezes no dialogo. Nao é um deba- te tedrico. A parabola trata do poder de amor). Entao. a lei pode ser guia, mas corretamente interpretada, é também fonte de liberdade e poder para anova Vida. Os discipulos contemporaneos muito bem ouvir a si mesmo como sendo desafiados quanto ao uso da Biblia. O RISCO DA LIBERDADE BIBLICA Tal liberdade é cheia de riscos. A Biblia deve ser central e essenci- al para vida de testemunho cristo e discipulado, mas ela nao € absolutaem sua autoridade. A liberdade de ouvir o Espirito que guia toda a Biblia para ninguém “expor uma parte da Escritura de modo que seja repugnante para a outra parte” possa apresentar desafio tal qual o mestre da lei se sentiu atemorizado quando lhe foi solicitado se ele seria capaz de disputar com o Samaritano. Os discipulos contemporaneos sdo chamados a ser mais ho- nesto e mais direto com respeito ao fato de que todas as tradi¢ées cristas, na pratica, se ndo em teoria, “reconhecem que algumas partes da Biblia t¢m mais autoridade do que as outras.” E importante aqui, provavelmente, ressaltar, também, o corolario inverso: algumas partes sao de menos im- portancia para a vida crista contemporanea do que outras. Aceito com fide- lidade esse reconhecimento pode levar a uma nova liberdade para a Igreja adorar o Deus vivo e tentar ser 0 povo de Deus nesta geracao, ao invés de travar batalhas ou continuar com os argumentos que pertencem ao passado. No entanto, isto nao significa que essas partes da Biblia considera- das menos significativas para a vida de hoje nao sejam mais ouvidas ou deixem de ser objetos de reflexdo. Com efeito, este reconhecimento da a Igreja a liberdade de ponderar tais porgdes da Biblia numa perspectiva his- térica e fé. Essa liberdade nao deve permitir que tais porgGes sejam ignora- das dissimuladamente, mas que as permita ter lugar genuino na oitiva regu- lar da Biblia. Nessa perspectiva, pode também acontecer que tais passa- gens ¢ livros assumirao significado diferente ¢ novo para a comunidade. Pode-se ver esse acontecer mesmo neste tempo, por exemplo, quando a imagistica apocaliptica (com seu otimismo inerente com respeito ao po- der de Deus renovar seus propésitos na criagao) e o humanismo profundo da literatura sapiencial (com sua apreciagao dos poderes do que fraqueza na relacdo com Deus) adquirem uma nova oitiva e poder de revelacao. Muitos cristéos contemporaneos vieram tomar consciéncia da im- portancia desta liberdade biblicamente inspirada na interpretacao e uso da Biblia por causa da forma patriarcal das grandes segées da Biblia. A razaio ea experiéncia cristé em desenvolvimento ajudam os discipulos deste tem- po a perceber que essa forma de linguagem nao dita o que Deus exige ou deseja do seu povo hoje. O espirito que conduz essa liberdade nao deve ser inibida pela Biblia, mas pode ser ouvida falando através da Biblia, assim como 0 Espirito que levou os antigos discipulos a procurar vencer a escra- vidao veio da biblia que, de outra forma, sé se fala 4 questo passivamente. 21 22 Por conseguinte, toma-se a sério 0 ensino de que “a Santa Escritura contem todas as coisas necessdrias para a salvacAo”. As estérias e materiais associados da Biblia propi o senso de direc&o - 0 farol - que capacitam os discipulos a experimentar a presenga de Deus no mundo e aprender seus propésitos. Os materiais biblicos propiciam a fonte de poder para comegar a fazer a Sua vontade. Libertam, ao mesmo tempo, os cristaos da obrigagao para com qualquer autoridade absoluta que ndo seja o Espirito de Deus feito melhor conhecido em Cristo, a quem a Biblia aponta. Nada mais sera exigida como necessaria para a crenga e para vida fiel. Entao, a Biblia é juiz e critico bem como guia e fonte de poder e conforto. Quando é ouvido corretamente é a palavra de Deus - nao apenas julgamento e nao apenas graca, mas desafio e esperanga ao mesmo tempo. Talvez, ela julgue, acima de tudo, a comunidade quando ela tenta usar a Biblia para evitar as responsabilidades da liberdade cristaé mesmo assim ela proporciona a graca e poder para viver. CENTRAL E FUNDAMENTAL Pode-se olhar retrospectivamente e perceber - como acontece com todas as Igrejas - um responso diversificado para com Deus no seu uso da Biblia. A Escritura tem sido usado com freqiiéncia de modo divergente como base para um novo legalismo. Noutras vezes. ela é reverenciada, mas sem dar ouvido. Talvez. com mais freqiientemente ela é usada para incon- sistentemente para, principalmente, procura legitimar o status quo da politia, posi¢ao econémica e costumes do partido religioso dominante. Pode-se, também, perceber os locais e tempos onde as comunida- des cristis, encontrando-se na situagéo de se dirigir ao publico, tém sido arrastada para dentro do drama redentivo patenteado nas paginas da Biblia ¢ ali descoberto vis&o, esperanga, identidade e encontro com Deus. A in- ventada tolerancia do anglicanismo (quando nao tem sido mera indiferen- ¢a) tem sido parte do seu “génio” capacitando os anglicanos a usar a Biblia com seriedade e liberdade responsavel que ela inspira. De modo reciproco, a diversidade e carater dialético da Biblia tem tido efeito na teologia anglicana e no seu desejo de tolerar diferencas amplas em matérias nao consideradas essenciais para fé e até mesmo na interpretacao das matérias consideradas essenciais. Tem havido reconhecimento de que tao essencial central como a Biblia é nao ¢ uma autoridade absoluta, mas que mostra para a Igreja o discernimento do Espirito Santo atuando na comunidade. A fungao central da Biblia tem sido salvaguardada - nao tanto na doutrina quanto na lei - mas pelo lugar que ela ocupa na liturgia da Igrejae na vida devocional do seu povo. Uma vez que pela vida da comunidade a Biblia deve ser ouvida e interpretada, ent&o é obviamente importante que ela seja lida, ponderada e comentada regularmente. Desta forma, também 0 carater narrativo bésico da Biblia tem lembrado continuamente 0 povo de que Deus se dispde ser encontrado na interpretagao da vida humana diaria. Como também aconteceu no passado, hoje, esse uso da Biblia como guia e fonte fundamental da verdade esta sob ameaga. Numa época de relativismo, angiistia econémica, temores globais uma parte de todos nds deseja uma autoridade absoluta. A seguranga de um livro de resposta para compreensivelmente atraente, Até mesmo entre os que sao conscientes dos perigos ¢ dos faceis agrados de tal abordagem um neo-literalismo mascara- doe seletivo pode substituir a integridade e liberdade do Evangelho. Hoje, talvez a ameaga mais dbvia ¢ apresentada pela falta de fami- liaridade com a biblia, As nossas culturas propiciam tantas outras atragdes - tantas outras estdrias e informagOes apresentadas de modo divertido - . Poucas pessoas |éem suas Biblias quando passamos tao rapidamente da era de Gutemberg para a audiovisual. Nio ha resposta facil para este problema, mas vale a pena lembrar que as estérias biblicas foram comunicadas oralmente (contato pessoal) € visualmente antes que fossem estabelecidas numa livro para ser lido. Lembramo-nos de que o poder da Biblia é mais conhecido quando suas estérias se tornam vivas por meio de sua re-narra¢ao. Portanto, é possivel que agora haja oportunidade da Escritura ser ouvida e vista de modos me- Ihores do que num passado recente. No entanto, nao ha sombra de divida que muito do “génio” do anglicanismo depende da comunidade, que conhece e reflete sobre a Biblia 23 - de modo que se torne, numa frase adaptada de Stephen Bayne, “arquitetura de nossos pensamentos”, Pelo menos, é importante como sempre foi que a comunidade busque lideres cuidadosamente formados no conhecimento fun- damental da Escritura, sua historia e principios de interpretagao - lideres que terfo o conhecimento das tentacdes do falso biblicismo ¢ que saberao resistir-Ihe. A comunidade deve, entao, solicitar de seus lideres e de si mesma que a Biblia seja lida e ouvida pelos seus filhos (criancas), ponderada, in- terpretada e celebrada para que seja ( como Gregério Magno que ajudou levar o Evangelho a Inglaterra) um rio de fé ( raso e profundo, no qual uma ovelha possa andar e um elefante flutuar. Guiada e apoiada por esse rio a comunidade encontra sua forca para se aventurar. Por meio desse livro sim- ples e profundo, 0 povo adquire a visao da era que ha de vir - um dominio prometido de novas oportunidades para a justiga e paz. (TradugGo de +Sumio Takatsu) Frederick H. Borsch foi Reitor e professor do Novo Testamento no Semi- ndriona Faculdade de Teologia do Pacifico (Episcopal) e Dedo da Capela e pro- fessor de Religidio na Universidade Princeton. Também, foi membro do Conselho Consultivo Anglicano, da Comissdio Inter-anglicana de Doutrina e Teologia. Hoje ele é Bispo da Diocese de California, com sede em Los Angeles. AUTORIDADE DA BiBLIA (Conferéncia de Lambeth 1988) 75. Na comunhio dos crentes, Cristo exerce autoridade para um propésito particular. Sua autoridade chama a Igreja ea mantém unida para que seja seu Corpo, sinal visivel de Sua presenca no mundo e do poyo sacerdotal que oferece os sacrificios espirituais a Deus. Os membros da Igreja tém, por isso, uma vocacao para serem filhos e filhas de Deus, discipulos e cooperadores da Palavra de Deus. A sua vocagao € franqueada a eles ea eles é conferida por meios concretos, isto ¢, através de uma série de liturgias e praticas organicamente relacionadas ¢ conduzidas por agentes huma- nos, pelas quais o Espirito Santo vincula a Igreja com Cristo e capacita-a para participar do seu divino chamado ¢ destino. 76. Todavia, os seres humanos sao inteligentes, auto-conscientes, que discernem o sentido em sua experiéncia e comunicam esse sentido, por meio de linguagem, isto ¢, pelo uso de sinais e simbolos. Por essa razao, a questo do exercicio da autoridade de Cristo na Igreja tem-se inclinado, por razées praticas, a centrar-se em torno de seu ensino comunicavel, isto é, a questao de como os crentes devem entender e comunicar, em doutrina e feitos, o que Cristo, por meio do Espirito Santo, tem mostrado a eles a respeito de Deus e deles mesmos. Todavia, mal se levanta essa questao, uma coisa fica clara. A Igreja é, necessariamente e nao por acidente, uma comunidade continua de interpretago. Sua busca por compreensao do en- sino ou da “mente” de Cristo assume a forma de um processo, em que a Igreja interpreta e aplica, de quando em quando, a linguagem das fontes das quais ela aprende de Cristo e pelas quais O ouve. Por sua vez, isto requer que se identifiquem tanto meios confidveis de compreensao dessas fontes quanto a agentes confidveis de sua interpretagao. 71. Pode haver pouca divida para os anglicanos ou para seus companhei- ros cristZos de outras tradigdes com respeito 4 identidade do que chama- mos de “fontes” do conhecimento da Igreja sobre o Cristo. Todos afirmam a autoridade soberana das Santas Escrituras como o meio pelo qual Deus pelo Espirito Santo comunica a sua palavra 4 Igreja e capacita, assim, 0 povo a responder com compreensao e fé. Esse veiculo de mediagfio da Pa- lavra de Deus é, naturalmente, uma colegao de escritos humanos, toda uma literatura que registra - na forma de narrativas historicas, lendas, profecias, poemas, parabolas e cartas - a estéria de Deus que lida com uma série continua de comunidades humanas e de resposta destas aos atos de julga- mento e salvagdo. Essas Escrituras da Igreja recebe a qualificagao de “tes- temunho inspirado de modo tinico da revelagao divina”, e “norma principal para a fé e vida cristis”. Essa norma redunda-lhes em sua compreensdo de Deus, de Cristo em quem “Deus é conosco”, por conseguinte, em sua pro- pria salvagao e chamado. 78. Todavia, a Escritura deve ser traduzida, lida e entendida, e, por conse- guinte, o seu significado deve ser compreendido s6 por meio de um conti- nuo processo de interpretacdo. A sua mensagem essencial nao é velada nem ambigua, mas clara inteligivel. Entretanto, essa mensagem deve ser 25 26 e, de fato, o 6, anunciada e explanada em circunstancias, nos contextos culturais e linguagens em constante mudanga. Disso surge uma questo: quais principios governarao a exposicao das Escrituras por parte da Igrejae quais orientagGes serao aceitas para sua interpretagao. Diretamente a essa questo os anglicanos tém se voltado para ter resposta ampla ou geral, des- de o século XVII. A Escritura deve ser compreendida e lida, a luz dos contextos da “tradigo” e “razao”. 79. Tome-se a palavra “tradigdo”. Num sentido, esse termo pode denotar a propria Escritura, porque ela encarna a “tradigéo”, “a mensagem”, “a fé uma vez entregue aos santos”. Porém a tradigéo pode também denotar, num outro sentido e no sentido lato, nao o depésito da fé, mas a vida conti- nua da Igreja guiada pelo Espirito Santo, que recebe a mensagem de Deus e, ao recebé-la, a interpreta. As Escrituras sao produtos da tradi¢ao como a entendemos. Elas sao a literatura que a Igreja recebeu gradualmente e as definiu como interpretacao que tem autoridade e incorporacao da palavra pela qual a Igreja vive. Uma vez reconhecidos como “livros da Igreja’” neste sentido especial, estes tornam-se, entretanto, assunto de um continuo processo de interpreta¢ao que assume um miriade de formas. Na pregacio, no ensino, nos padrdes de oragéo comum e individual, na exegese erudita, nos habitos de conduta e ago, na definig&o dogmatica, a Igreja se apropria das Escrituras e expressa sua compreensio das mesmas. Essa tradi¢ao viva de interpretaco continua fez surgir formulas de peso, de influéncia e de autoridade: oragGes eucaristicas classicas, por exemplo, e hinos populares, para nao mencionar os Credos ecuménicos, que se fazem paralelos as Es- crituras como swmdrio da mensagem essencial.' 80. Entretanto, a tradi¢do neste sentido nao deve ser equacionada, simples- mente, com as formulas classicas ou formuldrios que ela produz. Antes, a tradigao é a “mente” (mentalidade) viva e crescente da Igreja que se formou de geragao em geracao e foi desafiada pelas Escrituras no processo de apro- priagfo daquela Palavra na liturgia, vida e ensino. O apelo a tradigao 6 0 apelo a sua “mente”, a mente conduzida e articulada pela propria linguagem que a Igreja utiliza na adorag&o e na pregagao - como receptor melhor sinto- nizado do que muitos com a Palavra de Deus. ' Por causa do Reino, pp.65s5. 81. Entdo, que devemos fazer com a “razéo”? Falando dela propriamen- te, a “razfo” significa simplesmente a capacidade humana de simbolizar e ordenar, compartilhar e comunicar a experiéncia. E a dadiva divina em virtude da qual as pessoas respondem e agem com a consciéncia em rela- Go ao seu mundo ea Deus. Compreendida nesses termos, a razao no pode ser divorciada nem das Escrituras nem da tradigao, uma vez que nenhuma delas pode ser concebivel dissociada da ago da razao. 82. Todavia, considerada numa outra perspectiva, a raz4o significa nao tanto a capacidade de dar sentido as coisas, mas como “fazer sentido” e ser “ra~ zoavel (racional)”. O apelo a raz4o tomna-se, ent&o, o apelo ao que 0 povo - e isto significa um povo num determinado lugar e tempo - considera bom senso ou senso comum. Em sintese, ela se refere ao que chamamos da “mente”(mentalidade) de uma cultura particular com sua maneira caracte- tistica de ver as coisas, indagar a seu respeito e explica-las. Entao, se a tradigao é a mente (mentalidade) que os cristéo compartilham como cren- tes e como membros da Igreja, a razio é a mente (mentalidade) que eles compartilham como participantes de uma cultura particular. Ea destilagao, em linguagem e perspectiva, da experiéncia, que constitui um determinado modo de viver. Houve, na Histéria, épocas e lugares onde coincidiam a mente (mentalidade) de uma cultura e a mente (mentalidade) representada pela tradigao da Igreja. A Europa latina da Idade Média e a cultura dos arménios poderiam ser mencionadas como exemplos. No entanto, geral- mente nao é esse 0 caso e nao tem sido assim, e, em particular, nos tempos modernos, que tém sido assim denominados (modernos) precisamente por- que desafiam a tradicao cristé em nome da razao. 83. Essa circunstAncia deu origem a uma certa desconfianga da razao entre os cristaos e talyez isso seja compreensivel. A desaprovacao da razao, da- quilo que “da sentido” ao mundo, tornou-se quase um habito nas Igrejas. Entretanto, o anglicanismo vé a “raz4o” no sentido da mentalidade da cul- tura em que a igreja vive e onde evangelho é proclamado, como instrumen- to legitimo e necessério para a interpretagao da mensagem de Deus nas Escrituras. A Palavra de Deus, encarnada como faz o “Deus-conosco”, nao é dirigida a Igreja isolada do mundo, mas a Igreja como parte do mundo. Por isso, o Evangelho que esta nas Escrituras deve ser ouvido ¢ interpre- tado na linguagem que carrega consigo a “mente” (mentalidade) e destila a 27 28 experiéncia do mundo que Deus estd chamando para ser transformado e renovado no Reino que Jesus anunciou2 84. A tradicao e razo representam, assim, dois contextos distintos, em que as Escrituras falam e sao interpretadas. E na influéncia reciproca e no con- flito entre elas - entre a mente (mentalidade) comum da Igreja e a mente (mentalidade) comum da cultura - que se discerne o sentido do Evangelho para um tempo e um lugar particular. Com efeito, poder-se-ia argumentar que a tradigdo - 0 que denominamos de mente da Igreja - é 0 repositorio de tais discernimentos estimulados pela tradigao e linguagem de uma cultura particular. Estar enyolvido nessa situagao dialégica é sempre desconfortavel. Talvez se torne perigoso somente quando aquilo que € propriamente um dialogo se transforma em um longo mondlogo falado somente por uma das partes. A tradigao ¢ a razao necessitam uma da outra a fim de que a Palavra de Deus seja compartilhada . 85. Todavia, 0 processo da interpretagao pelo qual Deus chama, ensina, e alimenta as pessoas como seus discipulos da Palavra, exige que a Escritu- ra, razdo ¢ tradicdo falem por meio das vozes de pessoas vivas. Elas po- dem, com freqiiéncia, permanecer mortas e caladas 4 parte da atividade dos agentes humanos, mestres particulares e coletivos que dio testemunho do fruto do estudo, oragaio e experiéncia declarando, explanando e esclarecen- do a mensagem de Deus. 86. Aqui pensamos, em primeira instancia, no “ministério oficial”, dos Pastores e mestres que Cristo chamou na Igreja para “dar testemunho do Evangelho da graca de Deus” (At 20:24) e para “preservar a verdade que a eles foi confiada” (2 Tm 1:14). Tais pessoas, como ministros da Palavra e do Sacramento, sfo os agentes principais que representam a autoridade de Cristo que alimenta a Igreja. Sao, acima de tudo, responsaveis pela inter- pretagdo das Escrituras na proclamagao, no ensino e no aconselhamento e tem um chamado especial para falar a partir da tradicao e da mente (menta- lidade) da Igreja. : * ibid. pp. 39ss. 87. Porém, os mestres da Igreja nao estdo restritos 4 classe dos detentores ordenados de oficio. Deus suscita na sua Igreja profetas mestres, homens e mulheres sdbios e santos, que, independente de ordenagao, encarnam em suas vidas a graca e as exigéncias do Evangelho. A tais pessoas a Igreja invariavelmente ouye e 0 faz com alegria, pesando suas palavras e yalen- do-se de sua orientacao, na medida do possivel. Tais pessoas podem ser eruditos e pensadores, ou simples seguidores do Caminho. Podem falar e agir na arena piblica ou nas relacdes de nivel mais pessoal. Podem falar de sua experiéncia pessoal ou das experiéncias de grupos de pessoas no seio da Igreja e no mundo. De qualquer forma, seu ministério é parte significa- tiva da economia da autoridade na Igreja. ESCRITURA, TRADICAO E RAZAO Capitulo 3 Pertencendo-se Mutuamente na Comunhio Anglicana (conforme o Relatério de Virginia) Comissao Inter-Anglicana de Teologia e Doutrina I. O Jeito Anglicano: Escrituras, Tradicéo e Razio 3.5 Os anglicanos se mantém juntos pela maneira caracteristica na qual eles usam as Escrituras, tradigao e razao para um atualizado discernimento do designio de Cristo para a [greja em cada gerago. Isto foi bem explicado no Relatério das Preocupagbes Pastorais e Dogmaticas, uma das partes de Lambeth 1988. 3.6 Os anglicanos afirmam a soberana autoridade das Santas Escrituras como instrumento através do qual Deus pelo Espirito comunica sua palavra na Igrejae assim habilita as pessoas a responder com compreensao e fe. As Escrituras sao “ testemunho tinico e inspirado para revelagao divina”, e “a norma primaria para a fé e vida Crista”. 29 30 3.7 Entretanto, as Escrituras devem ser traduzidas, lidas e compreendidas, € seu significado deve ser entendido através de um processo continuo de interpretacao. Desde 0 século XVII, os Anglicanos sustentam que as Escri- turas devem ser compreendidas e lidas a luz proporcionada pelos contextos de “tradigao” e “razio”. 3.8 De certo modo tradiefo significa as Escrituras propriamente ditas, no que elas personificam “a tradigao”, “a mensagem”, ¢ “a fé outrora dada aos santos”. Tradigao refere-se a continua vida guiada pelo Espirito da Igreja que recebe e, ao receber interpreta de maneira atualizada a men- sagem eterna de Deus, A tradi¢ao viva abrange os credos ecuménicos e as orag6es eucaristicas classicas, os quais com as Escrituras sao formadores de sua mensagem essencial. Tradig&o nao deve ser compreendida como um aciimulo de formulas e textos, mas sim como a compreensao viva, o centro vital da Igreja. O apelo Anglicano a tradigao é 0 apelo a esta Com- preensao da Igreja influenciada pela adoragio, ensinamento e vida no Espirito. 3.9 Na verdade, “razio” significa simplesmente a capacidade do ser hu- mano para simbolizar , ¢ assim ordenar, compartilhar e comunicar sua ex- periéncia. E a dadiva divina em virtude da qual as pessoas respondem e agem com percepcao em relac&o ao seu mundo e a Deus, e esto abertas para aquilo que é a verdade em todo o tempo e lugar. Raz4o nao pode ser separada das Escrituras nem da tradico, ja que nenhuma é concebida sepa- rada da atividade da raz4o. Em outra perspectiva, raz4o significa nem tanto a capacidade de dar sentido a coisas como aquilo “que faga sentido” ou “que seja razoavel”, O apelo a razio entio torna-se o que as pessoas - ¢ isto quer dizer pessoas em um determinado tempo e lugar - entendem por bom senso ou senso “comum”’. Refere-se ao que pode ser chamado “a compre- ensao de uma cultura particular”, com suas maneiras caracteristicas de ver as coisas, perguntar sobre elas, e explica-las. Se tradig&o é a compreensao que os Cristios compartilham como fiéis e membros da Igreja, razio é a compreens&o que eles compartilham como participantes em uma determi- nada cultura. 3.10 O Anglicanismo vé a razao no sentido da “compreensao” da cultura na qual a Igreja vive e o Evangelho é proclamado, como um instrumento legitimo e necessario para a interpretagao da mensagem de Deus nas Escri- turas. Algumas vezes as Escrituras afirmam novos discernimentos de uma determinada cultura ou era; algumas vezes elas desafiam ou contradizem estes discernimentos. A Palavra de Deus é dirigida a Igreja como parte do mundo. O Evangelho nascido das Escrituras deve ser ouvido e interpretado nas linguas que dao testemunho ao “discernimento” e purificam a experi- éncia do mundo. Tradigao e razdo sao, portanto, no jeito Anglicano, dois contextos distintos nos quais as Escrituras falam e pelas quais sao interpre- tadas. 3.11 O caracteristico jeito Anglicano de viver com uma constante e dina- mica interagao das Escrituras, tradicdo e razao significa que o designio de Deus tem de ser constantemente atualizado, nao somente cada €época, como também em cada contexto. Além do mais, a experiéncia da Igreja como ela é vivida em diferentes lugares tem algo para contribuir para o discernimento do designio de Cristo para a Igreja. Nenhuma cultura, nenhum periodo da histéria tem 0 monopdlio de discernimento na verdade do Evangelho. E essencial para a completa percep¢ao da verdade que o contexto esteja em didlogo com o contexto. Algumas vezes a experiéncia vivida de uma deter- minada comunidade possibilita que a verdade Crista seja percebida de uma maneira nova por toda a comunidade. Em outras situagdes um desejo por mudanga ou reafirmagao da fé em algum lugar provoca uma crise dentro de toda a Igreja. Com o objetivo de manter a Comunhao Anglicana vivendo como uma comunidade dindmica de fé, e buscando a relevancia da com- preensdo da fé, estruturas para aconselhamento e decisio sao parte essenci- al da vida da Comunhao. 31

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