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Imagens Femininas em Romances Naturalistas Brasileiros (1881-1903) RESUMO Estudo das imagens femininas ex- pressas em romances de traco naturalisia Produtidos no Brasil entre fins do século XIX e principios do XX. Nesses romances, publicados na mesma época, tendo todos como protagonistas Personagens femininas, procurou-se detectar até que ponto a cor e a condigéo social modificaram as representasdes da muther Magali Gouveia Engel” ABSTRACT This article studies the feminine images expressed in novels with naturalistic characteristics produced in Brazil between the late nineteenth century and the beginning of the twentieh. In the novels studied from this period, all with women protagonists, the article seeks 10 detect the extent to which color and social condition modified the representations of Apesar de caracterizada por grande diversidade, a literatura naturalista curopéia que surge a partir de meados do século passado apresenta alguns iragos comuns, dentre os quais destacamos a utilizagio de uma linguagem cientificista como recurso supostamente capaz de assegurar a autenticidade ou a veracidade do que é narrado, Trala-se, portanto, de lancar mao das técnicas de observagaio ¢ de andlise desenvolvidas por diferentes campos da ciéncia para garantir 0 cumprimento de um dos compromissos basicos assumidos pelos autores naturalistas: a fidelidade a realidade que se pretende retratar, Nesse sentido, cabe lembrar que, em meio ao processo de consolidacao das sociedades burguesas européias, o saber cientifico transformava-se em tinico baluarte da verdade. As conquistas cientificas, notadamente nas 4reas da biologia, da fisica ¢ da quimica, viabilizavam mudancas fundamentais na urbanizagdo ¢ na industrializagao destas sociedades, conferindo a ciéncia um Prestigio cada vez maior ¢ mais sélido. Profundamente marcados por Zola ¢ por Eca de Queiroz, surgiram no decorrer dos anos 1880, os primeiros romances brasileiros de cunho naturalista, Trata-sc de um momento bastante expressivo no contexto das Depto Hist6ria - Universidade Federal Fluminense [Rev. Brus. de Hist] S.Paslo [v9 0°17 [pp 287-258 [ago Sone 0 | tansformag6es que assinalavam a construgdo de uma ordem burguesa na sociedade brasileira. O fim das relagOes escravistas (1888) ¢ o advento do regime republicano (1889) assinalam marcos institucionais importantes deste processo. Os intelectuais comprometidos com estas transformagées, republicanos ¢ abolicionistas dos mais diferentes matizes, concebiam as mudangas através de uma perspectiva de modernizagdo da sociedade e do Estado norteada por padrdes europeus de progresso ¢ de desenvolvimento. De acordo com as vis6es mais correntes no meio intelectual da época, na construgdio desta sociedade “nova”, “civilizada” e “moderna” — em oposiga0 & “velha”, “atrasada” ¢ “colonial” ~ caberia a ciéncia um papel de grande relevo. O cientificismo impregnava de tal forma a atmosfera intelectual que até mesmo autores criticos 4 concepgao da ciéncia como tinica via de acesso & verdade, acabavam, muitas vezes, prisionciros do discurso favordvel ao império do saber cientifico!. As obras de cunho naturalista apresentam-se como as representantes mais caracteristicas da concretizacaio da perspectiva que buscava associar, de forma intima, a literatura a ciéncia. Marcados, profundamente, pelas idéias desenvolvidas a partir da teoria darwinista, os autores naturalistas brasileiros Pprocuram, via de regra, assegurar a credibilidade ¢ a veracidade das observagGes, descri¢Ses e andlises que realizam em seus escritos através da utilizagio de uma linguagem cientifica. Conforme observou Flora Siissekind, a literatura naturalista produzida no Brasil em fins do século passado caracteriza-se por “uma crescente e obsessiva medicalizacdo da linguagem e dos personagenns romanescos”, expressa, por exemplo, na preferéncia dos autores pelos “estudos de temperamento”: entre o Zola de Thérése Raquin e de La Béte Humaine ou Germinal, optava-se, predominantemente, pelo primeiro2, Sem divida, tal preferéncia deve ser relacionada ao processo de medicalizacdo da sociedade brasileira, que se desencadeava, na época, através da construgdo de um projeto politico de normatizag¢ao do espago social urbano que revelava uma crescente interferéncia do saber médico na defini¢do e na busca de solugGes para os “problemas” da cidade?. Destaque-se, neste contexto, o surgimento da psiquiatria como um campo auténomo e especializado, a partir da criag4o da 1f 0 caso, por exemplo, de Lima Barreto, que em suas Impressdes de Leitura considerava 0 saber cientifico como ‘nica fonte legitima de poder. Colocando em xeque 0 poder fundamentado num false saber, 0 autor reivindica, claramente, para os sibios (verdadeiros), © poder (legitimo). 2Suissekind, F., Tal Brasil, Qual Romance? RJ, Achiamé, 1984, pp 120 e seg. 3Sobre o desencadcamento deste processo na socicdade brasileira do século passado vejam- se 0s estudos de Machado, R. ¢ outros, Danacdo da Norma, RJ, Graal, 1987; e, Costa, J.F., Ordem Médica e Norma Familiar, R3, Graal, 1979. 238. cadeira “Doengas Nervosas ¢ Mentais” no curso da Faculdade de Medicina do Rio de Janciro (1881), da separag’o do Hospicio Nacional de Alienados (antigo Hospicio de Pedro I) da administrag4o da Santa Casa de Misericérdia (1890) e da criagdio da Assisténcia Médica e Legal de Alienados (1890)*. As representages da mulher elaboradas e difundidas ao longo do século XIX distinguiram-se, sobretudo, pela oposicao homem/razSo/cultura versus mulher/instinto/natureza, construida por Rousseau no século XVIII. Como observou Michelle Perrot, trata-se de uma perspectiva marcada pela crenga na existéncia de duas “‘espécies” as quais sao conferidos sinais caracteristicos distintos: “aos homens, o cérebro..., a inteligéncia, a razdo clara, a capaci- dade de decisio. As mulheres, 0 coragdo, a sensibilidade, os sentimentos”S. De acordo com a mesma autora, o modelo ideal construfdo a partir destes parametros foi largamente disseminado, na época, pela literatura naturalista, que se apresenta, portanto, como uma fonte bastante rica ¢ importante para o estudo destas imagens. Nosso interesse encontra-se centrado na andlise das imagens femininas através das quais foram definidos e veiculados padrdes de comportamento ideais, capazes de identificar e distinguir, segundo as concepgdes médicas vigentes, a mulher normal. Tendo em vista a importancia da produgdo literéria naturalista na construgdo e na disseminagdo destas imagens, escolhemos como objeto de estudo quatro das mais importanies obras brasileiras escritas e/ou publicadas entre fins do século XIX ¢ principio do ‘XX, Trata-se de romances cujas personagens femininas principais assumem comportamentos considerados anormais, sendo por isso classificadas como “histéricas”: Ana Rosa ¢ Magdalena (respectivamente, 0 Mulato, 1881,¢ O Homem, 1887, ambos de Aluisio Azevedo); Lenita (A Carne, 1888, de Julio Ribciro); ¢ Maria do Carmo (A Normalista, 1893, de Adolfo Caminha). Tomando como objeto basico de andlise os casos de histeria descritos, procuramos avaliar a construgao da imagem da mulher ideal através da contraposicao as representagées do desvio € da doenga, qué se expressam, nos textos examinados, na imagem da histérica. te A moga solteira em idade de se casar que adia ou se vé obrigada a adiar © casamento est4 condenada a doenca e/ou ao desvio, a menos que 0 casamento venha salv4-la a tempo. Esta idéia apresenta-se como um trago ACI. Machado, R. ¢ outros, op. cit; ¢, Costa, J.F., Histéria da Psiquiatria no Brasil, ¥ ed., RI. Campus, 1980. Perrot, M., “Les ferames, le pouvoir, Uhistoire” in M. Perrot (org), Une Histoire des femmes est-elle possible? Rivages, 1984, p. 214. 239 comum as tramas dos romances analisados. Vejamos um pouco de cada uma das estérias das personagens “histéricas”, Orfa de me, Ana Rosa foi criada, com muito mimo, pelo pai Manoel, um comerciante portugués bem-sucedido e pela avé beata, Maria Barbara. A instrugo que the foi dada resumia-se a alguns conhecimentos de gramitica, de leitura ¢ rudimentos de francés, completada pela aprendizagem de violdo, piano e canto. Sabia costurar e bordar com perfeigao. As primeiras crises nervosas de Ana Rosa seriam decorrentes de estar ela em idade de se casar e, enquanto nao fosse encontrado um noivo, 0 médico da familia recomenda banhos de mar ¢ longos passeios a pé. A inclinagdo natural para o casamento e para a maternidade torna-se cada vez mais forte, transformando-se numa verdadeira obsess4o para a mo¢a. Durante a noite em que seu pai oferece uma recepgao pela chegada do primo Raimundo, o sono de Ana Rosa nao € muito tranqiiilo: “... de vez em quando (abragava-se) aos travesseiros ©, rémula (estendia) 05 lébios, entreabertos ¢ s6fregos, como quem procura um beijo no espago. Na manhé seguinte acordara pélida e nervosa, & semelhanga de uma noiva no dia imediato as nipeias”®. Assim, fica sugerida uma associaco entre o nascimento da paixdo pelo primo ¢ a emergéncia dos desejos sexuais de Ana Rosa. A partir de entdo, a moga adquire o hdbito de visitar, regularmente, 0 quarto de Raimundo durante suas auséncias. Nestas visitas, surgem outros sinais da manifestag4o dos instintos sexuais de Ana Rosa: “Sempre que encontrava um lengo jf servido, no chiio ou atirado sobre a c@moda, apoderava-te dele € cheirava-o sofregamente, como fazia também com os chapéus de cabega ¢ com a travesscirinha da cama, Estas bisbilhotices deixavam-na caida numa enervagio voluptosa e doentia, que lhe punha no corpo arrepios de febre"”. A idéia de que a mulher é ou est4 “nervosa” porque precisa de homem, até hoje bastante recorrente, est4 presente em todos os romances analisados e, freqiientemente, vem expressa através de imagens que retratam a busca obsessiva do cheiro masculino. Um dia, descoberta por Raimundo numa destas visitas, Ana Rosa se declara ao primo, que, vendo-se pressionado, acaba pedindo-a em casamento, A reag4o da moga surpreende o rapaz: Sazevedo, A., 0 Mulato, 4° ed., SP, Atica, 1982, p. 64. Thhid,, p. 74. 240 “... em seguids, com um desembarago, que abismou o primo e de que ela propria néo se julgaria capaz, abragou-o amplamente, com expansio, pousando-the a cabega no ombro ¢ estendendo-the os lébios numa ansiedade suplicante. O rapaz no teve remédio — deu-lhe na boca um beijo timido. Ela respondeu Jogo com dois ~ ardentes. Entio, © mopo, « despeito de toda a rua energis moral, perturbou-se... Porém teve mio em si...” Note-se que ao enfatizar o desprendimento e a disponibilidade de Ana Rosa, o autor acaba por desqualificar a mulher através de duas idéias bésicas. A idéia de que a mulher, utilizando-se de ardis fornecidos pela sua propria natureza € capaz de conseguir tudo 0 que deseja, inclusive “apanhar um marido”. E, a idéia da periculosidade da sexualidade feminina que deve ser freada pelo “bom senso” masculino. Se louvaveis ¢ desejéveis no homem, as atitudes que denotam iniciativas s4o, portanto, profundamente reprovaveis na mulher. Sendo Raimundo mulato, filho de uma escrava, seu casamento com Ana Rosa € condenado por Maria Barbara e pelo cénego Diogo ¢ acaba sendo proibido pelo pai da moga. Esta proibig4o, bem como as desconfiangas em relaco A autenticidade do amor do primo, leva ao agravamento das crises histéricas de Ana Rosa, diretamente associadas aos obstdculos que se interpunham a tealizagdo dos seus “instintos de fémea”. Desse modo, ela se disp6e a fugir com Raimundo e entregar-se a ele. Na consumacao da primeira relagdo sexual, toda a iniciativa, mais uma vez, coube a Ana Rosa, que acaba engravidando. A partir de entfio, apesar da frustragdo provocada pelos fregiientes adiamentos da fuga com Raimundo, Ana Rosa “sentia-se cada vez mais feliz”, pois sentia realizar em seu corpo 0 sonho de ser mae. Assim, a maternidade € concebida como fonte de prazer absoluto, sendo mesmo capaz de relativizar a importancia da realizagdo afetiva através da relacao homem/mulher. Além disto, veicula-se a certeza de que 0 instinto maternal é nato na mulher; na preparacdo do enxoval para o filho, apesar de nunca terem. Ihe ensinado, Ana Rosa sabia como wdo deveria ser feito, ‘“... qual a melhor flangta para os cueiros; quais as melhores toucas ¢ os melhores sapatinhos de a’ A idéia da periculosidade da mulher sedutora € reforgada pela morte de Raimundo, assassinado por Luis Dias (pretendente de Ana Rosa) auxiliado pelo cénego Diogo (assassino do pai de Raimundo). Ao ver o primo dentro do caixdo que passava diante de sua janela, Ana Rosa tem um crise histérica perde a crianga. Foi, ent4o, morar com o pai é a avé num sitio afastado, onde “esteve & morte”. Com o isolamento ¢ 0 ar do campo, acaba se restabelecendo. A recuperacao plena ocorreria, contudo, através do casamento Sthid., p. 78. Noid., pp. 184-185. 241 da maternidade. Casada com Dias ~ tendo, portando, cumprido seu destino de mulher saudével —, Ana Rosa, “... engordara um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem tomcada, com a pele limpa e a came esperta. Ta toda se saracoteando, muito preocupads em apanhar « cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus trés filhinhos que ficaram em casa, a dormir, (...) © Dias tomara 0 seu chapéu no corredor €, 20 embarcar no carro... Ana Rosa levantara-lhe carinhosamente a gola da casaca, = Agasaiha bem o pescogo, Lulu! Ainds ontem tossiste tanto & noite, queridinho!.,.""!9, Ela que tanto amara Raimundo ¢ odiara Dias... Ela que havia prometido & mie que $6 se casaria por amor... Note-se, pois, que na imagem construida pelo autor no desfecho do romance, a mulher, de um modo geral, revela-se, por natureza, fiitil e falsa, Magdalena, protagonista de O Homem, outro romance de Alufsio Azevedo, perdeu a mae logo que nasceu ¢ foi criada pelo pai ¢ por uma tia beata, D. Camila, Apesar de muito mimada, cra uma moga bem educada e muito bonita. Estdou num colégio de irmas de caridade e completou sua formagao através das aulas didrias dadas por Fernando, por quem se apaixona perdidamente, sendo correspondida. Contudo, o casamento era impossivel, pois Fernando era seu meio irm4o. Ao tomar conhecimento deste fato, Magda parece conformar-se rapidamente, mas recusaria todos os Pretendentes, que, a partir de entdo, surgiriam em sua vida. Apés a partida de Femando para o exterior, Magd4 comega a apresentar os primeiros sintomas de histeria: emagrecimento, palidez ¢ cansaco. O médico, Dr. Lobao, adverte seu pai: - © Conselheiro néo podia imaginar 0 que eram aqueles temperamentozinhos impressiondveis! ... eram terriveis, eram violentos, quando alguém tentava contrarié-los! Nao pediam ~ exigiam! ~ reclamavam! = E se nio se Ihes dé o que reclamam... aniquilam-se, estrangulam-se, como ledes atacados de céleral £ perigoso brincar com a fera que principia a despenar... © monstro deu jé sinal de si; ¢, pelo primeiro berro, vocé bem pode calcular 0 que nfo seré quando estiver deveras assanhado! (Gu) 6 casar a rapariga quanto antes! (...) ~ Casamento é um modo de dizer, eu fago questio € do coito! — Bla precisa de homem!"!!, 1Onpid., p. 190. "Azevedo, A.,O Homem, % ed., RI, F, Briguiet e Cia. Ed., 1942, pp. 40-42. 242 Mas nao havia meio de fazé-la casar e, assim, a previsio do médico se cumpre: as crises se agravam até que Magda entra na fase das febres da letargia. ‘Um dia Magd4 insiste muito com o pai para levé-la até 0 alto da pedreira que ficava ao lado de sua casa. Lé chegando, desmaia ¢ é transportada para baixo nos bracos de Luis, um dos trabalhadores da pedreira. Quando chega em casa, Magda tem uma de suas crises: “Mal se pilhou no quarto... foram extragalhadas as roupes, como se as trouxera incendiadas; mas sentia também nox seus cabelos, no seu rosto em tod ele, 0 mesmo cheiro animal suado, o mesmo enjostivo bodum de came . crus’ O desencadeamento da crise é associado A presenga do cheiro de Luis no corpo de Magdé. O despertar do descjo sexual feminino €, pois, vinculado & obsesstio pelo cheiro do macho. E, mais uma vez, a manifestacao da sexualidade feminina, associada a agressivida ¢ 4 loucura, é vista como algo perigoso. ‘Desde entio, Magda passa a ter, regularmente, sonhos eréticos com Luis, nos quais acaba engravidando e se casando com ele. Através dos contatos sexuais, Magda se restabelece completamente. A sua cura é descrita através de uma simbologia extremamente forte e sensual: num dos sonhos de Magda, seu amante, .ebrou um espinho de palmeira ¢ com ele picou uma artéria do braga. disse, apresentando & amante a gota vermehs... ~ Bebe! recipitou-se avidamente sobre ela e chupou-a com volipia.” im, "... readquiria por encanto a frescura, a beleza ¢ a sade, que havia perdido nos dltimos anos. Reconstituis-se, revivificava-se..."13 Contudo, a recupera¢ao ocorreria apenas nos sonhos de Magda, que pouco a pouco, s¢ transformam em delirios. Na realidade, a doenca agrava-se cada vez, mais até que a moga assassina Luis ¢ Rosa, com quem o rapaz havia se casado recentemente. A realiza¢iio de suas necessidades sexuais através de sonhos e delirios determinaria a condenagao absoluta de Magda, que, completamente louca, acabaria presa sob os protestos do Dr. Lobio, que teria preferido interna-la diretamente em sua casa de satide. A hist6ria de Lenita é bastante parecida, salvo pelo fato de que, a0 se casar, a personagem escapa a um destino dramdtico como a que fora seservado & Magd4. A mée de Lenita morreu durante o parto ¢, assim, ela foi I2ppid., p. 81. '3tpid., pp. 131-132. 243 criada apenas pelo pai, 0 doutor Lopes Matoso, herdeiro de uma vultosa fortuna. Recebeu uma educagdo muito diferente das outras mogas: “Leitura, escrita, gramética, aritmética, Algebra, geomerria, geografia, hisiéria, francés, espanhol, nataglo, equitago, gindstica, masica,.. Aos quatorze anos Helena ou Lenita... ere ums rapariga desenvolvida, fone, de caréter formado ¢ instrugaio acima do vulgar.!4 Antes da morte do pai, recusa uma série de pretendentes, por julgar que nao possuiam um nivel intelectual & sua altura, Como ocorre com as outras personagens analisadas, as primeiras manifestagOes da histeria s40 associadas as exigéncias dos instintos sexuais femininos, que, despertadas pela necessidade reprodutora, nao s4o atendidas. Segundo a prdpria avaliagio de Lenita, “O que els tentia era o aguilhdo genético, era o mando imperioso da sexualidade, era a voz da CARNE 2 exigir dela o seu tributo de amor, reclamar 0 scu. comtingente de fecundidade para a grande obra da perpetuagiio da espécie. E lembrava-Ihe a ninfomania, a satiriase, esses horrores com que a natureza se vinga de fémeas © machos que the violam as leis, guardando uma castidade impossfvel...".!5 Tendo recebido uma educagao fisica ¢ intelectualmente mais apropriada para um rapaz, Lenita, curiosamente, escapa ao destino reservado as “mulheres masculinizadas”, ao sair de sua primeira crise histérica, sentindo- se “mais feminina”. Adotando a perspectiva segundo a qual a histeria é uma doenga caracteristicamente feminina, 0 autor afirma que, depois desta primeira crise, a moga, “nfo tinha mais os gostos viris de outros tempos, perdera a sede de ciéncia: de entre os livros que trouxera procurave os mais sentimentais (...). Tinha ‘ama Yontade esquisita de dedicar-se a quem quer que forse, de softer por um doente, por um invalido. Por vezes lembrou-se que, se casasse, teria filhos, criancinhas que dependessem de seus casinhos, de sua solicitude, de scu leite. E achava possivel o casamento"!6, Mas, se a eliminagao dos “‘sentimentos e gostos viris” representava satide € cura, 0 aflorar do instinto de procriagdo era uma ameaca, jA que significava 0 despertar da “necessidade orginica do macho” que precisava ser satisfeita, sob \Ribeiro, J.,A Carne, 224 ed., RJ, Tecnoprint SA, s/4, p. 21. Shi, pp. 48-49. 1pbid., p. 29. 244 pena de surgirem recafdas histéricas. E 0 que parece indicar a associagAo entre © processo de transformagées pelo qual passava Lenita e o aparecimento de impetos de crueldade: “... beliscava as crionlinhas, picava com agulhas, feria com canivete os animais (...) Fm outra ocasifio pegou num cansrio que Ihe entrara na sala, quebrou-lhe e arrancou-lhe as pemas, desaniculou-lhe uma asa, soltou-o, indo com prazer intimo xo vé-lo esvoacar miscravelmente, com uma asa 56, arrastando a outra, pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa do terreiro"!?, Some-se a isto o prazer provocado pela visdo da tortura de um escravo, a0 fim da qual Lenita “tremia, agitada por sensagao estranha, por dolorosa vohipia. Tinha na boca um saibo de sangue”!8, A necessidade de satisfazer seus instintos sexuais cada vez mais pronunciados leva Lenita a se apaixonar por Manuel Barbosa, que, sendo divorciado, torna-se seu amante, Mais uma vez, a “falta de homem” para a “fémea no cio” é simbolizada através dos efeitos provocados pelo cheiro masculino: ao arrumar a mala de Manuel, sentindo 0 cheiro que impregnava seus lengos, camisas, roupa de cama, Lenita é tomada por uma forte crise de histeria. Gravida, Lenita perde o interesse por Manuel e retorna a Sao Paulo, onde consegue que um antigo pretendente, o Dr. Mendes Maia, case-se com ela e assuma seu filho. A morte violenta do amante, que, desesperado pela perda de Lenita, se envenena, reforca a idéia de que se a constituigao de uma familia dentro dos padrées socialmente estabelecidos toma a sexualidade feminina sublime, a livre manifestacao desta sexualidade & perigosa ¢ deve, portanto, ser reprimida. de pai e de mae, Maria do Carmo f¢i criada com muitos mimos pelo padrinho Jodo da Mata, modesto amanuense que residia num subirbio de Fortaleza, Estudou num colégio de irmas e, depois, foi para a Escola Normal. Muito bonita, éra cortejada por muitos rapazes e pelo préprio padrinho, Mas seu interesse concentrava-se em Zuza, um jovem bonito, filho de uma familia rica ¢ importante da regio. As crises nervosas de Maria do Carmo so produzidas pelos assédios do padrinho e pelos obstaculos criados por ele 8 possibilidade do casamento com Zuza, As crises so agravadas pela inseguranga da moga diante do amor do namorado. Aos poucos vai cedendo As investidas do padrinho: primeiro por respeito, obediéncia e medo; depois, para eliminar suas interferéncias no IMpid., p. 44. '8tpid, p. 47. 245 namoro com Zuza; ¢, finalmente, pelas exigéncias de seus instintos sexuais despertados. Trajetria evidenciada na narrativa da visita de Jofo da Mata 4 sua rede: a presenca do padrinho, primeiro, a deixa confusa; depois, sente-se Presa A proposta de possui-la em troca da permissio do casamento com Zuza; e, finalmente, “Tinha-se feito a verdade aos olhos da normalista (...) Estava justamente em vésperas de ter a incdmodo. Toda cla vibreva como uma limina de agos 20 contato daquele homem que comunicava-lhe a0 corpo um fluido misterioso wansformando-a numa criatura inconsciente atrafda por um poder extraordingrio como 0 da cobra sobre o rato"), Um dos elementos desencadeadores da sedugio de Maria do Carmo seria 0 cheiro masculino que emanava do corpo de padrinho deitado ao seu lado na rede. Assim, mais uma vez, as necessidades do instinto da “fémea” viriam ‘expressas através da atracao exercida pelo cheiro do “macho”, Gravida, as crises nervosas de Maria do Carmo se agravam, mas quando vai para a Aldciota, “longe de tudo que the arreliava o jufzo”, comeca a se recuperar fisica ¢ moralmente. Alguns meses depois do parto e da morte do filho, noiva do alferes Coutinho, volta a cursar a Escola Normal, completamente restabelecida. Conforme observou Flora Siissekind, as personagens naturalistas que sofrem de histeria possuem muitos pontos em comum. A auséncia da figura matemna desde a infincia sc constitui num dos mais importantes. Além disso, todas elas vivem um amor proibido ou impossivel. Alids, os obstaculos a serem superados parecem funcionar como estimulo para 0 ato de se apaixonarem: quanto mais dificil a conquista do objeto desejado, maior mais obsessivo o interesse despertado. Muito mimadas, recebem uma educagio inadequada, marcada por auséncias, insuficiéncias e, at mesmo, como no caso de Lenita, por excessos. Fisicamente, sdo descritas como mulheres brancas ¢ muito bonitas. Possuidoras de um temperamcnto nervoso ¢ impressionavel, choram com facilidade freqiientemente. Quanto A condigao social das personagens, Lenita, Ana Rosa e Magdd pertencem a setores mais privilegiados, embora esta tiltima n4o chegasse a ser Propriamente rica. Maria do Carmo possui uma condig4o humilde, 0 que demonstra que, pelos menos na 6tica de Adolfo Caminha, a histeria nao seria um privilégio de mogas ricas. 19Caminha, A., A Normalista, 7? ed., SP, Atica, 1982, p.94. 246 Diretamente associada ao adiamento ou a repressdo da realizacao dos instintos naturais que caracterizariam 0 amadurecimento do corpo feminino para a procria¢4o, a histeria é vista pelos autores naturalistas a partir de uma perspectiva bastante préxima daquela que caracteriza 0 pensamento médico da €poca. Examinando alguns textos de médicos brasileiros sobre a histeria, produzidos entre meados do século XIX e principios do XX, observamos que a histeria permanece sendo concebida como uma moléstia que, se nado é exclusiva, atinge prioritariamente as mulheres. Mesmo quando admitem que a “doenga” podia atingir também os homens, os médicos insistem em qualificd-la como mais comum nas mulheres. Assim, 0 Dr. Soares define a histeria, em 1874, como uma “molestia quase exclusiva das mulheres”, podendo o homem ser afetado quando possuisse uma cconetitaigho afeminada” ou trouxesse consigo uma “predisposigao hereditéria”2°, Em 1876, o Dr. Oliveira concebe a histeria como uma “afecc4o especial do sexo feminino, sendo, porém, algumas vezes observada no homem de natureza delicada, cxausto pelo onanismo ou excessos venéreos”?!, A perspectiva predominante no discurso médico do perfado tende, pois, a associar a histeria a natureza feminina e, ainda, a distorgdes da sexualidade, no que se refere a abstinéncias, excessos ¢/ou auséncia da finalidade reprodutora. Entre as predisposi¢des, os sintomas e os efeitos da histeria, os médicos citam, insistentemente, 0 citime, a inveja, 0 capricho, a vaidade, 0 egoismo, 0 exibicionismo, a extravagancia, a instabilidade, a fraqueza de vontade, a sensibilidade agugada, a emotividade, a suscetibilidade, a sugestionabilidade, a impressionabilidade. No comportamento das personagens histéricas dos romances naturalistas brasileiros de fins do século XIX, os autores sublinham esses mesmos tragos. Ora, todas essas qualificagdes ~ vaidade, capricho, emotividade, etc. — costumam identificar de forma preconceituosa a prépria natureza feminina. Antes das crises histéricas, Lenita, por exemplo, era uma moga modesta e despretensiosa. Mas, como vimos, 4 medida que se tomava mais feminina, cla se tomava também mais cruel, vaidosa, egofsta ¢ inconseqiiente. A crucldade passaria a caracterizar também algumas atitudes de Magd4 a medida que sua doenca se agravava: mata um casal de rolas, destréi a escultura Amor e Desejo e, finalmente, envenana Luis e Rosa. Tem-se, pois, a impressio de que a crueldade faz parte da natureza feminina, bastando que as necessidades do instinto sexual nado sejam adequadamente satisfeitas para que comportamentos considerados desviantes se impusessem com toda a forga. scares, J. C., A Histeria, RJ, Typ. Reforma, 1874, p. 5. Uohiveira, MP. de, Histeria, RJ, Imp. Industrial, 1876, p. 8. 247 Baseado nas idéias de Gall, segundo as quais a inferioridade da mulher manifestava-se pelo predominio das faculdades afetivas, um médico brasileiro, o Dr. Barros, afirmava que a excessiva impressionabilidade, caracteristica do cérebro feminino, produzia “o capricho e o instinto de coquetterie que dao graga e mérito ao sexo feminino”*2. No mesmo sentido, lembre-se, ainda, a imagem profundamente depreciada da mulher “normal” construfda por Lombroso ¢ Ferrero no ultimo quartel do século passado: concebida como naturalmente mé, “sua fraca inteligéncia, frigidez sexual, fraqueza das paixdes, dependéncia, unidos ao sentimento maternal, mantinham-na como uma ‘semicriminaléide inofensiva””23, A proximidade entre a “mulher normal” ¢ a “mulher histérica” fica ainda mais estreita e evidenciada nas colocagdes do Dr. Franco da Rocha. Na qualificaga0 do carter da histérica, ressalta, entre outros aspectos, 0 “predom{nio dos Teflexos sobre a reflexdo € 0 juizo”*4. Ora, como sc sabe uma das imagens de mulher mais disseminadas no século XIX é, como vimos, a imagem Tousseauniana que opie homem/razdolcultura & muther/instintolnatureza, Podemos, portanto, concluir que, de acordo com as caracteristicas basicas descritas por médicos ¢ por autores naturalistas, “a histeria nada mais € que a exacerbag3o de tragos tradicionalmente atribuidos & mulher normal”?5, E como se a propria natureza feminina fosse predisposta a doenca, 20 crime, enfim, ao desvio, sendo a normalidade assegurada por um equilibrio precério. Outro aspecto importante na definigdo médica da historia é a intima associagao estabelecida entre a doenca ¢ a presen¢a de um comportamento sexual considerado anormal. Entre os sintomas e/ou efeitos da histeria arrolados pelos médicos estAo a ninfomania, os excessos ou abstengio sexual, a masturbagao € a inversdo sexual. No mesmo sentido, entre as varias causas citadas destacam-se a solicitago dos 6rgdos genitais, 0 aparecimento ou a supressdo da menstruacdo, 0 orgasmo, 0 onanismo, 0 abuso dos prazeres venéreos, a continéncia absoluta, a viuvez prematura, a esterilidade. Seja manifestando uma “indiferenga ou completa frieza genital”, seja revelando “perversdes opostas a indiferenga”, 0 certo é que o organismo histérico é portador de uma “sexualidade doente”, definida pelo médico a partir do excesso ou da auséncia do interesse sexual?®, Como vimos, de, "Consideragdes sobre: n mulher", 1845, citado por J.P. Costa, Ordem Médica..., op. cit., p. 236. 23goihet, R., Vivencias ¢ formas de violéncia, SP, tese de Doutoramento da USP, 1986, mimeog., pp. 143-144, 24Rocha, F. da, Esbogo de Psiquiairia Forense, SP, Laemmert, 1904, 2Scunha, M.CP.,.0 Espetho do Mundo, RJ, Paze Terra, 1986, p. 146. 28Cf. Rocha, F. da, op. cit, p. 381. 28 assumindo uma perspectiva bastante préxima da do médico, os autores dos romances analisados atribuem a histeria aos impedimentos ou adiamentos da satisfagao dos instintos sexuais femininos quando estes despontam em sua plenitude. No caso de Lenita, por exemplo, a histeria é vista, a principio, como produto da auséncia de uma atividade sexual. Contudo, depois que ela sé torna amante de Manuel Barbosa, passando a viver um relacionamento sexual caracterizado segundo os padres definidores de uma sexualidade sadia, por excessos ¢ desvios, a doenca agrava-se cada vez mais. O desejo de Lenita por comidas ¢ bebidas “estranhas” ¢ sofisticadas vem associado a desejos sexuais também considerados estranhos numa mulher, cuja satisfagao pressuponha “excessos” ¢ modos “incomuns” ou “imorais” de efetuagao do ato sexual’, Nas descrig6es e andlises dos comportamentos histéricos ¢ nervosos, os autores naturalistas reconhecem que a mulher possui uma sexualidade, sendo, portanto, capaz de sentir desejo e prazer. Um dos pontos a ser sublinhado neste sentido é 0 fato de que todas as personagens aqui analisadas seduzem seus parceiros, ou seja, todas assumem um papel ativo para a efetivagao da primeira relacdo sexual. Tanto Ana Rosa quanto Lenita tomam a iniciativa para a consumagao do primeiro ato sexual. Maria do Carmo também revela um comportamento sedutor, que acaba conduzindo ao seu defloramento: “se. chegou A casa ofegante, esfalfada, com a cabeca a arder, muito corada € alegre, o olhar cheio de meiguice, transfigurada pelos efeitos da cerveja... ‘Atirou-se com todo © peso do corpo nos bragos de Jogo da Mata, fazendo-lhe festa, muito amorosa, como uma cadelinha de estima depois d'uma auséncia. No seu olhar aveludado e submisso havia siplica irresistivel"?, Em um dos sonhos de Magd4, seu amante refere-se & atragdo que ela teria sentido por seu corpo m4sculo: “... tu nfo me seguiste seduzida pela minha inteligéncia, que te néo mostrei; nem pela minha riqueza de caréter, que escondi; vieste pura e simplesmente arrasiada pela minha beleza varonil e pela masculinidade do meu corpo!”29, Estes parecem ser, de fato, os sentimentos que Magd4 possufa, na vida real, pelo trabalhador da pedreira que a tomou nos bragos quando estava desmaiada. Diante da estétua de Agasias, 0 “Gladiador Borghtse”, Lenita sente-se 7G, Ribeiro, J., op. cit., pp 52-53 ¢ 123-124 28Cuminha, A., op. cit., pp 70-71. 29 Azevedo, A., O Hamem, op. cit., p. 105. 249 completamente atrafda pelas formas masculinas, compreendendo que “... 0 que sentia era desejo, era a necessidade organica do macho", Observamos, assim, que no se pretende construir um modelo ideal de mulher no qual esta é revratada como assexuada, sem desejo ¢ sem prazer sexual. Ao definir os limites de uma sexualidade sadia na mulher, os médicos também admitem a existéncia de uma sexualidade feminina e até mesmo a possibilidade de realizago do seu prazer sexual. Para o Dr. Camillo, por cxemplo, o clitéris “... € um orgio genital erectil, cuja estrutura se assemelha as dos compos yernoxes © que apoiado sobre 0 dorso do pénis, no ato da cépula, recebe a excita, pelo atnto deste, dando em resuliado a satisfagto. do dessjo venéreo"3!, Trata-se, portanto, de reconhecer e legitimar o prazer sexual (de ambos os sexos), desde que circunscrito ao lar, ou seja, 0 prazer moderado e orientado para a finalidade reprodutora, Ressalie-se, entretanto, que ainda que em termos ideais o médico pensasse em estabelecer os mesmos limites de uma sexualidade sadia para ambos os sexos, a normalidade dos instintos sexuais masculinos acabaria sendo efetivamente avaliada a partir de critérios mais flexiveis. A distancia entre 0 libertino — concebido como homem sexual- mente doente - ¢ 0 homem-pai — imagem ideal do homem sexualmente sadio — seria muito maior do que aquela que separaria a prostituta ou a histérica da esposa-mde*?. Depois de ensinarem as mulheres que elas tinham 0 direito de gozar — desde que fossem guiadas pelo instinto da maternidade — 0s higienistas, apelando para 0 mesmo instinto, condenam ndo apenas as telagdes sexuais durante a amamentagdo, como também, obviamente, qualquer meio anticoncepcional - 0 coito interrompido, por exemplo, é classificado pelo Dr. Camillo como um dos tipos de “onanismo vulvo- vaginal a dois” e diagnosticado como doenga®3 -, nao deixando, portanto, a elas tempo para o goz0*4, A quest4o que se coloca nfo se refere, portanto, 4 negagdo da sexualidade feminina, mas sim ao que se estabelece como sendo o mével essencial do desejo ¢ do prazer sexual na mulher: a necessidade de procriagiio, © onanismo na mulher ¢ suas influéncias sobre o fisico e 0 moral, RI, Typ. Potelia, 1886, p. 2. Cy, Engel, M.G., Meretrizes e doutores; 0 saber médico ¢ a prostituigdo na cidade do Rio de Janeiro, 1840-1890, Niterti, dissertagio de Mestrado da UFF, 1985, mimeog 33CF. Camillo, A., op. cit., p. 13. ACE. Costa, I-F., Ordem médica..., op. cit., p. 263. 250 Assim, as iniciativas ¢ atitudes sedutoras das personagens so vistas como produto do instinto de maternidade. Nas situagdes em que se explicita o desejo sexual das personagens — seja em suas fantasias, como a vivida por Lenita diante da visto do “Gladiador Borghése”, seja na primeira relagao sexual, como a de Maria do Carmo, quase sempre se faz uma referéncia a proximidade da menstruacdo. Trata-se da crenca de que os dias que a antecedem constituem o periodo fértil nas mulheres, H4, portanto, uma clara associag4o entre o desejo sexual feminino e a necessidade de procriar. Note- se, neste sentido, que todas — até mesmo Magd4 em seus delirios - engravidam, o que se transforma em motivo de plena realizagao para elas — exceto, como veremos, para Maria do Carmo. A partir do momento em que Ana Rosa engravida, Raimundo passa a ter uma importancia secundéria em sua vida: a expectativa de ser mde Preenche todas as suas aspiragées de felicidade. Encontramos as mesmas concepgdes na hist6ria de Lenita. Mantendo um relacionamento sexual com Barbosa “exclusivamente para satisfazer seus instintos”, quando engravida Lenita deixa de sentir paixdo e passa a ter repugnancia pelo amante. Aqui, novamente, a presenca da idéia de que o filho secundariza a importancia do homem para a mulher. Idéia reforgada pela citagao da maxima de Rabelais, lembrada por Lenita: “Les bétes sur leurs ventrées n'endurent jamais le male masculant"35, Apesar dos tracos duros e arrogantes incorporados sua personalidade ao longo da trajetéria histérica, Lenita emociona-se a0 descobrir que estava gravida: “... reconheceu o sentimento tao ridiculamente guindado ao sublime pelo rommantigegss piegas, todavia tao egoistico, 40 humano, t4o animal — a maternidade”™. Para Magda a fantasia de ter ido um filho com Lufs é capaz de redimi- la da culpa que sentia ao despertar dos sonhos ¢ delirios erdticos: “... eate amor de mie foi crescendo tanto e enfolhando tho depressa, que 0 Lufs afinal se resguardava perfeitamente 4 sombra dele. Magdé, quando Acondada, jf ndo 0 maldizi; jf nfo sentia aquela negra aversdo, aqucle noj, ‘que the inspirava dantes o mogo da pedreira”?”. A procriag3o, como a razo de ser fundamental do ato sexual, ao lado da monogamia ¢ da fidelidade, seriam os elementos basicos do modelo de “comportamento sexual decente”. Conforme observou M. Foucault, “... 0 Cristianismo nao inventou esse cédigo de comportamento sexual. O Cristianismo 0 aceitou, 0 reforgou e lhe deu um espacgo maior ¢ uma forga SSRibeiso,J., op. cit, p. 132. J. Op. cit, p. 132. 36tpid., p. 133. 37 Azevedo, A., 0 Homem, op. cit., p. 166. 251 mais ampla do que ele tinha antes”38. E, como podemos observar, este cédigo, retomado e fortalecido pela ciéncia sexual que se constitui a0 longo do século XIX, é reproduzido pela linguagem naturalista da época. Ao se imaginar casada com 0 Zuza, Maria do Carmo associa a possibilidade de uma relagio perfeita ¢ harmoniosa A auséncia de filhos. E, apesar de se deixar deflorar pelo padrinho, impulsionada, como vimos, pelo instinto de procriagdo, sua gravidez é tratada pelo autor como algo precoce ou fora de €poca: “Toda ela — © ventre, 08 seios, os bragos, 0 fosto — inchava, adquiria um. cunho extraordinério de maturidade precoce. Notavam-se-lhe agora asperezas na pele, uma cor seca de folha sazonada e certo amolentado que se traduzia numa sonoléncia infinita ¢ na prematura tendéncia para o de si mesma. Com efeito, Maria, apenas com 4 meses de grivida, tinha perdido muito da antiga expressio insinuante ¢ vive de sua fisionomia. Na idade em que a mulher, como a flor; em plena extberincia dos fluidos, desabotoa numa singular alacridade de cores, toda frescura ¢ beleza, ela, que nio transpusera ainda os dezoito anos, olhava « vida com uma indiferenga..."3?, Etapa a ser necessariamente cumprida na vida de cada mulher, a gravidez 6 concebida como fonte de degradacdo do corpo feminino. Imagem que de certa forma reforga a idéia de que a fungdo prioritéria do corpo da mulher é gerar filhos, idéia que nos faz lembrar a concepg4o freudiana segundo a qual a evolugdo para a feminilidade teria esgotado as possibilidades do individuo e diante da qual, E. Badinter conclui: “Nao se poderia expressar melhor a maldig4o prépria ao sexo feminino: esgotar-se ao realizar sua feminilidade. .. de tal modo que nao Ihe resta energia alguma para qualquer outra criagio”4°, A passagem do romance citada nos leva também a concluir que antes de “pecaminosa”, a gravidez de Maria é “antinatural”. Ao invés de felicidade ¢ realizado, a gestago Ihe traz inquietagdes, culpa, sofrimento e o agravamento das crises histéricas. Parece-nos, pois, que a morte do bebé, atribufda por Jodo da Mata a incompeténcia da parteira, deve ser vista também como sinal da imaturidade de Maria para ser m4e ¢ como uma espécie de opgao que cla faz no sentido de livrar-se do “fruto pecaminoso”. Apesar disso, as reagdes de sofrimento e de dor pela morte da crianga denotam a presenga do instinto matemal, 38Cf, Foucault, M. ¢ Sennet, R., “Sexuality and Solitude” in London Review of Books, 21 may-3 june, 1981, p. 5. 'Caminha, A., op. cit., p. 117. finer, E., Um Amar conquistado, 3° ed., RJ, Nova Frontcira, 1985, p. 304. 252 Quanto as formas de obten¢do do prazer pela mulher, estas se definem, sobretudo, pela necessidade de submisso & forga masculina’e pela'sensaeio de dor. Assim, a mulher € vista como um ser frdgil e fraco, que precisa, aspira e sente prazer em se submeter a proteg4o e ao controle do homem. Nesse sentido, as aspiragdes de Ana Rosa se resumem em fazer todas as vontades € todos os caprichos do esposo, + lomarse passiva, servi-o como uma escrava amorosa, décil, fraca, que confessa sua fregilidade, seus medos, sua covardia, satisfeita de achar-se inferior ao sev homem, feliz por nio poder dispens6-lo"*!. A submiss4o total ¢ absoluta a um homem apresenta-se como tinica fina- lidade da existéncia feminina, além da procriac4o, e como fonte de felicidade e realizagao superada apenas pela maternidade. No ato sexual, a posi¢ao sub- missa da mulher é vista como condi¢o do seu prazer. Contudo, se o homem deixa de cumprir, ou o faz de forma deficiente, o seu “papel de macho”, & permitido 4 mullher sair de sua passividade. E o que ocorre com Lenita quando Barbosa perde a erego e os papéis se inveriem completamente: “... no furor do erotismo que a desnaturava, que @ convertia em bacante impudica, em f€mea corrida, Lenita agarrou-se a Barbosa, cingiu-o, cnlagou- © com os bragos, com as pernas refinada instintivamente em sensualidade, mordew-the os Mbios... ‘Com impeto irresistivel do macho em cio, mais ainda, do homem que se quer desforrar de uma debilidade humilhosa, retomou o papel de atacante,..."42, O relacionamento entre ambos é marcado pela total submissiio de Lenita aos caprichos eréticos de Barbosa, de modo que o prazer de Lenita esté diretamente associado 4 sua passividade ¢ & sensagao de ser objeto da paixdo ¢ do desejo de Barbosa. Nos seus delirios, Magd4 também se submete totalmente as vontades do amante, Observamos, pois, que nJo apenas a mulher estA sujeita a obrigatoriedade de cumprir papéis rigidamente estabelecidos, mas espera-se igualmente do homem que ele desempenhe satisfatoriamente as “fung6es de macho”. Ao lado da imagem ideal da mulher frdgil, submissa e passiva, é veiculada a imagem do homem ideal: provedor, protetor ¢ controlador da mulher e da prole. Na fantasia de Lenita ¢ Magd4, esta imagem chega a adquirir consisténcia através do modelo do homem fisicamente ideal: 0 gladiador musculoso. 41 Azevedo, A.,O Mulato, op. cit., p. 76. Ribeiro, J., op. cit., 116. 253 A imagem da submissdo feminina completar-se-ia através da associac0 entre prazer ¢ dor. E 0 que sugere a descri¢do dos efeitos erdticos provocados em Lenila pela visio da estétua do gladiador: “Sentia-se fraca © orgulhava-se de sue fraqueza. Atormentava-a um desejo de coisas desconhecidas, indefinido, vago, mas imperioso, mordente. Antolhava-se-Ihe que havia de ter gozo infinito se toda a forga do gladiador se desencadeasse contra ela, pisando-a, machucando-a, triturando-a, fazendo-s em pedacos™3, Contemplando uma gravura que representava o ato de fecundagiio, Ana Rosa sentia diante dela“... um mundo vasto e nebuloso, um mundo desconhecido, povoado de dores, mas ao mesmo tempo irresistivel; estranho paraiso de 14- grimas, que simultaneamente a intimidava e atraia”*4, Esta associagao entre prazer e dor, imputando a mulher uma natureza masoquista foi ratificada e sofisticada por Freud ¢ por H. Deutsch. Trata-se, como observou E. Badimter, de uma estratégia profundamente eficaz e 1. bem mais perigost do que a teologia judaico-cristd. Esta diz. que a mulher deve sofrer para expiar 0 pecado original. A maldigSo tinha uma razio moral, e a dor fisicn era gers be PO eee. o-oer A Bs pedia que gostasse disso ae Apesar de podermos constatar variag6es nas manifestacGes histéricas das personagens analisadas, 0 clemento determinante € sempre, como vimos, 0 adiamento e/ou a repressdo a realizacAo dos instintos naturais que caracteri- zariam 0 amadurecimento do corpo feminino para a procriagfo. Nesse sentido, em todos os romances, 0 casamento & apontado como o remédio mais eficaz para combater a doenca, Vejamos como os médicos colocavam- se diante desta quest4o. Em 1864, o- Dr. Gongalves recomenda 0 casamento como o “meio mais vantajoso e de influéncia mais direta e mais geral” para o controle da histeria, Contudo adverte. “..este meio porém, conquanto seja muitas vezes coroado de pleno sucesto deveré ainda estar subordinado # circunstincias individuais; pois que, em ccertos casos, longe de produzir o efeito desejado, ird pelo contrério dar maior incremento 20 mal"46, ‘ia +p-30. 4 Azevedo, A., 0 Mulato, op. cit, p. 16. 4SBadinter. , E., op. cit., pp. 307-308. ASGonsalves, J. A., A Histeria, RS, ‘Typ. do Brasil, 1846, p. 18. 254 J40 Dr. Cordeiro recomenda o casamento apenas nos casos em que o médico perceber a existéncia de “desejos comprimidos”, “amor contrariado” e quando © estado nevropatico nao for complicado*”. Baseado nas estatisticas e nas observagSes de Briquet, segundo as quais 0 casamento pode ser um “estimulamte da histeria pelas excitacGes exageradas dos org4os sexuais, pelas fadigas e incémodos resultantes da prenhez e do parto”, o Dr. Soares 0 condena como meio profildtico e curativo. Contudo, o casamento € aconselhado ...quando ele tem por fim estabelecer uma modificagso qualquer favordvel no organismo da mulher, restabelecendo a funcio de menstruacio; ou no moral, encontrando a mulher em seu esposo 0 amor, ¢ dedicagio, dando-lhe d'este modo uma vida mais trangiiila ¢ folgada, que aquela que encontrava em casa de seus pais..."48, O Dr, Oliveira recomenda ainda o casamento “quando a causa da histeria residir na impossibilidade da unio de dois entes que se amam; neste caso a satisfagao do corag’o seré o tinico remédio a empregar-se"9, Na perspectiva assumida por estes autores, 0 aspecto mais importante a ser assinalado ¢ o poder de decidir sobre os destinos pessoais dos individuos reivindicado pelo médico. Se 0 casamento € concebido dentro da propria ética médica higie~ nista como um instrumento de normatizagSo de habitos e comportamentos sexuais ¢ afetivos, circunscrevendo-os ao campo da sanidade, deveria caber a0 médico, ¢ apenas a ele, definir quem, quando e coma casar™. De acordo com a perspectiva assumida por autores naturalistas, o ins- tinto sexual feminino e masculino é um dado da natureza que independen- temente dos padrées morais ¢ normas sociais, deveria ser satisfeito como garantia para a propria reprodugao da espécie. E 0 caso de A. Azevedo e J. Ribeiro, que parecem questionar a validade da instituig&o do casamento. Em O Homem, por exemplo, o Dr, Jodo Lobao recomenda, explicitamente, 0 coito como tinico remédio capaz de salvar Magd4. Referindo-se ao tempe- Tamento impressionvel e 4 educagio religiosa de Magd4, o médico sublinha os perigos da luta entre as imposig6es da matéria ¢ a resisténcia da vontade: 47 CE, Cordeito, M. L., Qual é a alteragéo orgénica que se dd no histerismo, e conseqientemente qual serd o tratamento conveniente? RJ, Typ, de J, X. de S. Menezes, 1857, p. 4. 4B soares, J. C., op. cit., pp. 32-33. POhiveira, ME. de, op. cit, p. 21, ejam-se consideraghes de J.P. Costa a este respeito em Ordem Médica..., op. cit., pp. 219 € seas, 255 “...a luta que se trava sempre que 0 compo reclama como direito a satisfagio de qualquer necessidade, € 2 razio opde-se a isso, porque nfo quer ir de encontro a certos preceitos sociais. Estupidez humana! Imagine que vocé tem uma fome de trés dias e que, para comer, 16 dispoe de um meio — roubar! — Que faria nese caso? Ni sei, mas com certeza néo roubava... (tesponde o pai de Magda). —Entéo morreria de fome... Todavia um homem, de moral mais facil que sua nflo morreria, porque roubava...°51, Resistir significa estupidez. Mas existe uma outra leitura possivel para esta passagem: resistir até a morte € privilégio somente daqueles que possuem, verdadeiramente, moral ¢ dignidade. E este parece ser 0 caso de Magda. Mesmo em seus delirios, apesar de num primeiro momento acatar as concepgoes do amante segundo as quais o casamento ndo passava de uma farsa e de uma convengio social sem sentido, para obter o perdido do pai ¢ sentir-se digna de dar & luz 0 filho que esperava, acaba se casando, Lembre- se, ainda, que, na vida real, Lufs casa-se com todas as honras com Rosa. No romance de J. Ribeiro, seduzido por Lenita e impedido de se casar com ela por ser divorciado, Barbosa se convence de que 0 casamento ndo passava de “uma instituicao sociolégica, evolutiva como tudo 0 que diz respeito aos seres vivos, sofrivelmente imoral e muitissimo ridicula”>*. Mas o personagem pagaria caro por ter pensado assim: Lenita termina reconhecendo- o valor e a necessidade da institui¢ao, casando-se com o Dr. Mendes, 0 que leva Manuel ao desespero e ao suicidio, Deste modo, parece-nos que ambos 0s autores acabam por ratificar os valores e normas que mantém o casamento como exigéncia para a satisfag4o dos instintos sexuais na mulher, od Esperamos ter conseguido mostrar que, estabelecendo uma estreita alianga entre ficgdo e ciéncia, os autores dos romances analisados constroem uma imagem ideal de mulher através da caracterizagdo de comportamentos considerados desviantes. A utilizagdo de uma linguagem medicalizada confere as imagens femininas construidas um carater de verdade cientifica, 0 que via- biliza a disseminag4o de padrées ¢ valores de contciido burgués como os tinicos verdadeiros ¢ aceitdveis, A idéia geral do que significa “ser mulher” é profundamente depreciativa em todos os romances examinados. Identificada ‘ou associada a Utero, submissao, passividade, dependéncia, inferioridade, vaidade, caprichos, inconstancia, imprevisibilidade, citime, vinganga, oposta a cérebro, saber e conhecimento, a mulher é “facilmente seduzivel e sedutora”, “levada pelo instinto”, a “bruxa” e a “feiticeira”. Sl Azevedo, A., O Homem, op. cit., p. 42. S2Ribeiro, J., op. cit, p. 112. 256 Esta imagem € construida ¢ consolidada no desenrolar das tramas nao apenas através das hisiéricas, mas também das beatas. Bem préximas das primeiras esto as personagens solteironas ou vid- vas, que, deixando de exercitar a sua sexualidade, transformam-se em beatas. Eo caso de D. Maria Barbara (0 Mulato) que depois da morte da filha, vai morar com 0 genro para ajudé-lo a criar Ana Rosa. Vitiva, possuidora de um genio terrivel e obcecada por crengas religiosas, sua influéncia junto a neta seria extremamente perniciosa. D. Camila (O Homem), uma solteirona velha, muito devota ¢ esquisita, ajudou a criar Magdalena. Suas obsess6es religiosas acabam contribuindo para o agravamento da doen¢a da sobrinha. Assumindo atitudes que contribuem para piorar as crises histéricas de Ana Rosa e de Magda, ambas as personagens sao caracterizadas como doentes ou anormais. Nos textos analisados, a mulher ideal € concebida como aquela que possui os atributos positivos que distinguem 0 comportamento ¢ a aparéncia fisica de algumas personagens, tais como Justina (0 Homem), a filha c a mulher do Cancela (0 Mulato) ¢ D. Sofia (A Normalista): saiide, asseio, fisico adequado para a procriacao, instinto maternal, decéncia, inocéncia, amor e eficiéncia nas tarefas domésticas, bondade, caridade, seriedade. Observamos, portanto, que a imagem ideal de mulher é construida, basicamente, a partir da oposigdo a dois tipos de comportamento extremados: a realizagdio dos instintos sexuais de forma “desregrada” ou a contengao dos mesios instintos. Cabe lembrar que além das histéricas ¢ das beatas encontramos na producdo literdria de cunho naturalista as mulheres masculinizadas — ou as “donzelas-guerreiras”, como as denominou Walnice N. Galvao, Retratadas por Manoel de O. Paiva (Dona Guidinha do Pogo,” 1892) e por Domingos Olimpio (Luzia-Homem, 1903), tais personagens apresentam, dentro dos parametros acima referidos, um comportamento desviante — seja pelos excessos sexuais, no caso de Guida, seja pela auséncia da atividade sexual, no caso de Luzia.>* As mulheres que assumem, na época, altitudes ¢ posturas “masculinizadas” so classificadas, ao lado das “histéricas”, como doentes, cabendo também, muitas vezes, a elas um lugar no hospicio®4. Embora os comportamentos de Luzia e de Guida nao sejam tratados como “casos clinicos”, eles s8o qualificados de antinaturais e, enquanto tais, punidos no com 0 hospicio, mas com a prisio ou a morte. Os romances Luzia-Homem ¢ Dona Guidinha do Poco ndo representam, pois, uma ruptura com o clima cientificista da época. Mesmo sem utilizar explicitamente uma linguagem 53¢y, Paiva, M. de O., Dona Guidinha do Pogo, SP, Atica, 1981; ¢, Olimpio, D., Luzia Homem, ¥ ed., SP, Atica, 1983. 54C¢. Cunha, M.CP,, op. Gt. 257 medicalizada, estas obras acabam por incorporar ¢ reproduzir a imagem ideal de mulher construida a partir dos padrdes cientificos de normalidade e doenca, fixados no ambito da medicina. A mulher ideal deveria ser aquela capaz de controlar sua animalidade ¢ Seus instintos através do casamento ¢, portanto, do exercicio do papel de esposa-mde. Como vimos, circunscrita ao lar, a sexualidade da mulher deixa de ser perigosa para tornar-se sublime, jA que passa a ser direcionada paraa producao de filhos saudaveis, futuros “cidadaos da patria”, Assim, a nogdo de familia, responsdvel pelas redefinigdes médicas da sexualidade feminina, revela-se essencial nas estralégias politicas de construgio de uma nova ordem, “modema’”, “civilizada” e republicana, na sociedade brasileira, 258

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