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LSS52 oo5/ 3 3264 GERARD GENETTE DISCURSO DA NARRATIVA Ensaio de método . 4 re at ia ohh A NARRATIVA a | E 0 SEU DISCURSO ae Maria Alzira Seixo $o$3 : sas COLECCAO PRATICAS DE LEITURA, Direcgio, prefécio e revisdo da traducéo: Maria Altira Seixo TTRADUGAO de Fernando Cabral Martins €°0 que ee passa” na narrativa nfo 6, do ponto de vista CAPA E PLANO GRAFICO de Gina Martins Calado / Atelier Arcédia referencia! (feal), 4 letra: nada: “o que sobrevem”, 6 apenas REVISAO TIPOGRAFICA de Almeida Goncalves a linguagem, a aventura da linguagem, cuja vinda no cessa de ser festejada.» Direitos de reprodurio ¢ odeptacto desta edipdo reservados para lingua Roland Barthes. portuguesa por Editore Arcédia, $. A R. di; Caripo, de Santa Clare, 160-D, © * cdntroduction & analyse structurale des réoits» Lishoa-Portugal © Editions du Seu in Communications, 8 (1966). 14 ediggo em portugués—Novembro de 1979 «O geral esté no cee do singular, ¢ -portento— con trariamente ao preconceito comum—o conhecivel no cere do mistério.» Edicto n.* 782 Este edigo, de que se tiraram 3000 exemplares, foi composta ¢ impressa na Editorial Minerva— ica, Coop. de Artes Gréficas, SCARE Gérard Genette ¢ acabada nas Oficinas Gréficas da Editora Arcédia +. Discours du Récity in Figures -11E (1972). 1. CONTINUADO DE UM NUMERO ANTERIOR No mimero 3 desta colecgio() procurémos apresentar estu- dos sobre alguns dos problemas que se colocam & andlise da nar~ rativa. Assim, a questo do ponto de vista, a modalidade da des- ctigao, 0 modo de construgdo da personagem, o registo utilizado no chamado «monélogo interior» foram pontos considerados no que pretendia ser uma iniciagio (completada por alguns apon- tatnentos informativos da introducao) ae estudo da andlise estru. tural e somiol6gica da narrativa literéria, finalizando com um exemplo de consideragao global de um texto praticado sobre um conto de Maupassant, Procurémos af situar a problematica © Categorias’ da Narrative, Arcédia, Lisboa, 1976, deste tipo de anélise em fungdo das relagdes que nfo pode dei- xar de manter com uma categoria espectfica da morfologia dos géneros literarios—o romance—e com um conceito que nos Ultimos anos tem vindo a desenvolver-se na teoria literéria € que se tornou central em toda a reflexo que sobre ela actual- mente se produz—o conceito de texto. A consciéncia de que estas relagdes ultrapassavam em grande medida a proposta teb- rica que nesse volume se pretendia veicular levou a que o dis- curso introdutério se detivesse entdo numa promessa de avanco ulterior e de adiantamento da questio através da publicacdo de oatro tipo de trabalhos, respeitantes a essa problematica © a ‘outras afins, Até certo ponto, o niimero 4 desta série(?) cum- iu tal fung&o, detendo-se na categoria do romance; € agora altura de, prosseguindo na perspectiva do estudo da narrativa, mostrarmos como este tipo de organizacao textual pode ser encarado de outros angulos ou como os prismas de anélise ante- riormente encarados se podem aprofundar, corrigir ou desen- volver. Continuamos assim as «Praticas de Leituray com a apresen- tagiio de um ensaio de Gérard Genette, extraido do volume IIL da sua obra Figures, e que se intitula, no original, «Discours du técity, Gérard’ Genelte fez parte equipa que, desde o nimero 8 da revista Communications, se grop6s estudar em termos de des crigao estrutural a organizaczo da narrativa, literéria ou néo. ‘Abordando af a questo da distingZo ¢ interdependéncia dos conceitos de mimese e de diegese, ptosseguindo posteriormente uma via de pesquisa extremamente original em que a defesa dos postulados da Nova Critica dos anos sessenta se concerta com uma aguda inteligéncia analitica que o faz ultrapassar a secura ea monotonia das grethas puramente descritivas, assume fun- damentalmente o seu papel de universitério e de investigador, féncia didéctica que se entende manifestar @ equilibrer na pesquisa dos meios de compreenséo dos objectos deliberadamente seleccionados. Curioso (e importante) 6 por exemplo, que este autor se tenha sempre dedicado, ao mesmo ® Semistica do Romance,, Arcédia, Lisboa, 1977. 10 tempo'que trabalhava em zonas de pura teoria ¢ de abstraccfio conceptual ou modelar, a estudos de histéria literdria, ou pelo menos do que poderemos entender como uma das suas vias possiveis; artigos consagrados & obra de um determinado autor, © dos mais diversos da hhist6rla da literatura francesa, so fre- quentes na série das Figures—quando se néo constelam em ‘grupos com um. sentido determinado de trabalho, como é 0 caso do barroco (especialmente) para a poesia e de Proust para o hhistéria literéria sfo sempre na sua obra, (que j4 anteriormente a E: da literatura serA particularmente 2 hist6rla do discurso literé- rio e nao a historia dos homens que escreveram literatura (To- dorov). - ‘Discurso da Narrativan ¢ um trabalho que foi apresentado em parte no Seminério da Ecole Pratique des Hautes Etudes em 1970-71 ¢ decorre basicamente da consideraco do segui- mento narrativo (seus processos ¢ efeitos) de A la Recherche ‘du temps perdu. ‘Teremos entéo aqui um trabalho sobre Proust que envolve consideragdes de natureza te6rica sobre os proble- mas do contar uma hist6ria na prosa literdria’ de ficedo ou, jnversamente, seré este um estudo sobre es varias possibilidades de orgenizagio da narrativa, obedecendo a uma vontade de sis- tematizaco e integrando as varias modalidades da sua efecti- vagao, funcionando a obra de Proust apenas como realizagio exemplar das diversas hipoteses definidas? Na verdade, os dois sentidos coexistem neste trabalho. ¥ extremamente enriquece- dora a compreensfio da obra de Proust & luz dos processos de encadeamento do relato que constitui e, por outro lado, a nar rativa proustiana € to rica que abona muitas das possibilidades ‘encaradas pela sistematizasio tebrica praticada, Alids, todas as hipoteses discursivas que a narrativa de a la Recherche nto concretiza sio também convenientemente estudadas, embora numa dimensio menos ampliada, e € impressionante 0 acervo de textos de ficglio (nao s6 de literatura como ainda de cinema) que so citados como exemplos préticos da especulagdo tedrica avangada. Uma teoria fortemente apoiada nos textos, uma teoria I construida. fundamentalmente a partir da prdtica textual embora sem renegar a construgio de hhipdteses abstractas de despiste ou de avango que so inerentes a reflexdo tedrica, mas sempre em perfeita conjuncao com a matriz que o texto impée, eis o que parece ser a dominancia do trabalo sobre a literatura que nos apresenta G. Genette. A relaco entre teoria e critica é pois aqui entendida em termos de interdependéncia, tao util como necessatia —em termos, portanto, de uma definig&io da perti- néncia dos estudos literdtios. 2, A NARRATIVA E O SEU DISCURSO Interessa salientar a delimitagio de conceitos que, no do seu trabalho, o autor pratica para definir a perspectiva que adopta. Histéria, narrativa e narragéo sio niveis de consideragio de um mesmo objecto a que ele chama a «realidade ngrrativan, Simplesmente, se € 0 discurso dessa realidade narrativa que esta em jogo, o plano da histéria, isto 6, a organizagio funcional € sequencial do texto, seré posto de parte assitn como, portanto, qualquer observagio quanto ao sentido diegético dos’ elementos que compéem essa organizacao; é a narrativa enquanto discurso € ndo a narrativa enquanto histéria que esté aqui em causa. Aspectos de ordenaco (nfo em termos de definigo de enca- deamentos mas em termos da percepefo do sentido desses enca- deamentos, por outras palavras, o estudo da articulagéo tem- oral, e j& nao ldgica, da narrativa) aspectos de durag&o (0 tempo encarado, néo em fungao do sentido do seu encadeamento mas em fungdo da tentativa de estabelecimento de um ritmo da iva, de uma alternfncia entre situagdes de relato que poderiamos apelidar de t6nicas e dtonas através dos meios de discurso que as formulam), aspectos de frequéncia (relagdes entre a narrativa ¢ a diegese, consideracio dos meios de escrita que homologam a historia na narrativa ou, pelo contrario, a disten- dem ou condensam, a pulverizam, a repetem, a entrecortam ou simplesmente a transcrevem a partir duma idealidadé que fun- iona como modelo e que apenas em fungio desses meios de 12 escrita é perceptivel), aspectos de modo (deséiivolvimento e sis- tematizagio das questdes levantadas pelo problema do ponto de vista condutor) ¢ de voz. {assungao das condigées de enun- ciagdo pela insténcia narrativa)—sio os que se consideram neste trabalho. Um problema se coloca, entretanto, quando o autor nos ‘comunica ser a narrativa em sentido restrito e néo a histéria nem_a narragao-(acto natrativo produtor) 0 objecto do seu tra- batho Zgue a coniideraco da voz nos parece relevar funda- mentalmeate do nivel da narragdo, para j& nao falar de outros planos de anélise, como o do modo, que igualmente praticam incursGes no campo de relacio estabelecido pela acco enun- ciativa, B, ne realidade, muito dificil estabelecer niveis de ané- lise no que respeita & narrativa e, se tal atitude de sistematiza- odo ¢ de pertinéncia é defensdvel e permite uma eficdcia maior no estudo dos textos, deveremos ter em conta uma possibilidade de interpenetragéo dos elementos e a certeza de que no texto a fusio que neles opera o trabalho da escrita nfo permitiré uma diferenciagéo clara nem uma inteligibilidade perfeita, ‘Uma das questées que muitas vezes se poe no estudo da teo- ria do texto literério é, alids, a seguinte: estar o progresso te6rico ligado a uma multiplicagio taxinémica que se duplica no desdobramento consecutive dos planos da consideragao ana- Utica do objecto? Todos temos, talvez, a experiéncia da pro- funda irritagio que nos toma perante’a proliferagio de con- ceitos num sistema refinado de nomenclatura em que a distin g4o entre os termos se torne ténue ou chega mesmo a um limiar de indeterminagéo, Sejamos claros: a prossecugéo tebrica ndo tem, efectivamente, de se preocupar com a sua eficdcia analitica (este € um dos seus dados imediatos); mas critica e teoria dao-se or enquanto as méos em termos de adjuncéo que no em ter- mos de identificagdo—e praticar uma apelando para a outre, por muito fecundo que seja, exigiré uma insercio do apelo, no discurso mais vasto que o produz, enquanto presenga de outro ‘espago ¢ néio enquanto elemento novamente inserido nesse espaco onde nos situamos. A menos que s¢ queira desconhecer a funcao pedagégica e que uma nova funcdo escrita (ou «escriptural» 3 tenda a cobrir 0 mundo de um tecido de identidade, anulada a diferenga que desde sempre 2 movimentou, ‘Quer dizer, trabalho de Genette aflora essa zona oscilante em que 0 efeito tedrico, para se produzir, tem de parecer exces- sivo em relagdo a qualquer tipo de aplicagéo descritiva ou de exercicio analitico, Nao me parece, porém, que esse, excesso resulte em redundéncia — antes em excrescéncia de sentido facil ‘mente recuperavel pela tergura conceptual que abarca. Duma maneira geral, porém, os conceitos sio perfeitamente definidos e diversificados, cobrindo areas. concretas © delimi- tadas. # talvez mesmo o que torna este trabalho um dos, mais estudados e difundidos no campo da anélise narrativa— esse recorte cuidadoso da terminologia e a sua exemplar radicacao semantica e especulativa. Trés zonas deste trabalho nos parece deverem ser particularmente destacadas: a que estuda a ordem. da narrativa, a que estuda a sua duracio e a que se ocupa, dos problemas de frequéncia; numa palavra, a incidéncia do tempo nos factos relatados, Desde sempre que a questo do tempo preo- cupou quem abordasse os dominios da teoria literdria. Arte da sucesstio por exceléncia, a literatura (como a musica ¢ o cinema, tendo este alias muito de narrativo) processa-se no tempo ¢ toma. um tempo determinado na sua relacéo de comunicagio. Daf que, quer no que respeita a caracterizagiio da ficgio (), quer, no que! toca a reflexdo produzida pelos préprios criadores(), quer ainda em embriondrias mas lucidissimas tentativas de. distingao. de géneros(, relagfo do texto escrito com a categoria do tempo se coloque ¢ adquira mesmo uma emergéncia ceattal ¢ irradiante. O que me parece importante saliontar € que, se, @ partir de 1966, com a publicagao dos primeiros estudos de toque © Jean Pouillon, Temps et Roman, Gallimard. Paris, 1946. ©) A cmumeracio soria Jonge! Alguns marcos: Proust ¢ 2 procura do ©) Emil Staiger, Grundbegriffe der Poetile Moutio-Ferreisa, aPara uma teoria dos géneros liters 1154-55, Fevereiro 1950. 14 semiol6gico sobre-a andlise da narrativa, o elemento tempo nela ‘passou a ocupar um lugar substancialmente roduzido, isso .se deveu, fundamentalmente, ao facto de néo estar afinada uma aparethagem conceptual que permitisse a sua integraco, rigo- rosa no estudo do texto ¢, por outro lado, & consideracdo do texto enquanto enunciado muito mais que enquanto realidade pendente de marcas enunciativas determinantes. Ora este t1a- batho de Genette vem justamente integrar o estudo do tempo na narrativa, nio enquanto procedimento de organizaclo I6gico- temporal (diegese), mas enquanto elemento de uma alteracdo qualquer na sequéncia do dito e do nao-dito ¢ das suas impli- cagdes miiltiplas. Por outzas palavras: 0 tempo, neste estudo de G. Genette, no € encarado como categoria filosética ou como sentimento vivencial, como em determinados estuddos cléssi- cos, nem to-pouco como sistema de relagbes verbais [como nas obras, aliés de importincia decisiva, de Benveniste (*) ¢ de Wein- rich ()]: fazendo embora apelo a estas direcgdes, Genetie estuda fendmenos muito mais superticiais, como 0s efeitos de ordem (deti- nitivamente adquiridos em teoria da literatura como analopses € prolepses, a partir deste trabalho) ¢ muito mais «laterais» —inees- santemente recaleados ou adiados—, como o ritmo. O ritmo, cates goria fundamental da producio literdria, tanto na poesia como na ‘prosa, vé o seu lugar jé aqui um pouco definido em termos de elemento da ficsao. Em vo procuraremos, 10 entanto, esie termo no fadice remissivo; o trabalho que ele suscita (@inda a um nivel diminuido, deve dizer-se) constela-se em torno de outros con- ceitos cujo tipo de alternfincia e de seguimento o formam ou caracterizam (cf. duragéo). Estudo importante da obra de Proust, «Discurso da Narra tivay € uma andlise sistematizeda da arte de contar nas suas varias formas, Ao prazer de ler uma historia juntar-se-4, com a Ieitura deste trabalho de Genette, o piazer de ler 0 modo como um determinado narrador dé @ ler a sua propria do texto que produz. Jogo de espelhos, lugar geométrico do © 0 Homem na Linguager, Arcidia, Lisboa, 11976, © Le Temps, Sevil, Paris, 1973 Estugarda, 1964). Is rigor ¢ da definigo jogando na vertigem constante duma expan- siio cujo limite & apenas 0 da reversdo das entidades ocupadas na relacdo, reflexo inacabada, produto a produzir-se. Aqui esta- mos para 0 acompanhar. Julho de 1979 16 DISCURSO DA NARRATIVA Gérard Genette GERARD GENETTE nasceu em Paris em 1930. Antigo aluno da Boole Normale Supérieure, & actualmente amatire do wra francesa na Les Leitres Les Cahiers © enssio que constitui este volume ¢ extraido de Figures-III. ‘Tradugio de Fernando Cabral Martins PREFACIO 0 objectivo especttico deste estudo é.a narrativa em Ala Recher- che du temps perdu. Esta precisio di imediatamente lugar a duas.observagées de importineia desigual. A primeira referee © cujo texto canénico se encontra estabelecido desde 1954 pela cdigho Clarac-Ferré, mais nio € que o tltimo estado de uma obra na qual Proust. trabalhou a bem dizer toda a sua vida, & ‘Mélanges (1919), as diver- tulados Chroniques (1927), Jean Santeuil {1952) ¢ Contre Sainte-Beuve (1954) (), ¢ 08 cerca sas recolhas ou inéditos péstumos ©, “As datas recordadas sio. das primeiras publicagSes, mas: as nos- sas referencias reenviam, naturalente, para a edi¢io Clarao-Sandre em dois volumes Vean Santeuil precedido de Les Plaitirs ef les Jours; Con- tre Sainte-Beuve precedido de Pastiches et Mélanges © seguido de Essais 9 de pitenta cadernos depositados desde 1962 no gabinete de ma- nuscritos da Biblioteca Nacional. Por essa razio, a que se acres- centa a interrupgéo forgada de 18 de Novembro de 1922, a ‘Recherche, menos que qualquer outra, nao pode ser considerada ‘como uma obra fechada, ¢ &, portanto, sempre legitimo, ¢ algu- mas vezes necessério, para comparagdo do texto «definitive», fazer apelo a esta ou aquela das suas variantes. O que também 6 verdadeiro quanto & apresentagio da narrativa, € no se pode deixar de reconhecer, por exemplo, aquilo que a descoberta do texto «na terceira pessoa» de Santeuil traz de perspectiva © de significagao ao sistema narrativo adoptado na Recherche. O nosso trabalho basear-se-4 essencialmente, pois, na obra diltima, mas néo sem que por vezes se tenham em conta os seus antecedentes, considerados no por eles mesmos, 0 que tem pouco sentido, sas pela luz que podem projectar. ‘A segunda observaco diz respeito ao método, ou antes, 20 procedimento aqui adoptado, J4 se péde ver que nem o titulo nem 0 subtitulo deste estudo mencionam aquilo que acabo de designar como seu objecto especifico. O que no € por coque- taria ou por inflacdo deliberada do assunto. O facto € que, fre~ quentes vezes, e de um modo talvez exasperante para alguns, a narrativa proustiana pareceré ter sido esquecida em proveito de consideragdes. mais gerais: ou, como hoje se diz, apagarse @ critica perante a «teoria literdriay, aqui, mais precisamente, @ teoria da narrativa ou narratologia. Poderia justificar ¢ clarificar esta ambigua situagGo de dois modos diferentes: quer pondo fran- camente, como outros por sua vez fizeram, 0 objecto especifico igo do designio geral, ¢. a. anilise ‘critica ao servigo da ‘Recherche no seria entdo mais que um pretexto, reser- vatério de exemplos e lugar de ilustragio para uma poética nar- rativa onde os seus tragos especificos se perderiam na transcen- déncia das «leis do géneron; quer, 20 contrério, subordinando a et Articles), Piéiade, 1971, que contém numerosos inédites. # ainda necessétio, por vezes, enquanto se espera pela edicio critica da Recherche, comtinuar a recorrer & ediglo Fallois do Contre Sainte-Beuve para cettas péginas tiradas dos Cadernos. 20 pottica @ critica, e fazendo dos conceitos, classificagbese pro- cessos propostos outros tantos instrumentos ad hoc, destinados exclusivamente a permitir uma descrigéo mais exacta ou mais precisa da narrativa proustiana na sua singularidade, tendo-se a cada paso imposto um desvio «tedricon. pelas necessidades de uma elucidago metodolégica. Confesso a minha repugnéncia, ou a minha incapacidade, em escolher entre esses temas de defesa aparentemente incom- pativeis. Parece-me impossivel tratar a Recherche du temps perdu como um simples exemplo daquilo que seria a narrativa em gerel, ou a narrativa romanesca, ou 2 narrativa de forma auto- biogréfica, ou sabe Deus que outra classe, espécie ou variedade: a especificidade da narracio proustiana tomada no seu conjunto é irredutivel, e qualquer extrapolaco seria aqui um erro de mé- todo; a Recherche s6 se ilustra a si mesma. Mas, de algum mddo, lade no € indecompontvel ¢ cada um dos tracos nela distingue presta-se 2 uma certa aproximacio, comparagio ou perspectivagdio, Como toda a obra, como todo ‘© organismo, a Recherche é feita de elementos universais, ou pelo menos transindividuais, totalidade singular. Analisé-la ¢ ir, no do geral para o particular, mas sim do particular para o geral: desse ser incomparével que &a Recherche a esses clementos bem comuns, figuras © processos de utilidade piblica ¢ de circulagdo corrente a que chamo ana- cronias, itirative, focalizagées, paralepses ¢ outros. O que aqui proponho é essencialmente um método de anélise: tenho, pois, que reconhecer que, de facto, procurando o especifico, encontro © universal, € que ao querer por a teoria ao servico da critica ponho sem querer a critica ao servigo da teoria. Este ¢ 0 para- doxo de toda a poética, e também, sem diivida, 0 de toda a acti vidade de conhecimento, eternamente dilacerada entre dois incon- lugares comuns, que no hé objectos senio singulares, nem ciéncia sendo do geral; sempre reconfortada, todavia, ¢ como que magnetizada por essa outra verdade, um pouco menos difun- dida, de que o geral reside no coracio do particular, e, logo, jente ao preconceito comum — o conhecivel no cora- 21 Mas. caucionar em cientificidade. uma vertigem, se-ndo um estrabismo metodolégico, nfo estard talvez isento de impostura. Defenderei entio diferentemente a mesma causa: talvez a ver- dadeira relagdo entre a aridez «tedricay e a mimticia critica seja de alternancia recreativa ¢ reciproca distracgo. Possa 0 por seu turno, ai encontrar uma espécie de diversao periddica, como.0 insone ao mudar de mau lado: amant alterna Camenae. 22 INTRODUGAO Empregamos correntemente a palavra narrative [récit] sem ‘no$ preocuparmos com a sua ambiguidade, por vezes sem a per- cebermos, e algumas das dificuldades da narratologia derivam talvez de’ tal confusio. Parece-me que, se se quiser comecar a ver mais claro neste dominio, tém que distinguir-se claramente Sob,este termo trés nogdes distintas. ium primeiro sentido -}.que € hoje o mais evidente @ o mais central no uso comum —, farrativa designa o enunciado narra~ tivo, 0 discurso oral ou escrito que assume a relagio de um acontecimento ou de uma série de acontecimento§} assim, cha- mar-se-4 narrativa de Ulisses a0 discurso do her6i perante os Feécios nos cantos IX a XII da Odisseia, e, logo, a esses mesmos ‘quatro cantos, ou seja, a0 segmento do texto homérico que diz ser sua fiel transcrigdo. Num. segundo sentido, menos difundido, mas hoje corrente entre os analistas © teéricos do contetido Aarrativo, narrative 23. {designa a sucessio de acontecimentos, reais ou ficticios, que ‘constituem 0 objecto desse discurso, e as suas diversas relagoes de encedeamento, de oposigdo, de repetigao, etc. «Anélise da narrativay significa, entio, estudo de um conjunto de acgdes ¢ de situagdes consideradas nelas mesmas, com abstracciq do me- dium, linguistico ou outro, que dele nos da conhecimento} neste caso, as aventuras vividas por Ulisses desde a queda de Troia até @ sua chegada junto de Calipso. {Num terceiro sentido, que ¢ aparentemente o mais antigo, narrative designa, ainda, um acontecimento: j4 nao, todavia, aquele que se conta, mas aquele que consiste em que alguém,, conte alguma coisa: 0 acto de narrar tomado em si mesmo. Dir-se-4, assim, que os cantos IX a XII da Odisseia séo consa- grados & narrativa de Ulisses, como se diz que o canto XXII é consagrado ao massacre dos pretendentes: contar as suas aven- turas é uma acco, tal como massacrar os pretendentes da mu- ther, ¢, se escusado dizer que a existéncia dessas aventuras (supondo que se tomem, como Ulisses, por reais) em nada de- pende dessa acco, igualmente evidente que o discurso narra~ ivo, por seu Jado (narrativa de Ulisses no sentido 1), depende las absolutamente, pois € 0 seu produto, como todo o enunciado € 0 produto de um acto de enunciagdo, Se, pelo contrario, se tiver Ulisses por mentiroso, e por ficticias as aventuras que ele conta, portancia do acto narrativo mais se acentua, pois dele depen- dem nfo somente a existéncia do discurso, como a ficgio de existéncia das acgdes que «transmites. Dir-se-4, evidentemente, outro tanto do acto narrativo do proprio Homero onde quer que ele assuma directamente @ relacio das aventuras de Ulisses. néo ‘hd enunciado, ¢ as vezes nem sequer contetido narrative. B, portanto, surpreendente que a teoria da narrativa se tenha até agora preocupado pouco com 0s problemas da enunciagio narrativa, concentrando quase toda io e seu contetido, como se fosse intei- ramente secundério, por exemplo, que 2s aventuras de fossem contadas ou por Homero ou pelo préprio Ulisses. Sabe-se, contudo, ¢ af voltaremos mais adiante, que Platio, outrora, no tinha considerado tal assunto indigno da sua atenc&o, 24 ‘Como o titiilo indica, ou quase,’ 0 nosso estudo baseia-se, essencialmente, na narrativa em seu sentido mais corrente, isto é, de discurso narrativo, que, em literatura, vem a ser, e particular- mente no caso que nos interessa, um texto narrativo. Mas, como so veré, @ anilise do discurso narrativo, tal como o entendo, implica constantemente 0 estudo das relagdes, por um lado, entre esse discurso © os acontecimentos que relata (narrativa no sen- tido 2), por outro lado, entre esse mesmo discurso e 0 acto que © produz, realmente (Homero) ou ficticiamente (Ulisses): nar- rativa no sentido 3. ‘Temos pois, desde j4, para evitar toda a confusdo e qualquer embarago de linguagem, que designar com termos univocos cada um dos aspectos da realidade narrativa. Proponho, sem insisti nas tazbes aliés evidentes da escolha dos termos, denominar-se histéria 0 significado ou contetido narrativo (ainda que esse con- teido se revele, na ‘ocorréncia, de fraca intensidade dramatica ‘ou teor factual), narrative propriamente dita o significante, enun- clado, discurso ou texto narrative em si, e narragdio 0 acto nar- produtor e, por extensfo, o conjunto da situagao real ou ficticia na qual toma luger (*). © nosso objecto aqui é, pois, a narrativa no sentido restrito que passamos a atribuir a este termo. & bastante nte, penso eu, que, dos trés niveis agora distintos, o do discurso narrativo’é © tinico que se oferece directamente & anélise textual, que € por sua vez 0 tinico instrumento de estudo de que dispomos no campo da narrativa literdria, e, especialmente, da narrativa de ficedio. Se quiséssemos estudar em si mesmos, digamos, os acon- tecimentos contados por Michelet na sua Histoire de France, poderfamos recorrer a toda a espécie de documentos exteriores a essa obra, respeitantes & historia de Franga; se quiséssemos © Narrativa e narraedo passam bem sem justificagto. Para histd- ria, © apesar de um inconveniente evidente, invocarei 0 uso corrente (dizse ccontar uma hist6riay), e um uso técnico, decerto mais restr mas bastante bem admitido depois que Tzvetan Todorov propés guir a ensrrativa -como discurso» (sentido 1) ea «narrativa como histé- Flay Gentido'2), Empregarei ainda no-mesmo sentido o termo diegese, que nos vem dos teorizadores da narrativa cinematogrifica. 25 estudar em si mesma a redaccAo dessa obfa, poderfamos utilizar outros documentos, igualmente exteriotes ao texto de Michelet, respeitantes A sua Vida © ao seu trabalho durante os anos que The consagrou. Mas ndo tem esse recurso quem Se interessar, por um lado, pelos acontecimentos contados pela narrativa que constitui a Recherche du temps perdu, ¢, por outro lado, pelo acto narrativo de que procede: nenhum documento exterior & Recherche, e, especialmente, nenfhuma boa biografia de Marcel Proust, caso existisse @, poderia informé-lo, nem sobre esses acontecimentos nem sobre esse acto, dado que séo uns € outro ficticios, e poem em cena, néo Marcel Proust, mas o suposto heréi e narrador do seu romance. Nao quero dizer, claro, que © contetido narrativo da Recherche nio possua qualquer relagdo com a vida do seu autor: mas, simplesmente, que essa rela¢ao no é de tal ordem que se possa utilizar a segunda para uma anélise rigorosa do primeiro (ou sequer o inverso). Quanio & narragdo produtora dessa narrativa, contando o acto de Marcel () a sua vida passada, evitar-se-4 a partir de agora confundi-la com d.acto de Proust ao escrever a Recherche du temps perdu; mais adiante vollaremos a este assunto, mas bastari recordar, para jé, que as quinhentas ¢ vinte ¢ uma paginas de Du cdté de chez ‘Swann (ed. Grasset) publicades em Novembro de 1913 e redi- gidas por Proust durante alguns anos antes dessa data, so supostas (no actual estado da ficco) serem escritas pelo narrador muito depois da guerra. %, portanto, a narrativa, e apenas ela, que aqui nos informa, por um lado, sobre 03 acontecimentos que relata, e, por outto Indo, sobre a actividade que suposta~ mente a traz @ lume: dito de outro modo, 0 nosso conhecimento incipal defeito consiste em atribuir friamente a Proust Proust diz de Marcel, a Illiers aquilo que ele diz de Combray, a Cabourg o que diz de Balbeo, © assim por diante: processo contesidvel em ‘si mesmo, mas para nés seni perigo: a no ser nos nomes, nunca se sai da Recherche. © Conservase aqui, para desigriar ao mesmo tempo o heréi eo narrador da Recherche, este prenome controverso, Explicarme-ei no ‘timo capttulo, 26 desta daqueles nfo ‘pode sendo ser. indirecto, inevitavelmente mediatizado pelo discurso da narrativa, dado que aqueles sfo 6 proprio’ objecto desse discurso e esta deixa’ af tragos, marcas ow indicios assinalaveis e interpretaveis, tais como a presenga dé uum pronomie pessoal na primeira pessoa que denota a identidade da personagem e do narrador, ou a de um verbo no passado que denota anterioridade da accio contada em relagio @ acco nar- rativa, sem prejuizo de indicagdes mais directas miais explicit Hist6ria e nartago s6 existem para nés, pois, por intermédio de narrativa. Mas, reciprocamente, a narrativa, o discurso nar- rativo no: pode sé-lo sendo enquanto conta uma historia, sem ‘o-que no seria narrative (como, digamos, a Erica de Espinosa), e porque € proferido por alguém, sem o que (como, por exem- plo, uma colecgio de documentos arqueolégicos) néo seria, em si mesmo, um discurso. Enquanto narrativo, vive da sua relaclo com @ histéria que conta; enquanto discurso, vive da sua relagéo com a narragdo que o profere. ‘A anélise do discurso narrativo sera, pois, para n6s, essen- cialmente o estudo das relagdes entre narrativa e historia, entre natrativa e narrago, ¢ (enquanto se inscrevem no discurso da nartativa) entre historia e narragdo. Tal posico conduz-me @ propor uma nova partilha do campo de estudo. Tomarel como ponto de partida a divisio adiantada em 1966 por Tzvetan Todorov (*). Tal divisio classificava os problemas da narrativa em trés categorias: a do tempo, «onde se exprime a relagio entre © tempo da historia e 0 do discurson; a do aspecto, «ou a ma- neira pela qual a histéria € percebida pelo narrador»; a do modo, isto €, «o tipo de discurso utilizado pelo narrador». Adopto sem qualquer. emenda a primeira categoria na definicho que acabo de citar, e que Todorov ilustrava com notas sobre as «deforma~ Ges temporais», isto € as infidelidades ordem cronolégica dos acontecimentos, ¢ Sobre as relagdes de encadeamento, de alternancia ou de cencaixen entre as diversas linbas de accéo constitutivas da histOria; mas acrescentava-lhe umas considera~ © hes catégoriee du récit littéraiter, Communications 2. Bes sobre 0 «tempo da enunciagéo» ¢ o da «percepgdo» narrati- vas (assimilados por ele 20s tempos da escrita ¢ da leifura) que me parecem exceder os limites da sua propria defini¢éo, e que, quanto a mim, reservarei para uma outra ordem de problemas, evidentemente ligados as relagSes entre narrativa e narragdo. A categoria do aspecto(®) recobria essencialmente as questoes do «ponto de vista» narrative, e a do modo(’) recolhia os pro- blemes de «distancia», que a critica americana de tradic¢ao jame- siana geralmente trata em termos de oposigéo entre showing («representagdo» no vocabulério de Todorov) e telling («narra gion), ressurgéncias das categorias plat6nicas de mimesis (imita- $40 perfeita) e de diegesis (narrativa pura), os diversos tipos de Tepresentagao do discurso de personagem, os modos de presenga implicita ou explicita do narrador ¢ do leitor na narrativa. Como para 0 citado caso do «tempo de enunciacdon, creio necessario dissociar esta ultima série de problemas, na medida em que poe em causa o acto de narragio e seus protagonistas; em contra- partida, deve reunir-se numa tinica grande categoria, que é, diga- mos provisoriamente, a des modalidades de representagao, ou graus de mimese, tudo o resto daquilo que Todorov repartia entre aspecto ¢ modo. Esta re igo conduz, pois, a-uma divisio sensivelmente diferente daquela de que se inspira, e que pas- sarei a formular por si mesma, recorrendo na escolha dos ter- mos a uma espécie de metéfora linguistica que seré preferivel no tomar demasiado a letra. Dado que toda a narrativa—mesmo com a extensio ¢ a complexidade da Recherche du temps peru —6 uma pro- dugdo Linguistica que assume a relacdo de um ou varios aconte cimento(s), € talvez legitimo traté-la como o desenvolvimento, © Rebaptizada avision em Littérature et Signification (1967) © em Qwiesirce que le structuralisme? (1968). ‘© Rebaptizada «registo» em 1967 © 1968. (©. Seré necessério preciser que, ao tratar a obra como uma narra- ‘va, se nfo pretends de modo nenhim reduzbla a esse aspecto? Aspecto ‘vezes demais negligenciado pola critica, mas que Proust por seu lado nunca perdeu de vista, do mancira que fala da «vocacio invistvel de que esta obva € a histérian (Pléiade, TI, p. 397, sublinhado’ eu). 28 Go monstruoso quanto se queira, dado a uma forma verbal, no sentido gramatical do termo: a expansio de um verbo. Eu caminho, Pedro veio sio para mim formas m{nimas de narrativa, ¢, de modo inverso, a Odisseia ou a Recherche mais néo fazem, de algum modo, que amplificar (no sentido ret6rico) enunciados tais.como Ulisses volte para ftaca ou Marcel torna-se escritor. Isto autoriza-nos talvez a organizar ou, pelo menos, a formular 0s problemas de anélise do discurso narrativo segundo categories tomadas da gramética do verbo, ¢ que se reduzirao aqui a trés classes fundamentais de determinagdes: as que estio ligadas as relagbes temporais entre narrativa ¢ diegese, e que arrumaremos sob a categoria do tempo; as que esto ligadas as modalidades {Formas ¢ graus) da «representago» narrativa, logo aos modos °) da nerrativa; aquelas, finalmente, que estio ligadas A forma pela qual se encontra implicada na narretiva a propria narragdo no sentido em que a definimos, ou seja, a situago ou instincia (®) narrativa, e, com ela, os seus dois protagonistas: o narrador ¢ seu destinatério, real ou virtual; poderiamos ser tentados a colo- car esta terceira determinacao sob o titulo da «pessoa», mas, por _razées que adiante se tornardo claras, parece-me preferivel adgptar um termo de conotagdes igicas um pouco (ail, bem pouco) menos marcadas, ¢ ao qual daremos uma extensdo con- ceptual sensivelmente mais larga, em que a «pessoa» (referente & oposigao tradicional entre narrativa «na primeiray ¢ narrativa na terceira pessoan) mais nao ser que um aspecto entre outros: esse tormo ¢ 0 de voz, que Vendryés, por exemplo (“), definia _ assim no seu sentido gramatical: «Aspecto da accio verbal nas suas relagdes com 0 sujeito...» Bem entendido que o sujeito de que se fala aqui € 0 do enunciado, ao passo que, para nés, a voz steno, | ©) 0 termo esté aqui tomato muito ao pé do seu sentido lingufstico, se nos referirmos, por exemplo, a esta definicio de Littré: «Nome dado as diferentes formas do verbo empregadas para afitmar mais ou menos & coisa de quo se trata, © para exprimir... os diferentes pontos de vista em que so considera a existéncia ou a acco.» @9) No senthto em que Benveniste fala de winstincia de discurso» roblemes de linguistique générale, V parte). 1) Citado no Petit Robert, s.v. Voix. designaré uma relago com o sujeito (¢, mais geralmente, a ins- tancia) da enunciagdo: mais uma vez, trata-se tio .somente de empréstimos de termos, que nfo pretendem fundar-se em rigo- rosas homologias (#). Como se vé, as trés classes propostas, que designam campos de estudo ¢ determinam a disposicio dos capitulos que se se guem(®), recobrem menos que recortam de forma complexa as trés categorias mais atrés definidas, que designavam niveis de definigéio da narrativa: 0 tempo ¢.0 modo funcionam ambos a0 nivel das relagdes entre hisiéria e narrativa, enquento que voz designa ao mesmo tempo as relagdes entre narragdo © nar- rativa e entre narragao e hi Evitar-se-4, porém, hipostasiar tais termos, e converter em substincia o que néo é mais, em cada momento, que uma ordem de relagGes. 2) Outra_justificacto, puramente proustol termo, a existéncia do precioso livro de Marcel Mal Narrativas em «A la Recherche du terips perdu» (Droz, @) Os tres primeiros (Ordem, Durapio, Frequéncia) tempo, 0 quarto do modo, o quinto ¢ dltimo da voz. 30, ORDEM Tempo da narrativa? ficado e tempo do significante). Nao s6 é esta dualidade aquilo. ‘que.torna possiveis todas as distorgdes temporais de que € banal dar conta nas narrativas (trés anos da vida do heréi resumidos em duas frases de um romance, ou em alguns planos de uma montagem «frequentativay de cinema, etc.); mais fundamental- mente, convida-nos a constatar que uma das fungdes da narrativa € cambiar um tempo num outro tempo ("*),» (%) Christian Metz, Essais sur la signification au cinéma, Klinck- siedk, Paris, 1968, p. 27. al ‘A dualidade temporal aqui tio vivamente acentuada, e que 0s teéricos alemies designam pela oposigao entre eredhite Zeit (tempo da historia) e Eredhlzeit (tempo da narrativa) ("), € um trago caracteristico nfo somente da narrativa . como também da narrativa oral, a todos os niveis de elaboracio estética, incluindo esse nivel plenamente dliterdrion que € 0 da go épica ou da narracho dramatica (narrativa de Théra- méne... [em Racine: Phédre]). & talvez menos pertinente noutra forma de expresso narrativa, tais como a ¢fotonovelay ou a banda desenhada (ou pictérica, como a predela de Urbino, ou bordada, como a «tapecariay da rainha Matilde), que, ao mesmo tempo que constituem sequéncias de imagens, logo, exigindo ‘uma leitura sucessiva e diacrOnica, igualmente se prestam, ¢, mesmo, convidam a uma espécie de olhar global ¢ sincronico ‘ou, pelo menos, um olhar cujo percurso nao € j¢ comandado pela sucesso das imagens, A narrativa titerdria escrita tem. quanto a este ponto, um estatuto ainda mais dificil de precisar. Como a narrativa oral ou filmica, nfo pode ser «consumida», logo actualizada, sen num tempo que evidentemente ¢ 0 da eitura, ¢, ainda que a sucessividade dos seus elementos possa ser contradita por uma leitura caprichosa, repetitiva ou selectiva, no se pode sequer chegar a uma analexi : pode-se pasar um filme 20 contrario, ‘per agem a imagem; nao se pode, sem que deixe de ser um texto, ler um texto ao contrario, letra a letra, nem mesmo palavra a palavra; nem sempre, até, frase a frase. livro € um pouco mais suportado do que hoje. em diam 3 vezes se diz pela famosa linearidade'do significante ico, mais facil de nogar em teoria que de evacuar na realidade, Contudo, no. se poe a questio de identificar o esta- tuto da narrative escrita (literdria ou no) ao da narrativa oral: a sua temporalidade é, de alguma maneira, condicional ¢ ins- trumental; produzida, como todas as coisas, no. tempo, existe To espago ¢ como espago, € o tempo necessirio para a wonsu- miry é aquele que € preciso para a percorrer ou atravessar, como (3) Ver Gunther Miller, Brzihizeit und erziihlten, Festschrift far Kluckhorn, 1948, retomado em Morphologische Poetik, Tubinga, 1968, 32 uma éstrada ou um‘ campo. O. texto narrative, como gialquer outro: texto, nao. tem outra -temporalidade sendio. aquola..que toma metonimicamente de. empréstimo. a sua propria leitura. Tal estado de coisas, vé-lo-emos miais adiante, nem sempre ser sem consequéncias na parte que nos toca, ¢ haveré que, por vezes, corrigir, ou tentar corrigir, os efeitos do deslocamento metonimico; mas temos primeiro que o assumir, ja que faz parte do jogo narrativo, ¢ tomar, pois, a letra a quase-ficgtio do Eradhl- zeit, esse falso tempo que vale por um verdadeiro e que trata~ Temos,. com o que isso comporta, ao mesmo tempo, de reserva € de aguiescéncia, como um pseudo-témpo. Tomadas estas precaugdes, estudaremos as relagdes entre tempo da historia © (pseudo) tempo da narrativa segundo’ aque- las que me parecem ser as suas determinagdes essoaciais: as relagdes entre a ordem temporal de sucesséo dos acontecimentos na diegese e a ordem pseudo-temporal da sua disposigfio na nar- rativa, que constituirao 0 objecto deste primeiro capitulo; as relagdes entre a duragéo variavel desses acontecimentos, ou seg- mentos diegéticos, ¢ a pseudo-duragio (na realidade, extensto de texto) da sua relacdo na narrativa: relagdes, pois, de velocidade, gue constituirao 0 objecto do segundo; reldgées, enfim, de fre- quéncia, quer dizer, para nos atermos aqui a uma férmula ainda aproximativa, relagdes entre as capacidades de repetigio da his- toria © as da narrativa: relagdes a.que sera consagrado 0 terceiro capitulo. Anacronias Estudar a ordem temporal de uma narrativa 6 confrontar a ondem de disposicéo dos acontecimentos ou segmentos tempo- ais no discurso.narrativo com a ordem do sucessio desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na na medida 33 ¥ igualmente: 6bvio que, na -narrativa~cléssica, pelo contr: ela nfo somente € possivel na maior parte das vezes, pois: af. 0 © discurso narrativo nunca interverte.a ordem dos acontecimen- tos sem o dizer, como, ainda, é:necesséria, ¢ precisamente pela mesma razio: quando um segmento narrativo comega por uma indicagdo como: «Trés meses antes, .etc.n,, tem que se ter em” conta 20 mesmo tempo aquilo depois de que essa, cena vem na narrative, e aquilo antes de que. se supde que -veio.na diegese: um e 0 outro, ou, melhor dizendo, a.relaco (de contraste ou de discordancia) entre um e 0 outro é essencial ao texto narrativo, fe suprimir essa relagdo por climinago- de um dos termos nfo € ater-se a0 mas maté-lo de boamente, "A localizagio e a medida dessas anacronias narrativas (como chamarei aqui as diferentes formas de discordancia entre 2 ordem da histéria e a da narrative) postulam implicitamente a exis: téncia de uma espécie de -grau zero, que seria um estado de perfeita coincidéncia temporal entre narrativa ¢ hist6ria, Tal estado de referéncia é mais hipotético qué real. Parece que a narrativa folclérica ter por hébito conformar-se, pelo-menos nas suas ‘grandes articulagées, com a ordem cronolégica, mas a nossa tre dicgdo literéria (ocidental), pelo: contrério, é inaugurada. com um efeito de anacronia caracterizado, pois desde 0, oitavo verso da Iliada 0 natrador, depois de ter evocado a.quetela entre Aquiles e Agamémnon, ponto de partida declarado -da’ sua narrativa (et hou de ta’ préta), regressa uma dezena de dias atras,-para expor a sua causa em cerca de cento e quarenta versos retros- pectivos (afronta a Crises —cblera de Apolo— peste). Sabe- que esse in medias res seguido de um voltar,atrés -expli- cativo se viré a transformar num dos topoi formais do género pico, ‘e, também, o quanto o' estilo da narragio romanesca permanecen neste particular fiel ao do seu longinquo antepas- sado(¥, .©- isto até mesmo em pleno séoulo XIX «realistan: @) Testemunho a contrario € esta apreciagio de Huet sobre as Babi. Ionicas de Tamblico: «A ordenanca de.seu designio .6 falha de. arte, Segui grosseiramente a ordem do tempo, e néo comégou por lancar 9 r no meio do asiunto, seguintdo o exemplo de Homeroy (Traité de leine’ des" romans, 1670, 9. 157). 34 sla; para‘ nos convencermos, pertsar.em certas-aberturas ‘balza- quidnas como’as de César Biroitéau.ou da Duchesse de Langeais. D’Arthez fez dele um principio para uso de Lucien’ de Rubem- pré(), e 0 proprio Balzac repreenderd. Stendhal por ndo ter comegado a Chartreuse de Parme pelo episbdio, de Waterloo, reduzindo «tudo 0 que-precede a uma qualquer narrativa feita por. Fabrice ow sobre Fabrice enquanto este jaz na aldeja da Flandres onde esta ferido (")», Nao se caird no ridfeulo de apre- sentar a anacronia como uma raridade ou como uma invengao moderna: ela & pelo contrario, um dos recursos trad: narracio literdria. De resto, se se considerarem um pouco mais de perto os pri- meiros versos da Wiada acima evocados, pode ver-se que 0 seu movimento temporal € mais: complexo do que se disse. Ei-los: Canta, deusa-a cdlera de Aquiles, 0 filho de Pelew; detes- tavel célera, que dos Aqueus trouxe sofrimentos sem conta e lancou a Hades para pasto tantas orgulhosas almas de herdis, enquanto tornava estes mesmos herdis presas dos cies de todas as aves do céu— para curaprimento do designio de Zeus, Parte daquele dia em que uma querela um contra, 0 outro em. tal Leto e Zeus. Foi ele quem, todo o exéreito lavrar um cruel. mal, do qual.os homens iam morrendo; isso porque o filho de Atreu tinka feito ajronta a Crises, seu sacerdote (*), Assim, 0 primeiro objecto narrativo designado por Hometo 6a célera de Aquiles; 0 segundo, as desgracas dos Aqueus, que dela sio, efectivamente, a consequéncia; mas o terceiro é a (7) wEntrai desde Jogo na acco, Tomaime vosso as de través como pele eanday ea! 6e vowos planos, para que tunes seja 0. mesmo» (Zllusions perdues, ed, Garnier, p. 230), (8 Enudes sur M. Beyle, Skira, Genebra, +1943, (®) Les Belles Lettres, p. 3. 35 quérela entre Aquiles e Agamémnor:, que & a sua causa imediata e lhe é, portanto, aufterior; depois, contiquando a remontar. expli- citamente de causa em causa: 2 peste, cavsa da: querela, ¢, enfim, a afronta @ Crises, causa da peste. Os cinco elementos constitutivos desta abertura, que denominarei A, B, C, De E segundo a ordem do seu aparecimento na narrativa, ocupam res- pectivamente na hist6ria as posigdes cronolégicas 4, 5, 3, 2.¢ 1: donde esta formula, que sintetizaré melhor ou pior as relacdes de sucessio: Ad-BS.C3-D2-El. Estamos muito perto de um mo- vimento regularmente retrégrado @). Haverd agora que entrar mais em pormenor na andlise das anacronias, Tito de Jean Santeuil um exemplo bem tipico. ‘A situagdo, que se reencontra sob diversas formas na Recherche, € a do futuro tornado presente que nao se parece com a ideia que se tinha no passado feito dele. Jean, varios anos depois, retncontra a casa onde habita Marie Kossichef, que antes havie amado, e compara as suas impressdes de hoje. com aquelas que ria antes dever sentir hi Algumas vezes, a0 passar em frente da casa, lembrava-se dos dias de chuva em que levava até ali a sua criada em pere- grinapdo. Mas lembravya-os sem a melancolia que entdo pen- saya dever experimentar um dia no sentimento de jd nfo a amar. Pois essa melancolia, aquilo que de avitemao assim a projectava sobre a sua indiferenca por vir, era o seu amor. E esse amor jé nfo existia @), : ‘A anélise temporal deste texto consistiré, primeiro, om enu- merar.os segmentos. segundo as mudangas de posigto no, terapo da historia, Contam-se aqui, sumatiamente, nove Segmentos repar- tidos por duas posigdes temporais, que designaremos por 2 (agora) ¢ I (antes), fazendo abstracgao do seu caracter iterativo («algu- @). E mais ainda se so tiver em conta o primeiro segmento, nko narrativo, no presente da instancia de narragio, logo, nb momento mais, tardio possivel: «Canta, deusan. @) Pikiade, p. 674. 36 mas vezes»): segmento A na posigéo 2 («Algumas vezes, ao passar em frente da casa, lembrava-se»), B aa posicéo 1 (cdois dias de chuva emque levava até ali a sua criada em peregrinagdo»), C na 2 («Mas cle lembrava-os sem»), D na 1 («a melancolia que entio pensava»), E na 2 («dever experimentar umd mento de jé a nfo amar), F na 1 («Pois essa melancol que de antemo assim o projectavan), Gna 2 («sobre a sua indi- ferenga por vity), H na 1 («era o seu amor»), I na 2 (KE esse amor jé no era»). A formula das posigdes temporais esté; por- tanto, aqui A2-B1-C2-D1-E2-FI-G2-H1-12, ou seja, im perfeito ziguezague. Notar-se-6, de passagem, que a dificuldade deste texto’ primeira leitura provém do modo, apa- rentemente sisteridtico, pelo qual Proust elimina af os pontos de reféréncia temporais mais elementares (antes, agora), que 0 leitor deve acrescentar mentalmente para se ir reconhecendo. Mas 0 simples Ievantamento das posigdes riéo esgota a anélise temporal, ainda que teduzida as questdes de ordem, e néo permtite deter- minar 0 estatuto das anacronias: falta definir as relagdes que unem os segmentos entre si. Se se corisiderar 0 segmenté A como o ponto de partida ‘nar- rativo, logo, em posicio aut6noma, o-segmento B define-se evi- deiitemente como retrospectivo: uma retrospeccéo que se pode qualificar de subjectiva, no sentido de que ¢ assumida pela propria personagem, cuja narrativa ndo faz sendo relatar os pensamentos . presentes (lembrava-se...0); B esté, pois, temporalmente subor- dinado a A: define-se como retrospectivo em relagto a A. C pro- cede de.um simples retorno’& posigio inicial, sem subordinacao. D faz de novo retrospecgio, mas, desta vez, directamente assu- mida pela narrativa: ¢, aparentemente, o narrador quem men- ciona a aus¢ncia de melancolia, mesmo sendo esta notada pelo her6i. E traz-nos de novo para o presente, mas de um modo muito diferente de C, porque, desta vez, o presente € coi ‘a partir:do passado, e «do ponto de vistan desse passad trata de.um simples regresso ao presente, mas.de uma antecipagio (evidentemente subjectiva) do presente no passado;-E e i -tetomos a cada subordinado a D-como D a C, sondo C:auténomo, como A. F nos pera a posicéio 1 (0 passado) por sobre a antecipagéo. E: simples retorno outra’véz, mas retomo-a 1, isto é,2-uma posicao subordinada, G é de novo uma antecipacio, mas esta. objectiva, pois'o Jean de outrora precisamente nao previa o fim por vir.de Sou amor como indiferenca, mas como melancolia de jé nao amar, H, como F, é retorno simples a 1. I, eafim,’€ {como C) retorno simples a 2, isto 6 a0 ponto de: partida. Este breve fragmento oferece, pois, uma amostra muito variada das diversas relaces temporais possiveis: retrospecedes subjec- tivas © objectivas, antecipactes subjectivas e objectivas, simples ma‘ das duas posigdes. Como 2 distingio entre anacronias subjectivas e objectivas ndo é de ordem temporal, mas releva de outras categorias, que iremos encontrar no capitulo do modo, vamos’ por agora neutraliz-lay por outro Jado, para evitar as* conotagdes’ psicolégicas ligadas ao emprego de termos ‘como «antecipagiion ou «retrospeccdon, que evocam espontanca- mente feaémenos subjectivos, elimind-los-emos na maior parte das ‘vezes em proveito de dois fermos mais neutros: designando por protepse toda a manobra narrativa consistindo em contar ou evo- car de antemao um acontecimento ulterior, e por analepse toda a ulterior evocacdo de um acontecimento anterior ao ponto da. his- ia em que se esi4, reservando o termo geral de anacronia para dpsignar queisquer formas de discordéncia entre as dues ordens temporais, que, veremos, se ado reduzem intelramente & analepse @ 8 prolepse.(*). @ Entramos a Prolepse e analepse numa familie. gramét ‘mais. tarde, e, por-outro lado, haveremos de jogar com. a oposiclo entre fesse radical -lepse, que designa em grego o facto de agarrar, donde, narre- tivamente, de tomar A sua conta e de assumir (prolepse: agarrar adianta- 5; analepse: agerrar ul jente), ¢ 0 radical -liase (como cm ), que designa, pelo contrério, 0 facto de deixar, de passer em. siléncio.’ Mas nenhum prefixo tirade do grogo nos. permite Sobrepassar a opositf pro/ana. Donde”o recurso a anacronia,, que. € perfeitamente claro, ‘mas que sai do sistema, ¢ cuja interferéneia de pre- fixo. com ‘analepse ‘6 importuna, Importuna. mas. significativa, 38 10s embaracos (e nas _penas) da termi entam. a vantagem de entrar, pelo seu radical, histériea da qual. alguns membros -nos_servirio ‘A andlise das relagdes sintdcticas (suboréinagéio ¢ coordenacao) entre os segmentos permite-nos agora substituir nossa primeira frmula, que. continha simplesmente as posiges, uma segunda, que faz surgir a5 relagbes € os encaixes: A2 [Bl] C2 [D1 2) Fi (G2) Hl] 2 Vé-se aqui claramente a diferenga de estatuto entre os segmen- tos A, Ce I, gor um lado, E e G do outro, que.ccupam todos a-mesma posigio temporal, mas no o mesmo nivel hierarquico. Também se vé que as relaces dindmicas (analepses e prolepses) 30 situam nas aberturas dos paréntesis. rectos © dos paréntesis curvos, correspondendo os fechamentos a simples retornos. Obser- va-so, finalmente, que o fragmento estudado aqui € perfeitamente fochado, sendo em cada um dos nfvels escrupulosemonte reintegra~ das as posicées de pariida: veremos que nem sempre € esse 0 caso. Nao, h4 divida que.as relagdes numéricas permitem distia~ guir s. analepses ¢ as prolepses, mas ¥ possivel explicitar melhor ainda a formula, assim como: A A A2 [am ] a [> (B2) Fl (G2) a DR a oP P : Este fragmento apresentava a vantagem (didéotica) evidente de-uma' estrutura temporal reduzida a duas posigdes: é essa uma situagaio muito rara, ¢, antes de abandonar o nivel micro-narra- ivo, rétiraremos de. Sodome et Gomorrhe () um texto muito mais 0 (ainda que o reduzamos, como o vamos fazer, &s suas posigdes temporais mais massivas, deixando de lado certas nuan- @e8), © que ilustra-bem a ubiguidade temporal caracteristica da narrative proustiana, Estamos na noite em casa, do principe de Guerinantes: Swann acaba de contar a Marcel-2 conversio do principe ao dreyfusisemo, no que, com ingéaua parcialidads, vé uma prova de inteligéncia. Bis como se encadeia a. narrativa de ©) Thy. 712-713, 39 ‘Marcel (marco ‘por meio de ‘uma Jetra’o inicio de cada segmento distinguindo). . (A). Sivan achava agora indistintamente inteligentes todos os que eram da sua opinitio, 0 seu vetho amigo: principe de (D) Swann interessou muito Bloch dizendo-the que o prin- cipe de Guermantes era dreyfusard, Haveria que propor-the assinar as nossas listas pré Picquart; com um nome como Seu, isso teria um efeito formidavel.» Mas Swann, misturando 4 sua ardente conviegio de israelita a moderactio diplomé- tica do mundano, (E) de que tinka ganko por demais os habitos (F) para deles tho tardiamente se desjazer, recusou'se @ autorizar Bloch a enviar ao Principe, ainda que conio de modo espontineo, uma circular para assinar, «Ele nio pode fazer isso, néo.se deve pedir o impossivel, repetia Swann. Eis um homem encantador, giie se deslocou mithares de mi- Thas para vir'até nds. Pode ser-nos muito ttil. Se, assinasse @ vossa lista, comprometer-se-ia simplesmente perante os seus, seria castigado por nossa causa, arrepender-se-ia, talvez, das suas confidéncias, ¢ néo as voltaria a fazer» Mais ainda, Swann recusou 0: seu proprio nome, Achava-o hebraico de- mais para fazer bom efeito. Além disso, se aprovava tudo © que respeitava a revisdo, néo queria misturar-se em nada da campanha antimilitarista, Usava, (G) 0 que até entéo nunca inka feito, a condecoragiio (H) que tinha ganko quando jovem soldado da guarda nacional, em 70, (I) ¢ acrescentou ao sei testamento um codicilo para pedir que, (1) contrariamente as suas dispasiges precedentes, (K) honras militares fossem prestadas ao seu grau de cavaleiro da Legitio de Honra, O Gue juntow @ volia da Igreja de Combray todo um esqua- ariio (L) daqueles cavaleiros sobre o futuro dos quais outrora chorava. Francoise, quando encarava (M) a perspective, de unia guerra, (N). Enfim, Swann recusou assinar a circular de Bloch, de maneira que, se passava po? dreyfusard.assanhado 8,0 meu camarada achou-o morno, infec- lismo e militartio. (O) Swann deixou-me sem me apertar a mao para nio ser obrigado a fazer adeuses, etc, | mente © 2 i rosseira> is (ainda uma. vez. muito” gr ie epstrativo), Sine a rbes ig ras, 20s cat Le guerra do 7 antes da noite Guer- istinguirem-se aqui, as eeD tulo. puranen vos, repartidos por nove nar tes a0 ode. crndk pea infancia de Marcel em Combray; °- ate at eh a8: a infae ‘noite Guermantes, que se pode situa’ St. a, antes: ie da Bloch (necessariamente posterior 8 0 NO 52 0 consite fore ausente); 62 0 almogo Swann-Bloh 7714 er qual Bloch fag, 82 as exéquias do Swann; 92° a guew ot go do, coins Serspetivan, que, em igor, #30 OPUBE TTS ‘quer posielo detinida,,dado set puremente poe, a a i i aa situar DO sim an Eo severe de Taig, A formula das posigdes ses. enti, seguinte: ™ K8-L.2-M9-N6-04 AG-B3-C5-D6-E3-F6-G3-HLATI3 ado temporal deste fragmento com Se se comparar & eS elem de um aimero maior de presen de um ico muito mais eomplexo, pols ee depende de K, que devende Bae sree teem Ba tps © snacrenls 0° io, pone nesmo nivel de subordinacdo, igh .: esto, portanto, 20 m site de CS ‘posigao de base: est 30 peng ail 3 6 simplemente coo polos, dado que nunce © Yar» posigda tui, poi oaples Fedo 8: constitui, pois, uma sim ue 3 (o convite) & 6 (0 almogo); 2 celipse, ' ‘ou avango, Sem FeCl, i evidente, uma noe rn mea que estudaremos apie a, gas : regio Oa. lgemo tempo, ras RAO nos cases, expestions a ‘por sit ae 6 3pem8 4 por am partes reco, mas Por SS indi ura suCcessao. fifen, que indicaré wma p completa: ‘C5.06(23)F6(G3 (HT <33>.)> A4(B3) [' NEI OF 41 snacronia, mas uma simples acele- ~ Abendonaremos agora o nivel micro-narrativo para considerar a estrutura temporal da Recherche tomada nas suas grandes arti Tagées. E claro que uma anélise.a este nivel nfio, pode dar.conta de pormenores que relevam de uma outra escala, © que procede, pois, de uma simplificago das mais grosseiras: passamos aqui da micro-estrutura .para a macro-estrutura, ‘O primeiro segmento temporal da Recherche, a que sio con- sagradas as primeiras seis. paginas do livro, evoca um momento impossivel de datar com preciso, mas situado muito tarde na vida do herdi(*), a2 dpoca em que, por se deitar cedo.e sofrer. de insnias, passava a maior parte das suas noiles a rememorar 0 ‘pasado. Este primeiro tempo ma ordem nerrativa esté, pois, longe de ser-o primeiro na ordem de diegética, Antesipando-o. segui- mento da anélise, afectemos-the desde jé a posigao 5 na. historia. Logo: AS. ‘O segundo segmento (pp. 9 43), ¢ a narrativa que o narrador faz, manifestamente inspirado embora pelas recordagées do herdi jinsone (que preenche aqui.a funcdo daquilo que Marcel Muller chama (*) 0 sujeito intermedidrio}, de um episodio mui ‘crito mas muito importante da sua infancia em Combray: a famosa ena do que deaomina «o drama do deitar(-se)», no decurso do qual 2.mée, impedida pela visita de Swann de Ihe. conceder. 0 ritual ibeijo da noite, acabard—cprimeira abdicagion decisiva — ‘por ceder As suas instdncias.¢ passar @ noite junto, dele: B2, 'O teresiro segmento (pp. 43-44) reconduz-nos. muito, breve- mente & posigio 5, a das insdnias: C5. O seguinte é provavel situar-se dlgures no interior desse periodo, pois que determina uma modificacdo no contetido das.insonias(*); é 0 episédio da.mada- Jena (pp. 44.a 48), no decurso do qual o herdi vé restituir-se-lhe @) Com feito, um dos quartos evocados: 6 0 de"Tansonville, oride ‘Marcel dormiu. apenas no decurso da -permanéncia contada no fim da Fugitive © no, comego do Temps retrouvé. O petiodo das insénias, neses- sariamente posterior’ a essa petmanéncia, poderia coincidir com uma e/ou a-outra dessés curas cm casa de saiide que se seguem, ¢ enquadram 0 episédio Paris em guerra (1916). @) Les Voix narratives, primeixa parte, cap. UW, e passim. Sobre a distingZo entre heréi e natrador, voltarei a. ela no sltimo capitulo. @). Apés a madalena, o Combray «totaly ficard integrado nas recor- ages do insone. 42 toda uma vertente da sua infancia («dle Combray, tudo 0 que nao fra 0 teatro e o drama do meu deitar») que'até af tinha perme: Sesldo enterrado (¢ conservado) num aparente esquecimento:, D5’. Sucedethe entio um quinto segmeato, ‘segundo regresso 2 Com- bray, mas muito mais vasto que o primeiro na sua amplitude ‘temporal, pois, desta vez, cobre (nflo. sem elipses) @ totalidade da jnfineia combraysiense, Combray. II (pp. 48.a 186) seré, pois, para nés E2', contempordneo de B2, mas_dele transbordando fareamente, como C5 transborda de ¢ inclui DS’. ‘O sexto segmento (pp. 186-187) faz retomo & posigéo, 5 (ins6- nias): FS, porlanto, que serve mais uma vez de trampolim part nova analepse memorial, cuja posigo é a mais antiga de todas, anterior ao, nascimento do herdi: Un amour de Swann 188 a 382), sétimo segmento:. G1. ; . vo segmento, muito breve regresso (p. 383) & posicao das insonias, logo H5, que de novo abre-uma analepse, desta vez aboriada, mas ouja fim¢ko de antincio ou de de espera é manifesta para o leitor atento: a evocacko em meia pégina (ainda p. 383) do quarto de Marcel em Balbec: nono segmento, V4, a Gue imodiatamente se coordena, desta vez sem. regresso percep: tivel & estaciio (relais) das insOnias, a natrativa (igualmente retros- pestiva em relacio a0 ponto de partida), dos sonhos de viagem do herdi, em Paris, muitos anos antes da sua estada em Balbec: © décimo segmento sera, pois, 33: adolescéncia parisiense, amores com Gilberte, convivéncia com Mme Swann, depois, apés uma clipse, primeira estada em Balbeo, regresso @ Paris, entrada. no fado Guermantes, etc.: doravante o movimento esti adquirido, ba narrativa, nas suas grandes articulagdes, toma-se praticamente regular e conforme A ordem’ cronolégica de ‘tal modo que se pode considerar, ao nivel de andlise em que aqui nos situamos, Gue 0 segmento J3 6 extensivo a toda a continuacio (e-fim) da Recherche. "A formula deste comego¢, onto, segundo as nossas conven- ges anteriores: 7 AS [B2] C5 [DS' (E2/)] FS [G1] HS [141 53... ‘Assim, a Recherche du temps perdu 6 inaugurada por tim mo- vimento vasto de vaivém a partir de uma posicéo-chave, estra- 43 tegicamente dominante, que é evidentemente a posigdio 5 (insénias) com sua variante 5 (madalena), posigées do «sujeito intermediation, insone ou miréculado da meméria involuntéria, cujas Jembrancas comandam a-totalidade da narrativa, o que dé ao ponto 5-S’.a fungio de uma espécie de obrigatéria estagdo, ou —se ousarmus dizer—de dispatching narrative: para passar de Combray I a Combray Il, de Combray Ul a Un amour de Swann, de Un amour ‘de. Swann a Balbec, h& que regressar incessantemente a essa posi- ‘cho, central embora excénttica (dado que ulterior), cuja.pressao 86 cessa de vigorar na passagem de Balbec para’ Paris, apesar deste iiltimo segmento (J3) estar do mesmo modo (enquanto coordenedo ao precedente) subordinado a actividade memorial do sujeito intermediario, © ser, logo, igualmente analéptico. A dife- renga—sem dtivida capital —entre essa analepse e todas as pre- cedentes € que esta se mantém aberia, ¢ que a sua amplitude se confunde com a Recherche quase toda: o que significa, entre outras coisas, que atingiré e ultrapassard, sem o dizer e como que sem’ ver, 0 seu ponto de emissio memorial, aparentemente sumido numa das suas elipses. Adianie vollaremos a esta parti- cularidade. Retenhamos apenas, por agora, esse movimento de ziguezague, essa gaguez, inicial, e como que iniciética, ou propi- i -2-5-5'-2'-5-1-5-4-3..., © ele préptio j4 contido, como o a célula embriondria das seis primeiras paginas, que nos passelam de quarto 2 quarto e de era em era, de Paris para Com- bray, de Donciéres para Balbec, de Veneza para Tansonville. Hesitacdo nao imével, de resto, apesar dos seus incessantes recuos, gragas a ela, 2 um Combray I pontual sucede o mais vasto Combray 12, um Amour de Swann mais antigo mas de movimento ja irreversivel, um Nom de pays: le Nom, enlim, a partir do qual a narrativa, definitivamente, assegura a sua marcha ¢ encontra 0 seu regime. Essas aberturas de complexa estrutura, ¢ como que mimando, para melhor a exorcismar, a dificuldade do comeco, estao aparen- temente na tradig&io narrativa mais antiga e mais constante: notd- mos jé a partida em caranguejo da IIfada, e-deve recordar-se aqui que & convengiio do comeco in medias res se acrescentou ou s0- brepés' durante toda a época clissica a dos encaixes narrativos (X conta que YY’ conta que...), que ainda’ funciona, como adiante 44 10s, em Jean Santeuil, © que dé. ao narradot tempo de colocar sree Aquilo que faz a parsularidade do ex6rdio da Recherche & evidentemeate, 2 multiplicacio das instincias memoriais, e, por sequéncia, a multiplicagio dos comegos, senda que cada um (ex- cepto 0 tiltimo) pode depois aparecer como um prOlogo introdutivo. Primeiro comeco (comego absolute): «Durante muito. tempo me deitei cedo...» Segundo comego (comego aparente da autobiogra~ fia), seis paginas depois: «Em Combray, todos os dias, desde 0 fim’ da tarde...» Terceiro. comego (entrada em cena da meméria involuntéria), trinta e quatro paginas depois: «E é assim que, por muito tempo, quando, acordado- dé noite, relembrava Combray...» Quarto comeco (rotomada apés a madalena, verdadeiro inicio. da autobiografia), cinco paginas depois: «Combray, do longe, a dez léguas em redor...» Quinto comeco, cento ¢ quarenta paginas depois: ab ovo, umor de Swann (novela exemplar se a houvesse, arquétipo de todos os amores proustianos), nascimentos conjun- tos (@ ocultados) de Marcel ¢ de Gilberte («Confessaremos, diria aqui Stendhal, que, seguindo o exemplo de zauitos e graves auto- es, comecdmos um ano antes do seu nascimento a hist6ria do nosso herdin—nao 6 Swann para Marcel, mutatis mutandis ©, espero, em bem e em honra (#), aquilo que 0. teneate Robert & para Fabrice del Dongo?) Quinto comeco, pois: «Para fazer parte do “nucleozinho”, do “grupinho”, do “clizinho” dos Verdurin...» Sexto comego, cento ¢ noventa cinco paginas depois: «Entre. os quartos de que evoquei mais vezes a imagem nas: minhas .noites de insdnia...», imediatamente seguido de um sétimo, € postanto,, como se deve, tiltimo comego: «mas nada se parecia menos, tam- ém, com esse Balbeo real que aquele com que tanto tinha soz nhado...» Desta vez, o movimento esta langado: nfo parar4 mais. ‘@) Mas néo. 6 o papel de Swann na cena do deitar tipicamente paternal? Ao fim e ap cabo, 6 ele quem priva-a oriana de presenga da fide, © pai legal, pelo conirdrio, mostrase de um onlpado Inxismo, de uma’ complacénoia gozadora e suspeita: «eVal com middo». Que ‘con clr deste foie? S ‘Alcarice; amplitude Disse que a continuacio da Recherche adoptava nas suas gran- des articulagdes tuma disposicéo conforme A ordem cronolégica, mas tal solucio de conjunto no exclui a presenga de um grande nGmeto de anzcronias de pormenor: analepses ¢ prolepses, mas também outras formas mais compiexas ou mais subtis, talvez. mais especificas da narrativa proustiana, em todo 0 caso mais afastadas ao mesmo tempo da cronologia «realy e da temporali- dade narrativa cldssica. Antes de abordar a andlise dessas anacro- nias, precisemos bem que se trata apenas de uma andlise tempo- zal, e ainda reduzida as questdes de ordem somente, feita abstrac- 40 por enquanio da velocidade ¢ da frequéncia, ¢ a fort caracteristicas de modo e voz que podem afectar as anaci tanto como.a qualquer outra espécie de segmentos narrativos. Deixar-se-4 de lado aqui, de modo particular, uma distingao capi- tal que opée as anacronias direclamente assumides pela narrativa, © que ficam, pois, ao mesmo nivel narrative daquilo que as rodeia (exemplo, og versos 7 a 12 da Iliada, ou o segundo capitulo de César Birotteay), ¢ aqueles que uma das personagens da narra- tiva primeira, toma a seu cargo, e que se encontram, portanto, a um nivel narrativo segundo: exemplo, os-cantos IX a XII da Odisseia (nacrativa de Ulisses), ou a aurobiografia de Raphaél de Valentin na segunda parte da Peau de chagrin. Reencoatraremos, evidentemente, essa questo, que nfo é especifica das anacronias ‘apesar'de Ihes dizer'em primeiro: lugar respeito, ‘no capitulo da vod narrativa, ‘Uma anacronia pode ir, no passado como no futuro, mais ou menos longe do momento «presente», isto é, do momento da -his- toria em que a narrative se interrompeu para the dar lugar: cha- maremos alcance da anactonia a essa disiéncia temporal. Pode igualmente recobrir uma duracio de hist6ria mais ou menos longa: € aquilo a que chamaremos a sua amplitude, Assim, quando Homero, no canto XIX da Odisseia, evoca as circunstancias em ‘que Ulisses, adolescente, recebeu otitrora o ferimento do qual conserva ainda a cicatriz no momento em que Euricleia se apresta para Ibe Iavar os pés, essa analepse, que ocupa.os versos 394-466, tem um alcance de varias dezenas de anos e uma amplitude de 46 alguns dias, Assim defidido, o estatito dag anacrénias parece-tifo ser’ mais que uma questio de mais ou-de menos, téréfa- de -modi- Go sempre. especifica, assunto de croomettista, som interesse te6rico. B todavia possivel (e, quanto 2 il) repartir as caractéristicas de dlcance e de amplitude de modo discrefo em relagio a certos momentos pertinentes da atrativa. Reparti¢éo essa que se aplica de modo sensivelmente idéntico as duas gran- des Glasses de anactonias, mas que, para comodidade da exposi- Gio e para evitar 0 risco de uma abstraccio demasizda, operare~ mos primeiro exclusivamente sobre as.analepses, 0 que no quer dizer que seguidamente se mio alargue 0 processo. Analepses Toda a anacronia, constitui,:em relagéo a narrativa na qual se insere—na qual se enxerta— uma narrativa temporalmente so- ‘gunda, subordinada a primeira, nessa espécie de sintaxe natrative {quo encontramos quando da anélise, tentada acima, deum muito durto fragmento de Jean Santeuil. Passaremos 4 chamar «narra: tiva primeira» ao nivel temporal de narrativa em relagéo ao qual uma apacronia'se define enquanto tal, Claro que—e nds jé 0 yerificmos — os modos de-encaixe podem ser mais complexos, & que uma macronia pode figurar como nazrativa primeira em rela- go a uma outra que, por seu tumno, suporia, e, mais geralmente, &m relagao a uma afiacronia, 0 conjunto do. contexto pode ser considerado’ como narrative primeira. "A narrativa do ferimeato de ‘Ulisses reporta-se a um episodio muito evidentemente anterior ao ponto de partida temporal da qnarrativa primeira da Odisseia, ainda que, segundo tal principio, se englobe nessa nocdo a natrativa retrospectiva de Ulisses aos Feécios, que remonta’a queda de Tr6ia, Podemos, pois, qualificar de externa aquela analepse cuja amplitude total permanece exterior 2 da narrative ptimeira. Outro tanto se diré, por exemplo, do se- gundo capitulo de César Birotteau, cuja historia, como claramente indica a seu titulo («Os antecedentes de César Birotteauy), precede ‘0 drama aberto pela cena noctuma do primeiro capitulo, Inversa- mente, qualificaremos como analepse interna’ captiulo seis de a Madame Bovary, consagtado aos anos de convento de Emma, evidentemente posteriores & entrada de Charles no licen, que é 0 ponto de arranque do romance; ou, ainds, o principio de Souf- frances de Vinventeur (*), que, apés a narrativa das. aventuras parisienses de Lucien de Rubempré, serve para informar o leitor daquilo que foi entrementes a vida de David Séchard em Angou- Iéme, Podem também conceber-se, e por vezes so encontram, Jepses mistas, eujo ponto de alcance é anterior e o ponto de ampli- tude posterior 20 comeco da narrativa primeira: como a historia de Des’ Grieux em Manon Lescaut, que remonta a muitos anos antes do primeiro encontro com o Homem de Qualidade ¢ prosse- gue até 20 momento do segundo encontro, que é também o da narragio. Esta distingo no é tio fitil quanto pode parecer & primeira vista, Com efeito, as analepses externas ¢ as analepses intermas (ou mistas, na sua parte interna) apreseatam-se de um modo com- pletamente diferente a uma anélise narrativa, pelo menos num ponto, que me parece capital. As analepses externas, pelo simples facto de serem extemas, ndo correm em nenhum momento o risco de interferir com a natrativa primeira, que tém simplesmente por fungio completar, esclarecendo 0 deitor sobre este ou aquele cante- cedenten: é, evidentemente, 0 caso de alguns exemplos jé citados, ¢ 6 ainda, do modo igualmente tipico, o de Un amour de Swann na Recherche du temps’ perdu. 34 nao € 0 mesmo o caso das ana- epses intemas, cujo campo temporal est4 compreendido no da narrativa primeira, ¢ que apresentam um risco evidente de redun- dancia ou. de colisio, Temos, pois, que considerar de mais perto esses problemas de interferéncia, Comegaremos por por fora de causa as analepese internas que proponho’ denominar Aeterodiegéticas (), ou seja, reportando-se a.uma tinha de historia, e, logo, a um contetido diegético diferente do (ou dos) da narrativa’ primeira: ou seja, muito classicamente, sobre uma nova persoriagem introduzida, da qual o narrador quer esclarecer os «antecedentes», como Flaubert para Emma no’ capi @) Illusions perdues, Garnier, pp. 550-643. ®), Figures-Il,,p, 202. 43 tulo j4 citado; ow sobre'uma personage perdida de vista desde hé algum tempo e com cujo passado recente é preciso contar, como € 0 caso de David no inicio de Souffrances de V'inventeur, Sio esas, talvez, as dungdes mais tradicionais da analepse, e € evi- dente que a coincidéncia temporal néo acarreta, neste caso, uma verdadeira intenferSncia narrativa: assim, quando, @ entrada do principe de Faffenheim no saléo Villeparisis, uma digressio retros- pectiva de algumas péginas(*) nos revela as razbes dessa pre~ seaga, ou sejam as peripécias da candidatura do principe & Aca- demia das Ciéncias morais; ou quando, ao reencontrar Gilberte Swann transformada em Mlle de Forcheville, Marcel faz com que the expliquem as razies dessa mudanga de nome(*). O casa- mento de Swann, os de Saint-Loup ¢ do «petit Cambremers, a morte de Bergotte (*) vém assim ligar-se & linha principal da his- toria, que € a autobiografia de Marcel, sem de modo nenhum inquietar o privilégio da narrativa primeira. t % muito diferente a situago das analepses internas homodie- géticas, isto é, que se referem A mesma linha de acco que a narra~ tiva primeira, Aqui, 0 tisco de intorferéncias é evidente, e mesmo aparentemeate inevitdvel. De facto, temos:de distinguir aqui duas catogorias, ‘A primeira, a que chamarei analepses completivas, ou «reen- vios» [renvois], compreende os segmentos retrospectivos que vem preencher mais tarde uma lacuna anterior da narrativa, a qual se organiza, assim, por omissées provis € reparacdes mais ou menos tardias, segundo uma l6gica narrativa iparcialmente independente da passagem do tempo. Tais lacunas anteriores ‘podem ser elipses puras e simples, ou sejam, fathas na contin dade temporal. Assim, a estada de Marcel em Paris em 1914, contada por ocasiio de uma outra estada, esta em 1916, vem preencher parcialmente a elipse de varios «longos anos» passados pelo heréi numa casa de saide(*); o encontro da Dama de cor- -de-rosa-no apartamento do tio Adolphe (*) abre a meio da narra~ @) TH, pp. 257-263. ©) TE, pp. 574-582. 467-471; TIL, pp. 664-673; TH, pp, 182-188. @) IM, 9p. 737-155, of. p. 723. @) I, pp. 72-80. 49 tiva combraysiana uma porta que dé para a face parisiense da infincia de Marcel, com essa excepeio totalmente oculta, até & ter- ceira parte de Swann, , evidentemente, em dacunas tempo: deste tipo que se devem. (hipoteticamente) colocar certos aconteci= mentos da vida de Marcel que apenas nos sio conheeidos atra- vés de breves alusées retrospectivas: uma viagem & Alemanba com a avo, anterior primeira a Balbec, uma estada nos Alpes anterior ao episodio de Donciéres, uma viagem a Holanda anie- rior ao jantar Guermantes, ou ainda — sensivelmente mais dificeis de localizar, considerando a duragio do servigo naquela €poca— ‘os anos de servigo militar evocados de passagem durante o passeio com Charlus (*), Mas. hé ainda uma outra espéc - cunas, de ordem menos estritamente temporal, que consiste j& nfo a olisio de um segmento diac , mas na omissio de um dos elementos constituiivos da situacio num periodo em principio coborto pela narrativa: ou seja, 0 facto, por exemplo, de contar a infancia ocultando sistematicamente a cxisténcia de um dos membros da sua familia (0 que seria a atitude de Proust para ‘com 0 seu irméo Robert so se tivesse a Recherche por uma autén- tica autobiografia). Ai, a narrativa néo salta, como na elipse, por cima de um momento, passa ao lado de um dado. Esse género de elipse lateral teré 0 nome, conformemente & etimologia ¢ sem grande entorse do uso retorico, uma par Como a elipse temporal, a paralipse presta-se, evidentemente, muito bem 20 pre- enchimento retrospectivo. . a morte de Swann, ou, mais pre- cisamente, 0 seu cfeito sobre Maree! (pois essa morte em si mesma poderia ser tida por exterior & autobiografia do herbi, ¢, logo, ‘por heterodiegética). nfo foi contado em seu tempo, e, contudo, nenhuma elipse temporal poderd ter lugar, em principio, entre a fp. 808. Supondo, claro, que bes retrospectivas, 0 que é a 740 eritico pode também considerar ‘eis alusies como lapsos do autor, em que, talvez, a biografia de Proust se projecte momentanesmente sobre a de Marcel. C5) A parelipse dos rot6ricos 6 mais uma falsa omissiio, de utr modo dita pretericao. Aqui, a paralipse enquanto figura narrativa opéese 2 tlipse como deivar de lado a deirar no sitio, Viremos adiante. a reencontrar ‘a paralipse como facto de modo. 50 ‘iltima aparigio de Swana (o serio de Guermantes) ¢ 0 dia do, ‘concerto Charlus-Verdurin em que se insere a noticia retrospec~ tiva da sua morte (*): tem, pois, que supor-se que esse aconteci- mento muito imporiante na’vida afectiva de Marcel («A morte de ‘Swann tinha-me A época transtornado») foi lateralmente omitido, ‘em paralipse. Exemplo mais claro ainda: o fim da paixio de Mar- cel pela duquesa de Guermantes, gragas @ intervencao quase mi- ractlosa da sua mie, constitui objecto (*) de uma narrativa retrospectiva sem precisio de data («Certo dia...»); mas, como se fala da avo enferma no decurso dessa cena, tem obviamonte (que se situé-la antes do segundo capitulo de Guermantes II (p. 345); mas também, claro, depois da pagina 204, onde se vé que Oriana ainda se Ihe nio «éomou indiferenter. Nao h4 af nenhuma elipse temporal detectivel; Marcel omitiu, portanto, o relato tempo desse aspecto todavia capital da sue vida interior. Mas 0 caso ‘mais notdvel, ainda que raramente considerado pelos criticos, tal- you porque se recusem a tomédlo a sério, € 0 dessa misteriosa epriminhay de quem vimos a saber, no momento em que Marcel dé a uma alcoviteira o canapé da tia Léonie (**), que foi com ela que conheceu, sobre aquele mesmo canapé, «pela primeira vez 0s prazeres do amon»; ¢ isso em mais lado nenh bray, e numa data bastante antiga, j4 que se pr de ciniciagao (*)» se passou «uma hora em que a minha tia Léo- nie estava levantaday, e se sabe num outro ponto que nos ultimos ‘anos Léonie j4 no saia do quarto (#). Deixemos de lado o valor temético provavel dessa confidéncia tardia, ¢ admitamos mesmo que a omissio do acontecimento na narrativa de Combray releva que a cena. 201; a menos que se considere como uma clipse 0 fos primeiros meses de vida comum com Albertine 78. (®) «Prima (ama midds). A minha iniciadora: 1, p. 378», nota, imper- turbayel e preciso, o-ladex dos nomes de pessoas de Clarac e Ferré. ‘GE verdade que tem dois quartos, contiguos, passando para um ‘enquanto se areja o outro, (I, p. 49). Mas, a. ser assim, a cena tornase das mais arriscadas que pode haver, Por outro lado, nfo’ h4 relacéo clara entre esse «canapé» e a cama descrita na pégina 50, com a, sua colcha 51 de pura clipse temporal: a omissio da personagem no quadro de familia, essa, no pode senfio como uma paralipse, ¢.0 seu valor de censura vé-se assim acrescentado. Essa priminba no canapé send para nds, pois — cada idade tem os seus prazeres —: anaiepse sobre paralipse. Considerdmos até aqui a localizago (retroactiva) das anax lepses como se se tratasse sempre de um acontecimento tnico a colocar num tinico ponto da histéria passada, e, eventuaimeate, da narrativa anterior, Na. realidade, certas retrospecgées, ainda que consagradas a acontecimentos singulares, podem remeter para clipses iterativas (*), ou seja, que se referem, nfo a uma s6 das fracgBes de tempo pasado, mas a varias fracedes, consideradas como semelhantes e de alguma maneira repetitivas: assim, 0 en- contro com a Dama de cor-de-rosa pode remeter a um qualquer dos dias de Inverno em que Marcel ¢ os seus pais viviam em Pacis, num ano qualquer anterior ao seu desentendimento com io Adolfo: acontecimento singular, sem divide, mas cuja loca~ lizagdo nos surge como da ordem da’ espécie ou da classe (um Inverno) ¢ nfo do individuo (corto Inverno). & assim, a fortiori ‘quando o acontecimento contado -por analepse € ja de si de dem iterativa, Assim, nas Jeunes filles en fleurs, 0 dia da pri- meira aparigéo do «grupinho» termina com wm jantar em Rive- belle que jé néo 6 o primeiro; esse jantar é para o aarrador uma ocasiao de retomo a série precedente, em que numa s6 vez conta todos os jantares anteriores (‘): ¢ claro que a elipse preenchida por essa Fetrospecedo ndo pode, por sua Vez, ser sendo iterativa. ‘Do mesmo modo, a analepse que Zecha as Jeunes filles, éltimo olhar sobre Balbee depois do regresso a Paris (‘), refere-se, de modo sin= {ético, 2 toda a séric das sestas que Marcel, durante toda a sua de flores de «odor mediano, gordurento, insipido, indigesto e de frutas» onde © muito jovem Marcel, «com um apetite aceso e inconfessado», voltava sempre a enfiarse, Deixemos este problema para os especialistas, © Yombremos que em «Confession d'une Jeune. Fille», dos Plaisirs et les Jours, a lop pOe em cena a heroina de catorze anos e um «priminho» de quinze, «é muito viciosor @isiade, p. 87). (8) Sobre o iterativo em geral, ver adiante o cap. III. ) I, pp. 808-823, I, pp. 953-955. 52 permanéncia, por ordem do médico, tinha tido que fazer todas as ‘manhis até ao meio-dia, enquanto as suas jovens amigas se pas- seavam no dique cheio de sol, e se declarava sob as suas janclas ‘© concerto matinal: aqui, mais uma vez, uma analepse iterativa vom preoncher uma elipse iterativa—permitindo assim a essa parte da Recherche terminar, no em cinzas de um regresso triste, mas. na gloriosa suspensio— musical, dourada—de um inalte- ravel sol de estio. Com o segundo tipo de analepses (internas) homodiegtticas, a que chameremos.precisamente analepses repetitivas, ou rappels, ja no escaparemos & redundéncia, pois ai a narrativa regressa abertamente, e por vezes explicitamente, 20 que foi dito. £ claro que essas analepses em rappel raramento podem at ji sbes textuais muito vastas: sio antes alusoes da narrativa ao seu proprio passado, aquilo a que Limmert (#*) chama Ruckgriffe, du cetrocepcdes». Mas 2 sua importancia na economia da narrativa, sobretudo em Proust, compensa largemente a sua fraca extensio narrativa. Tém evidentemente que contar-se entre os rappels as trés reminiscéncias devidas 4 meméria involuntéria no decorrer da manhi Guermantes, ¢ que (contrariamente da madalena) reme- tem todas para um momento anterior da narrativa: a permanéncia em Veneza, 2 paragem no caminho-deferro em frente de um ren- que de arvores, a primeira manhi face ao mar em Balbec (*), Tra~ ta-se ai de rappels no estado puro, voluntariamente escolhidos on inventados pelo seu cardcter fortuito ¢ banal; mas esboca-se, ao mesmo tempo, uma comparagio do presente com 0 passado:~ ‘comparacio por uma vez reconfortante, j que o momento da reminiscéncia ¢ sempre euférico, mesmo s¢ ressuscita um pasado em si doloroso: « Mas a utilizagdo mais. tipica do rappel é, sem divida, em Proust, aque'a pela qual um acontecimento jé provide a seu le uma significagao vé depois essa primeira intezpretacdo substituide por uma outra (nfo necessariamente melhor). Tal pro- cesso é, evidentemente, um dos mais eficazes meios de circula- G40 do sentido no romance, e dessa perpétua «reversio do pr6 ‘no contray que caracteriza o aprendizado proustiano da verdade. Saint-Loup, em Doncféres, a0 encontrar Marcel numa rua, nfio 0 reconhece, aparentemente, e saiida-o friamente como um soldado: viremos adiante a saber que o tinha reconhecido mas nio tinke querido parar (*). A av6, em Balbec, insiste com irritante futili- dade para que SeintLoup a fotografe com o seu belo chapé sabia-se condenada ¢ queria deixar ao neto uma recordagiio onde no se visse a sua mA cara (*), A amiga de Mile Vinteuil, a pro- fanadora de Montjouvain, consagrava-se piamente, pela mesma época, @. reconstituir nota por nota os indecifréveis rascunhos do septeto (*), etc. E conhecida a longa série de revelagdes @ de confissbes pele qual se decompde e recompée a imagem retros- pectiva, ou mesmo péstuma, de Odette, de Gilberte, de Albertine ou de SaintLoup: desse modo, o jovem que acompanhava Gil- berte certa noite nos Champs-Elysées «era Léa vestida de ho- mem» (""); desde o dia do passeio nos arrabaldes ¢ da bofetada ao jomalista que Rachel néo passava para Saint-Loup. de um biombo», e desde Balbec que se fechava com o ascensorista do Grand Hétel (*); na noite dos cattleyas Odette saia de casa de relagées de Albertine com Andrée, com Morel, com diversas rapa rigas de Balbec © de outros sitios (*); mas, em contrapartida, “) Tl, p. 883. 138 © 176 (©) 1,'p. 786 ¢ Il, p. 716. (@) T, pp. 160-165'e 11, p. 261 () I, p, 623 ¢ IM, p. 695. X@ I, pp. 155180 6 TIL, p. 681. @) 1, pp. 231 e 371. (®) I, pp. 515, $25, 599.601. 57 e toda a série de tardias reciificagbes sobre as ~ por uma ironia ainda mais cruel, a ligagdo culpada entre Alber- tino ¢ a amiga de Mile Vinteuil, cuja confisséo involuatéria.cris- talizou a paixio de Marcel, era .pura invencio: «Acreditei estu- pidamente tomar-me interessante aos seus olhos inventando que finha conhecido muito essas raparigas» ("): 0 objectivo 6 atin sido, mas por uma outra via (0 clime, ¢ nfo o snobismo artis- tico), ‘com o seguimento que se conhece. Essas revelagdes sobre os habitos eréticos do migo ou da mulher armada. sio evidente is, Seria tentado a achar ‘ainda mais capital — «capitalissima, para falar proustiano—, por- que tocando nas proprias bases da Weltanschauung do hersi.(o universo de Combray, a oposic&o dos dois Jados, eestratos pro- fundos do meu solo mental» ()), a série de reinterpretagies de que ser ocasifo a tardia permanéacia em Tansonville, ¢ Gilberte de Saint-Loup 0 médium involuntério. J4 teatei, noutro sitio (*), mostrar a importdncia, em diversos planos, da «verificagdo» — que 6 uma refutagdo—a que Gilberte submete o sistema de pensa- mento de Marcel, ao revelar-lhe, ndo somente que a nascente da Vivonne, que ele se representava «como qualquer coisa de tio extraterrestre como a Entrada dos Infernos», era «apenas ume espécie de tanque quadrado onde subiam boihas», mas também que Guermantes e Méséglise nfo esto assim to Ionge, no sio 180 «incor sy como tintha pensado, dado que se pode num rmesmyo passeio «ir a Guermantes passando por Méséglisen. A ou- tra vortente dessas «novas revelagdes do sem € 2 assombrosa informagio de que, no tempo do carreiro de Tansonville ¢ dos espiaheiros em flor, Gilberto estava apaixonada por ele, ¢ que 0 to insolente que ento the tinha dirigido era, de facto, um ar-se demasiado explicito ("“). Marcel compreende eato que nao tinha ainda compreendido nada, e— verdade suprema — «que a verdadeira Gilberte, a verdadeira Albertine, eram talvez aque- Jas que desde o primeiro instante se tinham mostrado no. seu olher, uma em frente da sebe de espinheiros rosa, 2 outra na ©). TH, p. 1120 ¢ IM, p, 337. © 1p. 184, Figures, p. 60 © Figures I, p. 242. @) 1p idle MM, p. 694. 58 praiay, e que as tinha assim, por incompreensio— por excesso ae reflexdio — cerrado» desde 0 primeiro inslante. Com o gesto ignotado de Gilberte é, uma ver mais, toda @ geo- grafia profinda de Combray que se recompée: Gilbert teria que- ojo lavar Marcel com ela (¢ outros patiforios das redondezas, gnire os quais Théodore ¢ a imma —futura criada de quarto. da Earonesa Putbus € 0 proprio simbolo do fascinio erético—) &s rafnas da torre de Roussainville-le-Pin: a mesma torre félica, «con- dente» vertical, no horizonte, dos prazeres solitarios de Mareel hho quactinho da iris, e dos seus frenesis vagabundos nos campos de Meséglise ("), e de que no suspeitava ainda que fosse algo mais do que isso: o lugar real, oferecido, acessivel e desconhecido, Kaa reelidade tio présimo de mim» (*), dos prazeres proibidos. Roussainville, ¢ por metonimia todo o lado de Méséglise (), s40 jé-as Cidades da Planice, «terra prometida (0) maldite> (*). «Rous: Jinville, adeatro de cujos muros néo penetrei nuncay: que Oca fio perdida, que desgosto! Ou denegagao? Sim, como diz Bar- ache (), a geografia de Combray, aparentemente tio inocente, © I pp. 126 158. CTH, p. 697. ; . (Ques lado de Méséslise encara a sexualidads € 0 que mostra clarcinante esta frase: «Aquilo que ento esperava tio febriimente, por pouco 3 sbido compreender ¢ reencontrar, imentar fogo desde a adolescéncia, Mais completar Hinds do que mo tinha parecido, Gilberte estava nessa €poca verdad! 2» Il, p. 697). {@),‘Roussainville sob a tompestade é, evidentsmente (como mais tarde Paris seb o fore do inimigo), Sodoma ¢ Gomorra sob o fogo divino:, «Perante a no Tonpinquo, terra prometida ou maldite, Roussainville, adentro de i Tal nao penetrei nunca, Rovsstinville, pouco depois, quarido ia cessado para 16s, continuava 2 set castigada como uma Sidela ‘da Biblia pelas langas todas da tempestade, que obliquamente. flage- HRS Gs moradas dos seus kabitantes, ou entdo estava j& perdasda por pear pal, que fazia descerem para ela, desigualmente longas, como os raios Fe uma cust6dia de alter, os ramos de ouro franjados do seu sol reaparecidoy GL, 132), Notarse-4 a presenga do verbo flagel gue une —adiantadamente— essa cona_ a0 z Pirante a Guerra, fancionando a flagelaclo ao mesmo tempo como «viciov (apecador) & como castigo. (@) Marcel Proust romancier, p. 269. 59 & cuma paisagem que tem, como muitas outras, nevessidade de ser decifradan. Mas tal decifragao jé se opera, juntamente com alg mas outras,.no Temps retrouvé, e decorre de uma dialéctica sul entre a narrativa «inocenten © a sua «vetificagdon retrospect tais vém a ser, por um lado, a fungéo © a importincia des ana- lepses proustianas. Vimos como é que a determinagio do alcance permitie dividir as analepses em dois ti externas, conforme o seu ponto de vista 10 exterior do campo tem poral da narrativa primeira, O tipo misto, aliés muito pouco uti- lizado, & na realidade, determinado por uma caracteristea de am- plitude, dado que sio casos de analepses externas que se prolon- ‘gam até encontrarem ¢ superarem o ponto de partida da narrati primeira. & ainda um dado de amplitude que comanda a distincao 0s d ja encontrados na Odisseia. © primeiro & o episddio do ferimento de Ulises. Como jé se notou, a sua amplitude ¢ muito inferior ao seu alcance, muito parar, aos dois exempl inforior, mesmo, a distancia que separa o momento do fetimento do ponto de arranque da Odisseia (a queda de Troia): uma vez contada a caga no Parnaso, 0 combate contra o javali, o ferimento, a cura, o retorno a Itaca, a narrativa corta cerce a sua digressio reirospectiva (*) e, saltando por cima de uns decénios, regressa & cena presente, O aretomo atrés> & pois, seguido de um salto em frente, quer dizer, de uma elipse, que deixa na sombra toda uma longa fracgdo da vida do herdi: a analepse 6 aqui, de algam modo, pontual, conta um momento do passadd que permanece isolado no seu afastamento, que nio protende religar ao momento presente cobrindo um intervalo néo pertinente para a epopeia, jd que o tema da Odisseia, como 0 notara Aristoteles, mio é a vida de Ulisses, mas apenas 0 seu regresso a Tréia. Chamarei sim- plesmente analepses parciais 2 esse tipo de retrospeogies que ter- minam numa elipse, sem alcangarem a narrativa primeira, @) Recordemos que essa pégina, contestada por alguns, sem grandes provas © apesar do testemunho de Platio (Rep. I, 334 b), forneceu 0 ‘objecto de um comentario de Auerbach (Mimesis, cap. 1). 60 © segundo exemplo 6 constituido pela narrativa de Ulisses aos Fedcios. Desta vez, pelo contrario, tendo remontado até a0 onto em que a Fama de algum modo o perdeu de vista, isto & a queda de Troia, Ulisses conduz, a sua narrativa até vir aleancar a narrativa primeira, cobrindo toda a duragio que se estende desde a queda de Tréia a chegada junto de Calipso: analepse com- pleta, desta vez, que se vem religar 4 natrativa primeira, sem. $o- jugdo de continuidade entre os dois segmentos da hist6ria. % indtil demorarmo-nos aqui nas evidentes diferencas de fun- ‘do entre estes dois tipos de analepse: o primeiro serve unicamente para trazer ao leitor uma informacéo”isolada, necessdria para a inteligéncia de um elemento preciso da accéo, 0 segundo, ligado & pratica do comegar in medias res, visa. a recuperar a totalidade do «antecedenter narrative; constitui geralmente uma parte im- portante da narrative, por vezes, mesmo, como na Duchesse de Langeais on La Mort d’Ivan Tlitch, representa 0 seu esseacial, fazendo a narrativa primeira figura de desfecho antecipado. ‘Nio considerdmos deste ponto de vista, até agora, sendio as analepses externas, que decretimos completas na medida em que véo encontrar a narfativa primeira no seu ponto de partida tem- poral. Mas uma analepse «mistan, como a natrativa de Des Grieux, pode ser dite completa num sentido inteiramente outro, pois, como ja notémos, vai apanhar a narrativa primeira, no no seu inicio, mas no proprio ponto (o encontro em ) em que esta. se tinha interrompido para Ihe dar lugar: quer dizer, a sua ampli- tude € rigorosamente igual ao seu alcance, ¢ o movimento nar rativo realiza uma perfeita ida-e-volta, & também nesse seatido. que se pode falar de analepses internas completas, como nas Souf- frances de Vinventeur, onde a narrativa retrospective € coaduzida até ao momento em que os destinos de David e Lucien novamente se juntam. Por definigo, as analepses parciais nfo poem nenhum pro- blema de juntura ou continuidade narrativa: a narrativa analép- tica interrompe-se francamente numa clipse, e a narrativa meira recomega onde tinha ficado, quer de maneira im; e como se nada a tivesse suspendido, como na Odisseia («Ora, com a palma das sues mios, a velha a0 apalpé-lo reconheceu o feri- mento...»), quer de maneira explicita, fazendo funcionar a inter- 61 comio Balzac gosta de fazer, sublinhando a fungio expli- caliva jé indicada ao. abrir a analepse pelo famoso «eis porquen, ou qualquer uma das suas variantes, Desse modo, o grande re- tomo atrés de La Duchesse de Langeais, introduzido por esta f6r~ mula das mais expressas: «Eis agora a aventura que tina deter~ minado a situagdo respectiva em que entio se encontravam 0s dois personagens desta cena», termina de maneira mais ou menos deolarada: «Os seritimentos que animaram os dois amantes quando se feencontraram no Iocutério das Carmelitas em presenga de uma madre superiora devem ser agora compreendidos em toda 4 sua oxtensio, e a sua violéncia, de parte a parte despertada, expli- card sem divida o desenlace desta aventura» (*). Proust, que ridiculizou 0 «eis porquen balzaquiano em Contre Sainte-Beuve, mas que néo deixou de 0 imitar pelo.menos uma vez na Recher- che (*), 6 igualmente capaz de retomadas daquele género, como esta, depois da narrativa das negociagdes académicas entre Faf- fenheim e Norpois: «Foi assim que o principe de Faffenheim foi levado a vir ver Mme de Villeparisis (*)>, ou, pelo menos, expli- ‘o-bastante para que a transi¢éo seja imediatamente perc tivel: «B agora, na minha segunda estada em Paris...», ou: «En quanto assim recordava a visita de Saint-Loup ().... Mas, na maior parte das vezes, a retomada é nele muito mais discreta: a fovocagio do casamento de Swann, provocado por uma réplica do, Norpois durante um jantar, 6 bruscamente interrompida por lumi retorno & conversagéo presente («Pus-me a falar do conde de Paris...»), como aquela, mais tarde, da morte do mesmo Swann, intercalada sem transicio entre duas frases de Brichot: «Nao, néo, reiomou Brichot (*)...» Ela 6, por vezes, to-eliptica que se sente alguma dificuldade em dar conia 2 primeira leitura do ponto onde se opera o salto temporal: assim, quando a audicao em casa dos Verdurin da sonata de Vinteuil lembra a Swann uma_audicio anterior, a analepse, introduzida todavia do modo balzaquiano @) Gamier, pp. 214 © 341, (® Contre Sainte-Beuve, Piéiade, p. 271 © Recherche, I, p. 208. ©) Gy, 9, 263, (@) TH, pp, 755.0, 762. ©) Gp. 41 eH, p 201. 62, que se disse (Eis porques), termina pelo coatrario sem outra marca de retorao sendo uma simples alinea: «Depois deixou de pensar nisso./Ora, apenas alguns minutos depois de o pequeno Pianisla ter comecado a tocar em casa de Mme Verdurin...» Do mesmo modo, durante a tarde Vil , quando a chegada de ‘Mime Swann recorda a Marcel uma visita recente de Morel, a nar- rativa primeira encadeia com a analepso de modo particularmente deseavolto: «Eu, apertando-lhe a mio, pensava em Mme Swana, ~ dizia-me com espanto, de tal modo eram longinquas e diferen- tes na minha Jembranga, que teria dai em diante que identificd-la com a «Dama de cor-de-rosin. M. de Charlus ficou pouco. de- pois sentado ao lado de Mme Swann (*)... Como se v8, 10 cardcter eliptico dest analepse parcial, mais nfo faz, para o leitor atento, que sublinhar por assindeto a ruptura temporal. A dificuldade das analepses ‘completas € inversa: esté, nfo na solugao de contiquidade, mas, pelo contritio, na jung necesséria entre a narrativa analéptica ea narrativa primeira, juncio que dificiimente pode dar-se sem um certo encavalgamento, ¢, logo, sem uma aparéncia de desa~ jeitamento, a menos que o narrador teahe a habilidade de tirar do defeito uma espécie de aprazimento lidico, Fis, em César Birot- teaus, um exemplo de encavalgamento nao assumido — talvez nfo apercebido pelo proprio romancista, O segundo capitulo (ana Képtico) termina assim: «Alguns instantes passados, Constance ¢ César ressonaram pacificamentey; o terceiro comega nestes ter- mos: «Ao-adormecer, César temeu que a mulher Ihe fizesse no dia seguinte alumas observacdes perempt6rias, e preparou-se para se Ievantar de madrugeda para tudo resolvers: como so vé, a retomada nfo sucede sem uma suspeita de incoerBncia, A ligagio [raccord] das Soufjrances de Vinventeur & mais conseguida, por- que ai o téxtil soube tirar da propria dificuldade um elemento decorative. Eis como se abre a analepse: «Enquanto o venerdvel eclesidstico sobe as escadarias de Angouléme, nio é initil expli- cat o encedo de interesses em que ia meter o pé. / Depois da par- tida de Lucien, David Séchard...» Bis agora como se retoma a @) I, p. 211 e UL, p. 267. 53 narrativa primeira, mais de cem péginas adiante:' dessa dem, due precion somante pela contnaneo: anne, yo, dale mente’ profético, Cap. 13, 4, ThS, 10, Te13, 12. 72 onde se pode entrar ¢ que em vio cem anos se teria procurado, esbarra-se nela sem saber, e ela abre-sen (“). ‘Mas, na maior parte das vezes, o antincio é de muito mais largo alcance, Sabe-se 0 quanto Proust se apegava a cosstio e & arquitectura da sua obra, e quanto sofda por ver ignorados tantos efeitos de simetria onginqua © de correspondéncias «telescopi- caso. A publicagio separada dos diferentes volumes ndo podia sendo agtavar tal mal-entendido, ¢ decerto que os antincios a Jonga distancia, como na cena de Montjouvain, deveriam_ servir para o atenuar, dando uma justificagéo.provis6ria a episédi cuja presenga poderia, de outro modo, .parecer adventicia © tuita, Eis ainda algumas ocorréncias, na ordem da sua disposicao: «Quanto a0 professor Cottard, revé-lo-emos longamente, muito ‘adiante, com a Patroane, no castelo de fa Raspelitren; «verse-d de que modo essa tinica ambigéo mundana que (Swann) tinha ambicionado para a mulher ¢ a filha foi justamente aquela cuja realizacio so verificou sor-ihe interdita, ¢ por um veto tid abso- Tuto que Swann morreu sem supor que a duquesa algum die pu- desse conhect-las. Havernos também de ver que, pelo contrério, a duquesa de Guermantes se ligou com Odette Gilberte depois da morte de Swann»; «Quanto a um desgosto téo profundo como o da minha mie, haveria de conhecé-lo um dia, como veremos na continuagéo desta narrativay (esse desgosto 6 evidentemente © que provocardo a fuga ¢ morte de Albertine); «(Charlus) tinha-se restabelecido antes de cair mais tarde no estado em que havemos de véelo no dia de cetta manhi em casa da princesa de Guerman- tes 2°), Nio serio de confundir esses antincios, por definigio expli- citos, com aquilo que se bé-de antes chamar esbogos [amor- 7 (9), simples marcos de espera sem antecipacdo, mesmo alu- siva, que apenas mais tarde encontraro a sua significagio e que relovam da muito cléssica arte da «preparagéon (por exemplo, fa- (I, p. 866, Cf, desta ver sem meiafora, os resumos antecipados do jantar Verdurin (1, p.'251) ou da soirée Sainte-Euverte 322). ‘auty_ T, 9, 433 € Il, p. 866 83 T, p. 471 € Ill, p. 575 85 II, p. 768 ¢ UL, p. 415's; IH, p. 805 © 859. (Sublinhados meus.) os) CE, Raymonde Debray, Les figures du récit dans Un coeur simple», Poétique 3. 73 zet aparecer desde o inicio uma personagem que s6 intervird ver- dadeiramente muito mais tarde, como o marqués de la Méle no terceiro capitulo de Le Rouge et le Noir). Podem considerar-se como tais a primeira aparicio de Charlus ¢ de Gilberte em Tan- sonville, de Odette em Dama de cor-de-rosa, ou a primeira men- gio. de Mme de Villeparisis logo na vigésima “pagina de Swann, ou ainda, mais declaradamente funcional; a descricio do talude de Montjouvain, «que chegava ao saléo. do segundo andar, a cin- quenta centimetros (sic) da janelan, que prepara a. situagio de Marcel no decorrer da cena -da profanagio(™); ou, mais ironi- camente, a ideia recalcada por Marcet de citar em frente de M. de Crécy 0 que cré tratar-se do antigo «nome de guerra» de Odette, que prepara a revelacio ulterior (por Charlus) da autenticidade dese nome, ¢ da relago real entre as duas personagens (9), A diferonca entre antincio ¢ esbogo esté claramente perceptivel na forma pela qual Proust prepara, em varias etapas, a entrada de Albertine, Prieira mengio, no decurso de uma conversagio em casa de Swann: Alberline é nomeada como sobrinha dos Bon- temps, e considerada:como tendo um caspecto curioso» por Gil- berte! simples esbogo; segunda menc&o, novo: esbogo, pela pré- pria Mme Bontemps, que qualifica a sobrinha de «atrevida», de «pantomimeirazinha,,. fina como um macaco»: recordou publi- camente a uma-mulher de ministro que 0 pai dela era ajudante do cozinha; tal fetrato seré explicitamente recordado muito mais tdrde, apés a morte de Albertine, e designado como «germe insig- nificante (que). se deseavolveria ¢’ so estenderia um dia a toda a minha vida; terceira mengo, desta vez verdadeiro amincio: «Houve uima cena em casa porque nio acompanhei o meu pai a um jantar oficial onde deviam estar os Bontemps com a sobri- nia Albertine, rapariguinha quase crianga ainda, Os diferentes pericdos da nossa vida assim se encavalgam uns nos outros. Re- cusa-se desdenhosamente, por causa’ do que se ama ¢ um dia vos importard tio pouco, a ver o que hoje vos pouco importa, que amanha se amaré, que se teria, talvez, podido, se se tivesse consentido em ver, amar mais cedo, que assim vos teria abre- OL p. 14ts.p. 76; Tp, 20; 1, p 113 © 159. @) TE, p. 1085'e I, p. 301. 4 viedo 0s actuais sofrimentos, para, é verdade, os substituir por outros»), Diferentemente do antincio, 0 esbogo nunca é, em principio, no seu lugar do texto, mais que um «germe i canten, e mesmo imperceptivel, cujo valor de germe sé seré reconhecido, ¢ de forma ‘retrospectiva (*). ‘Falta, ainda, to- ‘mar em conta a eventual (ou antes, varidvel) competéncia narrativa do leitor, nascida do hébito, que permite decifrar cada vez mais depressa 0 obdigo narrativo em geral, ou proprio a certo-género, fot certa obra, e identificar os «germes» desde o seu aparecimento. Deste modo, nenhum leitor de Ivan Ilitch {aj dado, & verdade, ppela antecipacdo do desfecho, ¢ pelo préprio titulo) pode deixar de identificar 2 queda de Ivan sobre 0 trinco da janela como ins- trumento do destino, como esboro da agonia. F, aliés, sobre éssa mesma competéncia que se funda o autor para enganar © Ieitor, propondo-lhe ni raro Zalsos esbogos, ou Jogros (**) — bein conhe- Eidos dos amadores de romances policiais—com riscos, uma vez adquirida pelo Ieitor a competéncia de segundo grau que é a aptidio de detectar, © portanto de destringar logro, de Ihe pro- por falsos logros (que séo auténticos esbogos), ¢ assim por diente. E conhecido quanto o verosimil proustiano —fundado, segundo a oxprossio de Jean-Pierre Richard, na «l6gica da inconsequén- Cian (4) — opera, particularmente no que coaceme & homossexue- Iidade (e sua subtil variante: a heterossexualidade), sobre esse sis- tema complexo de oxpeciativas frustradas, de suspeitas deseaga- nadas, de surpresas esperadas e, finalmente, tanto mais surpreen- dentes quanto erm esperadas e ainda assim se produziram —em virtude desse principio para todos os fins, que «o trabalho da cau- salidade... acaba por produzir mais ou menos todos os efeitos Jveis, e, por consequéacia, também aqueles que se havia crido Gil) I, p, 512; $98, cf. ULL, p. 904; T, p. 626. (2) GA alma de toda a funcdo & se se pode dizer, o seu gorme, aguilo que lhe permite semear na nartativa um elemento que amadurecera mais tarde» Roland Barthes, cIntroduction & analyse structurale des récits», Communications 8, D. 7. 8) Ver Roland Barthes, 5/Z, p: 39. {0 Proust ef le monde sensible, p. 153. 75 serem-no num minimon (*): aviso aos amadores de aleis psicol6- gicasn e de miotivacdes realistas. Resta, antes de deixar as pr coisa da sua amplitude, © da entre prolepses parciais © completas, se se quiser conceder ima qualidade aquelas que se prolongam no tempo da ria até:ao adesenlacen (quanto as prolepses intemas) ou até proprio momento narrative (quanto as prolepses externas ou mis- tas): néio chego a encontrar exemplos disso ¢ parece que, de facto, todas as prolepses sio do tipo parcial, muitas vezes interrompidas de forma tio franca como aquela por que foram abertas, Marcas de prolopse: «Para antecipar, pois que apenas acabo de terminar a minha carta a Gilberte...»; «para antecipar em algumas sema- nas a narrativa que retomaremos logo ap6s este paréutesis...»; «para antecipar um pouco, pois ainda estou em Tansonvi ‘desde © dia seguinte de mani, digamo-lo para antecipar...»; «antecipo em muitos anos...» (®), Marcas de fim de prolepss ¢ de retomo a narrativa primeira: «Para voltar atrds, ¢ 4 esse primeiro serio em casa da princesa de Guermantes...»; «mas é tempo de alcan- car 0 bario que avanca, com Brichot e comigo, para a porta dos Verdutin:..»; «para voltar atrds, a0 serio Verdurin...»; «mas hé que voltar atrds...»; «nas, depois desta antecipacdo, voltemos trés anos para irds, quer dizer, ao serio em que estamos, na casa da princesa de Guermantes... @")». Pode ver-se-que Proust nem sempre recua perante 0 peso do explicit ‘A importancia da narrativa «anacronicay na Recherche di temps perdu esté, evideatemente, 20 carécler retrospecti- intéctico da narrativa proustiana, em cada instante pre- sente por inteiro a si mesmo no espitito do narrador, que— desde 0 dia em que percebeu num éxtase a sua significacao unificante — nfo cessa de deter todos os seus fios e a0 mesmo tempo, de aper- alguma @5 I, p. 471. (8 Ti, 739,: TH, pp. 214, 703, 79, 803. Gublinhados meus.) iy TL, p. 716; TH, pp. 216, 806, 952. (Sublinhados meus.) B claro que esse signos de organizagio di narrativa sfo eles préprios marcas

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