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Veredas Talo original LaPatite Chroniqued! Anna Mogadalena Bach Traducdo Mania Cristina Cuperino Guimartes Augusto de Sout Revisao teenica Macsito Jorge Kaszis ‘Meymel Eth Halla Pequena Cronica de Anna Magéalena Baclt rahigo Mata Cesta C, Guinardese Augusto de Sones, Sho PaaS Editor Vere, 2005, 1 Missa ISIN €5-88603-2)-7 60 78 Dineitos destacigfo reservadosa G-ARANYILIVROS—EDITORAVEREDAS ‘Aldos Bicudas, 360 CEP (7600-004 Alpes ii Camtarelza- Maitpora-SP Fomellax: 1 4485-1764 e-mail-editoraveredas ahotmal.com 2005 Onde se verd 0 mestre de capele Johann Sebastien Bach, 20 drséo, ser confundido com Séo Jorge, ¢ sua tice ‘ouvinte fugir toda trémuia da igreja, © onde se conta como @ jovert Magdalena se torna nuther do grande misico, ‘Uma visita veio hoje alegrar a minha solidio. Caspar Burgholt, que foi outrora o aluno preferid de meu querido Sebastian, veo ver-me, s6 tendo encontrado a vetha senhora Bach, em seu abandono ¢ sua pobreza, depois de muitas buscas, Como esqueceram depressa os gloriosos dias em que vivia Sebastian! ‘Tinhamos muita coisa a dizer um ao outro, Contou-me seus modestos triunfos, deu-me noticias da muther e dos filhinhos, mas nos ocupamos sobretudo daquele que j4 nao est entre nés, de seu mestre, de meu marido. Depols de ter evocado a recordagao desses maravilhosos anos, Caspar Perguntou-me se eu nao escreveria uma pequena’crénica Sobre Sebastian, “A senhora conbecia-o como ninguém, ‘estou certo de que seu coracao esqueceu muito pouca coisa. Esereva sobre suas palavras, seus gestos, sua vida e sua mafisica, Os homens de hoje pouco se lembram dele, mas nem Sempre ser assim; nfo 0 deixarao muito tempo no esque- ‘cimento, ¢ algum dia the agradecerio tudo o que a senhora thes tiver revelado.” Apés escas palavras, que me ficaram na imaginacéo, retirou-se. E quer ele diga a verdade, quer esteja enganado, Seguirel o seu consetho, porque preciso de um conforto na minha solidao, Por assim dizer, nada me ficou do que Sebastian pos- todas as coisas de valor tiveram de ser vendidas Sug Brigades, Como lamento nao Ler podide guarar 20 menos a caixa de rapé em ouro e dgata que ele tanto apre- lava, que tantas yezes vi em suas mios e tantas veues frei para ele! Foi considerada excessivamente preciosa para sta vida, por iés0 fol vendida, e 0 seu produla, divi- ido entre nos, Mas se quase nada me deixaram que me Iembre Sebastian, é porque o bom Deus achou tudo isso desnecessirio, O inestimavel tesouro de recordagdes que me enche o coraciio me impedira, com feito, de jamais o esque eer, Pobre, ignorada, mantida pelas esmolas da cidade de Leipzig, veiha (fiz ontem cinquienta e sete anos, ¢ sou apenas sete anos mais nova do que ele era quando morreu), se me oferceesgem a mais gloriosa e honorifica velhice com a con- dligdo de nfo ter sido sua mulher, nao aceitaria ‘Em minha opinio, na Turingia 96 duas mulheres foram completamente felizes: sua prima Maria Barbara Bach, & primeira esposa, ¢ eu prépria, a segunda. Ble amou-nos & Ambas, mas creio que experimentou um pouco mais de amor por mim do que por Marla Barbara. De qualquer modo, Dela graca de Deus, foi-Ine dado amar-me por mais tempo, pois 86 esteve casado treze anos com ela. A pobreginha mor~ rreu enguanto ele Viajava com o prineipe Leopold de Anhalt Céthen, Fmmanuel, ndo obstante ser entao muito erianga, hunea mais esqueceu a dor de seu pai, que ao regressar eneantran os filhos abandonades. A boa esposa, que, em sua partida, deinara feliz ¢ eom perfeita satide, estava J8 enterrada, Pobre Maria Barbara Bach, que morreu sem To uma tiltima vez, sem um adeust Meu primeiro olhar para ele! Como ao pensar misso os anos se diluem, e como tudo se torna claro ¢ vivo! 6 ‘Meu pai fregitentemente me levava consigo em suas peqenas viagens, sobretudo quando aparecia alguma opor- ‘tumidade para eu ouvir misica, pois bem conhecia minha paixiio por essa arte, No inverno de 1720 acompanhei-o a Hamburgo, onde famos visitar meu tio-avé e minha tia-av6. A Igreja de Santa Catarina tinha um magnifico drgiio de quatro teclados, sobre o qual muitas yezes jé ouvira os ami- gos de meu pai falarem. Ora, no dia seguinte ao da nossa chegada minha tia-avé levou-me consigo ais compras, e de volta & casa, quando eu passava pela igreja, veio-me a idéia de entrar para dar uma olhada, Logo ao entreabir a porta pereebi que alguém tocava, © sons {io maravilhosos sairam subitamente da obseuridade ‘que me pareceu que algum arcanjo estava sentado ao tecla- do, Penetrei vagarosamente no templo e ali fiquei, olhando © Orgtio instalado na galeria do oeste; os grossos tubos sublam em direcao & abébada e mais abaixo brilhavam formosas eseulturas, douradas ¢ palidas, mas eu nao podia avistar o organista, Ignoro quantos minutos assim fiquei na igreja vacla, toda ouvidos, como se tivesse eriado raizes has lajes de pedra. Embriagada pela mdsiea, perdera com- pletamente a nogao do tempo. E quando, apés uma gloriosa seqii@nela de acordes que reboaram no espago, a musica bruscamente cessou, eu ainda estava ali de pé, ausente, a ‘abeca levantada, como se 0 trovio saido dos tubos fosse continuar a ressoar, Foi entdo que o organista, 0 proprio Sebastian, apareceu na tribuna e se aproximow da eecada Meus olhos ainda estavam Ievantados quando sua atencao N@ flxow sobre mim, Olhel-o por um instante, demasiado Asustada por sua brusce apericao para poder fazer um movimento. Apés um tal concerto, esperava ver So Jorge, © nio um horem, Comeceia tremer, apanhei a capa que % caira no chio, ¢, presa de inconeebivel pAnico, corri para fora da igteja. Quando me senti em seguranga, j4 na rua, espantei-me com essa conduta tola, Nem mesmo @ minha austera tia-avo poderia encontrar alguma coisa contraria & honra de uma jovem no fato de eu ter entrado na igreja ficar ouvindo 0 érgao, Jgnorava quem fosse 0 organista que estivera ouvindo, mas quando na refeigo da tarde contei a meu pai a peque- na aventura (ocultando-Ihe, todavia, a aparicao, meu terror ¢ minha fuga), ele exclamou: “Nao pode ser outro sendo 6 mestre de capela do duque de Céthen, Johann Sebastian Bach! Ble deve tocar amanha diante do st. Reinken, ¢ eu frei ouvi-lo com alguns amigos. Vou dizer-lhe quanto a minha filha aprecia sua musica. Se ele a ouvir cantar uma vez, meu pequeno rouxinol, talvez escreva alguma coisa para voce”. ‘Pedi a meu pai, corando bastante — 0 que me eonfun- dia ainda mais —, que nada dissesse de mim a0 senhor Bach, Mas quanto mais enrubescia, mais meu pai se tor- nava zombetelro. Imaginava que eu havia perdido o coracdo 20 avistar as abas do gibao do mestre de capela, pois nao supunha que eu tivesse visto seu rosto enquanto ele tocava; de resto, 0 senhor Bach no tinha fama de lancar olhares améveis is mocas ‘Assim, meu pai foi, no dia seguinte, ao concerto da Igreja de Santa Catarina, e na volta eu o cobri de pergun- tas, Fle exuberava de admiragao; jamais ouvira, € acreditava nunea mais tornar a ouvir, tocar érgio de maneira seme- Thante, Sentadas & sua volta, nds 0 eseutavamos. Contou que o mestre de capela tocara duas horas seguidas, e que, principalmente, durante meia hora improvisara sobre o coral 8 A beira das dguas da Babiténia', prati ra s da Babilénia’, praticando o mais extraor- Gindrio jogo de pedal que se podia imaginar. “Ele utilizava 0 pedal duplo com tanta facilidade”, dizia meu pai, “como se tocasse a escala com uma das mos.” Depois fizera-Ihes ouvir uma fantasia e uma fuga em sol meno, que aeabara de compor, partieularmente belas e brilhantes. Quel Sebas- ian executi-las muitas weaes ¢ sempre tive por elas uma Meicio especial, jamais me cansando de ouvir 0 iniclo da uga, tio cheio de vida. Quando men futuro marido termi- how sua expléndida audi¢do, 0 sr. Reinken, organista da igreja de Santa Catarina, aproximou-se dele. Com noventa sete anos de idade, tinhe a fama de ser muito ciumento ¢ onguthoso de suas proprias eepacidades, Entretanto, para ipefacao de todas, pegou a mao do mestre de eapela Bach ea beijou, dizendo: “Satido as mios do génio; imaginel que ssa arte morveriaeomigo, mas constata que ela vive ainda Uma das coisas que mais vivamer ivamente haviam impres eee ae rm Sat Eee calma, 0 & yontade. Mesmo quando os pés voavam como tivessem asas, de cima para baixo nos pedais, sew corpo parecia néo fazer o menor movimento. Nao se incli- hava para vodos os lados, como georre com muitos orga- histas, e sua maneira de tocar era a perfeitd rec thell ¢ néo tral nenhum eatorga. Puewar Sve Parece E agora, imaginem 0 que aconteceu! soubemos toda a Bees ese Us nn, is ilo elt tea vande simpatia por Sebastian. O organista da Igreja de fio Jacé, onde havla um grande o belo éreio, morrer. Sobastian, tentado pela idéia de ter a sua disposicao um ins- 1 An den Wassern Babylons: (N.Y trumento tao aperfeicoado € de poder compor masica sacra (a servico do duque de Cothen era obrigado a escrever espe- claimente misica de edmara), apresentou-se como candi- dato. Em vex de aproveitarem a ocasiao tnica de atrair 0 maior organista do pais, os respeitaveis conselheiros muni- cipais deram seus votos a um certo Joachim Heitmann, miisico dos mais vulgares, mas que trazia um presente de quatro mil marcos, “Ele preludia melhor com os tdleres do ‘que com os dedos!” bradou meu tio, encclerizado. O pastor Neumeister ficou to aborrecido com esse fato que se demi- tiu do conselho municipal, e pronunciou num sermao estas palavras amargas: “Se um dos anjos que em Belém tocavam inuisica divina para o menino Jesus pretendesse ser orga- nista em Sio Jacé sem trazer dinheiro, mandé-lo-iam outra vez para o céu!” Assim, o mestre de capela Bach néo ficou em Ham- burgo. ‘Vem agora o meu primeiro encontro com ele, que acon teceu um ana depois de eu o ter visto ¢ ouvido pela primeira ‘yeu. Meu pai, clarim da corte de Welssenfels, tinha a casa aberta a todos os misicos. Ia freqiientemente a Cothen, onde Sebastian era mestre de capela, © cu mesma {6 tivera algumas ocasioes de cantar la, No entanto, Sebastian, retido por uma enfermidade ou impedido por uma viagem, nunca me ouvira, Sua auséncia causava-me sempre uma amarga decepeio, pois desejava muito revé-lo e trocar com ele, se possivel, algumas palavras. - Contudo, um belo dia (era uma Tuminosa manha de primavera, bem me lembro), quando, ao regressar de um passeio, quis entrar diretamente no saldo para dispor alguns ramos verdes no jarrao que fieava na lareira, minha mie ‘segurou-me 0 brago: “Espere um momentinho, Magdalena; 0 seu pai precisa discutir uns assuntos com o mestre de capela Bach; talvez vocé o incomode” ‘Meu aténito coragao pés-se a bater com violéncia. Se J4 ouvira falar dele muitas vezes e desejara ansicsamente tornar a vé-lo, no o avistara, no entanto, senao uma vez. Fiquei perplexa, receando que meu pai me chamasse, mas temendo ainda mais que ele nio me chamasse. Jé ia correr a meu quarto para pér um novo Iago nos cabelos, um azul que, supunha, me ia muito bem, quando papai, entrea- brindo a porta ¢ mostrando a cabeca, perguntou, julgando tratar-se de minha mie: “Querida, Magdalena ja voltou?” B ayistando-me, continuou: “Venha cé, minha filha, o sr. Bach consente em ouvir a sua vor!” Entrei, entdo, e encontrei-me diante dele, tao pertur- bada que mal ousava erguer os olhos, Esiava ceria de nfo ser reconhecida (a Igreja de Santa Catarina era muito sombria, pensava eu), mas ele me disse depois que me iden- tificara imediatamente como a sua onvinte esquiva. Impressionou-me logo por sua estatura, se bem que na realidade esta nada tivesse de exagerado, no indo muito além da de mew pai; mas ele deu sempre a impresséo de ser alto, gordo, entroneado e forte, com alguma coisa de um penhasco. Ao lado de outros homens parecia tisica- mente maior, ¢ entretanto sé seu coracao e seu esp! eram maiores ¢ mais poderosos que os dos outros, Caspar dizia-me ontem que também tivera sempre a impressao de que 0 ser corporal de Sebastian, endo apenas o espiritual, Ultrapassava 9 daqueles que 0 cereavam, Essa impresséo, no entanto, nao nos vinha do que ele dizia, pois era ealmo © grave, falava pouco ¢ 86 se abria com os intimos. Instantaneamente tornei-me mais do que selvagem., Fiz- the uma reveréneia mas nao abri a boca até o momento sey sando um cademo sobre o cravo, ele mesmo se sentowran instrumento e pedia para me ouvir. Por felici- dade minha perturbagée desapareceu no momento em que ‘comecei a cantar, e quando acabei, meu pai exclamou com satisfagao: “Muito bem, minha filha!” O sr. Bach othou- me um instante, sem fazer um movimento, e disse: ‘Sua vor é afinada; yoo! sabe cantar”. Ah, como eu desejaria responder-Ihe: “E vocé sabe toear!”, mas ndo 0 onsei. Os efeitos que ele conseguira tirar de um simples acompanha- mento eram inconeebivels. A posigio das mos, o modo de utilizar 0 polegar e o dedilhado, tudo diteria da técnica habitual, Entretanto eu nao podia dizer nada, tao grande era a minha emocao. Desejaria fugir, como da primeira vez, na igreja, mas continuava de pé ao lado do eravo, desenxavida e muda como uma crianea, Na verdade eu me sentia uma crianga idiota, diante daquele homem, ¢, nio obstante, naquele curto espago de tempo passou-se em mim algo que nao pode suceder a uma erianca. Deus me concedera uma alma aberta para @ misica, e agora que eu ouvira Johann Sebastian Bach toear, nenhum outro homem no mundo poderia, causar-me qualquer impressfio. Fle, por saa vez, disse consigo (ah, se a0 menos eu o tivesse sabido! ) “Quero me easar com esta moga”, Meu consentimento pare- cla-the garantido, porque tudo 0 que ele realmente queria, se realizava, Confesso que mais tarde me aconteceu aché-lo ‘elmneS"iviasima impressao qué experimentel a0 falar-Ihe pela primeira vez permaneceu intacta, apesar dos longos anos de intimidade, e néo se embagou sequer com a recor~ dacio do querido rosto de olhos para sempre fechadlos, como vi pela iiltima yea neste mundo. 2B ‘Nao seria justo dizer que era belo — poucos dentre os Baeh foram homens bonitos —, mas toda a forca do seu espirito se refletia em seu rosto. A fronte impressionava pela majestade, ¢ espessas sobrancelhas cerradas por um cons- tante esforco de concentracéo davam-Ihe aos olhos uma expresso de rara profundidade. Quando 0 conheci, seus olhos eram muito grandes, mas nos tltimos anos de vida, ‘embacados pelo sofrimento’e pelo excesso de trabalho, dimi- nuiram, ceultos, de resto, pelas palpebras mais flécidas. O olhar intenso parecia dirigir-se para o seu interior, coisa que muito impressionava. Seus olhos ouviam, se assim pos- 80 dizer, e por momentos tinham um fulgor mistico. Sua boca, grande e mareante, exprimta generosidade, ¢ as comis- suras dos labios sorriam. Queixo largo, quadrado, bem pro- Poreionado a fronte. Sem ter consciéncia disso, impressionava a todos quan- tos 0 viam, Um misto maravilhoso de grandeza e humildade irradiava dele. Demasiado inteligente para nao reconhecer © proprio genio, muito pouca importdnela the ligava; acre- ditava que estudos aprofundados, feitos com entusiasmo, bastavam para transformar qualquer homem num miisico como ele, Quantas vezes, a0 entrar no quarto onde estava ‘to cravo com um aluno, 0 ouvi dizer: “Se vocé se devotar 40 trabalho como eu me tenho devotado, em breve poderé tocar téo ber quanto eu”. : ‘Um de seus alunos de érgao, que muito 0 estimava e sabia quanto eu gostava de ser informada de tudo o que Ihe dizia o mestre, contou-me um dia que apés a ligdo Sebastian 6 pusera a tocar de maneira absolutamente maravilhasa; # como 0 ouyinte néo pudesse conter o entusiasmo, meu Mmarido langara-the um olhar contrariado e exclamara om mau humor: “Nao hé nada para admirar! Basta tocar 1B a nota exata no momento preciso; o resta flea por conta do érgao!” Rimos muito com essa frase. Bu ja conhecia bastante as dificuldades do érgao para nao acreditar que sosse suficlente dar o toque justo no momento indicado. Pouco depois do nosso casamento pedi Sebastian que me desse ligoes, ao que ele de bom grado acedeu, apesar de estar conveneida de que o érgao nio era instrumento para mulheres. Eu desejava imensamente saber tocé-lo, a fim de compreender melhor as suas composigoes e de me- Thor poder apreciar sua interpretagdo, Pelos fins do verdo de 1721, mais ou menos um ano apés a morte de sua primeira mulher, Sebastian velo pedir minha mao a papai, Bu 0 encontrara apenas em raras oca- sides, mas pensava nele com muito mais freqiiéncia do que © teria desejado minha boa mae. Pensar nele era algo que eu nao podia evitar, mesmo antes de ter a esperanga de vir a ser sua mulher. A impresséo que ficara do nosso primeiro encontro fora de tal natureza, que me teria sido impossivel pertencer a outro homem, Meus pais souberam avaliar & honra do pedido, mas julgeram ser seu dever chamar minha atencéo para o fato de que Sebastian, quinze anos mais ‘yelho do que eu, tinha } quatro filhos. Trés outros estavam mortos, Se eu me tornasse sua mulher, deveria ser uma yerdadeira mae para aqueles que restavam, E quando con- clufram, por meus balbucios, meu rubor e minhas lagrimas (nfo podia exprimir de outro modo a felicidade que me invadia), que eu aceitava o pedido de Sebastian, mandaram- me ir até ele, que esperava a resposta numa outra sala. Apesar de eu ter sido até entiio extremamente reservada e silenciosa em sua presenea, Sebastian néio tinha, suponho, fa menor duivida quanto ao resultado do pedido, pois seus ‘los panetrantes jA haviam percebido que meu eoragdo bbatia descompassadamente cada vez que eu o via. Estava “4 diante da janela, Quando entrel, yoltou-se, deu dois ‘em minha direeao ¢ disse: i — Querida Magdalena, vocé bem sabe 0 que desejo, Seus pais deram-me o consentimento, Quer ser minha mulher? — Oh, sim, obrigadal — respondi, e me desfiz em 1é- grimas, atitude pouco indicada, apesar de serem lagrimas de pura felicidade, de reconhecimento para com Deus € para com Sebastian. Quando ele pousou o braco em meu ombro, vieram-me do fundo do coracao estas palavra: Uma sélida fortaleza’, e detxet ineonscientemente desenro- Jar-se na minha mente a grande melodia desse coral, que muitas vezes cantavamos nas noites de inverno, em torno da lareira, Sim, uma sélida fortaleza, eis o que era Sebas- tian, ¢ 0 que fleou sendo para mim durante © resto de sua vida. Nosso noivado foi uma festa extremamente alegre, Eu ‘eonstatava com felicidade quanto meus pais estavam orgu- Thosos de que sua filha se easasse com tm miisico tio dis- tinto e tao apreciado pelo principe. © duque Leopold man- teve comigo uma conversa muito amavel. Disse-me que na pessoa de seu mestre de capela eu me casava com um homem eujo nome viria a ser honrado enquanto se fizesse miisica sobre a terra, e depois me cumprimentou pela feliz cinscunstaneia de eu poder interpretar as composicies de meu marido, Mantinha com Sebastian relagoes aféyeis, posso mesmo dizer amigaveis; e deu prova disso ao aceitar ser padinho do mais nova de seus filhos do primeiro easa- mento. Meu marido acompanhava-o em todas as suas via~ gens, ¢ fol no regresso de uma delas, como ja contei, que ele encohtrou morta a pobre Maria Barbara, Sebastian gostava da trangilila cidadezinha de Cé- 1 lp fete Dor. (Ns a R) 15 then, € naquela época desejava que passdissemos toda & nossa vida a servigo do bom duque, tao grande amante da misica. ‘Antes do nosso casamento fomos padrinhos da filha do seeretétio do duque, Christian Halen, numa ceriménia ide que sempre me recordarei, pois era # primeira vex que aparecia oficialmente com meu noivo. Meu vestide azul, eheio de enfeites, ia-me muito bem, ¢ soube encantada que ‘Sebastian tinha gostado dele; a partir desse momento, € até a sua morte, uma simples palavra dele teve mais valor para mim do que @ opinifio do mundo inteiro. Seus filhos tstavam om torno de nés, e eu senti nesse instante que for- mavamos uma familia, A familia — sua mulher, seus filhos, seu lar — era tudo o que ele amava, Além das viagens que realizara na juventude, para ouvir os organistas célebres ou para experimentar diferentes drgios, ¢ das auséncias om 0 principe — no decorrer das quais comps quase todos os pequenos prehidios ¢ fugas reunidos sob 0 titulo de Cravo bem temperado, que sempre me parecer tao belos, apesar de terem sido escritos apenas para servir de exercicio para seus alunos —, viveu trangillamente em sua casa, Durante todos os anos que passamos em Leipzig, ‘ausentou-se muito pouco, Seu trabalho cotidiano na Igreja @ no Colégio de Sa0 Tomés, os concertos que tinha de reger, Gs composigoes ¢ a familia enchiam-lhe completamente & vida, Nunca viajou para se fazer admirar no estrangelro € buscar 0 sucesso, como é costume de tantos miisicos que hao The chegam aos pés, Todavia, apesar de serem hoje taros os antigos alunos que se lembram dele e da sua mii- sica, afirmo que se alguma vez Deus atribuiu genio a um homem, esse homem foi Johann Sebastian Bach. Mas jé falei bastante a esse respeito. Volto 3 narrativa. ‘Ficamos noiyes em setembro de 1721, O casamento 16 ‘ocorreu no més de cezembro, em casa de Se due a ceviménia mupclal abonteceu na ease gue la ser @ meu lar, O amévol prineipe Leopold oferecen-me a grinalda portieipou da nossa festa com um prazer ainda maior, pois oito dias depois ia se casar com a bela princesa de Anhalt-Bernburg a ain Como naquele dia Sebastian me em que bentito sonto viv, s podera compreenticls ¢ fer que tena recebido uma dédiva igual a minha Diz-se que o dia do casamento é 0 mais belo da vida de uma mulher, ¢ certamente moga alguma, em nenhum momento, foi mais feliz que eu; de resto, como poderia eu tneontrar um marido que valesse o meu Johann Sebastian A partir desse dla minha existéncia fol a dele, Eu era fomo um pequeno rio absorvido pelo cceano, abarcada, as- pirada por uma vida mais profunda e maior do que jamais oderia ter sido a minha, E quanto mais vivia com ele, © ls 0s anos 92 passavam, mais eu tinha consciéncia da fis grandeza, As vezes via-o tao poderoso ao meu lado que Qiutse fleava sassustada, Compreendia-o. porém, porque 0 ‘mava, “O amor é 0 cumprimento da Ici"; ele citava fre- ilientemente essa frase tirada da sua grossa Biblia lutera- ao numa larga poltrona de eouro, ao lado da jancla, yoriio, e junto & lareira, nas noites de inverno, Na rea. \idade, mea marido podia dizer como Lutero: “Poucas so ( rvores deste jardim que eu nfo tenha sacudido para Woller os frutos’. Ak, quando penso nso, quantas recor Magen me vém ao coragio! ; r Sebastian esereveu para mim, por oeasi& fiwainento, este canto que mals tarde reunlu a outres no Hes Pequeno album de miisica uv “Teu servidor, ob, preciosa esposa, # feliz em te ver feliz neste dia E se se poe a olhar, maravilhado, a coroa que cinge a tua fronte mimosa © 0 teu belo vestido de noivado, sente sen coragao encher-se de alegria perante a tua clindida beleza. %, pois, de admirar que minha boca e meu peito manifestem jubilosa surpresa?” ‘Tal foi o meu presente de noivado, augario da minha felicidade. 18 IL Onde se fala da juventute de Sebastian em Eizemach, Lilneburg ¢ Amstadt, de sen primeiro casamento cm Mah. hhausen, € de sua vida em Weimar ¢ em Céthen. Fo} entdo que comeou a minha vida, Os aconteci- mentos anteriores nao haviam sido mais que preparagao e fspera. ‘Mas antes de abordar a existéneia maravilhosa que Deus me deu enquanto fui a senhora Johann Sebastian Mach, desejo, na medida das minhas possibilidades, contar (qui ele préprio e outras pessoas me disseram com relagio A sua inféncia, sua juventude e os anos vividos sem mim. Porque, se estas memérias vierem um dia a ter alguma im- porlincia, é bom que eu escreva tudo o que sei de sua vida, Weide o nascimento até a morte. Sebastian naseet em Eisenach, ¢ sempre me pareceu nignificativo ter ele vindo & luz em marco, duranie a qua- resina, pois na quaresma e na Semana Santa foram escritas ug suas obras mais notaveis, a Pairdo segundo Sao Mateus © @ Paixdo segundo Sao Joao. Lembro-me de ter entrado uma vez em seu quarto jus- tamente no momento em que ele se preparava para compor © solo de viola “Ak, Golgotha!", da Paixdo segundo Sao Mateus. Que impressdo experimentei ao ver-lhe o rosto, hormalmente tao ealmo, da cor das cinzas ¢ inundado de lagrimas! Felizmente nao me viu, e pude sair em siléncio, Indo sentar-me chorando na eseada que dava para a sua porta, Ao ouvir essa misiea, ninguém imagina 0 que ela ‘custo, Tive vontade de me aproximar dele ¢ passar os bra- i9 volta do seu pescoga, mas nfo ousel; alguma eoisa em gis tn dow pasgn mance go © surpreendera nas angéstias da eriagdo, e ainda hoje me regozijo com isso, pois foi um minuto de que somente Deus devia ser testemunha. ‘Sua miisiea sacra dava aos textos dos evangelhos uma ‘expresso tao sublime que sO me ocorria compard-1a aos sentimentos que devem experimentar os cristéos quando se perder na contemplacdo da Cruz. Antes de poder escre- yer uma ‘nica nota dessa miisiea Sebastian vivia em sua alma toda a angustia da criatura e toda a grandeza do me a integraa Paixdo segundo Sai Ouvi pela primeira vee ni indo segundo Sto Marcus nima Sexta-feira Santa, na Tgreja de Séo Tomas, em Leipzig, oito anos depois do nosso casamento, e me foi penoso escutar essa musica, de tal modo me parecew pun- gente e magnifica. Entretanto poucas pessoas a apreciaram, e como é de muito dificil execucao e exige dos cantores tum grande nimero de ensaios, nao a tocaram mais durante ‘onze anos, Essa obra poderosa e impressionante dorme ainda em siléneio, mas talvez no céu eu venha @ ouvi-la ainda uma vez. ‘Quem teria podido prever que 0 pequeno Johann Se- astian, naseido em 1686 na imensa casa branca de Bisen- ach, esereveria a Paixdo segundo Sido Mateus? Miisiea desse género nunca havia existido antes dele, # verdade {que desde sempre 08 Bach foram musicos. Sebastian reco- ‘hhecia que o primeiro, em ordem cronolégica, fora seu tata- ravé Veit’ Bach, moleiro e padeiro de profissio, Sua maior alegria consistia em trazer para o moinho uma pequena citara, que ia tangendo enquanto a mé triturava 0 grao. “Devia ser um conjunto maravilhoso”, dizia Sebastian, indo; “desse modo pelo menos ele deve ter aprendido 20 compasso!” A lembranga do velho moleiro, que obtinha sua farinha ao som da mlisiea, sempre o divertia. A maioria dos Bach residia na Turingia, O tio de meu marido, Johann Michael, cuja filha mais nova veio a ser fa primeira mulher de Sebastian, era organista e composi- tor em Gebren. Também construia cravos e violinos, coisa que Sebastian teria feito, se tivesse tido tempo, pois se interessava por todos 0s instrumentas. De mios extrema- mente habilidosas, era ele proprio que sempre afinava o seu cravo, nunea levando mais de um quarto de hora para fazé-lo, Meu marido contou-me nao haver meméria de que 03 Bach nao tivessem se reunido ao menos uma vez por ano para fazer miisica, Comecavam geralmente por executar lum coral, e em seguida se divertiam com a improvisacio de algum quodlibet, harmonizando varias melodias conhe- cldas e cantando-as simultaneamente. Mais que qualquer outra coisa, aquilo era uma distragao musical; contudo, se omitissera, ninguém regressaria satisfeito dessas reunioes. ‘Quando Sebastian estava alegre gostava de cantar um quodlibet com seus fils, & noite, em volta da lareira, B se, ocupada em fazer’ uma dessas diffceis eamisas franzidas para ele, Friedemann ou Emmanuel, acontecia- me nao os acompanhar, meu marido nunca deixava de me dizer: “Querida, empresta-nos 0 seu fiozinho de voz!”, insis- tindo até que eu acabasse por cantar. E ai no me deixava mais ir embora, Conservou sempre esse pendor da familia, Ji no fim da vida, na Aria com trinta variacoes, que escre- You para o conde de Kayserling, fez da iltima variacao um quodtibes, combinando duas cangdes populares; uma cas Yones fala de mogas, a outra, de repolho e rébano, e ambas ho trabathadas em imitagao no baixo. E qualquer tema era suscetivel de inspiré-lo, a jando seu pai e sua mie morreram teve de abandonar a oun ‘Bisenach e seus lindos riachos pera ir morar com o irmao mais velho, organista em Ohrdruf, Dois habitantes de Eisenach, Santa Elizabete da Hungria € Martinho Lutero (de quem era quase contemporaneo') haviam The deixado a mais profunda impresséo. Guardava deste ultimo uma marca vivissima, nao so porque muitas yezes na infancia visitara Wartburg, mas especialmente porque 0 nosso grance Lutero era também excelente mus Co, Nos iiltimos anos de sua vida inspirou-se muito nos ednticos de Lutero, ¢ aqui cabe notar uma singularidade que sempre me surpreendea em Sebastian: apesar de ser ima fonte inesgotavel ce miisiea, tinha necessidade das obras de um outro para comegar a trabalhar Antes de improvisar no 6rgi0 ou no cravo € dar livre curso a seu ghnio, principiava sempre pela execugao de uma pequena composi¢ao de Buxtehude, de Pachelbel ou de seu to Chiris- toph Bach, eujas cbras multo admirava. Do mesmo modo, derramamos um pouco de agua na bomba para atrair a corrente generosa que sobe das profundezas Gostava muito de comentar que, como ele, Lutero, quando rapa, participara das procissées e percorrera can- lando as ruas de Bisenach, Sebastian fasia parte do Schiilerchor’, fundado mais ou menos cem anos antes do seu nascimento, e que era motivo de muito orgulho para os burgueses de Bisenach. “Nossa cidade era célebre por sua musica”, dizia, e explicaya-me que o nome latino de Bisenach cra Isenacum, e 0 anagrama de [scnacw forma ‘en muisica (veja a mésica) ou caimus (nés cantamos). TA palavra contemporinen £ we fore de expres, pois Lera morten em 1546 1 ach naseeu ene 1685, 129 unos depels, portato. (N. do T-) 2 Coro da escla. (N. dt R) 22 Ainda posso ver a expressiio radiosa com que me contaya isso. Espero ter transcrito corretamente esses nomes, uma vez que nao sei latim e que Sebastian detestava as inexati- does, Ele desejaria ensinar-me um pouco dessa lingua, nem que fosse, dizla, apenas para neutralizar a péssima im- pressao que lhe ficava das aulas de latim que tinha de dar aos maus alunos da Escola de Sao Tomés; mas munca teve tempo, © por outro lado eu vivia muito ocupada com fs criangas e os servigos caseiros, para poder me dedicar f@ um estude desses. Além disso, 0 eérebro ferninino nao we presta muito a ocupagées tao abstratas. O unico latim que aprendi foi o Gioria in excelsis ea Credo in unum Deum, quando ele esereveu. a Missa em si menor, sua tonalidade preferida. Sebastian possufa, em erianga, uma yor maravilhosa de soprano, e aqueles que o ouviram guardaram a lembran- a da extraordinaria sonoridade da sua yor, ¢ me falaram dela, Cantava na igreja de Ohrdruf todos os domingos dias santos, Nos casamentos e enterros executava motetes, om 08 menines do coro, nas casas, na igreja, e as vezes, quando ainda morava em Eisenach, nas russ. Quando sua voz comecou a mudar — 0 que infeliz~ mente aconteceu logo apos sua partida de Ohrdruf para Lineburg —, sueedeu uma coisa extraordinria, Um dia, No coro, percebeu subitamente que estava cantando uma oilaya abaixo, por assim dizer com uma dupla voz, sem poder se corrigir e nao tendo nenhuma influéncia ‘sobre ise curios fenémeno, Durante toda uma semana conti- huou néo somente a cantar mas também a falar’ nessa nitava — e nao sei de coisa semelhante que tenha aconte- pido a algum outro. Jamais tive ocasiio de ver 0 mais velho dos irmaos Mach, aquele que edueou em parte o meu Sebastian, que 23 sempre falava dele com respeito © reconhecimento. Mais tarde meu marido pagou a seu sobrinho tudo, e muito mais ainda, que devia a seu pai. Nao suportava a menor erftica a um membro, mesmo afastado, de sua familia, e nao era prudente encoleriz4-lo. Por essa razio nunea ousel expri- mir 0 rancor que guardava em relacdo a seu irméo; nao posso evitar pensar que a ma vista de que Sebastian sofreu foda a vida re deveu em parte A inveja © a falta de eoragio dele, Esse irmao tinha uma célebre colegao de fragmentos de compesitores corlhecidos, mas a negava a0 menino fa minto de mitsiea, que estudava tudo o que Ihe chegava as maos, Os cadernos ficavam numa caixa protegida por uma tela de arame, e durante meses, noite, servindo-se apenas da luz da lua, pois nao tinha candeia, o pobre Sebastian ‘eopiou-os intelramente. Assim, nao 6 de admirar que em tal tarefa seus olhos se gastassem, Enfim, terminado esse trabalho imenso, quando se pés a tocar 4 musica obtida com tanto esforgo, seu irmao, deseobrindo aquilo @ que chamava “o crime”, tomou-lhe 0 manuserito e confiseou-o. Sebastian s6 0 recuperou no ano do nosso casamento, quando entio me contou 0 ocorrido, sem, de resto, deixar transpareeer 0 menor vestigio de ressentimento. Por esse fato se vé quanto o seu grande cardter e sua forca de von- tade se desenvolveram cedo, bem como muito cedo igual- mente se manifestou seu senso de responsabilidade. Aos quinze anos j4 ganhava a vida, tendo ido para Lineburg ingressar no coro da Escola de Sio Miguel, onde sua bela vor de soprano Ihe valeu casa, comida ¢ um pequeno orde- nado, Certa vez dirigi-me a Liineburg ¢ visitei a Igreja de Sao Miguel, tdo linda com sua torre em tijolo verme- Jao coroada por um mlcante ¢ lanternas de co aa . Hla me impressionou ainda mais porqu * Tears Unham ouvido outrora voz angebical do pequeno 2 Sebastian, essa voz que eu néo pude conhecer, Tenho citime de tudo o que Sebastian viveu sem mim, apesar de saber que no devia ter, pois Deus, na Sua bondade, concedeu-me partiJhar corn ele metade da sua vida. Infelizmente, pouco depois da sua transferéneia para Liineburg Sebastian perdew a vor, sendo-Ihe preciso entao ganhar a vida tocando violino e fazendo qualquer tipo de acompanhamento, Tinha uma aptidao natural para todos 65 instrumentos, ¢ tocava violino, viola, espineta, cravo, cimbalo, viola pomposa ¢ particularmenté o érgao, em que ninguém no mundo 0 podia igualar. Nao digo,'é claro, que ele soubesse tocar todos esses instrumentos aos quin- ye anos, mas quando o conheci isso jé era fato, com ex- cecio da viola pomposa, por ele inventada mais tarde. Desejo eserever esta crénica com a maior exatidio. Lem- bro-me da maneira como sua mao cala sobre meu ombro quando eu fazia uma observagdo inexata ou crrava uma nota no cravo, dando-me uma pequena sacudidela, a0 mes- mo tempo amistosa ¢ irritada. Ah, quantos erros desejaria ainda fazer, se pudesse tornar a senti-lal ‘Tinha umas maos notdveis, grandes, impressionante mente vigorosas, e capazes de abarear uma distancia inu- nitada no teclado. Podia sustentar uma nota com o polegar ou 0 dedo minimo e executar outra coisa com os dedos restantes, como se a mao estivesse inteiramente livre, ou {iwer trinados com qualquer dedo das duas maos ao mes- mo tempo que tocava 0 mais complicado dos contrapontos, fem com isso demonstrar 0 minimo esforco. Nada lhe era Ampossivel nos teclados do cravo ou do érgao. A acredi- tarmos no que dizia, sua virtuosidade ndo era mais que 0 resultado da sua aplicacao, podendo ser atingida por qual- quer outro que trabalhasse séria e disciplinadamente, mas hwem mesmo seus melhores alunos podiar Ihe dar razao, 25 porque quanto mais iam se tornando bons mitsicos mais reconheciam que Sebastian tinha um dom que ninguém podia alcangar, mesmo 2 custa do mals duro trabalho. Entretanto meu marido jamais se sentiu vaidoso de sua genialidade, que considerava como nao Ihe pertencendo. ‘Achava que 2 vida consagrada A mésica era a tinica digna de ser vivida, mas que 0 miisico, nao passando de um instrumento, devia ser humilde e nfio se prevalecer de seus dons, Durante sua estadia em Lineburg dedicou-se, com 0 zelo extraordindrio que Ihe era habitual, a aperfeigoar-se ainda mais. Desenvolven o dedilhado, que adquiriu uma riqueza jamais vista, inventou um método e estudou toda a literaiura musical da grande biblioteca da escola, que foi para ele um presente do eéu, Também consagrou muito tempo ao drgo, que the era ensinado pelo organista da Igreja de Sao Joao, igualmente oriundo da Turingia, mas nao tardou a ultrapassar o mestre. Mesmo em sua juven- inde ereio que sempre foi muito dificil ensinar misica a Sebastian Bach, Ele deve ter sido ensinado pelos anjos, antes de encontrar professor terrestre, ¢ quase nada pre- clsou aprender, mesmo do notavel sr. Bohm. Ia vé-lo a pé, quando era jover e forte, assim eomo a alguns outros orga- nistas, e percorreu varias veces as numerosas milhas que separavam de Hamburgo para ouvir o sr. Reinken, para quem tocou com tanto sueesso no ano anterior a0 nosso casamento, quando 0 vi pela primeira vez. Como se sabe, meu marido ganhava entdo pouquissimo dinheiro. Sucedeu que no decorrer de uma dessas viagens, estando sentado sob a jancla de uma estalagem, faminto, com os pés feridos em conseqiiéneia da caminhada, sem um centayo no bolso para pagar o menor pedago de pio, e interrogando-se sobre © que haveria de fazer para percorrer 0 caminho restante 26 ‘com o estémago vazio, a janela abriu-se e duas cabegas de arenque cairam a seus pés. Considerando que cabecas de arenque sempre valem mais do que nada, apanhou a pouco apetitosa comida, e qual nao foi sua surpresa ¢ alegria a0 encontrar em’ eada eabeca um ducado dinamarqués! Essa, histéria sempre me fez lembrar aquelas que se contam as criancas no Natal, ¢ talvea houvesse alguma coisa de gratidao na preferéneta que Sebastian sempre manifestou pelos arenques, sobretudo quando preparados com yinho branco, especiarias e pimenta, Era seu prato preferido durante 0 calor do verao, Com o dinheiro encontrado nas cabecas dos arenques ofereceu-se uma abundante refei¢ao, mas importava-lhe antes de tudo poder continuar o caminho ainda conside- rével que o separava de Hamburgo. ‘Numa, outra ocasiso, muito mais tarde — mais preci- samente, em 1716 —, a miisica proporelonou-the um Jantar de que se recordava com satisfagao, Fora com os senhores Kuhnau e Rolle Halle para ali experimentarem um novo Srgio de trinta e seis registros, O conselho munteipal, come- morando a inauguragio do drgao, olereceu aos trés mit sicos um farto banquete, com que Sebastian, habituado & simplicidade, se impressionou bastante. Dizia freqiiente- mente que nunca havia comido téo bem, Esse banquete compunha-se de Itieio, carne de vaca, presunto defumado, ervitha, batata, espinafre e salsichinhas, abdbora cozida, salada ‘de aspargo, vitela assada, rabanete, bolo, casea de limo e eereja em ealda, Sebastian tinha dezoito anos quando obteve seu pri- meiro cargo de organista. J4 era miisico na eorte de Weimar, € foi de 14 que empreendeu a viagem a Arnstadt para expe- rimentar um belo érgio instalado havia poueo na nova igreja da cidade, 27 ‘Ouvido por varios miisicos eminentes, todos logo reco- nheceram nele, apesar da pouca idace, dotes excepcio- nais; e como o organista em exercicio era bastante mediocre, transferiram-no para um local menos importante € Sebas- tian 0 substituiu O érgio & sua disposicéo era um magnifico instru- ‘mento ornado de palmas e folhagens esculpidas e douradas; nas laterais, formosos querubins e eabecas de cupidos so- pravam trombetas. Finalmente ele tinha dois teclados € uum excelente pedal de cinco registros. Sebastian sempre falou desse érgao de Arnstadt com fa ternura da mae por seu primogénito. Era o primeiro ‘rgao do qual podia dizer “é meu”. A investidura foi solene. © arador exortou-o & retidio © ao zelo, a agir como honesto servidor de Deus ¢ de seus superiores — @ esse discurso causou um grande efeito em seu espirito moco e ja sério, Teve a impressio — disse-me mais tarde — de que o préprio Deus abengoara a sua voca~ a0 para a musica, e, eterno objeto de suas aspiracies, para @ misica sacra, Ele prezava de tal modo esse érgdo que muitas vezes, com um amigo devotado que desejava se aprimorar no manejo dos foles, ia para a igreja altas horas da noite ali se fechava tocando até que a aurora tingisse de rosa a janela do leste. Dispunha de tempo para o Orgio © para os estudos porque suas obrigagées oficiais se limitavam a tocar aos domingos e as quintas-feiras pela manna nos ser- vigos religiosos, a acompanhar 0 servigo de segunda-feira ¢ a dirigir as ensaios do coro. Mas 0 tempo livre que Ihe res- tava ndo representava sendo uma possibilidade de trabalho. ‘Nunca o vi desocupado, a nao ser quando saboreava um pe- queno eachimbo, e apesar de nao me ser agradavel 0 cheiro do tabaco, alegrava-me eada vez que o via entregar-se a esse 28 singular prazer. Sobre Isso Sebastian escreveu em meu Pequeno caderno uma eangao que comecava assim: “Cada vez que encho meu cachimbo de bom Knaster, por um simples prazer ¢ mero passatempo, ele evoca uma imagem triste me mostra que sou igual a ele...” Eu gostava tanto da melodia desse verso que a transpus para soprano em sol menor, ¢ sentada ao cravo a cantava nquanto as espirais de fumaca iam se desprendendo do cachimbo, Meu marico se divertia muito. “A melodia con- yém melhor & sua voz que o tabaco & sua boca, minha querida. Nunea me apareca com um eachimbo entre os labios", dizia com maliciosa gravidade, “pois eu nunca mais a beijaria.” Contudo, além dessas curtas horas de repouso, jamais o vi perder um instante durante toda a nossa vida em comum. “O tempo”, costumava dizer “é um dos dons mais preciosos de Deus; um dia teremos de prestar contas dele diante do Seu tron.” Dia apés dia ensinava, eompunha, tocava érgao, cravo, viola ¢ outros instrumentos. Dedicava- se depois 2 educagio da familia, e se the restava alguma hora de cio, lia os livros que pouco a pouco fora reunindo, Os esctitos teolégicos interessavam-no_particularmente, mas eu néo podia acompanha-lo nessas leituras dificets, na maioria dos casos em latim. Desde a sua juventude sem- pre se ocupara desse modo. Aqueles que, erguendo as maos num gesto de admiragio, o fe'icitavam por seus dons, respondia com secura que tais dons provinham unicamente de um rude trabalho. Os aplausos dos ignorantes nao Ihe catisavam a menor impresséo, néo sendo sensfvel sendo & aprovagao dos miisicos, “Eu toco”, dizia-me “para o melhor missico do mundo, Pode ser que ele nao esteja me ouyindo, 29, ise of Ga sempre toeo como se estivesso:” Bu pensava comie rans ase misico senapre estara presente quando Sebassiae MSava, mas nunca ousel dizer isso a le, com reset CP The desagradar, Com certeza no me diria: “Mageeiet, oe tsek gelirando”, mas eu no debwaria de nota ¢ sem Ueccontentamento por um abrir € fecbar m ybrancelhas. i a trun aN yn pa dar-the ou desagradar-Ihe, pois no era mais qv Wr shnea ensaiando meus primeiros passos mo Mun crigmea tre un dia esses passos me levariam a cle, Prevojsando estudava em Armstadt Sebastian pedi Wt i ir a Liibeck, a fim de assistir Ncenga Pate. do sennor Buxtehude, freqlentades, peloe seroes mimasicos De Amnstadt até la havia mais de duzen, pa mb ee i : evoado a ; ‘phrtiu, assim, num enevoado outono, “anaedo, para Ihe fazer companhia ao longo do fale Shresntrara um mogo capa de substitui-lo 10 Orgso durant é jingu a principio que a més. Tmaginsn yo que chegou a Libeck, esse 1c tnle ts crtsiea, senti que nao poderia se afastar ae to depres, vdries meaes decorreram antes de seu regresso a Armsindl (5 serdes musicais exeream sobre Sebastian um encanta: el aquele de qui contos a8 mento comm ger entratanio fonesto, Muitas ees wa i Sen te fa Juminada de cirios, ido na igtela ove via ao cantatas de Duxiehade, Gi si i Cordeiro amma recordacio particularmente viva das Bocas do Cori 30 ¢ da Celeste felicidade da atma sobre a Terra quando do nascimenio de nosso salvador Jesus Cristo, O canto, os instrumentos de corda e 0 grande érgao entusiasmavam-no. Como o érgioo atraia, e como esse lugar de organista Ihe conviria! Teria muito mais campo que em Arnstadt. Pouco faltou para que o drgao de Lilbeck me roubasse meu marido, pois o senhor Buxtehude fez saber a Sebastian que o faria seu sucessor, caso concor- dasse em se casar com sua filha Gracas’a Deus meu futuro marido nao aceitou, porque 2 jovem era de natureza muito rude ¢ néo tinha qualquer atrativo; e como essa recusa criou entre eles um certo constrangimento, Sebastian compreendeu que devia regressar a Amstadt. Quando Id chegou seus superiores Ihe perguntaram as razdes de to longa auséneia, tendo ele respondido que 86 fora a Litbeck para se aperfeigoar na sua arte depois de ter pedido ¢ obtido a necessaria autorieagao. Os conselheiros replicaram que a licenca pedida havia sido de quatro sema- nas, € ndo de quatro meses, mas, com a calma obstinacao peculiar a todos os Bach, Sebastian fingiu nao ter ouvido essa tiltima observagio, ¢ disse simplesmente esperar que durante sua auséncia seu substituto tivesse tocado de ma- neira satisiatéria, de modo a ndo haver nenhuma razao de queixa, Caleulo que o ilustre consistério tenha fieado um tanto desconcertado, mas logo se fizeram outras censuras a Se- bastian. Acusaram-no de induzir a congregagio a0 erro, or suas inovagées na maneira de tocar Srgao e por suas variages nos corais, “Fle tocava como bem entendia”, dizia- Se; “levava o dobro do tempo ordindrio ou, se achava melhor 56 a metade,” Os que nao apreciavam seu modo de tocar mereciam ser privades dele, ¢ eu nao os quero tastimar; mas sou forcada a reconhecer que Sebastian era as veres 31 uum tanto obstinado, para nfo dizer teimoso. Quantos aborrecimentos ¢ cuidados Ihe dava 0 coro! ‘Um dia, num momento de célera, chamou um dos alunos de animal de chifres, © mogo esperou-o na rua com uma bengala; Sebastian puxou sua espada e alguma coisa deplo- ravel teria certamente acontecido se néo os tivessem separado a tempo. Esse incidente tornou-Ihe diffcil a per- manéncia em Arstadt, pois bem conhego a sensibilidade que se escondia sob sua rigides e obstinagéo, Meu marido disse-me uma vez que aqueles que tém a musica na alma dispiem de uma pele a menos que os outros homens. ‘Todavia nunca falava de scus sentimentos intimos, como faziam os miisicos que vinham A nossa casa, sobretudo os franceses e italianos. F por isso que muito poueas pessoas, além daquelas que chegavam a compreendé-lo através de sua masica, conheeiam-no intimamente, Seus sentimentos eram to fortes e seu temperamento, téo impulsivo, que eu me admirava de ver como ele se controlava. Nem eu nem ninguém conseguiu jamais fazé-lo retroceder, depois de tomada uma decisdo. Tmpermedvel a qualquer influéncia, recusava-se com brandura, mas de modo inabalavel. Feliz~ mente, para trangiiilidade de sua familia, era bastante prudente, e muito raro 62 enganava em seus julgamentos, Apenas uma vez, como se verd, fui bastante tola para aereditar que ele se enganara, Nio obstante sua forca de carater, era humilde em ‘muitos casos, mas nfo suportava a menor desconsideragao para com a dignidade de seu cargo, Aliés, nao exigia dos ou- tros seniio 0 que Thes dava, isto €, 0 respeito & sua posicao Ambos haviamos passado uma parte de nossa juven- tude na corte, cu pela profissio de meu pat e cle pela sua. Sabendo que Sebastian era muito mais sensato que 32 ‘eu, sentia que sua atitude de profundo respeito para com Os rels © agueles que Deus colocara acima de nés devia gor justificada. Todavia, tinha 9 impressio de que ele era maior que todos, rei ndo apenas dos misicos como tam- bem dos homens. Na realidade, os principes ¢ que deve- riam eurvar-se diante dele e beijar-Ihe as mas, essas méos {ao formosas as quais deviamos a musica que mais convinha ‘A corte do céu que a dos duques da Saxdnia. Um dia, irritada por ver que o principe o fizera esperar longamente por uma audiéneia, comuniquei-Ihe o que sentia, Essa foi uma das poucas vezes om que minhas palavras o contrariaram. Ele achava que o grio-duque herdeiro tinha o direito de fazé-lo esperar; e contudo, apesar de eu reconhecer a sua razio, quando ele me explicou que a base da ordem na sociedade e na civilizagdo era o direjto de reinar que Deus conferira aos reis, meu marido nao péde modifiear a minha pinto. ‘Acreditava na necessidade de ordem em todas as coisas: em sua casa, na sua arte © no seu pais. Sempre s¢ glegrava quando tinha de musicar palavras que falavam de ordem e cever. Lembro-me de uma senhora francesa, excessivamente entusiasmada, que nos visitou em Leipzig. la escrevia poesias e alardeava uma viva admiraeao pelas ‘obras de meu marido, Elogiou-o com uma superabundancia, Gesagradavel, pois era evidente que pouco o compreendia, fe og cumprimentos exagerados nao deixavam de irritar Se- bastian, No entanto ela o censurou por ter musicado certos hhinos religiasas e mesmo certas pastagens dos evangelhos, citando notadamente a cantata que fala de dizimo ¢ impos: to. “Um motivo tio banal para o seu talento, sr. Bach!” exelamava, agitando todas as plumas que trazia A cabeca "Jmposto € dizimo, lei e ordem! Ora! Se quisesse musicar minha poosia sobre o amor e a beleza...” “Minha senhora” 33 atalhou 0 meu querido Sebastian, j4 impaciente, “nao existem amor e beleza dignos desse nome sem lei ¢ ordem, sem 0 cumprimento do dever e a obediéneia A legitima autoridade.” Mas eis que mais uma vez me desviel do relato da sua juventude, Sinto constantemente difieuldade em nao me afastar da linha da minha hist6ria, tio numerosos so os pensamentos que surgem diante de mim. . Os membros do consistério da nova igreja de Arnstadt, que no estavam satisfeitos com ele, talvez com razéo, por causa da sua longa demora em Liibeck, nao tardaram a manifestar-Ihe certo descontentamento quanto as aulas dadas aos meninos da escola de musica. Devo reconhecer que Sebastian era o melhor dos professores para aqueles que de fato queriam aprender, trabalhayam seriamente e gostavam de mitsica; mas quando se tratava de alunos igno~ Tantes e indisciplinacos como os de Arnstadt, ou mais tarde 08 da Escola de Sao Tomas, em Leipzig, ficava demasiado acima do aleance deles ¢ nao tinha paciéncia. Por outro lado, censuravam-no ‘vivamente por ter ele Jevado até galeria do érgao uma jovem estranha e ter tocado para ela. Tratava-se de sua prima Maria Barbara Bach, com quem jé estava decidido a se casar. Todas essas criticas o agastavam e Ihe tornavam penosa @ permanéncia em Arnstadt. J& era entdo compositor, € experimentava a necessidade de uma existéncia placida e de uma mulher que se ocupasse dos detalhes materiais do dia-a-dia, a fim de poder consagrar seu tempo e suas forgas ao génio com que Deus tao largamente o presenteara. Por essa época vagara o lugar de organista da Igreja de Sao Bras, em Miihlhausen. Sebastian apresentou-se com muitos outros concorrentes, mas quando foi ouvido, indica~ ram-no por unanimidade, ‘Tinha entdo vinte e dois anos. 34 ‘A Gpoca de estudos ¢ viagens terminara, e ele se tornara wm mestre, Segundo os vethos e bons costumes alemies wm mestre devia casar-se e ter alunos a quem transmi- tira a sua ciéneia, do mesmo modo que daria seu nome ‘0s filhos que nascessem de seu casamento. A ditosa jovem sobre a qual recaiu a escola de Sebas- tian fot sua prima Maria Barbara Bach. Fla havia estado em Arnstadt a0 mesmo tempo que ele, hospedada pela tia, © naturalmente eles tiveram multas oeasides de se encon- trar, pois os Bach reuniam-se com freqiiéncia, E foi sobre ela que recaiu a béncdo do amor de Sebastian. O pastor Stauber, de Dornheim, que mais tarde se casou com a tia de Barbara Bach, foi que celebrou seu casamento. Entre os papéis de Sebastian encontrei a seguinte cOpia do registro da igreja: “A 17 de outubro de 1707 0 honrado sr. Johann Sebas- tian Bach, solteiro e organista da Igreja de Séo Bras, em Mithlhausen, filho legitimo do falecido muito honrado sr. Ambrosius Bach, célebre organista e miisieo de Risenach, desposou a virtuosa Marien Barbaren Bachin, filha mais nova do muito honrado e reputado artista e organista de Gehren, 0 st. Johann Michael Bach. Estando todos aqui presentes na nossa casa de Deus, casaram-se gracas & gen- til permissio de Sua Senhoria, apés a publicacéo dos proclamas em Arnstadi”, Apesar das recentes desavencas, Sebastian partiu dt Arnstadt em boas relacées com os superiores, que fizeram ntileza de emprestar um carro para o transporte cos moveis pela planicie de Arnstadt até Miihlhausen, Fixcu-se entéo nesta pequena cidade, e seu primeiro alune {01 0 bom Johann Martin Schubart, que viveu dez anos sok 0 35 mesmo teto do mestre @ Iuctou enormemente com esse coniato didrio; ele era o devotamento ¢ a lealdade em pes- soa, Lamento sempre que Schubart tenhs morrido antes de cu o conhecers pois Sebastian falava dele com inalterdvel amizade. Quando de sua ultima doenca — ocasiao em que nos vém & meméria as primeiras recordagies da vida — meu marido julgou mesmo, uma ou duas vezes, ver Martin em seu quarto, Este partilhava de todos os interesses de seu mestre ¢ 0 ajudava na grande obra que iniciara. Sebas- tian procurava, com efeito, renovar a miisica sacra de Miihi- hausen e torna-la, tanto quanto possivel, digna de Deus, Como a biblioteca, além de nao Ihe agradar, era insu- ficiente, comprou com seu proprio salério uma grande quantidade de boas partituras, O drgio também. preeisava, muito de melhoramentos, pois varios registros estavam deteriorados ¢ o fole, absolutamente inutilizavel. Fer entao uma proposta para a restauiracao do instrumento, que foi aeeita, sendo-Ihe confiada a supervisio do conserto. A seu pedido adaptou-se ao drgio um conjunto de sininhos acio- nados pelo pedal, e essa era uma de suas invengdes que muito Ihe agradava, naguela época, se bem que mais tarde achasse graca dela e se referisse ao carrilhao como sendo uma loucura da juventude. “A caracteristica fundamental da sonoridade do orgao”, dizia ele, “é a gravidade, a sole- nidade.” Contudo nio devia ficar muito tempo em Mithihausen, onde nao encontrava o estimulo necessério para dar a musica sacra a perfeipao que desejava, Reinava entre os sdbios tedlogos um perpétuo desentendimento, @ 0 meu querido Sebastian, cuja crenga era tao profunda e tao ouco suseetivel de ser toldada pelas disputas de palavras, achou que sua obra nao poderia desabrochar numa tal atmosfera. Desst modo, esereven ao conselho da cidade de 36 Mohthausen: “Apesar de ter aplieado toda a minha boa Yontude em alcangar um fim, o de dirigir uma misica ‘gora bern organizada para a Gloria de Deus e 0 cumpri- mento dos vossos desejos, apesar de com 9s meus proprios melos ter feito todos os estorgos para manter a miisica religiosa em quase todas as povoagdes, tenho encontrado muitas dificuldades, e atualmente ndo me resta qualquer ‘speranga de que as coisas venham a correr melhor no futuro”. B era tao pequeno o set: subsidio que teve ainda de acrescentar: “Por outro lado, devo humildemente fazer- Vos saber que os meus meios so téo restritos que depois de ter pago o aluguel da casa e outras despesas indispen- ssivels, 0 resto mal dé para eu viver”, Quando © duque da Saxinia-Weimar Ihe mandow oferecer 0 posto de organista da corte e mestre de capela da Cimara de Musica, Sebastian ficou radiante por poder se refugiar nessa pequena cidade tio alegre, cercada de florestas, Aguas ¢ colinas. Em Weimar nascen, durante as festas de Natal do ano de 1708, seu primeiro bebé, a menina Katharina Dorothea; com treze anos por ocasiao do nosso casamento, muito me ‘ajudow a euidar dos menores e a dirigir a casa, Os gémeos e Leopold repousavam ja nessa terra, onde também eu pre- cisel enterrar muitas das minhas eriangas. As quatro que encontrei em sua casa foram para mim filha e filhos afei- coados obedientes, que logo considerei como se fossem meus. Nao poderia amar Sebastian sem os amar, e sem tornar meus aqueles que eram de sua came e de seu sangue. © mais velho, Friedemann, to prendado e inteligente, compreendia muito bem o pai. Devia, eontudo, causar-Ihe muitas decepgdes, pois, embora tivesse herdario ‘os dons das Bach, nada tinha da sua consténcia e prudéncia: mas quase sempre preferimos os filhos que mais nos fazem 31 sofrer, ¢ esse foi o caso de Sebastian, embora seu coragio fosse bastante grande para envolver todos os seus numa termura paternal, Creio que meu marido sentia por Frie- ‘demann aquilo que eu sempre senti por meu pobre Gottfried; mas, enquanto Friedemann era brilbante e inteligente, meu Gottfried era daqueles que costumamos chamar de “filhos de Deus”. Tenho pensado muitas vezes que 0 Tedo-Poderoso nos da as Suas mais profundas ligder através de nosso filhos. A alegria de pé-los no mundo e a dor de perdé-los nos ligam ao Bterno. Pelo que me contou, sel que Sebastian foi muito feliz em Weimar, onde pela primeira vez pode chamar de sua uuma casa —e muitas yezes me repetiu que precisava de uma mulher e uma familia para se sentir em sua casa. Perdera a mae quando crianca, ¢ desde entado até o momen- to de se casar ndo passara de um viajante e pensionista Mas, além da casa ¢ da familia, felicidades que, pela graga do Todo-Poderoso, desfrutara em Weimar, teve a ventura de encontrar um principe profundamente piedoso, grande amante da mtisiea, e, na pessoa do sobrinho do principe, que infelizmente morreu cedo, urna alma de artista por exceléncia, O organista e bom compositor Johann Walther deu-The igualmente provas de bondade e amizade, Para ser feliz, sempre bastou @ Sebastian que a familia ¢ alguns amigos ‘compreendessem suas obras, nao se preocupando em fazer relagées nem em solieitar aprovagao. Quando tocava Orgao em outras cidades (os concertos eram a Ynica rao de suas viagens, geralmente empreendidas no outono) certa~ mente ganhava aplausos, mas aeeitava o entusiasmo dos ouvintes como um tributo devido & sua profissao de mitsico. Nunca o vi orgulhoso com o sucesso ou perturbado com 38 © inoucesso, e sermpre compreendi ser outro o ideal que enlentava, Nilo quero dizer que fosse insensivel & admiragio, ¢ ile resto o vi recordar algumas vezes com evidente prazer 0 gesto do principe herdeiro por ocasiao de um concerto ide Grgaio em Kassel. Maravilhado com 0 extraordinario vir- (uosismo de Sebastian, e particularmente com o manejo dos pedais, o principe tirara espontaneamente o anel que saya, para colocé-lo no dedo de mew marido. E ja que falei de seu extraordinario virtuosismo, ndo quero omitir uma anedota que mostra como um dia ele Vove ocasio de Ihe medir os limites, Sebastian sustentara freqiientemente que todo miisico senhor de sua arte devia poder decifrar & primeira vista fosse 0 que fosse. Ora, seu colega de Weimar, o senhor Walther, que havia muito tem- po procurava pregar-Ihe uma peca, armou-the uma cilada, Sebastian ia de vez em quando almogar com o senhor Walther. Um dia, enquanto esperava a refeigao que o amigo estava preparando, aproximou-se do cravo para olhar um trecho de misica, ¢, naturalmente, pés-se a Ié-lo, Mas logo na primeira pagina alguns compassos o fizeram tropegar; muito surpreso, pois raro Ihe acontecia encontrar misica mais complicada que a sua, recomegou o trecho € foi forcada a deter-se novamente naqueles compassos. Nessa altura 0 senhor Walther, que estava escutando do outro lado da porta, ndo péde mais conter o riso, Sebastian ergueu-se vivamente €, um tanto vexado, exclamou: “Com efeito! Ainda nfo nasceu o homer capaz. de ler seja o que for! Esta passagem é impossivel”. E freqlientemente contava esse episédio para eneorajar os alunos a quem faltava audacia, © senhor Walther tinha uma razio especial para se ligar a Sebastian: as maes de ambos pertenciam & familia 39 ‘Lammerhitt; ele conhecia a Casa das Trés Rosas, em Erfurt, ‘onde nasceu minha sogra, falecida muito cedo para des- frutar a celebridade de seu filho, e de quem este s6 guardava uma recordagao muito confusa, Estou, no entanto, certa de que o bom Deus Ihe tera concedido a graga de ouvir, 14 no céu, as obras de Sebastian, pois, embora eu receie ‘que meu pastor néo esteja inteiramente de acorde comigo heste ponto, na minha opinido o céu nao sera céu se 14 nao se ouvir a miisica do meu marido. © povo chama a igreja do castelo de Weimar de “o caminho da cidade celeste”, quando meu marido tocava redo ld ela devia ser, com efeito, uma cidade celeste. Con- tou-me um de seus amigos que durante 0 culto, tao célebre nessa igreja, a musica profundamente religiosa de Sebas- tian dava aos fiéis 0 antegozo do paraiso, ¢ merecia na realidade uma glorificagao eterna. Jamais esqueci essas pa- lavras. ‘Em Weimar Sebastian podia usar 0 pequeno dxgao do castelo, que tanto gostava de sentir sob suas méos, ¢ tam bém — por que no dizer? — sob os pés, pois a manelra ‘como usava os pedais era um milagre de seu tempo. Atin- gira nessa época o apogen de seu genio de organista ¢ de ‘compositor. Gostava particularmente dos pedais, com os sete jogos, um de trinta e dois pés e trés outros de dezes- seis pés, 0 que produzia esse incomparavel efeito de baixo {que ele tanto prezaya. Compés muitas obras para esse ins- trumento, entre outras, O pequeno livro de drgdo, cujos trechos, executados por ele, me deliciavam. Estudei sob sua orientagao alguns preliidios de coral, mas de modo geral eles eram muito dificeis para minha téenica fraea. O titulo completo desse livro, eujos eantos ¢ lombada de couro me exam tao familiares, é 0 seguiinte: "Pequeno livro de érgiio, ‘para dar diretrizes aos principiantes e para os levar, por 40 diferentes métodos, & execucto de um coral, Para thes dar também a possibilidade de se especializarem no esiudo do pedal, porque os pedais sdo tratados de maneira inteira- mente especial nos corais. Av Todo-Poderoso, para hon- ré-Lo, ao préximo, para ensind-lo”. Infelizmente sempre fui demasiado “principiante” para. poder executar essa colegao. Sebastian podia zombar das Gifieuldades porque nfo as imaginava, e, sem mesmo ter consciéncia delas, triunfara sobre todas desde os primeiros anos Fra positivamente uma delicia ouvi-lo executar os prelidios de coral do Pequeno livro de érgao, Basta-me abrir o livro para ficar de novo impregnada deles. Nao me lembro cos que preferia quando moga, mas sei qual deles agora me consola mais do que qualquer outro; é a propria ‘voz de Sebastian que me fala e me exorta A paciéncia e & esperanca, Esta quase no fim do livro e se intitula Para os agonizantes — Todos ox homens tém de morrer'. Como a melodia eantava quando ele a executava no positiv", e de que paz os imponentes grupos de colcheias ¢ semicolcheias me enchiam 0 eoracio! Sua mais clevada miisica sempre se inspirow no pen- samento da morte; outrora isso me assustava um pouco, mas agora compreendo o sentimento que cle experimen- tava. Os dois outros preliidios que me eram partleular- mente caros haviam sido compostos para a Quaresma; sao O inocenie cordeiro de Deus’ e Oh, homem, chora os teus pecados!* Ao ouvir os tiltimos compassos do segundo, ao "rir de istendess Alle Metohenisen srt. da R9 20 pat #0 tld ero. ur ana DOr Taser ws do eso (N. da RY oo 2 ¥0:Limm Gates Unehlie, (W,de R) 40 Mensh, revs dein Side gros (de Ri) 4 mesmo tempo tio belos e tao tristes, eu estremecia ¢ sentia © coracao parar de bater. Se comeco a pensar na sua miisica e a felar dela reeeio no acabar a historia da sua vida; esse querido livro de érgio esta por si 30 tao cheio de recordagdes que me € bem dificil afastar os pensamentos que ele sugere. ‘Em Weimar Sebastian tornou-se um mestre absoluto e insuperavel do érgio e dos outros instrumentos de te- claco, pois realmente inventara © pusera em uso um mné- todo de dedilhado inteiramente original ‘Um dia veio a Dresden, onde ele j4 era renomado, um célobre misico franeés, Jean Louis Marchand, homem vai- doso mas dos mais talentosos, que desafiou todo o mundo musical a competir com ele, esperando demonstrar desse modo a sua superioridade, Tal maneira de agir nao causou ‘a menor impressao em meu marido, que ndo teria dado um passo para entrar na disputa. Alguns muisicos, porém, fe- ridos pelo presungoso desafio do francés, vieram pedir a Sebastian que defendesse a reputacéo da musica alema. ‘A principio meu marido hesitou, mas depols se deixou pei suadir e aceitou o desafio de Marchand. Os detalhes do encontro foram combinados, ¢ ele deveria ocorrer no pala- cio do conde Flemming, Muitas damas e cavalheiros da corte estavam presentes e esperavam com impaciéncia 0 comeco do torneio musical. E quando na magnifies sala, toda iluminada por candelabros, Sebastian avangou, tran- qililo, impassivel e digno como sempre, estava pronto a resolver todos 03 problemas que o francés quisesse Ihe apre- sentar, Como 0 estrangeiro néo chegava, mandou-se um criado procuri-lo, e pouco depois ele voltou com a noticia de que o tal senhor partira de Dresden naquela mesma manha, pela posta, Tivera certamente oportunidade de ouvir Sebastian, e reconbecera o homem contra cujo talento 42 € poder nao podia huitar. E como no The teria sido posstvel artebatar a coroa de mestre, arriseando-sa mesmo a se mostrar inferior, 0 nico meio de salvar a reputacao era, portanto, nao concorrer. Devo declarar, a bem da verdade, que nao foi Sebastian que me contou esse episédio, mas sim uma testemunha ocular. Sebastian nunca experimentau 0 menor prazer em desmerecer um rival, nao gostava nada de ouvir repetirem essa histéria em sua presenca; asse~ gurava que o senhor Marchand era um excelente masico, © que se fizera excessive barulho em torno dese caso. Em Erfurt, onde Marchand era vivamente criticado, ele resolveu um dia ealar seus detratores, e, sentando-se ao crayo, disse-lhes: “Vou provar como as suas suites, que tanto vooés desdenham, sao belas”. Tio bem as escolheu, ¢ tocou-as tio delicadamente, que elas pareceram bem su- periores ao que na realidade eram. Isso prova a generosi- dade que mostrava para com todos os misicos, ¢ como sabia fazé-los aceitar a grandeza do sau génio pela bondade que transbordava do seu coragao. Sempre manifestou grande curiosidade de ouvir outros compositores de sua cidade ou de fora, e nunca se con- solou por nao ter podido, malgrado suas repetidas tenta- tivas, conhecer 0 senhor Handel, Admirava as obras desse mestre, eneantando-se com elas ¢ pasando mesmo horas € horas a copié-las. Eu gostava muito de ajudé-lo nesse tra- batho. Em Leipzig chegou a fazer uma bela exectcao de ‘uma das cantatas de Hiindel, A Paixdo de Nosso Senhor Handel e Sebastian haviam nascido ambos na Saxdnia, no mesmo ano, circunstancia que ainda mais os aproxi mava, Meu marido escreveu muitas vezes a0 grande mt 2 Leiden Unveres Herrm, (N: ds &) 43 sico a fim de combinar um eneontro, e por ocasido de uma curta estadia de Hindel em Halle, sua cidade natal, Se- ‘pastian yeio de Coethen especialmente para cumprimenté-lo, mas 56 conseguiu chegar na noite do dia em que ele par~ tira, Dez anos depois Hiindel velo novamente a Halle, mas ‘como Sebastian estivesse indisposto e incapaz de empre- ender a viagem, convidou-o, por intermédio de seu filho, a vir velo em Leipzig; porém, por seu lado Handel também tstava impedido, de modo que Sebastian ficou outra ver muito desapontado, tendo de renunciar & alegria de ver € ouvir o eélebre compositor, que, por sua vez, certamente gostaria de encontrar seu ilustre compatriota. Handel era grande o suficiente para reconhecer 0 valor da obra de Se- bastian, por muito ignorada que ela fosse na Alemanha, num tempo em que a sua era famosa 20 mesmo tempo na Jlalia e na Inglaterra. Mas ele buseava 0 piblico, viajava, ‘e ganhava muito dinkeiro, ao passo que meu marido fugia do mundo e vivia trangiiilamente com sua familia. ‘Sebastian quase so viajava no outono, na maioria dos casos para experimentar novos Orgaos ¢ fazer um relatério sobre eles, Era solicitado de todos os ladas para esse tipo de tarefa, pois julgava um érgao com pericia igual Aquela ‘com que 0 tocava. Suas opiniGes eram irrevogaveis e sempre Impareiais. Entretanto seus amigos censuravam sua grande prebidade, que Ihe gerava inimigos. Na realidade ele a nada fechava os olhos, nem deixava em siléncio 0 menor defelto, “Nada que diga respeito ao érgao pode ser insignificante”, ia, 2% senegava, por pixar todos os registros, para fazer soar plenamente o instrumento, 0 gue Ihe permitia verificar se “os pulmées eram sos”, ¢ 50 depois se ocupava dos de- talhes. Um construtor de drgéos pouco cuidadoso nao po- dia deixar de temer seu julgamento. “4 No outono de 1717 o jovem principe Leopold de Anhalt Céthen chamou-o para ser 0 seu mestre de capela, Sebas- tian aceitou com prazer, tanto mais que esse mesmo posto acabara de vagar em Weimar sem que o tivessem oferecido fa ele, que por isso se sentia um pouco humilhado. Por oca- sido da morte do velho mestre de capela imaginara que The ofereceriam 0 lugar, mas haviam dado preferéncia.a um miisieo pouco competente, filho do recém-falecido mestre. Sebastian melindrou-se, e nao 0 ocultou; reclamou sen des- ligamento, a fim de poder ir para Cothen, de um modo tao decidido © peremptério que o duque se ofendeu eo man- teve detido um més inteiro. A falta de independéncia sem. pre me parecet particularmente dura na profissio de ma- sico de corte Contudo, por volta do Natal, Sebastian pode ir se fixar em Cdthen com a mulher e os fills, esperando levar uma vida mais calma e retirada do que em Weimar. Durante 0 tempo que ali passou nio dispés senfo do pequeno drgio do castelo, e pelo menos oficialmente nao tinha de se ocupar da mtisica sacra. Dedicou-se, pois, inteiramente, e com 0 maior prazer, & musica de cdmara, © jovem prineipe, que The manifestava muita benevoléncia € simpatia, gostava apalyonadamente de musica e tinha na devida conta seu maestre de capela, Cada vez que ia a Karlsbad, para as dguas, levava-o consigo, © foi bastante amAvel ao consentir em ser padrinho do filho que Sebastian e Barbara tiveram em C5- then, Este, contudo, devia morrer pouco tempo depois de ter sido batizado na eapela do castelo, Sebastian gostava de Cithen, da sua trangiiilidade e da sua paz, mas nao creio que tivesse ficado 14 para sempre, mesmo que as cireunsténcias nao 0 houvessem feito partir. Sentia-se privado do essencial, a misica sacra, que de- via ser a expresso do seu cardter profundamente religioso. 45 Em Céthen Maria Barbara Bach morreu, apés treze anos de casada. Dos sete filhos que tivera com Sebastian apenas restavam quatro, Foi nessa mesma cidade que me tornet sua mulher. 'B agora que ja contei, de melhor modo que pude, @ histéria de sua vida até a epoca em que o conheci € amei vou falar dos anos que vivi com ele, 48 Il Onde se rata to caréter religioxo de Sebastian, de mest ‘caramento, de met Pequeno Albom, da perjeicao de teu dedi Thede, de Sebastian pai e professor, do Ceavo bem tempe- rado, edo que me econteceu por ter amado muito as fuga Meu marido era um homem dificil de conhecer. Se desde o primetro instante eu no o tivesse amado, certa- mente nunea o teria compreendido, Muito reservado, nao se revelava através de palavras, mas por sua atitude e, naturalmente, por sua miisica, Eu nunca havia visto um homem tao religioso. Isso pode parecer estranho, se se pen- sar em todos os bons pastores Tuteranos que tenho enean- trado, cujo ico fim na vida é fazer sermées ¢ dar bons exemplos. Mas Sebastian nao se comparava a eles; nao obstante parecer oculto, 0 sentimento religioso estava sem- pre nele, e nunca descuidado. Houve um tempo, especial~ mente no comeco do nosso casamento, em que eu tive medo da austeridade de pedra que dissimulava sua bondade, € mais ainda ca estranha nostalgia da morte que 0 acom- panhou por toda a vida, apesar de tin laboriosa Eu nip fazia outra coisa sendo pressentir tal nostalgia, apesar de ele nunca me ter falado nisso, com medo de me assustar, pois eu era mais nova e muito menos corajosa. Enquanto Sebastian viveu eu nunca tive, alids, o menor desejo de deixar este mundo, que me parecia tio bom; mas agora que ja partiu, velha e sozinha compreendo melhor seu an- seio de ir 1a para onde todas as coisas sio perfeitas, con- templar 0 seu Mestre, Jesus Cristo, aT No fundo de seu grande coragdo trazia sempre a ima- gem do Crucificado, e sua miisiea mais elevada é o grito desse desejo de morte que Ihe dava a visio do seu Senhor ressuscitado, Meus pais eduearam-me piedosamente na 1é Tuterana, mas a religifo de Sebastian era. algo maior ainda. Senti-o desde 0 dia do nosso casamento, quando, depois de todos se haverem retirado, ele yeio a0 meu eneontro, to- mou-me o rosto entre as mndos e, depois de me olhar longa- mente, disse estas palavras: “Agradeco a Deus ter Ele me dado vo’, Magdalena”, Eu nada pude responder, mas en- fcolhi-me contra seu peito ¢ murmurei apaixonadamente esta prece: “Meus Deus, tornai-me digna dele, tomai-me ddigna dele!” Logo tomei consciéneia da minha juventude e da terrivel responsabilidade que assumira ao consentir ‘em ser esposa de Johann Sebastian Bach. Se o fizesse in- feliz, ainda, que fosse 86 um pouco, me arriscaria a preju- dicar sua mtisica, “As dissondncias sto tanto mais terr! Yeis quanto mais se aproximam do unissono”, dizia ele, “e por isso 08 mal-entendidos entre marido e mulher sao. os snais insuportiveis” Ambos, Sebastian e eu, tivemos dift- culdades, como as tém todos os habitantes desta terra, mas que permaneceram exteriores e jamais atingiram nosso amor. © fato de ele ter quinze anos mais que eu ¢ de j4 ter sido casado expliea talvez a sua indulgéncia, Decerto eu sabia tratar da covinha manejar a aguwha, mas nunca estivera a testa de uma casa com criangas; ¢ minha mae era to boa dona de casa que jamais eu atentara para todas fas ocupagoes de uma mulher casada. Bem percebia que Se- bastian detesiava a desordem; seus papéis ¢ objetos pes- soais deviam ser errumadas de uma certa maneira, ¢ nao ‘de outra, Tinha horror a0 desperdicio e sobretudo & im- pontualidade, porque ser impontual é desperdigar 0 que 48 ele sempre considerou inestimavel: o tempo, a tinica Gina, que nao se pode possuir dias vezes.'A\prinipio ed era um pouco descuidada e estouvada, mas meu marido deu provas de grande paciéncia © nfio tardel a me corrigir, Pome meu tinico desejo, meu tinico fim era agradar-Ihe ¢ fazer da sua casa o lugar do mun taser He a igar do mundo onde ele encontrasse ‘Apenas uma semana depois do nosso casam - cipe ae ArhalUCothen que tinh Seeastien emo grande estima e fora tao amével comigo, casou-se também, e nada indicava que esse acontecimento viesse a ter uma notdvel influénela sobre 0 nosso humilde destino; ele foi, contudo, a causa direta da nossa partida para Leiprig, onde passa- mas o resto da vida “Até seu casamento, a maior alegria do prineipe era ouvir boa miisica, ou seja, a que the fazia o seu mestre de capela, Os concertos, modestos, porque o principe nao era rico o suficiente para manter uma grande orquestra, assu- miam, no entanio, um brilho especial sob a diregio de Sobastian; neles suas obras cram freqiientemente executa- das, Acharia a nova princesa que seu esposo dedicava de- masiado tempo & miisiea e a seu mestre de capela? Seria um tanto ciumenta, ow os concertos de c&mara a aborre- ciam? Set bem que certas pessoas, mesmo entre as da melhor sociedade, sio pouco sensiveis, apesar de nao ter tido a Infelicidade de viver entre elas. O fato é que, alguns meses apés seu casamento, comegamos @ notar uma mu- danca de atitude em nosso principe. Ble mesmo jé quase nao tocava mais, e nao favorecia os concertos com sua presenga e seus estimulos; a corte de Cithen tornou-se in- diferente, Sebastian, que nao podia viver em semelhante atmosfera, afligia-se com isso. Regressou um dia casa desgostoso com uma resposta pouco amavel, que Ihe fez 49 compreender a que ponto o principe se havia afastado da misica para se aproximar da delicada ¢ exigente princess. “Magdalena”, disse-me com ar magoado, “vai ser preciso ceixarmos Céthen, Aqui jé nao é lugar para um misico. Voc concorda em que mudemos o nosso lar?” Respon- di-the o que era verdade, que meu lar nao podia ser sendo nno lugar onde ele vivesse e se sentisse bem, ¢ animel-o © melhor que pude, No entanto a perspectiva de abandonar Céthen nao era féecil para nds. Ble gostava da cidade, que para mim representava meu primeiro lar — e todas as mulheres compreenderio o que significa deixar um lugar fa que estéo presas tais recordagdes. Estévamos em Co- then havia pouco mais de um ano, mas que ano mara- yilhoso e cheio! O fato de viver com ele, de vé-lo todos os dias, parecia-me uma felicidade imerecida. Por longo tempo vivi num estado de admiragdo e de sonho, um 60- ho de que, quando Sebastian néo estava em casa, temia facordar para encontrar outra vez a pobre pequena Anna Magdalena Wilken, em vez da Frau Kapelimeister Bach. ‘Mas em breve ouvia Tessoar seus passos, corria ao eneontro dele, ele me acolhia com uma caricla ou uma palavra cheia de ternura, ¢ eu tinha em seus bragos a impressio de estar protegida; sentia que no era um sonho, mas uma esplén- ida realidade. Pouco tempo depois do nosso casamento ele me deu 0 Poqueno dlbum de miisica, que havia composto para mim. ‘Ainda 0 tenho, e, por muito pobre que seja, nao me sepa- rarei dele enquanto viver. Uma noite, depois de ter deitado seus quatro filhinhos, desci ¢ instalei-me & mesa para ¢o- piar ume partitura & luz da candela, quando ele se apro- ximou docemente ¢ pousou diante de mim um pequeno livro de forma alongada, encadernado em verde, com @ lambada fe 0s cantos em couro, € que tinha a seguinte inscrigao: 50 Clavierbiichlein vor Anna Magdalena Bachin ‘Anno 1722 Voltando as paginas com os dedos impacientes, en- Gjasete ‘Sebasilan ga mantinha. ds, pS alrds ds tlcn's ms lava sorrinde, vi que ele escrevera messe pequeno com- péndio alguns trechos féceis para cravo. Comecara a me dar ligdes havia pouco tempo, € eu nao estavs sinda m adiantada, apesar de ter me dedicado ac instrumento desde antes do nosso easamento, Bsses trechos melodiosos tinham sido compostos para me distrair, me encorajar e me levar, de maneira agradiivel, a um grau de ténica superior. Ha- via uma grave e bela sarabanda (eu gostava muito das sarabandas de suas suites ¢ partitas para crave, porque elas me pareciam particularmente representativas do sex espirito), ¢ 0 mais alegre minueto que conhego, Todas as composigées tinham um eneanto bem proprio para es mular uma principiante no estudo, Sebastian estava sem- pre pronto a descer de suas alturas para conduzir pela mio ‘uma erianga cu um prineipiante, e nada num aluno o im- pacientava, a nao ser a indiferenga e a negligéncia Bem desejaria poder explicar a sua maneira de ensi- nar, Creio que nunca houve um professor como ele, tio animador, to paciente (salvo com os preguigasos) ¢ t40 infatigével, Seus olhos e ouvidos pereediam os menores erras, ¢ jamais tolerava a falta de culdado. Vi mogos, seus alunos, tremer de apreensio quando iam se encontrar com ele, e voltar com lagrimas nos clhos, de tal modo nham se comovido com sua bondade, Vi-os também empa- lidecer quando meu marido se zangava, o que raramente acontecia, Por vezes, contudo, seu temperamento apaixo- ot nado explodia, Nao tinha indulgéneia com uma certa for- ma de vaidade. Vi-o uma vez arancar a peruea e atird-la na cabega de um aluno a quem pomposamente chamava “um cavaleiro do teclado”, expresso com que designava agueles que tentavam obter efeitos brilhantes sem ter urns base sélida, ‘Quando me dava ligées, porém, era de uma paciénela, angelical; jamais esquecerel essas horas maravilhosas em que, sentada a seus pés, eu aprendia musica. Decerto ele nao me submetia ap severo exercicio que impunba a seus alunos, Eu nao iria fazer uma carreira musical, ¢, de resto, desde os primeirus anos tive tantos filhos para cuidar que para mim a mnisica ficou sendo apenas uma distragao. Contudo, no primeiro ano da nossa vida em comum ele me deu ligdes de cravo, ensinou-me a tocar por baixo cifrada e-até mesmo, durante algum tempo, a tocar érgao, Quando The confessei meu desejo de aprender érgio ele brineou um pouco comigo, dizendo que este era um instrumento rmuito grande para uma mulher. “Se eu puxasse a0 mesmo tempo todos os registros" dizia ele “vor’ taparia os ouvidos com as mios e correria para casa.” Mas como eu nao me eixasse desanimar por suas gentis zombarias, deu-me, logo que pode, uma ligao, € creto que teve nisso tanto prazer como eu, 0 que nao era pouco. Ha qualquer coisa de estra- nhamente fascinante no simples fato de tocar o teclado de um drgao. J4 tive ocasido de dizer que desde antes do meu casamento sabia tocar um pouco de cravo, mas tocar ‘érgao coisa muito diferente. Os trés teclados nao me embaragavam muito, mas me senti perdida quando tive de empregar os pés para usar 3 pedals. Mal conseguira executar apenas com as maos canticos € cangoes a quatro vores, ele entendeu de me fazer Locar 0 baixo com o pé. Nessa altura confundi tudo 52 € toquei tudo ao contrério. Com as duas m&os no t © 0 pé num pedal, detive-me bruscamente e ergui os olhos para Sebastian, que se mantinha a meu lado. “Nao posso continuar; néo’sel por qué, mas nfo posso”. “Vocé é uma patinha”, ele me respondeu; “se nao estivéssemos na igreja eu a beljaria.” _. Contudo, apasar de zombar de mim, era de uma pa- ciéncia infinita, e depois de varios exercicios trabalhasos consegui enfim tocar as notas do pedal sem tatear com © pé por minutos inteiros, Desde 0 comeco ele me proibira de olhar os pés. Dizia: “Seria engracado se voce nao fosse capaz de tocar uma nota sem antes verificar se é a certa! 86 os maus organistas olham os pedais, © eu nao con- sinto que vo’ faga como eles. E possivel que voce nao va muito longe na arte de tocar érgao, mas pelo menos hd de ir como se deve”. Nao fui realmente muito longe, mas o ba: avallar quanto a arte de Sebestian tra minus ical oie rando todas as dificuldades do 6rgao 6 que eu nao poderia apreciar 9 modo como ele executava as fugas ¢ os prelidios de coral; seria como se tocasse para um peixe do mar, € eu, sua mulher, néo queria permanecoer como um peixe, surda e estipida. Aliés, fui bem recompensada pelos ¢s- forgos que dispendi ¢ pelas horas consagradas a aprender © poueo que sel, pois assim me foi dado saborear uma. ale- gria muito especial ao ouvir as obras sublimes e nume- fosas que Sebastian cumpunha para sea instrumento pre- Comecou a escrever no meu album uma fantaria paca 6rgio, mas nunca The sobrou tempo para acabé-la. 2 pre- feria esse instrumento aos outros porque ele 0 apreciava profundamente, e porque tenho a impressio de que suas ‘mais nobres eomposigoes, as mais emocionantes ¢ que mais 53 completamente exprimem sia alma, séo as compostas para Srgio. Sei que juizes competentes preferem suas cantatas, fe que ainda outros preferem as pecas que esereveu para cravo; na yerdade, refletindo bem, & muito dificil esco- Iher ¢ manifestar uma preferéncia, e s6 nos resta repetir as palavras da Biblia: “... como uma estrela se distingue da outra pelo brilho Mas jé me afastei de novo do que queria descrever: & sug maneira de ensinar, Sebastian havia aperfeigoado seu método com 0 maior cuidado, ¢ achava que nenhum esforgo era demasiado para “o jovem que deseja aprender”, Quando se incumbia da orientacio a um prineipiante de eravo, exa~ tamente como procedeu com os préprios filhos, daya-lhe & principio exercicios para o toque ¢ o dedilhado, Fol ele o primeiro a preconizar aquilo a que chamava o método na- tural de cruzar 0 polegar sob 03 dedos, Até entao os raros executantes que se serviam do polegar cruzavam-no por elma dos dedos, numa manobra muito desajeitada. Foi igualmente Sebastian quem. primeiro recomendou 0 ¢m- prego de cada dedo para os trinados e ornamentos, En- quanto nao se adquiria a necesséria destreza para esses exer- cicios, ndo tolerava que se fosse além deles, mas escrevia para seus alunos trechos encantadores que thes permaltiam Veneer certas dificuldades ao mesmo tempo que se entre- tinham, amenizando-lhes o trabalho com agradaveis me- Jodias. Vi-o afastar-se do cravo, onde algum deles se es- forcava em vao para dominar uma passagem complicada, pegar uma folha de papel e escrever com a mao répida, que entretanto nfo rivalizava com a rapidez de seu pensa- qento, alguma pequena invengio o que apresentava a difi- cuidade em questao de forma clara e atraente, de tal modo que, apenas por ter se sensibilizado com aquela atitude & gostado da musica, 0 aluno voltava ao trabalho com reno- 5 ‘vada coragem. Muitas vezes o ouvi exclamar: “Em cada mai yocé tem cinco dedos tao bons quanto os meus! ‘Simples. mente dedique-se a exercitd-los, e acabara por tocar tao bem quanto eu; é mera questao de aplicacao". Para Friedemann, o filho mais velho, que foi sempre seu aluno preferido, meu marido compés um Pequeno di- bum por ocasiao dos seus dez anos, isto é, um ano antes dy nosso casamento, Depois que Friedemann o estudou criteriosamente, e que outros meninos, cada um por seu turno, gracas a ele realizaram progressos, salvel ess dlbum da destruigdo, porque o préprie Sebastian quase nao cui- dava de conservar suas composigdes de menor importancia. Quando alguma delas se perdia on era extraviada por uma Eid venga cee arecnene: “Bem, escreverei outra”, ra, tao fecundo con jardim de minha tia-avé. Soci eax cele a No Pequeno dlbum de Friedemann, ele se deu ao tra- balho de explicar, na primeira pagina, as claves, os orna- mentos ¢ os floréios prineipais. Marcara cuidadosamente os dedilhados na primeira pega, chamada “Applicatio’ em eujo inicio eserevera as palavras In novmine Jesu, em nome de quem compunha toda a sua misica, as grandes as pequenas obras, Recordo-me da alegria que Ihe causei uma vez; eu estava tocando, para dois de nossos filhos que dancavam graciosamente, uma giga de sua autoria con abriu a porta. Eu entéo the disse: — Creio que o Menino Jesus gostaria de danq melodia, B Sebastian, encaninhande-se para smi beijow. me a nuea, acrescentando: — Que lindo pensamento 0 seu, minha querida! Eu me sentia tao feliz, cada vex que um pensamento meu Ihe agradaval Além do mais aquele correspondia a realidade, Meu marido podia eserever misica bastante de- 56 lieada para Menino dé Belém, como, por exemplo, a “Ber- ceuse” do Oratrio de Natal, que a Sua Mae bem-aven- turada seguramente teria gostado de cantar para ele, bastante nobre para o Salvador no Calvario, como 0 “Cru- cifixus” da grande Missa, No final das suas primetras par- tituras, Sebastian eserevia sempre S.D.G., que quer dizer Soli Deo gloriae,ou seja, “Gloria 86 a Deus". Compés para Friedemann muitas InvengGes, a duas e a trés vozes, mais tarde reunidas em um volume a que deu o nome de Guia sincero que ensinard aqueles que gostam do cravo, ¢ parti- cularmente aos que tencionam dedicar-se ao sew ensino, um méiodo claro para conseguir tocar corretamenie duas vores, e.em seguida, depois de ter progredido, a executar corretamente irés vores ligadas; ao mesmo tempo, este guia thes fornecerd ndo apenas boas invencdes, mas a maneira de executdlas bem, possibilitando a eles sobre- tudo alcangar uma execugdo harmoniosa, e enfim thes dard um antegosto sério da arte da composiedo. Dados os esforgos e eutdados prodigalizados por Se- bastian, nao é de admirer que seus dois filhos mais velhos se tenham tomado miisicas tao notaveis: Friedemann, 0 methor organista depois de seu pai, e Emmanuel, o maior cravista do seu Lempo, e compositor extraordinariamente dotado, Quando nes easamos, em 1721, Friedemann tinha onze anos, Emmanuel, sete, 0 pequeno Johann Gottfried, seis ¢ a querida Katharina, dois mais do que Friedemann. ‘Desse modo, tive, desde logo, toda uma pequena familia de que devia me ocupar maternalmente, Seguindo o born exemplo de Sebastian, as erlancas logo gostaram de mim fe comecaram a confiar-me suas pequenas alegrias e des- gostos, se bem que Friedemann, o mais velho dos rapazes, ‘que 32 considerava 0 companheiro responsayel de seu pai, fosse & principio um tanto reservado, Eramos muitos fe- 56 lizes todos juntos, mas nossa felicidade atingia o auge quando conseguiamos roubar Sebastian a seus deveres da corte, 4s suas composigées @ ensaios, para convencé-lo a. fazer’ um passeio conoseo, Entao coloeavamos comida num cesto ¢ famos nos instalar 4 sombra, fora da cidade, Ele se divertia com os filhos, Tibertava-se do gibao e eom- portaya-se também como uma crianga; todos nés riamos muito e comiamos ainda mais, o que fazia com que eu do concebesse semelhantes excursdes sem provis6es espe- cialmente nutritivas. Sentia-me tao moca como as criancas, e esquecia muitas vezes, creio eu, a atitude que deve con- servar uma mulher easada, porque quando Sebastian estava de bom humor, gracejador € brincalhao, fazia-nos rir até ‘as lagrimas. Depois, quando os meninos comecayam a fiear um pouco fatigados eo pequeno Johann vinha se encostar em meu joelho, Sebastian contava-nos histérias, lendas que aprendera na infaneia, em Bisenach, ou, o que ‘me era ainda mais agradavel, fatos verdadeiras sobre Santa Eligabete ou Martinho Lutero, A hora do crepusculo voltéva- mos para casa, e depois de ter deitado as criancas cansadas, eu me sentava, fatigada também e muito quieta, ao Indo de Sebastian, com minha mao nas suas e a cabeca em seu ombro. Deus nos ofereceu em Céthen dias de grande feli- cidade. Nao tardei, porém, a conhecer uma felicidade ida, maior, Fol-me dado um filho, 0 primogénito, de que uma mulher jamais esquece a vinda, As flanelas j4 estavam sendo aquecidas diante do fogo quando minha boa velha enfermeira deixou entrar Sebastian. Parecia um pouco agitado, entretanto disse-me com alegria: “Minha querida Magdalena, todas as senhoras Bach siio mies felizes!...” E de siibito, envolvendo-me ternamente em seus bracos, acrescentou num tom diferente: “Meu pobre cordeirinho, i) como tenho pena de vocé, que vai sofrer tanto, agora!” Essas palavras, pronunciadas com tanta docura, foram pare mim um consolo até 0 momento de dar & luz, Tivemos ao todo treze filhos. Deus nos abengoou gene- rosamente e me tornou tao fértil como a vinha que gal- gava os muros da nossa casa. Que bom pai de familia ele eral Como me parecia grande e digno, sentado a cabeceira da mesa, cereado dos filhos e filhas, entre 0 seu querido Friedemann e eu, que inantinha nos joelhos o “altimo nas cido experimentando os dentinhos num pedago de pao! Uma certa expressdo de austeridade Ihe sombreava as vyezes 0 rosto, mas desaparecia completamente quando se via cercado de sua familia; mostrava-se entdo alegre e afe- ‘tuoso, interessando-se por tudo o que Ihe diziamos; a his- téria mais insignificante do menor dos meninos nao o dei- xava indiferente. Todos tinham por ele as atengdes © 0 respeito que os filhos devem naturalmente ao pai, mas nesse amor filial havia menos temor do que costuma haver, cde modo geral. Por estranho que isso_paroga, posso afir- mar que jamais Sebastian ergueu a mao para qualquer de seus filhos. Apesar da sua bondade, meu pal batew-me miuitas vezes quando eu era menina, Nossos amigos acha- yam que acabariamos por estragar as crlangas com tanta indulgéncia, ¢ eu mesma tenho me penguntado se os erros de Friedemann, que tinha um temperamento dificil, nao serio em parte devidos 4 falta de castigo. Quanto aos outros, bastava a vox grave de Sebastian ¢ um brusco frana de sobrancelhas para que obedecessem. Certa vez em que Friedemann Ihe havia deliberada- mente mentido, Sebastian mostrou-se tao contrariado que durante um dia inteiro néo Ihe falou e nem sequer olhou para ele. Friedemann errava pela casa com um ar Kigubre, © 0 desgosto pesava sobre todos nés, porque eu nio podia 58 respirar livremente quando via Sebastian infeliz, JA no fim do dia encontret o rapaz de brugos na cama, chorando amargamente. Disse-lhe, entéo, pensando sem querer na parabola do titho prédigo: — Friedemann, por que yocé nao vai pedir perdio a seu pai? — Ah, méezinha — respondeu ele, chamando-me pela primeira vez assim —, tenko medo! — Venha comigo’— insisti; — iremos juntos. Ile se ergueu, entdo, da cama, ¢ com 0 rosto marejado de légri- mas encaminhou-se para junto de Sebastian. Eu entao co- mecel a falar: — Viemos dizer-Ihe que estamos muito sentidos. Mas Friedemann jf se laneara ans pés do pai e ocultava © rosto eontra seus joelhos, Todos choramos um pouco, e Sebastian ¢ eu nos olha- mos sorrindo, por causa das nossas lagrimas; ele beijou o fitho, e todo o aborrecimento desapareceu, Nao foi essa, infelizmente, a viltima vez que Friedemann contrariou 0 pai; era extravagante, irritavel, ¢ tinha uma tendéneia ne- fasta para a prodigalidade, no que bem pouco se asseme- Ihava a Sebastian, sempre tao previdente e prudente nas ‘questdes de dinheiro. Mas era brilhante, muito vivo © muito inteligente. Seu irméo, Carl Philipp Emmanuel, com o rosto redondo e os olhos castanhos, tinka um tempera- mento absolutamente opasto, sem oscitacées de humor, @ era trabalhador, Era um miisico quaso tio bom quanto Fri demann, mas nele se podia depositar maior conflanga, Ape- sar de todas as contrariedades nao tardei a notar que uma inclinago natural fazia Sebastian pender para Friedemann, muito embora meu marido fosse Justo demais para deixar transparecer alguma preferéncia 59 Imagino que um pai é sempre particularmente atraido pelo filho mais yelho, ¢ esse pensamento muitas vezes me dava um aperto no coragéo, quando considerava que ne- nhum de meus fithos poderia ser o primogenito de Sebas- tian; mas quando vi a minha pequenina Christiane Sophie em seus bragos eu me senti bastante orgulhosa ¢ feliz para repelir essa idéia, Como todos os Bach e como Lutero, que ele amava e respeitava, Sebastian era profundamente ape~ gado @ familia e se sentia muito feliz na companhia dos filhos. Para dizer a verdade, acontecia-lhe as vezes irri- tar-se quando faziam muito barulho com suas brincadei~ ras, sobretudo quando ele tinha a cabeca tomada pela misica, Eu empregava todos os meios para sossega-los, mas nem sempre conseguia, ao passo que a Sebastian bas- tava assumir um ar zangado para que todo o alarido se reduzisse a um murmério abafado, Contudo, raramente se encoreligava com eles, Muitas vezes me admirei a0 vé-lo compor e escrever mfisica em meio as crises de choro e a0 balbucio das eriangas, exatamente como se estivesse sozinho no mundo, Quando uma delss, chorando, nos acordava no melo da noite e precisava ser embalada ou alimentada ele jamais se impacientava. Apenas me pedia para entoar uma melodia bonita, a fim de que “todos nos beneficiemos da cancio de ninar”. Para esse fim, compés uma nova melodia sobre a letra da adoravel eangao de Lutero, que fala do ‘Menino Jesus sendo ninado num bergo improvisado com palha, Quando eu a deeorel ele rasgou 0 manuscrito, dizen- do que a escrevera somente para mim, e que ela nao teria. nenhuma vida caso fosse cantada por outra voz. Uma vez que Sebastian desejou que ela morresse comiigo, néo a quero transereyer, mas aeho-a tao linda que a idéia de vé-la desa- parecer me entristece, Quando minha eangao nao conseguia acalmar a crianga ele proprio a tomava freqiientemente nos 60 bragos, acarinhando-a até que ela adormecesse. Notel que as erianas sossegam mais depressa nos bragos dos homens, sem diivida porque estes Ihes dao uma sensacao de segu- ranga, Um homem segura uma erianga com muito mais firmeza do que nés, as mulheres, talvez porque tenha mais receio de deixi-la cair; © como as eriangas gostavam de sar seguradas por ele, eu adorava vé-lo com um dos filhos no colo. Muitas vezes me vieram aos olhos lagrimas de felicidade ao ver a sua grande alma inclinar-se para uma coisa tao fragil como um bebé de um més, As linhas que escreveu no primeiro exemplar da partitura dos Klavierit- bungen’,dedieando-a ao herdeiro reeém-nascido do principe de Anhalt-Cothen, bem mostram os sentimentos quo nutria pelos pequeninos. De cardter muito paternal, Sebastian pensava eons- tantemente em seus filhos, trabalhava no interesse deles e se ocupava da sua educacao. Alimentava mais ambigles para eles do que para si proprio. Fregtientemente me tratava também do modo como teria feito um pai carinhoso; era compreensivo, forte, ¢ fol para mim um verdadeiro reffigio quando do desgosto que experimentei pela morte do meu primeiro filho. Que tristeza, perder essa crianca que apenas tinha trés anos, de olhos azuis © cabelos de ouro pilido, no momento em que cla comecava a falar téo graciosa- mente! Entretanto, na sua dor, Sebastian s6 se preocupow eomigo, e creio que nessa ceasido, no momento da minha primeira grande tristeza, acabei por amé-lo ainda mais profundamente, se ¢ que’ Isso era. possivel Mas em Céthen apenas nasceu a pequenina Christiane Sophie; os outros s6 vieram A luz em Lelpzig, de modo que 4 Obras instruments composts eee 1TH A739, dintrbuidas oon 8s volumes (Nd RY 61 ainda uma vez avancei demais na minha narrativa, Como ja contei, estévamos havia mais ou menos um ano em Cothen quando Sebastian percebeu que o principe se desin- teressava da misiea a ponto de se tornar impossivel para ele conservar 0 posto de mestre de capela. A corte de Céthen nao lhe oferecia as posstbilidades de que tao imperiosa- mente necessitava, pois se via privado de qualquer mésiea sacra, seu unico trabalho eonsistindo em fazer musica de cémara, Foi em Céthen que inventou e mandou construir, para preencher uma lacuna, um instrumento a que deu ‘0 nome de viola pomposa, que tinha cinco cordas e estava ‘a meio caminho entre o violino e o violoneelo; para seu uso escreveu uma suite, Ele proprio tocava violino e viola; seu pai, Ambrosius Bach, que nunca cheguei a conhecer, mas cujo retrato pintado a leo estava pendurado no lugar de honta do nosso salfio, ensinara-Ihe o primeiro desses ins- trumentos, Sebastian foi durante anos violinista na orques- tra do duque de Weimar, quando, porém, para seu proprio prazer organizava quartetos de cordas, preferia reservar pa- ra sia parte da viola, Ficava, assim, digia ele, no centro da harmonia, e podia ver melhor, ou, para ser mais exata, ouvir o que s¢ passava a sua esquerda e a sua direita, Em Cothen esereven, como era de esperar, dadas as suas fungées, muita musica, para cordas, Compés também uma série de pequenas pecas para cravo, que tods os miisi- cos sérios admiram, e deu a essa coleeao de vinte e quatro preltidios e fugas o’nome de Cravo bem temmperado, Bscre- veu-os “para proveito € uso dos jovens mitsicos desejosos de se instruir, e para passatempo daqueles que jé tem habilidade”, |Evidentemente era necessdrio estar j& bem adiantado para tocd-los como divertimento, pois na sua maioria sio extremamente dificeis de executar, exigem um estudo aplicado e toda a atengdo de um espirito amadu- 62 recido, Nao obstante, os melhores alunos de Sebastian sempre me repeliram que experimentavam cada vez mais prazer ¢ satisfagao intima 4 medida que mergulhavam nesses preliidios ¢ fugas, ¢ que os estudavam com mais freqiiéneia e mais eonscientemente. Quanto a mim, que nao dispunha da técnica requerida para a sua execucao, sempre tive um prazer inexprimivel em ouyi-los tocados por Sebastian. A precipitada corrida das notas sob seus dedos em alguns des preliidios (ele apreciava imenso os tempi rapides), 0 maravilhos> entrelagado das diferentes vores nas fugas, cada qual aparecendo tao individual e clara, ¢ todas, nao obstante, tao confundidas numa indis- soliivel unidade... ah, ninguém soube jamais reproduzir com tanta plenitude o sentido da misica contrapontistica! ‘Muitas vezes Ihe pedi que tocasse para mim, quando © via dispor de alguns minutos, um prelidio e uma fuga, ou, se fosse possivel, dois. “Vocé vai acabar por fazer dé mim um mésico destemperado, se néo me deixar em paz ‘com esse cravo bem temperado!” disse um dia para implicar comigo, envolvenddo-me a cintura com seu brago esquerdo. Bu estava de pé ao lado dele, Comecou a tocar uma fuga com a méo direita, e quando velo a segunda voz ndo quis, me soltar; executou a fuga até o fim mantendo-me prisio- neira no cireulo de seu braco. “Af est”, exclamou rindo, depois de ter dado 0 wltimo acorda, “ai esta o que voce merece por ser tao gulosa de fugas!” Que felicidade, ser a mulher de Johann Sebastian Bach quando se é gulosa de fugas! Devo confessar, todavia, que nao era avida de todas; algumas me pareciam secas © pouco musicais, mas nunca as de Sebastian, que séo sempre frescas, brilhantes e alegres como a agua corrente; tristes, meigas ou solenes, como por exemplo o preliidio ¢ a fuga em mi bemol menor. 63 Por essa época o destino de meu marido levou-o & deixar Céthen e a misica de edmara para conduzi-lo a Leipzig, onde devia passar os tltimos vinte ¢ sete anos de sua vida € compor a maior parte da sua misiea sacra. O velho kantor da Escola de Séo Tomas acabava de morrer, e uma das razGes que levaram Sebastian a ambicionar esse posto, além da crescente indiferenca do principe e de sua corte pela mésica, foi o fato de que Leipzig oferecia maio- res possibilidades para a educagéo de seus filhos mais velhos, que jé lam se tornando crescidos. No que Ihe dizia respeito, linha mesmo algumas concessdes a fazer, tal como, apés sua instalacao, expds em carta enderecada a um yelho amigo, Georg Erdmann, que estava na Rissia, e que fora ‘sen colega na escola do convento de Liineburg. Leu-me em vyo2 alta algumas passagens dessa carta, antes de envid-la ‘Expunha ao senhor Erdmann as razdes que o tinham levado ‘a deixar Céthen, onde se propusera passar toda a vida, € dizia nao ter sido desde logo seduzido pela idéia de se tomar kantor na Escola de Sao Tomas depois de ter sido mestre de capela na corte de Céthen, mas que depois de ter pesado os pros e os contras durante trés meses e de ter considerado as vantagens que Leipzig oferecia a seus filhos, resolvera-se, com a ajuda de Deus, a tentar a mudanga, Iv Onde ia eng Sabon into em Lape conor tna de aga atom Camps at cantatas © 08 notte © como, apes de ton trove humus, continuo Patancinene ar A mudanga de lugar e a instalagio numa nova resi- Géncia causarm-nos sempre uma certa impressio. Como é dificil prever o destino que nos espera entre essas quatro paredes! O nascimento € a morte foram nossos héspedes na casa do kunior: 0 naseimento de numerosns fithas, 2 morte de alguns dentre cles, ¢ por fim a de Sebastian, que deixou o mundo tio vazio para mim. Quando chegamos 2 Leipzig, na dltima semana de maio de 1723, com todos os mdveis e a nossa jovem familia, © atingimos 2 porta da casa do kunior, Sebastian foi primeiro a saltar do carro, ¢ cuidou, segunda o velho cos- tume germinico, de me earregar para atravessar a soleira da minha nova residéncia, “Vocé é quase uma recém-casa- da”, disse, beijando-me enquanto nos eneaminhAvamos para a porta, Sua filha, a linda Dorothea, entrou atras de nés, levando ao colo a pequenina Christiane. Sebastian surpreen- deu o olhar que dirigi A menina. “Mas decerto, ainda que venha a ter vinte filhos, voce parecer sempre a meus olhos como no dia do nosso easamento!” F realmente posso dizer — agradecendo de todo coragao a Deus — que durante os nossos trinta anos de casados Sebastian foi nao somente um marido mas também um apaixonado. Quando envelheei e meus cabelos se tornaram grisalhos ele nem parece per- 65 cebé-lo. Somente uma vez fez esta observacio: “Seus cabelos, que resplandeciam com o sol, tém agora a clari- dade da lua; 6 uma luz bem preferivel para o par ce namorados que somos”. ‘Nao é, pois, de admirar que eu o tenha amado tanto, © estivesse sempre a espreita de seus olhares @ de suas palavras para os encerrar em meu coracao. Como dizia Caspar, quase nada esqueci. Freqiientemente so os meno- res detalhes que ficam melhor gravados na meméria de una mulher; talvez o meu ‘iltimo pensamento, antes de deixar este mundo, nao seja para o dia do meu casamento, nem para o nascimento do meu primeiro filho, nem mesmo para a morte de Sebastian, mas para esse serio em que tocando uma fuga ele me manteve prisioneira em seu abrago, ou para o dia em que me carregou para transpor a soleira da minha nova casa. ‘A moradia do kansor, & sombra da igreja, fazia parte da Escola de Sao Tomas. Com seus dois andares, constitula uma ala da construgSo. Linda e confortdvel, em breve ficou pequena, pois em oito anos nossa familia aumentou de ‘modo eonsideravel. Ento nos instalamos provisoriamente no moinho, enquanto se acrescentava mais um pavimento & nossa casa, A nova arrumagdo proporcionou-nos, além de outros quartos, mais uma lindissima sala de mtisica, ligada por uma passagem ao grande salao de aulas da ‘Hseola de Sao Tomas, 0 que constituiu um arranjo muito edmodo para Sebastian. ‘Antes de ser definitivamente investido no cargo de kantormeu marido precisou comparecer diante do Consetho de Leipzig prestar o juramento de preencher as suas fun- des com zelo € fidelidade. Teve de prometer respeitar as Clausulas de umn longo contrato de que vou transcrever aqui 88 filgumas passagens, pois esse documento teve um papel importante em sua vida. _1.9 — Estimular os alunos, por meio de bons exemplos, a viver ¢ a se comportar sobria © modestamente, Observar 8 horérios com toda a pontualidade e ministrar o ensino conscienciosamente. 2° — Fazer todo o possivel para melhorar a musica nas duas principais igrejas da cidade. 5.° — Nao admitir na escola nenhum aluno que jé nia tenha uma certa base ou néo mostre aptiddo suficiente para aproveitar a instrucdo musical; ndo o fazer arbitra- riamente e sem a aprovacéo dos senhores inspetores & diretores. 6.°— A fim de poupar as igrejas gastos indteis, ensinar conscienciosamente aos alunos no apenas a misica vocal, mas também a instrumental, 71° — Para a boa ordem dessas igrejas, fazer com que 8 parte musical néo seja muito longa, cuidar para que ela nio assuma um cardter teatral, mas, pelo contrério, seja para os ouvintes um incitamento & devocao. 9° — Tratar os alunos com simpatia © respeito; em caso de desobediéneia, puni-los com moderacdo, ou comu- nicar 0 fato a quem de direito. 10° — Ser consciencioso ao ensinar na escola e¢ 20 preencher qualquer outro cargo da minha competéncia 11.6 — Se néo puder preencher algum desses cargos, providenciar minha substituigao por uma pessoc. comne- tenite, sem causar ao Consetho ou A Escola qualquer dest esa suplementar. 12° — Nio deixar a cidade sem licenga do senor burgomestre. or Como se vé, tornando-se kantor em Leipzig, depots de ter sido mestre de capela em Cithen, ele tinha de fazer algumas concessoes & liberdade e & dignidade. Mas Sebas- tian pesara os prés e os contras, fizera a escolha € por isso nao 2» arrependeu. . Na segunda-feira, 31 de maio de 1723, As nove horas da mani, foi investide nas suas fungdes de kantor na Escola de Sao Tomas, iniciando assim sta vida de trabalho em Leipzig. Os encargos, consideraveis, ndo eram todos do seu agrado, Tinha, por exemplo, a obrigagao de ensinar latim, mas Aguela altura so pensava no belo e poderoso ‘érgio de que dispunha. ‘Ainda nao fazia uma hora que estdvamos em casa, com tudo por ser arrumado para podermos so mencs dormir ali naquela noite, e ele j4 me chamava: “Venha, Magdalena, quero Ihe mostrar o érgio..." Eu nunca tinha visitado Teiprig antes de ir morar 14, pois nao podia deixar em Céthen nosso filho cagula, e preparava-me para examinar ‘minha nova casa, a fim de resolver como a poderia arrumar, quando meu marido veio me chamar para ir ver 0 seu Srgdo, Ora, eu sabia — e o céu me perdée esse pensamento tio terra-a-terra — que s¢ ele tivesse vontade de tocar eu Jevaria algum tempo para estar de volta. Hesitei um mo- mento, percebendo bem que ndo era essa a hora de orgaos, mas ele me tomou a mao: “Venha”, disse com impaciéncia, “a igreja é aqui mesmo”. Segui-o, pois, ¢ me sentei no banco ao lado dele, enquanto o via puxar os registros € encher 0 espaco de miisica divina, Néo pensei mais nas camas por fazer nem na casa em desordem, Com a sua misica Sebastian me fazia esquecer, quando queria, as coisas deste mundo. Ele deveria ainda tocar tantas obras magnificas na Igreja de Sao Toms que em breve ela passa- 68 ria a me ser familiar; mas nessa altura, toda agitada ¢ desprevenida, era a primeira vez que ouvia o seu érgao. Na realidade a igreja tinha dois; um pequeno, acima do coro, muito antigo, pois datava de 1489, e um grande, em que’ Sebastian tocou para mim, testado e reformado dois anos antes. Mas 0 mais belo dos érgios de Leipzig estava na igreja da universidade, Era nese érgao que Sebastian tocava para seu prazer ou o de seus alunos. Completamente novo, fora eonchaido quando meu marido ainda estava em Céthen. Tinham-no’ convidado para vir experimenta-lo, 0 que ele fizera sem adivinhar que suas méos muitas veres haveriam de pousar naqueles teclados. Em seu relatério, considerara que o manoj era muito dificil, que as teclas desciam muito, e que os tubos mais bbaixns soavam muito asperamente, nao produzindo 0 som puro ¢ firme de que ele gostava. Mas quando era ele que tocava nao se notava nenhum desses problemas. Sua habi- lidade e delicadeza para com os érgios mais defeituosos era tal que eles pareciam amé-lo e rejuvenescer sob aquelas méos maravilhosas, dando-Ihe o que tinham de melhor e mais doce Nossa vida em Leipsig devia desenvolver-se dentro das normas da Escola de Sao Toms, Sebastian nao podia deixar a cidade sem pedir licenca ao burgomestre. Nos primeiros tempos nao pude deixar de lamentar a perda da liberdade que gozévamos em Céthen, onde nosso tinico cuidado era agradar ao principe, tao amavel ¢ indulgente. Além disso, confesso que tinha tm certo receio das senhoras de Leipzig ¢ do yelho © douto reitor. A categoria de kanior vinha imeciatamente apés a de reitor e a de vice-reitor da Escola de Sao Tomas. Esses trés e o professor de latim eram os quatro mestres superiores do estabelecimento, Na qualidade de Kantor Sebastian devia dar aos rapazes ligdes de canto 69 latim; esta Gltima obrigagdo néo Ihe agradava, porque, apesar de ser bom latinisia, nao estava acostumado a ensi- nar essa lingua, Mais tarde deu a um dos seus colegas cinglienta téleres por ano a fim de se desobrigar da tarefa, Era para nés uma despesa pesada, certamente, mas neces- raria, porque o ensino do latim irritaya-o bastante, Muitos professores, por outro lado, eram capazes de se desincumbir dessa tarefa, ao passo que somente Sebastian podia escrever preliidios para drgio ¢ cantatas de Natal. Alémn das suas ligdes e de certos deveres de vigilancia © Kantor devia levar os rapazes & igreja todas as quintas- feiras de manhé, as sete horas, ¢ fazé-los ensaiar a misica para o domingo, Era-Ihe também necessario assistir aos ensaios dos sdbados além de provideneiar e ensaiar as miis!- cas para as procissoes de Séo Miguel, do Ano Novo, d® Sao Martinho e de Sao Gregirio. Além disso, todos os domingos na Tgreja de S40 Tomas ou na de Séo Nicolau se executava um motete ou uma cantata, pelos quais era responsivel; devia ainda dirigir a mtisica das igrejas de Sto Joao e de ‘Sao Paulo € cuidar dos seus érgaos. Estava, portanto, afo- gado em trabalho. Sem contar que, apesar de ndo ser organista oficial de uma das quatro igrejas de Leipzig, aqueles que gostavam de ouvi-lo ao érgio sabiam que fre~ qilentemente ele tocava 14. Mas ao tocar ele esquecia as fadigas ¢ as preoeupagoes da semana, | Quando Sebastian se tornou conhecido em Leipzig ¢ nos arredores, as pessoas vinham amitide bater & nossa porta para lhe pedir que tocasse alguma coisa. Meu marido atendia de boa vontade a essas solicitagdes quando achava que elas eram feitas por amor 4 mitsiea, e nao por simples curiosidade, Certo dia abri eu mesma a porta a um desses visitantes, homem de estatura muito alta, e vi logo que 10 we tratava de um inglés, Acabava de chegar de Hamburgo, onde tinha negécios; era grande amante do Grgio, ¢ j4 linha ouvido falar de Sebastian. Mostrou-se muito amavel, muito polido, ¢ Sebastian apreciou-o tanto que tocou érgao para ele durante quase duas horas, levando-o depois & nossa asa para que jantasse conosco. A prinefpio fiquei um pouco contrariada, porque nao tinha nada preparado € percebia que nosso héspede devia estar habituado a comer bem, Mas ele pareceu gostar de tudo o que Ihe oferecemos. Apos © jantar, e depois de ter dado a sua cachimbada com. Sebastian, tornou a pedir-Ihe que se sentasse ao cravo. Meu marido tocou de boa vontade, ¢ improvisou um trecho encantador, que mals tarde anotou, a que demos o nome de Suites inglesas, em homenagem ao nosso héspede, ¢ porque Sebastian tirou depois alguns ritmos de um Album de Charles Dieuport, que vivia na Inglaterra. Nunca mais tornamos a yer esse viajante, mas ele nos enviou um grands pacote de livros e partituras, entre as quals as suites de Dieuport e uma série de obras de Handel, “em homenagem’ escreveu, “ao mestre do orgao”. Sebastian interessara-se muito pelo que esse inglés the dissera do sr. Hand de Londres. Nunca pude compreender como é possivel larmo-nos voluntariamente da nossa boa SaxOnia para ir viver numa ilha tio sombria; 6 verdade que os ingleses sao um povo muito rico ¢ que o senhor Handel ganha muito dinheiro 14, Nosso héspede varias vezes 0 onvira tocar ‘nga em Londres, na grande igreja — sera uma catedral? — de Sao Paulo; falou-nos da maestria que todos re- conheciam em Handel, e de sua impaciéncia por empreen- der a viagem a fim de ouvir 0 tinico organista que, segundo Ihe tinham dito, merecia ser eomparado ao “Saxo”. Mas depois de ter ouvido Sebastian, voltou-se para mim, indli- nou-se e disse 1 — Se me dé licenca sra. Bach, digo-lhe que entre todos os organistas conhecidos do mundo inteiro — ¢ nao sto poucos os que tenho ouvido — nenhum iguala seu marido. — Bem o sei, senhor — respondi, fazendo uma reve- réneia, — Se conhecesse melhor minha mulher, meu caro senhor — disse Sebastian rindo —, eompreenderia que ela nao tem nenhum julgamento critico no que se refere a mim, Acha que sou o maior misiea da Europa! Nao €, ‘Magdalena? — o bateu afetuosamente em meu ombro. Eu estava sentada mum tamborete a seu lado, onde costumava instalar-me para ouvi-lo. a — B perfeitol — disse o inglés sorrindo, — Nao é muito freqliente os grandes mestres verem seu valor devi- camente apreciado em casa. — E de quem é a culpa? — Sebastian respondeu, lan- cando-me um terno olhar — eles deviam refletir mais ao escolher suas esposas. Esse inglés ndo fol senio a guarda avangada numerosos visitantes que deveriamos receber em Leipzig, sobretudo nos tiltimos anos da vida de Sebastian. Quase todos os amantes da musica que passavam pela cidade vinham nos visitar, sendo meu marido muito hospitaleiro. Logo nos ptimeiros anos de nossa mudanga, a sua categoria ofielal de Kantor colocou-o em relagdo ‘com um nomero de pessoas muito maior que 0 das que estavamos habituados a yer em Céthen, Orgulhosa de ser 2 esposa de Johann Sebastian Bach, fiz tudo quanto estava a0 meu aleance para que a aparéncia da nossa casa nao o desine- reeesse perante os estramhos. Possuiamos uma série de belas eadeiras de couro negro, um par de grandes candelabros de prata e um outro de peguenos, e ainda seis em metal amarelo fosco, de feitio 2 muito lindo. Por ocasiéo do nosso casamento meus pais haviam me dado um velho armério de carvalho ricamente escullpido, onde eu conservava meu vestido de nolva. Mas dentre tudo o que possufamos, a minha preferéncia ia natu- ralmente para o retrato que Sebastian, cedendo aos meus pedidos, mandara fazer por ocasiio do nosso casamento. Nstava admiravelmente desenhado; 0 lépis do pintor fixara 8 gravidade e a intensidade do seu olhar quando pensava, quando olhava as pessoas, ou antes: quando olhava através delas, jé nao notando a sua presenca. Nos primeiros tempos essa expresso assustara-me wm pouco, mas em breve com- preendi que a voz da mitsiea clevando-se em sua alma é que the dava aquele olhar. pintor colhera igualmente a linha exata das sobrancethas ¢ a curva da boca, tao sensi vel, to boa, cujos cantos se alteavam quando ele ria, anu- Jando o temor que seu olhar parecia causar. O queixo era saliente e os dentes ajustavam-se perfeitamente, a2 passo que na maioria das pessoas os do maxilar superior avangam sobre os do inferior; essa particularidade dava-he um aspecto muito enérgico e tornava seu rosto diferente do as outras pessoas, que, a seu Indo, pareciam hesitantes, Esse retrato era o meu orgulho, no saldo. Certa vez em que eu estava limpando a sua moldura Sebastian aproxi- mou-se e disse, brincando: — Vocé nao acha que poderiamos colocar af alguma coisa mais interessante? — Impossivel — respondi precipitadamente, sem pen- sar no que dizia, Uma das coisas que mals alegrava Sebas- tian era ver-me levar a sério as stias zombarias, 0 que infelizmente acontecia com a maior freqiténcia, Por isso, acrescentou, indo e beliseando-me 2 orelha: — Eu nunca me considerei um homem bonito, mas conhego alguém que é muito mais, e tenho mesmo a inten- 73 cdo de mandar fazer o seu retrato, a fim de ter eu também uum quadro para olhar enquanto voc’ contempla o seu formoso kantor. Foi assim que, por bondade; Sebastian encomendou a um artista italiano chamado Cristoforri, que morava em Leipzig, um retrato meu, a leo Meu marido vinha muitas ‘yexes da Escola de Sao Tomas para verificar os progressos do quadro, @ dizia: “Nao, voce ndo acertou a cor exata das faces”, ou “nfo gosto da linha do queixo”, até que um dia o pintor respondeu, um tanto humilhado — Signor Bach, nunca tentarei ensinar-lhe como se escreve uma cantata, e uma vez que confiou em mim, encomendando-me o retrato da signora, quero pinti-la ‘como melhor entender, — Naturalmente — respondeu Sebastian, achando graca. — Naturalmente, mas voce néo pode eonhecer 0 Fosto da Frau Kantor tio bem quanto eu. Terminado 0 retrato, ficou satisfeitissimo € pendurou-o na parede ao lado do seu. Nos primeiros tempos pareceu-me um pouco extravagante possutf-lo, pols bem poucas senhoras da nossa sociedade haviam sido retratadas, e eu néo podia deixar de ver nisso uma excentricidade. Mas essa prova visivel de que Sebastian estava satisfeito com sua esposa era o bas- tante para mim, e eu me orgulhava e me sentia feliz contemplando essa jovem senhora, a Frau Kantor Bach, sorrindo ao lado de seu marido. ‘Um outro indicio do seu amor e da sua bondade foi o novo Album de misica que me deu nessa época. Estava primorosamente encadernado em verde, e na capa Sebastian escrevera com sua letra 0 nome ea data de 1725, em ouro com tinta da China. Disse-me que iriamos encher juntos esse Album; eu copiaria ali 2 misica que me agradasse € ele me comporia novos trechos. Por essa ocasido, gragas 4 ‘No seu ensino cheio de paeiéneia ¢ de bondade, eu fizera alguns progressos ¢ era muito mais habil do que quando ele me dedicara o primefto album. As vezes, no fim do dia, quando Sebastian tinha um instante de repouso e se sentia bem disposto, sentava-se & mesa grande, aproximava uma eandeia e dizia, tomando a sua pena de pato: — Va buscar 0 seu album verde, Magdalena; acho que ¢le nao contém senao misica velha, que dé tédio tocar. Quero escrever um novo trecho que voce poderd estudar. eu me apressava a ir buscar o Album, para que suas paginas pudessem receber o tesouro. Como eu gostava esses longos serdes de outono e de inverno, quando as eriangas, acanchegadas em seus leitos, dormiam, ¢ Sebastian ¢ eu, sentados ao lado um do outro, copiavamos musica! ‘Trabalho nunca faltava, pois era necessario preparar as partituras das diversas yozes para as cantatas do domin- go. Com duas candeias entre nés (eu aplicava sempre o maior euidado em espevitd-las, para que a paquena flor de luz nfo fosse prejudicada por qualquer fragmento es- curo), trabalhavamos em siléneio, Eu me silenciava, por- que a0 copiar com sua bela mao Agil (sua escrita tinha aos meus olhos uma expressio an mesmo tempo viva, justa apaixonada) as partituras de Buxtehude ou do ‘senhor Handel (cujas composigées eu admirava muito, mas nao achava comparaveis As suas, apesar de serem eheias de mérito), ou as proprias obras para os scus alunos, muitas ‘vezes a inspiracao The vinha. Apanhava entéo as folhas Cestacadas © pautadas que eu colocara ao aleance da sua mao e lancava nelas algumas notas dessa miisica inesgo- tivel que Ihe cantava no cérebro, ‘Meu pequeno Album ia se enchendo, assim, de cantos e corais; um deles perturbou-me to fortemente que a prin- efplo nao pude canté-to, de tal modo a minha voz tremia: ® “Se estiveres em minha companhia eu irei alegremente para a morte e para o descanso, Como seria agradavel o meu fim, se as tuas mans formosas ¢ figis me fechessem os olhos de manso! ‘Ab, Sebastian, como voeé era bom, € quanto me amava! Fle gostava muito de se referir & impossibilidade em que se via de eserever um canto de amor que nao fosse inspirado por mim, 'f é assim”, disse-me um dia, seritando-me em seus joe- thos, “que esta mulherzinha me impediu de compor todos ‘os lindos cantos de amor que suspiram cs apaixonados ausentes, todas as baladas melancélieas que fazem chorar as damas da corte; como é que um kantor satisfeito poderia escrevé-los com a sua roulher nos joelhos? & preciso que en me reporte go tempo antigo, ¢ imagine que seus pais estao negando 0 consentimento para a nossa unido, pois tenho na cabeca uma molodia que exige um ou dois versos tristes” No dia seguinte apresentou-me uma cangao, uma cangao cheia de amor, que havia composto sobre estes versos Se me quiseres car teu coracio, f4-lo em segredo, de maneira que os nossos pensamentos permanecam ccultos. O amor deve ficar escondido no mais recdndito de nés mesmos; ‘As maiores alegrias que tiveres, guarda-as em tua alma 70 Nao te peco nenhum olhar, ~ mew amor. “A inveja teceu muitas perfidias Sobre a nossa uniao Amordaca 0 teu desejo € prende o teu coracao, Esta felicidade que gozamos depende do segredo que guardamos, Bem compreendo a que ponto fui privilegiada entre todos os habitantes deste mundo, A misica que Sebastian escreveu, do nosso casamento até a sua morte, estd tio intimamente ligada & minha vida que nenbuma outra pes- soa poderd dar-Ihe, jamais, o valor que ela tem para mim, Vi-a nascer, li-a antes que nenhum outro olhar humano @ tenha podido contemplar, e 0 préprio Sebastian me falou dela © me explicou 0 que eu no compreendia. Quantas vozes fui me sentar em seu quarto, ao lado dele, quieta como um ratinho, costurando silenciosamente enquanto ele erere- via tao depressa que se diria ser Deus quem Ihe ditava cada nota, Ficava & espera do momento em que me olharia, me estenderia os bragos € diria: “Venha c&, Magdalena” E mostrava-me entiio o que havia composto. A inspiragao raramente Ihe faltava, mas algumas vezes @ misica ndo queria vir, Rabiscaya uma duzia de compassos e, resmun- ganda, riscava-os com sua pena de pato. Mergulhava entao a cabeca nas macs e fieaya imovel durante um periodo mais ow menos longo; por fim, erguia-se e dizia-me com um leve sorriso: ““Naturalmente, deve ser feito assim!”, recomecava a trabalhar. Quando Friedemann crescen e se tornou um mnisico ‘to bom, © eu, por minha vez, fui absorvida pelos cuidados ” domésticos e pelas criangas, tive de ceder-lhe alguns dos privilégios que tanto estimava; Friedemann tornou-se 0 mais {ntimo confidente musical do pai, Mas eu ainda traba- Ihava de tal modo com Sebastian que nao tinha direito de Jamentar-me; meu marido nunca esereven um fragmento que nao me mostrasse, fazendo-me compreender 0 seu pen- samento. Tenho portanto boas razGes para me sentir extre- mamente favorecida entre todas as mulheres deste mundo, pois vivi na intimidade de um espirito tao maravilhoso € fassisti & concepgaa e & criagao da sua obra, Nao tenho a pretenséo de compreendé-la inteiramente, pois para isso Seria preciso ser tao grande quanta ele, mas os anos que vivi a seu lado, as ligdes que dele recebi, de maneira direta ou indireta, nossas eontinuas conversas ¢ trocas de impres- ses sobre miisica aumentaram meu pendor natural para essa arte e deram-me enfim consciéncia da grandeza das obras que Sebastian incessantemente eriava. Agora que ele esti morto os homens esqueceram-nas ou as executam muito poueo, e fala-se sobretudo de seus filhos Friedemann e Emmanuel; mas cu nao posso acreditar que assim venha fa ser sempre, Sua misica é diversa da deles, faz-nos entrar hum mundo diferente, um mundo sereno, extra-humano, ‘onde os cuidados ¢ as preocupagdes terrestres nao tém lugar. Na esséncia dessa musica repousam a paz e a beleza Por mais cheia de afazeres que eu estivesse, com Lantos fithos pequeninos, sempre com muito poucos taleres e tanta coisa para cuidar e vigiar, — a cozinha, as barrelas, as arrumagées —, quando conseguia um instante para ouvi-lo tocar ao érgéo alguma cantata ou um motete atingis também esse lugar de paz e beleza. E somente ele podia iransportar-me para 14, A musica do senhor Hiindel, do senhor Pachelbel e de outros mais certamente bela, mas nao vem de onde vinha a de Sebastian. Talvez eu fale assim 8 Porque 0 amo, € contudo, mesmo fazendo abstracio dele € de mim, sinto, sem poder explic&-lo de outro modo, que ha uma diferenca entre a sua misica e a dos demais, Nossos primeiros tempos em Leipzig nem sempre foram ficeis. O nivel musical da Escola e da Igreja de Sao Tomas era muito baixo, e os dirigentes, refratérios a qualquer Inovacdo. Muitas vezes, depois de Ihes ter solicitado as reformas mais urgentes e de se ter chocado com sua aposic¢ao ou indiferenga, Sebastian regressava @ casa, alirava-se sobre uma cadeira, », sentando-me em seus joelhos, encos- tava a eabega em meu ombro, dizendo: “Mais vale a paz em casa e a tempestade 14 fora do que 0 contririo, nao é verdade, Magdalena?” Mas ficava freqtientemente irritado, fatigado, e me dava pena ver aquele a quem deviam deixar em paz ser atormentado por discussies a propisito de rapazes turbulentos, ¢ ter seus concertos paralisados porque © conselho nao queria substituir os instrumentos estragados ou defeituosos. Prestava-se muito mais atengao & musica de opera do que & de igroja, levavam-Lhe os melhores can- tores para a Sociedade de Miisica ¢ apenas Ihe deixavam rapazes ignorantes € indisciplinades, que haviam vieiado as vozes cantando constantemente pélas ruas. Mas Sebas- tian, como jé tive ocasiao de dizer, herdara a teimosia dos Bach; se bem que se desanimasse @ muitas vezes se deses- perasse, jamais abandonou a luta pela boa miisica e pela salvaguarda de seus direitos de kanror As difieuldades foram, entretanto, numerosas, especialmente no comeco. Nao havia dormitérios suficientes para os alunos, que viviam amontoados e com freqiiéneia contraiam moléstias de toda natureza, 0 que me fazia temer por meus filhos © sobretudo por Sebastian, que vivia em permanente con- tato com eles; eu nao duvidava, eontudo, que poderiamos evitar todas as doencas sérias gragas a um xarope preparado D de acordo com uma receita de minha tia-avé de Hamburgo, que conhecia muito bem os remédios; além disso, nunca deixava de fechar as janelas, para que o ar contaminado ndo penetrasse em nossa. ¢ =a As primeiras séries da Escola de Sao Tomas estavam cheias de rapazes grosseiros ¢ turbulentos, que vagabun- deavam descalgos pela cidade, mendigando, gritando ¢ fazendo escdndalos, especialmente na época das férias da Pascoa, de Siio Miguel e du Ano Novo, quando a escola inteira tinha uma semana de férias e a cidade era invadida por mervadores ¢ vagabundos de toda espécie, Eu sempre experimentava um desafogo quando via que as datas dessas feiras tinham passado, embora, como todas as donas de ‘casa, tivesse nelas uma oportunidade para completar e renovar meus utensilios de cozinha. Nesses dias Sebastian regressava A casa com algum livro debaixo do brago, para facréscimo da querida biblioteca a que dedicava todos os momentos de liberdade, Foi dessa maneira que adquiriu 6s obras completas de Tater, - Naturalmente as criangas adoravam as feiras, ¢ nto ocultavam seu entusiasmo cada vez que chegava a época delas; era-me dificil impedir os menorzinhos de se perderem na multiddo, e os maiores, de tocar durante todo o dia as cornetas de madeira vermelha com que massacravam os cuvidos paternos, Ndo que — como ele disse uma ves em que eu zangava com um dos pequenos por ter tocado a corneta demasiado forte e por um tempo além do tolerdvel eo som [he fosse muito mais desagraddvel que as vozes rouquenhas e crocitantes do coro dos rapazes, definitiva- mente estragadas mesmo antes de terem adquirido a pri- tica mais elementar... Poderiam os alunos conservar belas vores quando percorriam as Tuas & noite, gritando com 80 tochas na mao? Nao falo das procissdes cantadas, dos casa- imentos ¢ funerais, onde a presenca do seu kanzor, obrigan- do-os a proteger as vozes contra a neve e 0 mau tempo, thes impunha, apesar de tudo, uma certa ordem, Sebastian contava-me que as vozes eram As vezes téo roucas que Ihe parecia estar dirigindo um bando de corvos. Quando se pensa em seus motetes ¢ cantatas facilmente se imagina com devia ser cruel para ele, que muitas yezes os tinha de roger, dispor apenas de vozes tao mediocres. Decerto meu marido nao partilhava da opinido do consetho da escola, que considerava ser 0 fim prineipal das aulas de canto, depois da glorifieago de Deus, facilitar a digestéo dos alunos, © Senhor Gesner chegou mesmo ao extremo de pro- por que se atrasasse o almogo em uma hora, para que a aula de canto se seguisse imediatamente & refeicao — como se esse fosse 0 mais salutar exercieio para depois de comer; e nada demonstra melhor a pouca consideracao que se tinha pela mitsica na Bscola de Sao Toms. Quando o velho reltor Emnesti confessava que “no chorus musicus era preciso esforgar-se para evitar 0 mal, mais do que para esperar 0 bem", nao dizia sendo uma verdade. Alguns anos depois de ter sido nomeado Kantor Sebas- tian teve de redigir um relatério sobre o estado da misica na Escola de Sao Tomas, e de apresenté-lo ao conselho. Insistia na mecessidade de cada um dos coros das trés prineipais igrejas, S40 Toms, So Nicolau e Nova Igreja, ter pelo menos trés contraltos, trés baritonos, trés tenores ¢ trés baixos, para que se um dos cantores da mesma. voz {altasse, 0 que sucedia freqiientemente, sobretudo nas mis estagées do ano (0 que podia ser comprovado pelas receitas que a escola enviava A farmacia), um motete pudesse ser executado pelo menos com dois cantores em cada voz. Com relagio aos membros da orquestra, se a modéstia o impedia al de falar de suas qualidades com toda a franqueza, assina- Java contudo que varios dentre eles eram absolutamente ineapazes, ¢ os outros nao possuiam a téenica que se tinha 0 direito de esperar, "Devo fazer notar”, continuava, “que © costume, seguido até aqui, de aceitar rapaves que nao iém talento nem aptidiio para a misica causou, sem diivi- da, um rebaixamento co nosso nfvel, E facil compreender que um rapaz inapto ao ponto de ser incapaz de cantar uma segunda voz néo conseguiré aprender e tocar algo de qualidade, em qualquer instrumento. Mesmo aqueles que tém, ao entrar na escola, alguns rudimentos de misica, nao podem tornar-se viteis tio rapidamente quanto o desejaco. Seria necessério um ano de ensino ininterrupto para fica- rem aptos a prestar reais servicos. Mas sio, antes mesmo de polidos, incluidos no coro. Considerando que a cada ano alguns dos adiantados deixam a escola, ¢ evidente que 0 niimero dos pouco ou nada educados & sempre preponde- rante — e isto arruina o coral. Nao obstante, é sabido que meus predecessores, 0 senhor Schelle e 0 senhor Kuhnau, tiveram que contar unieamente com a colaboragao desses estudantes, quando quiseram preparar uma execucao mais completa e com maior sonoridade.” Lamentava-se de que he tivessem retirado os subsidias, a ele e aos coros, € prova- va que os miisicos de Dresden eram melhor pagos e melhor tratados. “E bem compreensivel que esses musicos tratados diferentemente, a quem se poupam todas us preocupacoes materiais e de quem nao se exige tocar mais de um instru- mento, sejam capazes de excelentes € admiraveis execugoes Se, pelo contrario, considero a redugio des meus veneimen- tos, éme impossivel elevar o nivel musical da escola. Cons- tato, por outro lado, que o nfimero de alunos nao diminui, ‘© que me torna impossivel prestar a cada um a necessiria assisténcia para obter um resultado aprecidvel, e por isso 82 doixo & consideracdo dos senhores resolver se devo continuar 8 ocupar-me da musica em semelhantes eondicdes, ou 0 que deve ser felto para obstar a sua decadéncia,” Além disso, ‘Achava que 0s orgios das diferentes igrejas sob a sua respon- sbilidade estavam em “maos improprias e inexperientes” Deve-se contudo admitir que o senhor Gérner, organista da Nova Igreja e da de Sao Tomas, ndo era um mtsico com- pletamente inexperiente, no obstante as sims composigdes serem confisas © desordenadas. Dizia-ce dele (Sebastian nao era propriamente dessa opinidio, mas algumas vezes ouvi repeti-lo com certa satisfacdio) que as regras da boa composi¢ao eram uma coisa que ele sempre dispensava, pela simples razdo de nao as conhecer. Extremamente vai- doso e ciumento dos poderes do kanfor, lamentava-se de que os seus fossem tao restritos e, despeitado, espalhava boatos negativos sobre meu marido. Levou muito tempo para esquecer que, por ocasiao do ensaio de uma cantata em que executava 0 continuo no érgao, errou tantas vezes que Sebastian, nur aeesso de fiiria, tendo arrancado a peruca, atirou-a sobre a sua cabeca, gritando que ele teria feito muito melhor se se tivesse tornado remendao, Nao era sempre que Sebastian perdia 0 controle, mas quando isso acontecia, era terrivel Por aqui se vé que os nossos primeiros anos na Escola de Sio Tomas nao foram isentos de dificuldades e desgos- tos. Mas as contrariedades que sofremos jamais ocorreram ‘em nossa casa; pertenciam ao “exterior”, e quando se sen- tava ao seu cravo ou pegava a sua viola Sebastian se esque- cia delas. Fm casa tocdvamos miisica em todas as horas de ensaio e por ocasiéio das festividades. Ela amenizava os longos serdes de inverno, quando o fogo crepitava alegre- mente, protegendo-nos do frio de fora, e as candeias derra- mavam a sua luz bruxoleante sobre a partitura de uma 83 cantata ou um quarteto. Muitos amigos vinham com um ‘Violino ott um oboé debaixo do brago, sem contar que podia- mos, mesmo entre nds, formar um quarteto e dar concertos independente do auxilio de outros. A filha mais velha de Sebastian, Katharina Dorothea cantava muito agradavel- mente, ew mesma tinkia como ele disse a um amigo “uma vor de soprano muito lara”, Friedemann e Emmanuel dis- punham de dons musicais de primeira ordem (0 que mais tarde eles ceviam provar) e todos, quase até 0 mais novo, éramos capazes de ler primeira vista qualquer musica sem dificuldade. Sebastian declarou certa vez, com orgulho, que todos os seus filhos haviam nascido misicos. E seria de admirar se assim nao fosse, se pensarmos em seu pai e na atmosfera da nossa casa, loda impregnada de miisica. A primeira coisa que ouviam era 2 misica, e a primeira que iam, os instrumentos de miisica, Brineavam por entre os és do clavivdrdio e do cravo (os pedais deste {iltimo consti- tuiam para eles objeto de perpétua curiosidade) até o dia em que podiam erguer-se a altura das teclas e, com olhos arregalados de satisfagdo, ferir as notas com seus dedos rechonchudos, convictos, enfim, de fazer a mesma coisa, que 0 pal, Na verdade teria sido de espantar se eles nio fossem misicos, Com o tempo nossa casa encheu-se de instrumentos de todas as espécies, instrumentos que Sebastian adorava e nunea achava suficientes. Por ocasisio da sua morte tinha cinco cravos ¢ claviedrdios, dois alaiides-cravos, uma peque- na espineta, um violino pequeno e dois grandes, trés violas, dois violoncelos, um contrabaixo, uma viola de gamba ¢ um alatide; juntara-os pacientemente, & medida que os pudera, ‘comprar, pois nunea. se endividou por conta do desejo de adquirir uma coisa, por mais que a quisesse. Além desses instrumentos, dera’ao filho mais mogo, Johann Christian, at trés cravos de pedais. Apés a sua morte esse presente foi motivo de uma pequena diseérdia entre os outros filhos, que tentaram contestar @ propriedade de Christian, mas sem resultado, porque nossa filha, a senhora Altnikol, sew marido e ew sabiamos quais eram’ os presentes que Sebas- tian havia feito, Depois do drgao, 0 instrumento de teclas de que Sebas- tian mais gostava era clavicérdio. Preferia-o ao cravo porque, respondendo ao executante de manera muito mais sensivel, exigia um toque mais delicado, endurecendo 0 som uma pressao um pouco mais forte. Um dia disse a Emma- nuel, quando este estudava: "Voeé toca muito duro; 0s sons sio to cortantes que parecem gritos de mulher!” Emma- nuel aproveitou essa liga e tornou-se célebre, como sen pai, pela beleza com que tocava, Anos depois escreveu um tratadosobre A verdadeira arte de tocar cravo,em que dizia: “"Muita gente toca como se tivesse os dedos colados uns aos outros, de tal modo o manejo é pesado e de tal modo man- ‘tém por longo tempo as teclas enterradas; outros, pelo con- trario, desejando evitar esse erro, tocam tao leve e rapida~ mente que se diria que as teclas thes arranhar os dedos". Os filhos e alunos de Sebastizn no tinham sendo que toma- Jo por modelo para evitar esses erros e obter nma execucio perfeita. Meu marido recomendava sobretudo conservar as maos trangiiilas, a fim de obter uma sonoridade igual, Suas miios pareciam mover-se apenas quando deslizavam de alto a baixo no teclado. Ele prezava particularmente a behebung. isto é a faculdade de manter a nota fazendo uma nova pressdo sobre a tecla, sem deixar que ela se levente. As qualidades sensiveis do clavicérdio encantavam a sua sutil musicalidade, e ele gostava muito de recordar a definicao que um eseritor dera desse instrumento: “o consol dos due sofrem ¢ 0 amigo que participa da alegria”, 8 Até no nosso quarto de dormir havia um clavicérdio. Sucedia que &s yezes Sebastian se levantava no meio da noite e, com um velo casaco nos ombros, tocava durante uma hora ou mais, com tanta dogura que nunea pertur- baya nossos filhos ‘adormecidos, mas apenas Ihes tornava mais belos os sonhos. Quanto a mim, deitada na cama, gostava de ouvi-lo tocar na casa escura e trangiiila, Algu- mas vezes um raio de lua que atravessava a janela vinha pousar sobre ele, e como Sebastian escolhia sempre uma mit 'sica doce, tude aquilo me dava um antegozo do paraiso, Confesso todavia que, para minha confuséo, embalada pelas doces melodias que escorregavam de seus dedos, sucedeu-me por vezes adormecer antes que ele voltasse ao leita. Todos os instrumentos, do violino pequeno ao orgi Ihe interessavam, ¢ ele constantemente procurava melhora- los e corrigir seus defeitos, para obter maior beleza. Eu mesma me tornei bastante entendida nesse assunto, pols Sebastian muitas vezes explicava-me suas idéias ¢ mostra~ va-me o interior dos instrumeritos, quando os afinava ow fazia qualquer experiéneia, Néo permitia que nenhuma ou- tra pessoa apertasse as cravelhas do seu cravo, pois achava que, para sua propria satisfagio, devia encarregar-se pes- soalmente desse trabalho. J4 contei como inventou uma viola de gamba para cinco cordas ¢ como fez construir, sob sua orientagao, pelo construtor de érgaos Zacharias Hilde- brand um alaiide-cravo que, com a ajuda de cordas de tripa, de meta] ¢ também de uma combinacao de surdinas, con- servava 0 som por mais tempo que um cravo. Contudo nip me lembro bastante de todas as particularidades desse novo instrumento, para poder decrevé-lo completamente, Com essa invencio Sebastian desejava conseguir prolongar a ressonaneia muito curta da cravo, que nao The permitia realear o legato e as partes cantantes, 26 Seu amigo, o senhor Silbermann, homem estranho, brigao, mas grande construtor de orgaos, comecou a fabricar um instrumento a que chamava pianoforte, e pelo qual Sebastian se interessava muito. A pedido de Silbermann experimentou um dos primeiros e achou-o muito promissor, mas no ficou satisteito com a acao dos martelos ¢ o peso das teclas; achou também que as notas altas estavam mul- Jo fraeas, Disse entao a Silbermann: — Vocé pode fazer melhor que isso; aqui hd um germe que pode se tornar uma Arvore, mas é preciso que ele cresca, —Nio era de esperar otra coisa da sus vaidade! retrucou Silbermann, pessoa de natureza violenta e que tinha atrés de si uma juventude tempestuosa. — Como! Entao eu trabatho um tempo inifinito, dou-me aos maiores incdmodos, e vocé me vern sentar aqui, usar as suas brancas maos de mestre de capela sobre as teclas e declarar fria~ mente que isto néio est bem! — E quase explodia de célera. Sebastian também se exaltava facilmente, mas dessa vex ficou calmo e contentou-se em dizer — Nao esti bem, e 6 porque vocé sabe disso que so ofende tanto, Nao vamos agora discutir a propésito de mi- sica, Vocé, que construiu drgaos tao excelentes, ha de poder melhorar este cravo de martelos. — Chamou a atengao de Silbermann para certos defeitos. Este, sombriamente, ouvin- © por um momento e depois foi embora, dizendo: — Vocé é, com efeito, um génio maravilhoso, e néo ha nada no mundo que nao conhega! — e batew a porta atras de si, Eu estava indignada por ver que alguém ousava falar esse modo a Sebastian, mas ele, com um sorriso tranqiiilo, explicou-me: — Ele sofre por néo ter ainda conseguido construir 0 instrumento que deseja; compreendo muito bem seus sen- timentos! a7 — Mas niio havia necessidade de ser grosseiro com voré, Sebastian — protestei — Ah — respondeu rindo —, isso néo tem importancia nenhuma, uma vez que ele ponha o cravo em ordem, Depois de ter trabalhado por longo tempo, Silbermann conseguiu enfim vencer a3 dificuldades e conyidou meu ma- Fido (durante esse Intervalo eviteu qualquer contato com ele) para experimentar o instrumento ja arrumado. Viva- mente interessado, Sebastian foi & casa do fabricante de instrumentos, tocot e fieou eneantado, Silberman manti nha-se ao lado dele, escutando; ¢ quando ouviu as ealorosas palavras de louvor seu rosto carrancudo iluminou-se num Fadioso sorriso: “Voes 6 0 maior de todos os muisicas”, ex- clamou, “Sabia que enquanto vocé nao estivesse satisteito a minha obra nfo estaria boa. Eno entanio foi diffeil eum- prir as suas exigéncias.” No fim da vida Sebastian tocou nos pianos que o rei possuia em Postdam, Também admirava muito os rgéos de Silbermann, apesar dos aborrecimentos havidos no inicio de sua carreira, em fungao de um érgao que ele devia cons- truir. Sebastian queria que 0 dé grave fosse regulado de modo a ter a mesma intensidade no teclado e nos pedais, ¢ tendo Silbermann se recusaco a fazé-lo, declarou: “Perfei- tamente! Sendo assim, néo Ihe eneomendaremos 0 érgio" A despeito desses mal-entendidos, porém, tinham um gran- de respeito um pelo outro. Gotffried Silbermann reconhe- cia 0 genio de Sebastian, ¢ meu marido nunea deixou de considerar Silberman um grande construtor de érgaos, “Ninguém pode construir um verdadeiro Orgéo sem um dom especial de Deus”, dizia, “pois 6 uma ccisa muito diferente de construir uma casa ou mesmo um cravo. B preciso que a alma do musico esteja encerrada nos tubos para que estes passam falar e cantar, Se 0 amor nao 0 cons- 88 truiu, 0 orgio nunca vive realmente." Silbermann adorava 8 seus Srgéos © punha neles mais do que podia receher, Por essa razéo Sebastian o estimava, a ele ¢ a scus instru- mentos, e nao dava importncia aos grosseiros disparates € ‘aos maus modos dele ‘Mas se meu marido nao se deixava abater pelas manei- ras de Silberman, pois sabia que seu coragio era reto € eu amor pela miisica, profiindo e sincero, irritava-se com fas miserdyeis discussoes e os desgostos que Ihe causava 0 Conselho da Escola de So Tomas, Parecia que esses senho- res queriam forea-lo a fazer bonecos de palha sem pelhe. Em vez de manter a sua autoridade, privaram-no de uma yerba a que ele tinha direito, impedindo-o, consequen- temente, de conseguir os mitsicos de que’ necessitava, Sebastian fez notar, numa informacdo ao conselho, que uma ver confiseadas as pequenas gratificagses que rever- tam outrora em beneficio do Chorus Musicus, suprimia-se gualmente a boa vontade dos cantores: “quem trabalharia a troco de nada, ou prestaria servigos sem recompensa’ Esforcavam-se de mil maneiras para Ihe tornar a vida diff- cil, € quando, com sua habitual franqueza, ele dizin o qu pensava desce modo de agir, tratavam-no de “incorrigivel ¢ censuravam-no nao somente por nada fazer mas também por néo dar justifieagao alguma para suas exigéncias. E nao obstante essas inquictagoes Sebastian continuava a escrever para os concertos de Sao Tomds e das outras igrejas de Leipzig ura misiea como ainda néo se ouvira na Ale- manha, que ja além do limitado espirito dos ouvintes, sendo raros os miisicos que realmente a compreendiam, Contudo, a tensao gerada por semelhante vida era muito forte para Sebastian, tao sensivel, apesar de sua sélida aparéneia, & ele comegou a pensar seriamente em deixar Leipzig para ir tentar a sorte numa atmosfera mais agradivel, Nao saben- 89 do para onde it, escreveu a Georg Erdmann, 0 amigo da juventude, que se tornara uma espécie de grande persona- ‘gem na Rissia, a fim de conseguir sua ajuda para obter um lugar conveniente. Mostrou-me essa carta antes de envia-la, Devo dizer que a perspectiva de mudar nosso lar para a Riissia me causou mutta apreensio. Aquele pais me parecia Jonginquo, imenso, quase pagdo e tdo diferente da nossa boa Saxénia! Mas, certamente, em caso de necessidade nao me teria oposto, Que significavam para mim a Saxdnia e 0 mundo intelro, comparados com Sebastian? A patria de uma mulher ¢0 lugar onde vivem seu marido € seus filhos. Sebastian expunha nessa carta que os seus veneimen- tos como kantor, na Escola de Sao Tomas no se tinham revelado tao vantajosos como Ihe haviam prometido, que muitos honoratios a que deveria ter direito haviam sido reduzidos ou suprimidos, que a vida de Lelpzig era muito cara e que ele arranjava melhor a sua vida na Turingia com quatrocentos taleres do que com o dobro em Leipzig, dado © preco das coisas. Mas que mais tornava insuportavel a sua situacao era a estranha atitude dos superiores, que tao pouco apreciavam a mosica. Tinka de aturar as continuas vexagées a que o submetiam, Invejavam-no e perseguiam- no do tal modo que se via na contingéncia de emigrar. ‘As coisas estavam nesse pé quando, subitamente, tudo foi resolvido pela morte do velho reitor, 0 senhor Ernesti. Seu sucessor, 0 senhor Gesner, era um velho amigo que ‘Sebastian conhecera em Weimar. Nao esquecerei jamais a alegre expressio de seu rosto quando velo me anunciar a nomeacao de Gesner, “Agora, Magdalena, tudo vai se tornar facil”, exelamou, Eu o beijel agradecendo 2 Deus, a alma livre de um pesado fardo, pois nao apenas me condoia vé-lo tao atormentado como sabia também que as preocupacées prejudieavam sua obra, 0 que, bem o sentia, era muito 90 grave, Néo 0 criara Deus para dar a sua misica a este mundo agitado? Grande desgraga seria que o perturbassem ‘\ ponto de nao poder mais produzir. © novo reitor, de saiide tao delicada que tinha de ser levado & escola numa eadeira, era, no entanto, eheio de energia, entusiasmo e bondade. Nutri grande respeito ¢ reconhecimente por esse homem erudito ¢ afavel, que com- preendia e apreciava Sebastian. Uma grande amizade nas- eeu, ou melhor, se renovou e se consolidou, entre o reitor © 0 kantor, € 0 conselho da escola deixou de ser mesquinho com relagao aos recursos para cuidar da musica, Por exem- plo, Sebastian obteve imediatamente, logo que falou nis- 50 a0 reitor, uma coleeao de motetes e responsarios para uuso do coro, que Ihe interessara particularmente desde que dela tivera ‘conhecimento. Muitas vezes 0 senhor Gesner assistia as ligdes de canto, ouvia os alunos e encorajava-os, coisa que jamais passara pela cabeca do seu predecessor. Nao perdia ocasiéo de mostrar aos outros professores @ ao conselho a alta estima em que tinha 0 kantor e sua masica. Como me senti feltz:no dia em que o reitor veio ao men encontro trazendo um manuserito e me pediu, com seus modos delicados ¢ todavia tao afetuosos; “Sra, Bach, poder dispor de uns momentos para ouvir a leitura de algumas linhas que eserevi em homenagem a seu marido?” Convi dei-o a sentar-se € Ihe dediquei toda a atencao, Ble contou- me que fa publicar tm livro em latim, escrito por um certo Quintilianus, se bem me lembro, Nesse livro ha um Fabius que fala das muitas e variadas qualidades de um homem que ao mesmo tempo toca lira, eanta e bate o eompasso com os pés. “Isso The pareceria bem pouca coisa, Fabiu ‘vera o reitor Gesner, “'se voed pudesse resstscitar dentre os mortos e ouvir Bach, que, com ambas as maos e servindo-se de todos os dedios, toca cravo, isto varias liras, ou drgio — OL © instrumento por exceléncia, cujos ineontéveis tubos can- tam por melo de foles! Aqui com as mios e 14 cam os pés, mais rapidos ainda, prodwz sozinho uma rmultidao de sons diferentes e no entanto harmoniosos. Se voce 0 pudesse ver, repito, enfrentar aquilo que muimerosos tocadores de lira € seiscentos flautistes nao poderiam executar, regendo mais, de trinta ou quarenta muisicos ao mesmo tempo, cha- mando a atengio de um deles por um sinal de cabeca, de outro por uma batida de pé e de outro ainda por um gesto do dedo, conservando ritmo e tonalidade enquanto este dé notas agudas, aquele dit notas graves e um terceiro, nolas intermedidrias! Por grande admirador que eu seja da Anti- gilidade, creio que meu amigo Bach, ou qualquer outro que Ike eeja comparsivel, retine em st ntimerosos Orfens e vinte Arions." ‘Compreende-se o prazer que essa passagem me causou: reli-a até sabé-la de cor, pensando em repeti-la aos filhos ji suficientemente erescidos para a compreenderem, ‘Apesar de no ser misico, 0 reitor Gesner descrevera perfeitamente a maneiza como Sebastian dirigia ura can- tata ou um concerto instrumental, De acordo com as cir- cunsténeias, e especialmente se tinha um grande ntimero do cantores’€ instrumentistas a controlar, ele marcava 0 tempo com um rolo de papel de mtisica na mao. Muitas vores, sentado ao clavicérdin ou ao crave, marcava o ritmo com 0 corpo, enquanto tocava; ou entao tocava apenas com uma mao, e com a outra marcava o ritmo. Seu filho Emma- nuel disse sobre ele: “era muito exato na regéncia, € nos andamentos vivos ¢ impetuosos era de uma seguranga ex- trema”, Muitos ensaios de miisiea religiosa ocorreram em nossa casa, pois nao existia eravo na Escola de Sio Tomas, Havia um no estrado do érgio, na igreja, mas no inverno era mais confortdvel fazer os ensaios em casa; assim, tive 92 ‘multas ocasides de ver Sebastian reger e chamar a atenc&o dos executantes do modo deserito pelo senhor reitor. Apaixonado, identificava-se com a miisica, Suas mios pareciam extraita do ar, e a felicidade que se estampava ‘em seu rosto quando tudo ia bem era indeseritivel. E eontu- do, nem a mais insignifieante desafinagio nem o menor ferro de compasso escapavam a seu ouvido, que exigia das Yores dos instrumentos uma fuséio eompardvel & das Aguas de um rio, Para atingir essa harmonia ¢ essa pureza tornava-se evidentemente necessario muito trabalho de sua parte e da parte daqueles que dirigia, Tinha 0 dom de ins- pirar 0 entusiasmo ¢ 0 devotamento, salvo quando se trata- ‘ya de rapazes estiipidos ou teimosos, ¢ todos aqueles que fram misicos trabalhavam com zelo,'a fim dé obter a sua aprovacdo, Ble proprio dizia: “E sabido que os estudantes que amam a musica estéo sempre prontos a oferecer-me a sua contribuigZo. Jamais tive eam eles 0 menor motivo de descontentamento; habituaram.se a ajudar-me na musica instrumental como na vocal, ¢ fazcm-no até agora por ini clativa prépria, sem mesmo serem pagos” Met marido manteve um contato mais estreito com esses amantes da mitsica quando se tornou, em 1729, diretor da femosa Associacio Musical fundada pelo sr. Telemann Essa associacio dava uma ver por semana belissimos eon- certos sob a sua direcéo, no yerdo is quartas feiras, de tarde, das quatro As seis horas, no jardim de Zimmermann, 4 Rua do Moinho de Vento, e no inverno todas as sextas” feiras & noite, das oito as dex horas, no café de Zimmer- mann. Na época das feiras a Associagiio tocava duas vezes por semana, as quartas e sextas, Deu igualmente, sob a Giregao de Sebastian, concertos especials, onde foram exe- cutadas obras que ele escrevera para esse fim, Assim, por ‘casido do aniversério da rainha, em dezembro de 1733, foi 93 executado 0 seu Dramma per musica,e um més mais tarde ‘uma obra que ele havia composto para as festas da coroa- ‘ao. Sebastian dirigin por varios anos a Associagao Musical melhorou-a muito dando magnificos concertos, para ale- gria dos habltantes da cidade que compreendiam ¢ aprecia- yam a musica, Aproveitando os momentos livres de que dispunha, assisti a quase todos esses concertos, assim como nume- rosos ensaios do coro da escola, que ocorriam em nossa casa e fora dela. Certa vez, camo nao tivesse podide ir, um dos alunos de meu marico, Jobann Christian Kittel, que vivia entao conosco, veio contar-me o que se passara, Tratava-se do ensaio de uma cantata. “Caspar acompanhava ao cravo, e como a senhora bem dave saber, ndo podia aventurar-se fa tocar sequer um acompanhamento muito simples por baixo cifrado! Pareceu-me um tanto nervaso: ele devia es- perar a todo 0 momento ver os dedos do senhor kantor pousarem nas teclas entre as suas maos e, sem o interrom- per, completar o acompanhamento com massas harméni- cas que o atrapalhavam ainda mais do que a subita aproxi- magéo do seu exigente professor Que maravilhoso homem € 0 nosso mestre! Néo hi outro em toda a Alemanha. Nés © estimamos e tememos ao mesmo tempo, € nao sei qual dos dois sentimentos 6 mais forte.” “Bu crelo que sei, Johann”, disse eu, rindo, “Sim, sim, a senhora tem razdo; contudo, é& muito perigoso irrité-lo.” - ‘Alguns desses rapazes passavam conosco varios anos, ‘outros, menos tempo, mas quase todos eram uma fonte de prazer e interesse para mim, assim como, num sentido mais amplo, para meu marido, Nos primeiras tempos eram ingé- nuos ¢ impressiondveis, raramente cheios de si. Neste wlti- mo caso, se nao eram’ maus perdiam logo esse defeito tornavam-se muito humildes perante a grandeza de eardter 94 0 genio de Sebastian, Sem mesmo thes falar, somente pelo oxemplo, Sebastian fazia-lhes compreender ahonra da sua profisséo, o trabalho arduo, a grandeza de alma e o devota- imento que ela exigia. “Ele acende uma chama em nossos voragées”, dizia-me um desses rapazes ao se despedir, “oa mmiisiea ha de falar-nos sempre com a sua voz.” Para mim era uma alegria vé-lo cereado de todos esses mogas, exata~ mente eomo 0s diseipulos de Nosso Senhor, zelosos, piedo- 4408, cheios do ardor que dao a juventude e a musica, traba- thando muito, copiando partituras e mais partituras das obras de seu mestre para poder levi las quando o deixassem, aprendendo as regras do contraponto e até mesmo compon- do sob sua orientacao, apresentando-Ihe o resultado de seus esforeos com um encanto feito de timides e de orgulho, tocando numerosos instrumentos, mas muito espectalmente © cravo @ 0 rgéo, estudando tudo com afinco, e comendo ah, quanto ao comer ¢ beber, s6 eu sabia de quanto eram capazes! "A miisica nos da apetite, sra, Bach”, diziam eles, seguinde-me @ cozinha para mendigar um prato de caldo ow uma xfcara de leite de améndoa e um pedaco de pio; “quando 0 kantor esti contente conosco a alegria dé-nos vontade de comer, ¢ quando nao est, precisamos alimentar © esplrito abatido”. Apesar de ocupados seriamente com a misica, formavam um grupo muito alegre, Esses de que acabo de falar, alunos particulares de Se- bastian, eram devotados & miisica, inspirando-Ihe um inte- resse mais profundo e paternal. Porém em seus tiltimos anos de vida houve um certo nimero de alunos para quem as aulas eram mero passatempo; estes o sborreciam com sua insisténcia em obter ligdes do “Bach de Leipzig", como The chamavam entao. A principio quis desembaragar-se deles, ¢ tentou afasta-los elevando o preco das ligdes; mas como isso nao desse resultado, aceitou alguns, pois o dinheira 95 assim ganho ajudava-nos bastante. Entretanto, se um desses alunos se mostrava muito vaidoso ou muito negli- gente, era imediatamente levado até a porta da casa, Recor- do-me de um deles; meu marido dera-Ihe uma peca pare estudar; na licdo seguinte, porém, esse senhor tocou-a num tempo ¢ com um dedilhado inteiramente diferentes daque- Jes que Sebastian recomendara. — Acho que assim soa. melhor — declarou o aluno com indiferenga; — a maneira como o senhor quer que eu utilize o polegar parece-me muito complicada, @ por isso resolvi fazer de outro modo. O rosto de Sebastian nublou-se por um instante, mas em seguida ele sorriu e disse — 0 senhor com certeza esta muito adiantado para receber 0 meti ensino, de modo que vamos imediatamente dar a isto um ponto final, — Oh — balbuciou o elegante homem—, pensei que tinha alguma coisa a aprender como senhor. ‘Mas Sebastian nao Ihe deu mais nenhuma licio. Rara~ mente se ocupava com a correcéo da vaidade provinda da estupidez, mesmo quando era obrigado a ouvir composi¢des sem valor. O sr. Hurlebusch, de Brunswick, velo uma vez. nossa casa trazendo consigo algumas sonatas faceis para crayo, que hayia composto, e pOs-se a tocd-las para sua pré- pria satisfacdo, sem notar que ninguém tinha prazer em Ouvi-las, pois estavamos habituados, em nossa casa, a uma outra espécie de musica. O st. Hurlebusch, acostumado aos elogios, tomou o polido siléncio de Sebastian como indicto da maior admiragao. Antes de partir deu a Friedemann ¢ a Emmanuel suas sonatas impressas, exortando-os a estu- di-las e toed-las com aplicagio, pois méisica dessa qualidade hes seria util ... “Mostrando a voots o que é preciso evi- tar”, acresceniou Sebastian, piscando o olho quando 0 vai- doso compositor ja havia saido, 96 Os alunos regulares eram bem diferentes desses ele- gantes senhores, ¢ Sebastian estimava muito os melhores dentre eles, Assim, Martin Schubart, seu primeiro aluno, que (ids nao conheci, ocupava um grande lugar em sev cora~ ‘io; © mesmo sucedeu com o querido Christoph Altnikol, com quem se casou nossa filha Elisabeth, e com os dois Krebs, pai e filho; 0 ultimo, Johann Ludwig Krebs, era um. admiravel misieo. Durante nove anos fot aluno de Sebas- tian, que the dizia, brineando, ser ele “o anico lagostim” (Krebs) “no meu tegato” (Bach). Ludwig prezava muito particularmente o certifieado que Sebastian Ihe entregara quando de sua partida, e que estava assim redigido: “O portador do presente certificada, sr. Johann Ludwig Krebs, pediu-me para ajudé-lo dando-Ihe um atestado da sua con- duta em nossa escola. Nao ha razio para recusé-lo; pelo contrério, tenho muita satistacdo em poder tazé-1o, pots ‘estou convencido de havé-lo formado bem, sobretudo em misica, na qual se distingue entre nés por sua habilidade para tocar eravo, violino e alatide, assim como para compor, de modo que nao deve ter nenhum temor de se fazer ouvir, ¢ antes deve tentar fazé-lo sempre, Desejo-lhe a assisténcia divina para o seu desenvolvimento, e recomendo-o, mais uma yea, muito colarosamente” ‘Nao posso citar os nomes de todos os seus alunos, que eram multo numerosos, mas entre aqueles que se distingui- ram ¢ mostraram ter aproveitado bem o seu incomparavel ensino estava Gottlieb Goldberg, um magnifico executante que se tornou cravista do barao Keyserling, para quem Sebastian escreveu a Aria com trinta variacoes, para cra- yo de dois pedais, que chamavamos comumente de Varia des Goldberg. ‘Um outro aluno que Sebastian tinha em grande estima era Johann Philipp Kimberger, que vive agora em Berlim, oT onde ensina pelo método de seu mestre, Aluno de Sebastian, trabalhou tanto e tao apaixonadamente que contraiu uma febre intermitente e foi obrigado a ficar de cama muitas semanas, Todavia, logo que a febre 0 deixou entregou-se de novo ao trabalho com extraordinério afinco. Sebastian, comovicio com sua indomavel energia € seu amor insaciavel pela mmisica, a fim de Ihe poupar a vinda as aulas (pois seria maul para Kirnberger sair, ¢ por outro lado era dificil enviar-Ihe e mandar buscar de volta as partituras e os exer- cicios), ia ao quarto dele dar-Ihe ligoes, Kirnberger tinha 0 maior respeito por seu mestre, ¢ as provas que este tiltimo The dew do scu interesse paternal encheram-lIhe 9 coragio de um reconhecimento que, certo dia, balbuciando, ele ten- tou exprimir, “Nao me fale de reconhecimento, meu querido ‘Kirnberger”, respondeu-Ihe Sebastian, “Estou contentissimo por ver scu desejo de estudar miisica de um modo tao sério, somente de voce depende assimilar tudo 0 que Ihe ensinei. ‘Apenas the pego que, no momento oportuno, transmita essa pequena soma de conhecimentos aos bons alunos que nao se contentam com o ordinario lirum-larum.” B fol 0 que esse discipulo fez, desde o dia em que comecou a ensinar. Certa manha um aluno de Kirnberger, passando por Leipzig, velo visitar-me, Com uma cortesia a que poucos jovens nos tém habituado, assegurou-me que era para ele ‘uma grande honra visitar a vidva do kansor cuja memoria sr, Kirnberger tanto Ihe ensinara a reverenciar. Tinha uma pequena historia a contar-me, que, segundo supunha, talvez me desse satisfagao, Havia uma ou duas semanas chegara A casa do st. Kirnberger para tomar a sua ligio quando foi testemunha de uma cena bizarra. Viu no as- soalho uma poca d’agua e ao lado dela o seu mestre em estado de indescritivel célera, com uma bacia, uma escova fe um farrapo na mZo, Um pano de veludo fora lancado 98 sobre o retrato de Sebastian que Kirnberger possuia ¢ esti- mava respeitosamente (nestes trisies dias conforta-me pensar nos que, sempre fiéis, reepeitam e veneram a me- moria de Sebastian). Quando Kirnberger aviston o aluno parado, estupefato, na soleira da porta, a tensdo e 9 célera desapareeeram de sou rosto. “Entre! O' meu quarto esta de novo habitével”, exclamou entao; “‘j4 limpet a atmosfera purifiquei a cadeira; vou agora descobrir o retrato, para que voce possa contempla-lo de novo!” Por um momento 6 jovern imaginou que 0 eérebro do seu venerdvel mestre tivesse sido perturbado por algum choque, mas logo soube © que acontecera. Parece que uma hora antes um rico mer- cador de panos de Leipzig viera visitar Kirnberger, a ne- gécio, No decorrer da conversa, tendo visto na parede 0 retrato de Sebastian, o mereador exclamou: “Grande Deus! © que o senhor pensou ao pendurar no lugar de honra 0 retrato de Bach, nosso Gltino kanior? Que individuo gros- seiro, © que pretensio a dele, de se fazer retratar com um rico manto de veludo!” Era demais para o bom Kirnberger (lembro-me, com efeito, que ele era de natureza impe- tuosa ¢ tinha um sangue quente de miisico). Ergueu-se bruscamente, e agarrando 0 mercador com ambas as maos © pés na rua, gritando com vor terrivel: “VA embora, ca- chorro! Va embora, cachorro!” Sem mais ceriménia des- pedi 6 homem, voltou ao quarto e comegou a lavar a ca- deira em que o mercador se sentara # a expulsar os miasmas fla sua presenca, queimando ervas aromaticas. Nao puce deixar de rir quando essa histéria me foi conteda, mas também as légrimas me vieram aos olhos ao pensar na estima fiel e entusldstica que Kirnberger conservava por Sebastian. “O grande santo patrono da misica”, disse-me ele uma vez “nao é a sua linda Santa Cecilia italiara, mas 99 0 nosso hom Sao Sebastido alemao, que tem na alma toda ‘a misica do mundo!” Nestes dias de solidav, quando recordo 0 entusiasmo 0 fervor dos alunos de Sebastian, é como se trouxesse uma luz para um quarto escuro, Nao sei se existe neste mundo alguma coisa mais agradvel para o espirito que as rela- Ges entre mestre ¢ aluno, quando ambos se dedicam a uma arte tao admiravel como a miisica. O mestre expe~ riente, ao mesmo tempo severo e bom, guiando e semeando © entusiasmo nos jovens espiritos que vem a ele, nao dando a sua aprovacio senio ao que o aluno faz de melhor, des- cobrinda e trazendo & luz as aptidoes Jatentes, enquanto © aluno estuda, examina, ouve, pesa cada uma das pala- ‘vias pronunciailas pelo mestre e abre 0 coragdo para obter a sua anuéncia, Tais eram, pelo menos, as relagies exis tentes entre Sebastian e os mocos que viviam com ele e 0 veneravam, Mas aqueles que se beneficiavam mais com- pletamenté de seu ensino e de sua influéneia eram, ¢ claro, 08. proprios filhos. Para todos 03 que s¢ aplicavam — e devo dizer que esse era. 0 caso da maioria, porque o bom mestre faz 0 bom aluno — cle era extrasrdinariamente benévolo, Guardo ainda na meméria uma pequena frase que dirigiu a Em- manuel, que, embaragado por uma modulagao diffeil, pedia ajuda: Sebastian pegou a pena, consertou a passagem e disse, entregando-Ihe o caderno: “Meu filho, por que voce no tenta assim?” Pode-se corrigir um erro com maior tato? Conheei grandes alegrias na minha vida quando esses jovens, transbordando dos sentimentos que nutriam por seu mestre, vinham expandir-se a0 meu lado. “Sra. Bach, dé-nos licenea para uma conversinha?” diziam, Eu sabia sempre do que eles queriam falar. “Nosso respeito € nosso entusiasmo erescem”, disse-me uina vez Heinrich Gerber 100 ‘so vermos um homem de tanto génio sentado entre sous flunos para explicar-Ihes com tal paciéncia as regras ele- mentares da harmonia ou ensinar-Ihes como tocar por balxo eifrado ou entao como fazer um uso correto dos dedos no ¢ravo, Adimiramos assim (¢ isso € resultado dos seus méto- os) como a mais estrita eiéneia musical se combina nele as ‘mais belas qualidades da exccucao. Mas que dizer quando, parando subitamente de ensinar, ele repele notas e cader- hos, senta-se ao cravo ou ao drgao e deixa fluirem as tor- rentes do seu génio em improvisagies? Ah os céus se abrem sobre nés! So essas as horas para as quais vivemos! Que mntisica! Muitas vezes fico acordado de noite (0 que, como a senhora sabe, nao é facil para mim) e estremeco ao lem- brar-me dela. ‘Tenho ao mesmo tempo vontade de gritar de alegria e de chorar. Rssas sio horas cuja recardacdo nos acompanhara até a morte.” Lembro-me das ondas de san- gue que Ihe coloriam 0 rosto quando me contava isso. Hein- rich Gerber tinha um apego e um respeito particularmente fortes por Sebastian. Veio a Leipzig em parte para estudar direito, mas sobretudo para estudar mtisica sob a direco do kantor da Escola de $40 Tomés, Esteve, no entanto, seis meses em. nossa cidade antes de ousar apresentar-se a Se- bastian e pedir-Ihe para ser seu aluno, tao grande era a sua veneragdo. Sebastian recebeu-o com grande bondade, como a todos aqueles em que reconhecia sincero amor pela mti- siea. Logo na primeira entrevista pds a mao no ombro do jovem chamando-o de conterraneo, porque Gerber vinha da Turingia. Heinrich tremia de felicidade e de temor na primeira aula, quando Sebastian colocou as suas /nvencdes sobre 0 cravo; destas, pass rapidamente ao Cravo bem temperado, que sempre preferiu, pois por trés vezes teve a felicidade de ouvir seu mestre tocé-lo do comeco ao fim, de maneira incomparavel. Era assim que Sebastian recom: 101 pensava um aluno estudioso. Dizia no estar com disposi- {ao para ensinar, sentava-se diante do instrumento ¢ to- cava, para o seu maravilhado ouvinte, durante uma hora fou mais, a obra a estudar e muitas outras: “Bis como isto deve ser tocado”, digia ao aluno, que podia, assim, perce ber a forma completa ¢ o ritmo do trecho, e conhecer o fim para o qual deviam convergir seus e.forcos. ‘Durante um certo tempo houve um aluno italiano eha- mado Paolo Cavatini, que eu julgava a principio estranho fe inoportuno. Ao lado dos nossos saudaveis rapazes ale- nies ele parecia tacitumo, egoista e invejoso, Sebastian achaya-o, no entanto, extraordinariamente talentoso, ¢ Pao- Jo nao tatdou a manifestar um apatxonado devotamento por seul mestre. Parecia néo ser feliz longe dele, e seguia-o con- timiamente com os grandes olhos sombrios e melancd- licos, Enciumava-se com a aiencao que Sebastian dedicava aos outros alunos, a ponto de eausar-me aflicao; declarava com violéncia que “seus pesados espiritos saxdes eram absolutamente incapages de apreciar um génio como o de Sebastian, enviado por Deus’. Se por qualquer razfio meu marido no ficava satisfeito com o seu trabalho atirava-se fay chao e punha-se a chorar coma uma crianca que tivess® ‘apanhado. Todos viviamos atordoados com ele, @ confesso que esse ser apaixonado e sem controle sobre si mesmo me inquietava um pouco. Sebastian, porém, parecia compreen- délo melhor que nés (Friedemann odiava-o francamente), @ demonstrava para com ele muita paciéncia, Paolo dizia fazia, contudo, as coisas mais estranhas, Um dia entrow correndo na sala, com o ar ainda mais aloucado que de costume, deitou-se sobre o tapete e, fixande em mim, sen- tada ao lado da minha cesta de trabalho, um olhar anor- malmente exaltado, exclamou: 102 — A senbora est sentada a qu, costurando, ¢ ni ae seu marido sesba de compor uma musica dlante a Gales anjos do céu deviam baixar a cabesal Arf, tl 9 wreendé-lo? Mas que mulher podera compreen. GE to! Trate do vesturio dele © eozinhe o seu Janta, que © melhor que a senhora pode fazer!” 7 "iquei um tanto magoada, nao muito, entretani via que o rapar perdera 0 jug, Cele cee gE iailssivel que Yoo! fale assim & muther do seu mestre, a 9. amo € compreendo-o melhor do que vocé supde, sing Feraoeime— suplicou ele (e logo me parece psu: ar dls ae ldstima). — Nao sei a que digo; essa mi. -me para além da razai gosto dela que me sinto perturbado ae a essas palayras alguma coisa despertou or nelme para ele ¢, beljando-the os eakelos ionate dipe Sekt $210 que 6 ee0, Paolo, — E a partir desse dia Tieamos igos, Mas esse rapax nao esteve muito tempo conosco quando 0 inverno velo ele foi tomado por calafrios e mor- yeu. Tasos nos eonvencemes de que no era talhado para esta vide, apaixonado, irritavel ¢ desequlibrado como era, ptudo, nos Ultmos dias de sua moléstia tomou-se afével «até mesmo paciense. Sua morte eau grande desgosto in, que, abandonando todos os trabalh ora itera seta A cabecera co rapa aria pr {itura sobre os oelhos para poder escrever quando a arden- {e mio do moribundo abandonava a sua por um motnento, lo néo tirava dele as grandes olhos negros. “Sou mais feliz do que nunca”, disse-me uma yez com um gentil so "sp quando entrei em seu quarto para the leva urna xara de Tite quente, Seguravaem sua magra mao ade Sebastian ¢ barecia entranhamente saistelto, nunca o vira com uma 103 Paolo comecava jA a ecompor seriamente, ¢ Sebastian apreciava tanto o seu trabalho que ndo péde reter uma ver. esta frase: “Receio que tenhamos perdido um outro Scarlatti”. Havia génio nesse rapaz, e isso explica porque ele foi téo infeliz neste mundo : ‘© método de composicio preconizado por Sebastian diferia inteiramente das rigidas regras prescritas pelos outros mesires, Harmonia, contraponto, exeeugao por baixo eifrado, arte da fuga, tudo o que provinha do seu ensino era cheio de vida e de interesse. Comecava imediatamente pela harmonia a quatro vozes por baixo cifrado, ¢ fazia eserever cada uma das vozes em linhas diferentes, a fim de ndo asconfundir ou deixar alguma delas descuidada, Se uma ‘yor nada tinha a dizer, devia calar-se. As vozes internas de- viam fluir e possuir uma linha melédica real, A propria har- monia de Sebastian ndo é, na realidade, senéo a soma de varias melodias. Nenhuma nota estava autorizada a existir sem necessidade, ¢ ele nunca a deixava acrescentar-se aos accrdes com o Gnico fim de impressionar. “De onde vém estas notas?”, dizia entre zombeteiro ¢ severo, riseando-as com um trago da pena, “eriram do eéu na sua partitura?” Kirnberger contava que Sebastian tinha por principio iniciar seus alunos no contraponto a quatro vozes; é com efeito, impossivel escrever um bom contraponto a duas ou trés vozes sem se estar familiarizado com 0 de quatro, por- que, sendo a harmonia necessariamente incompleta, aquele que no conhece a grafia a quatro vores ndo pode distinguir (0 que convém deixar de lado. Apés a morte de Sebastian esce bom Kimberger empenhou-se numa eontrovérsia mu- sical com o sr. Marpurg e citou, como prova irrefutavel, uma frase de seu mestre, Esse detalhe enfureceu Marpurg, que responden mals ou menos assim: “Santo Deus, por que 104 rariio trazer o velho Bach para uma discussio em que ele nao tomaria parte se fosse vivo? De resto, ninguém fieara convencido de que ele adotava os mesmos principios de har- monia de seu aluno, o sr. Kimberger. O grande homem tinha varios modos de ensinar e adaptava seu métado & capacidade de cada aluno, conforme fosse ele mais ou menos dotado aprendesse mais ou menos depressa, Estou conyen- cido de que se existisse algum eserito dele sobre o estudo. da harmonis, esse escrito nao conterla apenas 0 que o st. Kirnberger pretende que sejam os tnieos preceitos de seu mestre”. O sr. Marpurg tem razio no que se refere A varie- dade dos métodos de meu marido, mas erra ao pensar que 2 veneragao de Kirnberger the teria permitido atribulr a Sebastian uma coisa que este nao tivesse realmente dito ‘Todos o8 alunos de composico deviam primeiro ama- Gurecer as suas idéias para depois as lancar no papel, Pois Sebastian no Ihes permitia nenhum trabalho no cravo. Se nfo possuiam a faculdade de compor mental- mente ele os desanimava por completo, dizendo-lhes ser evidente que eles estavam talhados para outro mister que nao de compositor, “que demanda muito trabalho ¢ ‘obtém pouca recompensa”. Mas so pronunciava essas pa- lavras nos momentos de amargura, e algumas regras que ensinava a seus alunos testemunham melhor a sua atitude habitual. “O baixo elfrado é 0 mais perfeito fundamento da misica, Tocam-se as notas escritas com a mio esquerda enquanto a direita thes aereseenta consonancias e disso- nneias que produzem uma harmonia agradivel em honra de Deus e para legitimo regozijo da alma, Como toda a mi- siea, o baixo cifrado no lem outro fim seno a gloria de Deus ¢ 0 reereio do espirito; de outro modo deixa de ser 105 uma verdadeira mésica para se tornar uma tagarelice ‘uma corrupedo diabdlica’ . ‘Sehastian escreven com muita paciéneia Regras ¢ ins trugoes paraa execncao por baixo cifrado ou 0 acompanha- mento a quatro vozes, para uso dos estudantes, onde for- neceu certos principios e exemplos abundantes ¢ elaros com ‘uma indulgente eompreensio das suas difieuldades. Deu-se ao trabalho, em duas ocasioes, de simplificar uma regra “para aqueles que néo fossem capazes de reté-la”, No meu Pequeno dlbum de 1725 anotou a construcio das escalas dos moados maiores ¢ menores © algumas regras para 0 baixo cifrada, Mas no fim acrescentou esta nota: “Os outros pontos que devem ser retides, melhor sera transmiti-los, Gralmente do que por escrito”. Os que tiveram a ventura ide ser seus alunos aprovaram com entusiasmo essas tltimas palayras; nenhuma regra escrita pode dar uma idéia da conviegdo que Sebastian imprimia ao seu ensino, da cla- reza com que se fazia compreender e da ciéncia répida ¢ infalivel com que resolvia as dificuldades a ele submetidas, ‘Seus dons de compositor e improvisador eram absola- tamente extraordinarios, eo posam ser apreciais ns insta medida por misicos completas. Se quando estava ao eravo 0 ao rae tinha diante de si um baixo eifrado, imediata- mente extraia dele trés ou quatro vozes. Mas em geral nao 0 faria sendo depois de ter tocado um trecho de um dos seus compositores preferidos, coisa que Ihe estimulava o espirito. “Devo preveni-lo”, dizia um dos nossos amigos, 0 magisier Pitschel, a um conhecido que levara para ouvir Sebastian, “de que este homem eélebre, cuja reputagso de misico é tdo grande em nossa cidade, nao pode, como se 1 Fin tatiaches Geplire und Geller” (N. ta R) 106 Jpretende, encantar os ouvintes com suas maravilhosas eom- bbinagies de sons sem antes ter posto a imaginagao a fun- olonar executando um trecho extraido de um album.” Se- bastian, que ouviu essa observacio com as méos JA nas teclas, sorriu sem responder, Se porventura apelo para minhas recordagdes, cons- tato que em muitas oeasides Sebastian nada dizia, dei- xando as pessoas felarem ¢ mesmo se divertirem a custa dele sem se intrometer na conversa, a menos que se tra- tasse de uma questao séria sobre mtisica ou sobre a arte de executé-la, Dizia entéo o que tinha a dizer, e calava-se Nao se dava ao trabalho de se explicar, a nao ser quando the contestavam seus direitos ¢ privilégios. B nesse caso mostrava-se tenaz, 0 que ndo deixava de ser justo. Seu espirito estava de tal modo monopolizado pela arte que eu tinha ds vezes a impressio de que ele nao se dava conta da nossa presenga. Vivi momentos apreensivos quando o via sentado em sua poltrona, as eriancas e cu em torno dele, ¢ no entante o sentia so, acima de nis Algumas vezos esse sentimento era tn forte e doloroso que, largando meu bordado ou a musica que copiava, corria para ele, ajoelha- ya-me a seus pés ¢ atitava-me em seus bracos. “Entéo, Magdalena”, dizia ele suavemente, “que é isso? O que a perturba?” Mas eu nunca respondia, E como poderia? Os grandes deste mundo esto sempre sozinhos, € outra coisa no fazem senao seguir 0 exemplo do maior de todos, 9 Todo-Poderoso. Quando ele compunha, e mais ainda quando improvisava ao Srgio, naturalmente deixava falar 9 coracao e elevava-se até essas regides s6 dele conhecidas; 14 em cima, creio eu, devia sentir-se inteiramente consigo mesmo. Infelizmente uma grande parte da mais bela mit siea que concebeu nunca mais poderd ser escutada por ouyidos humanos; veio dele, mas como nunea a escreveu, 107 desapareceu com ele, B quando morrerem as poucas pes- soag que a ouviram, que escutaram maravilhadas as har- monias celestes que se desprendiam de seus dedos, nem mesmo a meméria dela ficaré. Essa ¢ uma das minhas grandes tristezas. Alguns dos seus alunos afirmaram-me que a musica improvisada com que meu marido enchia a igreja, que de~ pois do eco recaia em siléncio, era ainda mais extraordini- Na que as suas obras escritas, tao sobre-humanas no en- tanto, Com Sebastian verificava-se uma curiosa contradi- Ho: cuidadoso, meticuloso ¢ eeonémico nos detalhes da vida de todos os dias, na misica dava provas de uma infl- hita prodigalidade. Nao se deve, contudo, esquecer que essa viqueza, nao obstante ser verdadelramente um dom de Deus, fora adquirida @ custa de um trabalho penoso ¢ in- cessante. Hle estudou durante toda a sua juventude até a dade de trinta anos, ¢ eu poderia mesmo dizer, sem faltar ‘A verdade, até o dia da sua morte, Seu espirito jamais re- pousava na satisfagdo consigo mesmo, Nunca deixou de rever as misicas que compés, tendo-se empenhado nesse trabalho até o instante da sua morte, ¢ eu tive sempre a impressio de que as palavras do Kelesiastes “dos mui- tos trabalhos vém os sonhos” [he pertenciam, ‘Assim, quando se entregava & improvisacdo se poderia dizer que seus dedos faziam falar a musa da miisica, € que 9 tempo parava para os seus ouvintes. Se é absolutamente impossivel dar aqueles que nao o cuviram uma idéia da expressividade ¢ beleza tao particulares dos momentos em aque entregava sua inspiracao A capacidade de improvisagao, Dosso contudo oferecer a esse respeito uma pequena des- crigao, gracas a uma carta que Johann Kimberger escre- ‘yeu a um amigo, que teve a bondade de envid-la para mim. “Quando o senhor kantor, fora do culto, se senta ao érgao 108 e” (os amantes da miisiea freqientement is camino, ogres te an de composicao; ¢ sua inspiracao é tao poderosa que ele se entrega ao motivo por duas horas ou mais, Em geral co- ‘mega por utilizar esse toma numa introdugéo e depois numa fuga a orgio pleno. Em seguida varia-o com a ajuda da imudanga de registros, e transforma-o em trio, quarteto € ‘Deus sabe ainda em qué. Segue-se um coral, no decorrer do qual o tema reaparece em trés ou quatro vozes diferen- tes e nos desenvolvimentos mais variados e inextricaveis. A conclusao consiste numa fuga a érgio pleno, onde pre- domina um novo tratamento do tema; algumas vezes essa fuga ainda 6 seguida de um ou dois temas seeundarios, de acordo com 0 seu caréter.” ‘ A maioria dos organistas ficava surpreendida, veoes até alnstanda, vendo n muncira come Sebastien ma nejava os registros. Com efeito ele nao se limitava a uma regra, a nao ser que ela correspondesse a uma necessidad Os outros achavam que determinadas combinagées nao logravam de nenhum modo harmonizat-se, e pode-se imagi- NaF a surpresa que os eolhia quando ele comegava a tocar. Se bem que a registragao fosse estranha c nova para os seus ouvidos, eles eram forgados a reconhecer que jamais o drgio svara {20 bem, Sebastian também gostava muito, quando improvisava, de passar por todas as tonalidades possiveis, mesmo as mais longingiias, mas as suas modulagées eram to habeis que poucos ouvintes as notavam, Um misieo bem eonhecido na corte do rei da Priissia, 0 senhor Quantz, autor de um tratado sobre 4 arte de tocar flauta, que meu marido lera com muito interesse, disse nesse livro que "Se- bastian Bach, esse admirével misico, leva a arte de tocar Grgio a mais alto grau possivel de perfeigio, e eu espero que apés a sua morte se lute para que essa arte nao decline 109 ou se perea, como é de se temer, considerando © pequeno ni- mero de pessoas que atualmente se dedicam a ela”, Ao 2s crever essa passagem, porém, o senhor Quanta esquecia a quantidade de alunos que Sebastian tio maravilhosamente Impregnara de seu espirito. Todos esses tributos ao seu génio, que eu guardava no coragao, me davam multo mais prazer que a ele, Seus conhecimentos de teoria musical eram profundos mas nada tinham de pedantes, € por isso um de seus amigos pode dizer: “Pergunta-se se o grande Bach, que possui uma tao perfeita maestria da técnica, ¢ cujas obras nao se pode ouvir sem estupefagio, ao adquirir essa prodigiosa habilidade pensou uma tiniea vez nas rela- ces matematicas dos tons, ou mesmo se estudou matema- tea para eonstruir essas poderosas obras”. Eu. respond¢ certamente nao. Ele tinha a musica no sangue, ¢ a mate matica nao Ihe era necessiria, Possula, além’ disso, um curioso conhecimento intuitivo da vida dos sons, como se vé pelo que vou contar. Quando esteve em Berlim convi- daram-no para visitar 0 novo edificio da opera, e bastou-lhe atravessar a galeria da grande sala de refeigdes para adi- vinhar que se uma pessoa colocada num eanto dessa depen- déneia falasse em voz baixa seria compreendida nitida~ mente por outra que estivesse em certo lugar do lado dia- metralmente oposto e virada para a parede, ao passo que de qualquer outro ponto no se ouviria absolutamente nada, A experiéncia foi logo realizada, ¢ deu razio a Sebastian. Nao obstante, o proprio arquiteto ignorava as curiosas qua- Iidades actisticas da sala. ‘Talvez ele devesse & sua compreensdo essencialmente instintiva dos assuntos musteais o ser mais sutil que muitos professores, permitindo aos alunos de fato inelinados & ma- siea tomar certas liberdades com as regras. “Duas quintas e duas vitavas nao devem se seguit”, dizia-thes, com um 110 desses sorrisos que Ihe iuminavam o rosto severo; ¢ acres- centava: “nao somente é um vitiim,como também soa mal, € 0 que soa mal nao pode ser musical!” Ele mesmo nunea hesitou em violar uma regra, se porventura sentia neces- sidade disso. Sempre achei que esta frase de Martinho Lu- tero a respeito de um de seus miisicos favoritos se aplicava a Sebastian: “Ele 6 senhor das notas, que fazem o que ele quer, ao passo que os outras fazem 0 que elas querem”. Lutero dizia ainda, e meu marido citava muitas vezes esta frase com satisfacao: “O diabo nio precisa receber todas as belas melodias”, Lutero ¢ meu marido cuidaram de fazer com que isso nao sucedesse, 1 Vv Onde se fala da vid € da morte dos nossos fithos, da fama de Sebastian em Leipaig e, alérs isso, da sua longa quesido com 9 reltor Ernest Nossa famflia nfio cessava de aumentar, apesar de multas vezes, infelizmente, mao invejosa da morte vir esvaziar um berco que acabara de ser ocupado, Tempo hou- ‘ve em que, confesso, me parece cruel dar filhes ao mundo para perdé-los, ¢ enterrar nossas esperancas ¢ nosso amor has pequenas campas junto as quais Sebastian e eu muitas vezes fieamos de pé silenctosamente, de miios dadas. Eu sabia, no entanto, que esses sentimentos de revolta para com Deus eram fmpios, ¢ esforcava-me para reprimi-los. Minha filha mais velha, Christiane Sophie, viveu apenas trés anos; meu segundo filho, Christian Gottlieb, morreu com essa mesma idade; tivemos Ernestus Andreas alguns dias apenas, e a filha seguinte, Regina Johanna, ainda nao festejara o quinto aniversario quando nos deixou. Christine Benedikta, nascida no dia seguinte ao do Natal, néo pode suportar 6 duro inverno e morreu quando 0 novo ano ainda ndo tinha quatro dias. Hayiamos fieado téo alegres com 0 fato de nossa filha ter nascido pelo Natal! E assim, fiquei ainda mais triste quando Sebastian, com lgrimas nos olhos, se ajoelhou ao lado da minha cama para me comu- nicar que a pobredinha j4 nos havia abandonado. Christiane Dorothea ndo passoti dos primeiros doze meses senfo um vero, ¢ Johann August viveu apenas trés dias, Tivemos, pois, 0 desgosto de perder sete dos nossos filhos. Conside- 12 ravamos isso, todavia, como uma provaciio do Senhor, ¢ amdvamos ainda mais aqueles que nos restavam, Num dia em que acabavamos de regressar & nossa casa apés um desses enterros, como eu me deixasse ficar numa cadeira, triste e ociosa (pois nao podia me habituar a essas Gespedidas, apesar do consolo que as bozs vizinhas me pro- digalizavam, assegurando-me que a sorte de todas as mies era ter fithos para perdé-los, sendo uma felicidade fiear ao menos com a metade), Sebastian veio sentar-se a meu lado com um livro na mao e leu-me as palavras que Lutero pro- nunciow quando da morte de sua filha Magdalena, depois de té-la contemplado pela ultima vez no caixdo: “Minha Lena querida, como vocé ¢ feliz neste momento! Vai erguer- se de novo ¢ brilhar como uma estrela, um sol! Como 6 estranho saber que vocé ¢ feliz ¢ est em paz, ¢ no entan- to sentir-me tao triste!” Leu-me ainda esias linhas que Lutero escrevera a um amigo: “Certamente voc’ sabe que minha filha Magdalena, que eu tanto amava, acaba de nascer de novo no reino eterno de Jesus Cristo, Se bem que minha mulher e eu devéssemos agradecer a Deus a sua, feliz partida, que the permite escapar 20 poder do mundo, & luxtiria, aos turcos € ao Diabo, 0 amor natural é contudo to forte que nfo podemos suportar essa separacdo sem que nossos coragdes solucem e gemam, © gem experimentar em nds mesmos 0 amargo sentimento da morte. A imagem, as palavras e os gestos dela gravaram-se to profunda- mente em nossos coragées, durante sua vida e no periods da agonia, que nem mesmo a morle de Cristo eonsegue arrebatar-nos nossa angustia”. Depois de ter ouvido essa leltura pude entao chorar encostada no ombro de Sebastian, e senti-me um pouco consolada. 13 Ajudou-nos a suportar essas dolorosas separagoes 0 fato de que nossos lutos distribuirara-se misericordiosa- mente ao longo de um periodo de muitos anos, ‘Tinhamos ainda seis filhos vives para nos compensar da morte dos outros sete, Tristes ou nao, precisavamos zelar pela feli- cidade da nossa pequena familia, porque a tristeza nao vai bem ao rosto das criangas. Eu tinha felizmente uma tarefa 1a cumprir todos os dias, ¢ Sebastian, por seu lado, estava ‘ocupado 0 tempo todo com as aulas, 03 servigos na igreja €0 trabalho de criacdo. Durante 0 longo periodo em que o senhor Gesner foi teitor da Escola de Sao Tomés as coisas andaram bem e Sebastian passou alguns anos em paz, entregue aos seus deveres de kantor. Trabalhava enormemente, ¢ compés um grande ntimero de cantatas e outras obras que nem eu mes- ma fui capaz de reter na memoria, Bra natural que com © espirito livre de preocupagées ele pudesse escrever com mais liberdade ‘Arrastado a discussées, quer com 0 conselho quer com 6 consistério, (questées sérias que invariavelmente tinhan Por objeto os seus direitos e a sua situacao de kantor) sucedia-Ihe encolerizar-se (0 que nao resolvia as coisas), obstinar-se, evidenciando em grau supremo esse defeito dos Bach. Muitas vezes tentava persuadi-lo a ser menos Lena, a fazer uma dessas pequenas concessdes que freqiientemen- te ajudam a aplainar as dificuldades, mas era em vao, Nun- ca yoltava para mim a sua eélera, mas dizia, batendo-me no ombro: “Minha querida mulher, isso é coisa que me con- cerne, e nao a ti”, Todavia interessava-me muito, pois eu bem via o efeito deplorayel que tais coisas exerciam no seu equilibrio. | Quando o sr. Gesner se demitiu do cargo de reitor € st. Johann August Ernesti fol nomeado em seu lugar ind as coisas pioraram para nds. Devo relatar um caso cuja Jembranga sempre me entristece: a longa luta de Sebastian ‘com 0 novo reitor, 0 conselho e o consistério. Durou quase dois anos, € néo obstante Sebastian ter finalmente ganho a causa, gragas & intervengao do principe eleitor, ele nublou todo esse periodo ¢ preocupou meu marido muito mais do que ele queria admitir. Uma vez terminada a dissencéo, nunca mais Sebastian se entregou de tio boa vontade & escola e & vida musical oficial de Leipzig. No comeco tudo ia bem com 0 senbor reitor Ernesti, que aeabou por ser padrinho de dois dos nossos filhos. Muito mais novo do que Sebastian, que quase podia ter sido seu pai, considerava-se na obrigacao de tratar 0 kantor com todo 0 respeito, apesar de ser seu superior oficial, Mas a questao com 0 encarregado do coro Gottfried ‘Theodor Krause tornow impossivel qualquer amizade entre eles. As dificuldades nasceram talvez do fato de que 0 novo reitor era absolutamente indiferente & musica, Mais do que isso, desdenhava-a @ ponto de dizer aos alunos que via se preparando para tocar um instrumento: “Entao vocé quer se tornar um rabequista de estalagem?” Isso nfo teria tido conseqiiéncia, entretanto, se cle tivesse deixado ao kuntor a direcdo das questées musivais, mas nao havia meio de se resolver a fazé-lo. Intervinha em todas as nomeagoes, ordenando, por exemplo, ao encarregado do segundo coro que dirigisse 0 primeiro. Foi essa uma inlelativa infeliz, e ‘por isso Sebastian a mencionow na sua queixa 20 conselho, ois nao bastava efetivamente que o enearregado do pri meiro coro tivesse boa voz e bom caréter; era necessdrio também que fosse capaz de dirigir a mmisies na auséneia do Kantor. Os primeiros aborrecimentos surgiram por causa de ‘Theodor Krause, que Sebastian encarregara especialmente 15 de vigiar os meninos (alguns deles eram muito indiscipli- nados) e de punir com rigor toda a ma conduta na iereja. Por ocasiao da celebracéo de um casamento Krause viu que os rapazes se conduziam muito mal, € como as repetidas admoestagoes de nada servissem, achou-se no dever de cas- tigd-los; a desordem, porém, continuou, ¢ ele entao os puni novamente, mas desta vez a intengao original ja havia se perdido. Quando o reitor soube do ocorrido indignou-se, €, sem levar em consideragio o valor pessoal de Krause nem 0 falo de que cle estava a ponto de entrar para a univer- sidade, condenou-o a ser agoitado publicamente diante de toda a escola, Sebastian, aterrado com a dureza ¢ a injus- tiga de tal sentenga, declarou-se pronto a assumir a res- ponsabilidade pelo ato do seu encarregado, tentando por cuas vezes obter a anulacio da ignominiosa sentenga, mas © reitor nao quis recuar de uma decisio que somente The fora ditada pela célera, O pobre Gottiried Krause veio indagar 0 resultado de nossa intercessdo, ¢ quando Sebas- tian, om tristeza, Ihe comunicou o fracasso, empalidecea e disse: “Nesse caso, senhor kartor. nao me resta outra coisa a fazer sendo fugir da escola, pois nao posso enfrentar tal desonra’’; e o proprio Sebastian teve de concordar em que a fuga era a Unica soluco possivel. Além dessa con- denagdo intencional ¢ cruelmente vingativa o senhor Ernesti deixou-se levar pelo rancor a ponto de reter consigo © dinheiro que Krause depositara em suas méos, sendo necessaria uma ordem do conselho para obrigé-lo a resti- tuilo, Esse caso desanimou Sebastian, que néo s6 tinha pena de Krause mas também se sentia gravemente ofendido na sua situagio de karvor. Por outro lado ele nao tinha nenhuma eonfianga no reitor, ¢ esse incidente nao foi mais que o comeco da desavenga, O lugar de primeiro encarrega- do do coro, ocupado até entao por Gottfried Krause, fot dado 116 a um outro Krause, Johann, Sehastian gostava pouco desse jovem, e um dia em que regressava com o reitor de um casamento a que ambos haviam assistido comecaram a discutir a respeito das aptiddes desse Krause para ser no- meado prefeito ou encarregado. Sebastian declarou que o considerava um “eachorro mal-afamado”. Ernesti tove de concordar, até certo ponto, mas retorquiu que, apesar disso, Johann Krause se mastrava muito capaz e daria um bam prefeito. Longe de aprova-lo, mas cansado de discutir, Sebastian calou-se ' Depois da precipitada partida de Gottfried, Johann Krause foi nomeado, Como era de esperar, revelou-se tao insatisfatério que pouco tempo depois Sebastian foi obri- gado a rebaixa-lo & categoria de segundo prefeito, a fim de por 0 terceiro em sou lugar. Informou disso 0 reitor, apresentando-Ihe as razies para a sua decisfio. Krause, jul- gando-se prejudicado, recorreu a Ernesti, ¢ este, que a principio nfo fizera qualquer objec&o & troca, mandou-o procurar meu marido. Ao vé-lo Sebastian foi tomado de Juma indeseritivel eéiera ¢ disse a Krause, muito impulsi- vamente, receio eu, que o tinha rebaixado ao lugar de segundo prefeito para mostrar ao reitor que essas questes apenas diziam respeito ao kantor, Loge em seguida Krause relatou essas palavras a Ernesti, que naturalmente pedi uma explieacio a Sebastian, tendo este, sem refletir, repe- {do com mal contida raiva tudo 0 que hevia dito, sem nenhuma atenuagao, ‘Ah, nunea esquecerei a chegada de Sebastian 2m casa naquela noite! So mais tarde soube o que se tinha passado, mas logo adivinhei que se tratava do miserdvel Krause Parou no limiar do quarto to subitamente envelhecide que fiquei chocada, “Ninguém me diga nada agora”, disse ele; wi “eu seria capaz de falar coisas de que mais tarde me arre- penderia, Deixem-me suzinho um. instante.” Ele compreendia, ereio eu, que se colocara em posi¢ao errada ao se deixar arrastar pelo violento temperamento dos Bach, que quaso sempre dominava tao bem, entretanto. O fato é que, tendo o reitor pedido a reintegracao de Krause, Sebastian, apesar da célera, nada respondeu, No entanto, Krause, cheio de arrogincia, conduziu-se de tal modo no ensaio seguinte e mostrou-se tao incupaz de preencher 0 cargo de primeiro prefeito que Sebastian nada fez, O reitor declarou entio que, se sia ordem nao fosse cumprida, ele proprio a executaria no domingo seguinte, Sebastian fe- chou-se num siléncio obstinado e o senhor Ernesti cumpriu a sua ameaga, encarregando Krause de participar 0 fato ao ‘Kantor, Isso aconteceu antes do primeiro servigo da manha. ‘Meu marido foi imediatamente a presenga do superinten- denta, senhor Peyling, ¢ 0 informou do que estava ocorrendo, Foi em seguida procurar o segundo prefeito, Kiittler, na Igreja de Sao Nicolau, levou-o a Sao Tomas, onde o servico jé havia comegado, destituiu Krause no meio de um hino ¢ substituiu-o por Kiittler. Na minha opini Sebastian nio deveria ter feito isso; foi um ato desastrado, pois ele havia agido errado, Fol essa a tnica vez na minha vida em que me aventurei a pensar que ele nao se conduzira com prudéncia, mas o tempera- mento dos Bach era arrebatado, e um homem enfureeido nada prevé. (© senhor Ernesti estava naturalmente na igreja, tendo testemunhado esse comportamento arrogante. Apos 0 cul- to foi & casa do superintendente, conquistando-o para sia eausa, ¢ go comuniear isso a Sebastian este Ihe res- pondeu que nao cederia por nada deste mundo, e que levaria sua queixa por escrito ao conselho, Ora, nesse mesmo funes- ua to domingo, antes das vésperas, o reitor subiu ao estrado do érgio € proibiu publicamente os membros da coro, sob pena de graves sancdes, de acatar as ordens do karttor no que dizia respeito aos prefeitos. Tratava-se de medida extremamente ofensiva e injusta, pois, segundo um costume estabelecido havia muito tempo, era 20 kantor que cabia a iniciativa de todas as decisoes relativas acs coros. Quando Sebastian chegou para o ser- vigo © tornou a encontrar Krause no lugar de primeiro prefeito, simplesmente o agarrou pela gola e 0 pés para fora, Mas os cantores estavam tio amedrontados pelas ameacas do reitor que the foi impossfvel convencer um ‘inico deles a dirigir 0 motete, ¢ 0 servigo néo poderia ter sido feito se o seu methor aluno, Krebs, néo se tivesse oferecido, No dia seguinte Sebastian aprecenton ao conselho 0 seguinte relatério: “Ontem, no servigo da tarde, pelo temor de ser punido, nem um tinico aluno, para minha grande humilhagao, quis assumir a diregio do canto, e muito especialmente a do motete. Assim 0 culto teria sido inter- rompido se, por felicidade, um antigo aluno da Escola de Sio Tomas, chamado Krebs, nao tivesse se prontificado, a meu pedido, para assumir esse encargo, " Como ja fiz observar na minha humilissima nota, a substituigiio de prefeitos, de acordlo com os regulamentos escolares e 0 costume estabelecido, nao compete ao senhor reitor, que exorbitou de seus direitos e me ofendeu grave- mente em minha situagao oficial” No entanto o conselho no tomou posiedo a favor nem contra Sebastian; deixou as coisas correrem, de modo que essa infame questao se arrastou durante quase dois anos, com 0 conseqitente estado de guerra entre o reitor ¢ 0 ug Kantor, 0 que naturalmente teve o mais deploravel efeito sobre a diseiplina da escola, Ambos enviaram, para se justi- ficar, notas ao conselho, e Ernesti permitiu-se formular odious acusagdes contra Sebastian, de resto tao manifes- tamente falsas que nem nos podiam magoar. Dizia que meu marido — sempre to honesto — era um homem venall, e que em varias ocasides rapazes que néo tinham as qualidades requeridas para ser solista chegaram a essa condigao gra- cas a um velho escudo dinamarqués. Sebastian riu com des- ‘dém, quando esas caltinias chegaram ao seu conhecimento, mas sofia profundamente com a posigao a que fora forcado fa ficar apés 0 intolerdvel assalto que 0 reitor fizera a seus direitos. Era para ele um principio moral nao abrir mao de nenhuma de suas prérrogativas a fim de obter uma aco- modagao. Sendo um Bach, repugnavam-lhe os arranjos. “Tenho o eneargo especial ¢ 0 controle do primeira coro, e devo saber meihor que ninguém escolher aqueles que me convém, escreveu ao conselho. “Nao posso obter nenhum resultado dos alunos, se os protbem de me obedceer.” Ter- minava pedindo (o que me eomoveu até o fundo do coragao, pois, vinda dele, essa siplica assumia um tom patético) que se exortassem os alunos a prestar-Ihe o respeito © a Obediéneia devides, para que Ine fosse possivel, no futuro, desempenhar os encargos de sua fungao. _ TEntretanto, como ja disse, o conselho nao tomou post Go, ¢ as coisas foram se arrastando até que Sebastian, que acabara enfim de receber @ sua nomeagao para o eargo de compositor da corte, em Drescien, solicitado por ele trés anos antes, se permitiu pedir ao prineipe que a questo fosse investigada e os privilégios de kantor Ihe fossem devol- vidos. O principe responden favoravelmente e pediu ao Consistério para fornecer as devidas informagées sobre a causa, Nessa altura, por ocasido da feira da Pascoa de 1738, 120 o principe veio a Leipzig. Sebastian quis prestar homenagem a seu real protetor e organizou em honra dele um serao mu- sieal que foi muito bem acolhido, E quando os dirigentes da Escola de Sio Tomés viram os favores de que gozava, cessa- ram enfim as mesquinhas perseguicdes com que o tinkam acabrunhado, Indubitavelmente Sebastian tinha razio quanto a muitos pontas, pois contava a seu favor o costume ¢ uma longa tradicéo. No meu modo de ver, andou errand no comeco, por eatisa da sta violencia e da atitude provocativa, Imagine-se, entretanto, quanto devia ser intoleravel para um homem ja célebre (e havia muitos, fora do conselho e do consistério, que se referiam a ele como “a gloria de Leipzig”) deixar-se ofender e corrigir por um individuo to poueo dotdo como o senhor Ernesti, ¢ ficar exposto a inso- 2éneia de um rapaz mal-cducado como Krause, assim como 4 falta de respeito e & desobediéncla, secretamente instiga- das, dos alunos da escola. Tudo isso me fez sentir o desper- dieio que constituia para Sebastian o fato de ter de ensinar mitsica a rapazes. Muitos outros podliam fart-lo, ao passo que ninguém era capaz de produzir o que ele criava, Todas essas coisas nao passaram sem deixar vestigios, pois meu marido envelheceu e tornou-se insocidwel. Fechou- se em casa e dedicou-se cada vez mais exclusivamente & sua arte, deixando também de participar da vida publica de Leipzig. Os filhos, os alunos, a maioria dos quais fervia de indignagio a0 pensar no tratamento infligido a sou mestre venerado (iam mesmo ao extremo de reclamar a cabeca de Ernesti num prato), e eu mesma, todos nos esfor- cavamos, com nosso respeito e dedicacao, para eurar suas feridas, Ele nao se exteriorizava facilmente, e sé uns poucos dentre os que Ihe eram intimos sabiam o motivo de suas pre- ocupagées. Muitas vezes, no decorrer desses longos meses, wh quando eu o via abaixar os cantos da boca e curvar a grande cabeca lamentava que nao tivéssemos partido para a Riissia ou qualquer outro pais onde soubessem apreciar melhor @ sua grandeza e se tivessem mostrado menos eruéis para com suas fraguezas, i Mas, louvado seja Deus, essa época nio nos trouxe ape- nag atribulagdes. Depots de ter tomado posse no cargo de compositor da corte Sebastian dirigiu-se a Dresden e tocou, em 1° de dezembro, das duas as quatro horas da tar- de, no novo orgao da, “Frauenkirehe”, construido por Sil- bermann. Assistiram a esse concerto varios misicos eminen- tes © muitas personalidades, entre elas 0 embaixador da Ritssia e o conde Kayserling, que 0 ouviram com a mais pro- funda admiragao. Porém, apos esse sucesso, teve de regres- sar a Leipzig para se ver convocado pelo conselho € censura- do oficialmente pelo fato de um dos mogos do coro ter ento- ado um hino demasiado baixo! Recomendaram-Ihe provi- Genelar para que tal nao tornasse a suceder. © conde Kayserling, grande amante e conhecedor de miisica, logo se tornou tm dos mais entusidsticos admira- Gores de Sebastian, tendo ido a Dresden em muitas ocasides para vé-lo ¢ ouvi-lo, Foi por seu intermédio que Johann Goldberg se tornou aluno de Sebastian, um aluno extraor~ dinariamente brilhante e que astudava eravo sem nunca se cansar, em breve adquirindo uma delicadeza, uma des- treza e uma velocidade de dedos absolutamente admirdveis Foi para cle que Sebastian esereveu a Aria com trinta va- riagdes, obra de uma tal dificuldade de execugao que poucos miisicos conseguem tocar. Sebastian chegou a seu tema ao compor uma “Sarabanda”’ em so! maior, que copiei em meu segundo album, Foi escrita a pedido do conde Kayserling, fa fim de que Goldberg a tocasse. O conde softia de insonia e de melancolia, que 56a mitsica podia expulsar. Nunca se 122 cansava de ouvir essas varlagdes, e para recompensar Se- bastian presenteo-o generosamente com uma caixa de rapé que continha cem luises de ouro ‘Mas os presentes © os louvores dos grandes no eram as lnicas homenagens que meu marido recebia. Muito se sensibilizou com 0 humilde tribute de um colega, Andreas Sorge, organista de corte e de cidade do conde Reuss, que the dedicou algumas pequenas pecas para cravo.” “Ao principe de todos os cravistas e organistas”, lia-se na dedi- catéria; e mais adiante: “O grande poder musical de Vossa Exceléncia @ acrescido de uma virtude admiravel: a bene- voléncia e © sincero amor ao préximo...” Creio que ja falei do temperamento hospitaleiro de Sebastian, Nossa modesta mesa estava aberta para todos aqueles que vinham a Leipzig impelides por um amor sin- cero pela mitsiea, fossem eles personalidades célebres ou simples estudantes, Meu marido prodigalizava-lhes os tesoures de sua ciéncia ¢ as belezas de sua arte. Ents aqueles que sempre nos visitavam devo eitar o senhor Hasse, diretor da opera de Dresden ¢ célebre compositor, e sua mulher, a grande cantora Faustina Bordoni, A senhora Hasse, ‘mutto alegre © sempre extremamente clegante, mostrava-s¢ amdvel e no poupava ¢logios 4 musica de Sebastian, Dotada de uma voz poderosa, interpretava com grande perieicéo algumas das composicdes do marido. Sebastian gostava muito da companhia dela e da de Hasse, mas me disse um dia, depois que eles se tinham ido: “Tenho sempre a impresséo de que a minha Magdalena se esconde num canto quando a senhora Hasse esta aqui”. E era exa- tamente como me sentia, Penso que as pessoas viajadas que recebemm tantas aplausos e homenagens, como a senho- ra Hasse, dominam 0 ambiente. Mas ambos me agradayam porque admiravam meu marido e lhe faziam elogios. Sebas- 123

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