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3ol C855 2.0% 1998 Alain Coulon ETNOMETODOLOGIA ‘Tradugao de Ephraim Ferreira Alves Capitulo IV Sociologia Leiga e Sociologia Profissional Eim 1967, um encontro organizado em Purdue reuniu durante dois dias cerca de duas dezenas de socidlogos, que 14 estavam para discutir sobre a etnometodologia. Durante esse col6quio Harold Garfinkel foi convidado pelo Presidente da sessio a precisar as relagSes entre . aetnometodologiae aetnociéncia, easeexplicar assim sobre as origens da palavra’, Ele entdo contou como, em 1954, fora levado a trabalhar com Fred Strodtbeck e Saul Mendlovitz, que ent&o lecionavam na Faculdade de Direito de Chicago, sobre uma pesquisa que estavam efetuando acerca dos Jjurados dos tribunais. Strodtbeck tinha secretamente instalado microfones na sala de deliberagées do tribu- nal de Wichita, a fim de gravar as deliberagses dos jurados. Garfinkel se deixara impressionar pelo fato de que os jurados, sem serem formados nas técnicas jurfdicas, eram capazes de examina um crime e pro- 1..As atas deste coléquio foram publicadas por Richard J. Hill e Cathleen ‘Stones Crittenden (Eds.), 1968: Proceedings of the Purdue Symposium (on Ethnomethodology, Institute Monograph Séries,n. 1, Institute or the (Review Symposium in is parcialmente roproduzida -extrato fol por sua vex traduzido gm “Argument ethnombtadalogiqus’,p. 60-70 ansim como em Sacié nunciar-se sobre a culpabilidade dos seus autores. Para fazé-lo, langavam mio de procedimentos e de uma légica de senso comum, como por exemplo distin- guir o verdadeiro do falso, 0 provavel do veross{mil, eram capazes de avaliar a pertinéncia dos argumentos aduzidos do decurso do processo: “Bes se mostravam preocupados com a exatidao de suas descrigdes, de suas explicagdes e de sous argumentos. Nao pretendiam estar usando 0 ‘senso comum’, quando utilizavam nogées de ‘senso comum’. Queriam agir no espfrito da lei, e ao mesmo tempo queriam ser justos. Se vocé os pressionasse, no sentido de dizerem o que enten- diam por estar no espirito da lei, a sua atitude mudava jmediatamente e respondiam: ‘Nao sou um jurista. Nin- guém pode verdadeiramente esperar de mim que eu saiba o que é legal e dizer-Ihe. O jurista, afinal, 6 0 senhor!” Havia ali praticas de avaliagao, de certo modo, ede julgamento, passiveis de descri¢o, mas que Garfinkel io conseguia ainda designar por um termo adequado. Ele encontrou o termo etnometodologia um pouco mais tarde, em 1955, parece, e conta como o “acaso” 0 ajudou, néo mais trabalhando com as deliberagées dos jurados, mas lendo documentos etnogréficos: “Gu estava trabalhando com o fichério das éreas trans- culturais de Yale. Folheei por acaso 0 catélogo sem a intengio de encontrar esta palavra. Fui percorrendo os titulos e cheguei & secpdo etnoboténica, etnofisiologia e etnofisica. Ora, eu estava pesquisando jurados que apli- cavam uma metodologia... Mas como dar um nome a essa habilidade, mesmo que fosse apenas para me re- cordar de sua substincia?” “8 foi assim que a palavra etnometodologia foi usada no infcio. Etno sugeria de uma forma ou de outra que um membro dispée do saber de senso comum de sua socie- dade enquanto saber ‘do que quer que séja’. Se se tra- tasse de etnobotdnica, estariamos ldando, de uma maneira ou de outra, com conhecimento ¢ com a compreensio que os membros tém daquilo que, para eles, constituem métodos adequados para abordar ques- tes de botdnica. E tao simples assim, e a nopio de | ( | etnometodologia ou o termo etnometodologia eram to- mados neste sentido”. Os jurados utilizam portanto etnométodos, isto 6, uma Togiea do senao comum que “itm dentro de si mesmos”, que ¢ “encarnada” e que ndo é uma légica juridica espetializada tomada de empréstimo néo se sabe de onde para as necessidades da causa: “Bu tinha encontrado jurados que agiam de uma manei- ra muito semelhante A dos habitantes das has Molu- cas, provavelmente quando se servem da sua termi- nologia etnomédica para seus problemas de etnomedi- cina... Pensei que eram situagées aparentadas... Nocaso dos jurados, o bom senso das investigagSes de cada um dava na vista, era para todos observavel e reconheefvel. Era disponfvel, de uma maneira ou de outra, ao olhar singular de cada membro”. Isto leva Garfinkel a discernir dois sentidos, no contraditérios, mas ao contrério complementares, da palavra etnometodologia: a) Ele faz expressamente a aproximago entre este termo novo — etnométodos — que ele tem que inventar para “colar um rétulo” no fendmeno que observou em seu estudo sobre o trabalho dos jurados, e de outras expressies bem definidas, tomadas de empréstimo do campo da antropologia, como a etnomedicina e a etno- botdnica. Da mesma maneira que a botfnica é tratada como um corpus na expresso etnobotanica, assim a metodologia, na expresso etnometodologia, 6 conside- rada como um tema deestudore nfo § reduzida a uma aparelhagem cientifica. As metodologias — que Garfin- kel designa como “raciocinio sociolégii ise \- pregadas pelos_membros_comuns da sociedade, observad 10 corrente dos sous negécios coti- dianos, vém a ser o corpus da pesquisa etnometodol6- gica. Ela vai portanto interessar-se pelos métodos que eu e meus semelhantes empregamos, que nos permi- tem reconhecer-nos como vivendo no mesmo mundo.- 'b) Sem terem previamente recebido alguma forma- so juridica, os jurados esto de posse dos métodos adequados, enquanto os membros de sua sociedade ! conhecedores da moral de sua vida cotidiana, para | comprovar a sua competéncia para julgar questées judicigrias, Esses métodos so locais, particulares de ‘uma “tribo”, e ndo sao logo de infcio legfveis para um estranho. Designé-los como “etnométodos” significa marcar a pertenga desses métodos a um grupo parti- cular, a uma organizagdo ou instituigdo local.jA etno- metodologia vem ento a ser 0 estudo dos etnométodos que os atores utilizam no dia-a-dia, que Ihes permitem { viver juntos, inclusive de maneira conflitiva, e que regem as relagdes sociais que eles mantém entre si. ~~ 4: 1, Conhecimento pratico e conhecimento | cientifico / _ Aprodugiio de uma visibilidade do social passa por ~& [uma objetivagio que nao é monopélio da atividade | cienttficaj Para a etnometodologia, a atividad fica 6, como tal, o produto de um modo de conhecimento prético que pode, ele mesmo, tornar-se objeto de pes- quisa para a sociologia, ser por sua vez.cientificamente interrogado. Asociologia de Garfinkel “ “ cimento prtico & “esta faculdade de interpretag&o que todo individuo, erudito ou comum, possui e aplica na rotina de suas atividades préticas cotidianas... Procedimento regido pelo senso comum, a interpretagio se pbe como indisso- Imente compartilhada pelo conjunto dos atores sociais..j modo de conhecimento cientffico no se distingue em nada do modo de conhe- cimento prético quando se considera que se acham confrontados com um problema de elucidagéo similar: | | | | 2. A. Ogien, 1984: Positivté de la pratique. Lintervention en psychiatric ‘comme argumentation, tee doutaral do ciclo, Université de Paris VIT, p62, nenhum deles se pode desenrol: uma Jinguagem natural’ e sem ap! de propriedades indiciais que Ihe no aferentes’ dem, p. 70). Para os etnometodélogos, o corte epistemolégico entre conhecimento pratico e conhecimento cientifico néo é da mesma natureza que o corte habitualmente admitido pelos sociélogos. 2. O ator social nfo é um idiota cultural Garfinkel subverte a relagio do ator com seu meio; ele solapa a tendéncia sociolégica que consiste em opor o desconhecido e o manifesto, Para a sociologia, com efeito, o sentide.das agdes dos membros s6 6 acessivel social dos comportamentos humanos, O ator ignara a fonte de suas a es cotidi: nao sabe que vai ao museu ou que bate fotografias por ser um membro da classe média. O socidlogo cientista o trata assim, se- gundo a ins ente Térmule de Garfinkel, como “um idiota cultural”: —— sociélogos concebem o homem em sociedade como um ta desprovido da capacidade de julgar... O ator 80% estabilidade da sociedade agindo em conformidade com alternativas de apo preestabelecidas e legitimas que a ( cultura lhe fornece” (citado em “Arguments”). 8. Objetivismo e subjetivismo Podemos formalizar essa reviravolta utilizando termos que no sio de Garfinkel, nem os da etnometo- dologia, mas que nos parecem pertinentes para indicar o lugar polémico da etnometodologia, assim como de outras correntes contempordneas, na sociologi: ~0 objetivismo isola o objetivo da pesq duz uma separagio entre observadores e observados, relega o pesquisador a uma posig&o de exterioridade, sociélogos 6 um ‘idiota cultural’ que produz a + sendo este corte epistemol6gico julgado necessério & “objetividade” da observacso; nega-se a subjetividade do pesquisador, deixa-se em suspenso, é colocada entre paréntesis, durante o tempo da ‘pesquisa. & sempre tonsiderada em nome da objetividade, como parasita do processo de pesquisa. A tradigao objetivista vai A procura de objetos de pesquisa que aceitam as pressves dos métodos de observagiio e de produgéio que sio geralmente baseados na quantificagao, ou ao menos na cbsesséio metrondmica de tudo medir; a concepeio global do quadro de anélise tem como base a idéia de que uma ordem ideal se reproduz, ordem na qual o ator nao tem consciéncia do significado dos seus atos. Bis af a “fixidade”, a universalidade, a estabilidade relati- va desta ordem, que a faz analisével. — O subjetivismo opera na contracorrente dessas concepgies: o objeto nao é mais uma entidade isolada, esté sempre em inter-relagiio com a pessoa que 0 estuda; nao existe corte epistemol6gico, a necesséria objetivagdio da prética leva em conta asimplicagdes de todo o género do pesquisador, cuja subjetividade é restabelecida e analisada como um fendmeno perten- cente de pleno direito ao terreno considerado, que 6 heuristicamente levado em conta; os métodos usados dependem mais da andlise qualitativa, a Gnica que pode ser significativa, assim como o no-mensurével} 08 quadros sociais resultam de uma continua constru- go, de uma permanente criagio das normas pelos préprios atores; 0 subjetivismo reabilita o transitério, 6 tendencial e o singular. Fundamentalmente, objetivismo e subjetivismo no estiio de acordo quanto A natureza da agao social e quanto ao papel atribufdo ao ator. Seré ele manipu- lado, sem o saber, por determinismos que 0 superam? O trabalho do socidlogo consistiria, ent&o,em mostrar os significados ocultos, em tirar para fora daseu escon- derijo o trabalho clandestino dos determinismos so- ciais. Ou, ao contrério, como o pretende a etnome- todologia, durante suas ‘atividades cotidianas, nao seré suas atividades cotidianas, no seré ~~ ele capaz de raciocinio, de compreensio.e de interpre- tagio de suas agoes? ( ‘Orpapal do sociélogo, pol condigées, ficaria Modificado, tendo neste caso que analisar as racionalidades demonstradas pelo ator no decurso de suas atividades correntes. Numa palavra, o ator age ou 6 agido? Podem-se adivinhar as conseqiiéncias de tamanho antagonismo no campo da sociologia. Sao dois pontos de vista opostos, a respeito das instituigées, um ligado ao objetivismo ¢ o outro ao subjetivismo: um definiré a instituigdo como uma forma social definida fora dos atores, como um conjunto de normas que se impoem a eles; 0 outro inverterd a relagdo que os membros man- tém'com suas instituigdes, que contribuem ao contré- rio para fabricar em uma permanente bricolagem institucional. Sem divida, essas questdes tém sempre uma importéncia capital. A oposig&o epistemoldgica que encerram néo 6 nova, Ela perpassa a reflexéo sociolégica desde as suas origens, com duas concepsdes da ciéncia, da prética, da racionalidade, da relagao | ator com essa racionalidade e com o que significam as suas agdes. Para os etnometodélogos néo existe diferenga de natureza entre, dé um lado, os métodos emprogados pelos membros dé uma sociedade para se compreende- rem e compreenderem 0 seu mundo social e, de outro lado, os métodos usados pelos sociélogos profigsionais para chegarem a_um_conhecimento_com pretensies cientificas deste mesmo mundo. Garfinkel demonstra essa identidade de métodos entre sociologia leiga e profissional por um experimento ao qual consagra um capftillo dos Studies. 4, O método documentério de interpretagio _Garfinkel toma emprestado de Mannheim o con- ceito de “método documentério de interpretagao” que o Autor dos Ensaios sobre a teoria do conhecimento va reservava para o conhecimento cientifico*. Ele mostra que esse “método documentério” j4 n 86 compreendem r “59 método documentério de interpretagdo contrasta com 0 método de observagao literal, mas leva em conta aquilo que muitos pesquisadores em sociologia, amado- res ou profissionais, fazem realmente, Segundo Man- nheim, o método documentério de interpretacao implica a busca’de um ‘padrdo idéntico homélogo subjacente a, uma enorme variedade de realizagies totalmente dife- réntes de sentido’. O método consiste em tratar uma paréncia de fato como ‘um documento de’, como capaz de ‘designar’ (‘mostrar’), como ‘sendo em nome de’ um suposto modelo subjacente. Este modelo subjacente é no apenas derivado das evidéncias documentérias dividuais, mas as evidéncias documentérias individuais por sua vez sdo interpretadas na base do que 6 ‘conhe- cide’ desse padrio subjacente. Cada um é utilizado para elaborar o outro” (Studies, p. 78). ‘Wilson, por seu lado, resume o método documenté- rio da seguinte maneira (p. 68): “& um processo que consiste em idedtificar um ‘pattern’ (padrao) subjacente a uma série de aparéncias, de tal modo que cada aparéncia seja considerada como refe- rente a, como sendo uma expresso ou um ‘documento’ do padrao subjacente. No entanto, o padréo subjacente como tal se identifica através de suas aparéncias indi- viduais concretas, de tal sorte que as aparéncias que refletem o padrio e préprio padréo se determinam reciprocamente™, Deve-se compreender “pattern” como aquilo que é “accountable”, isto 6, relatével-observavel-descritive!, que remete a um sentido, e, portanto, a um processo 8. J, Gabel, 1987: Mannheim et le marsieme hongrois. Paris. Méridiens ‘incksieek. 4.TP. Wilson, 1970: Normative and Interpretative Paradigms in Sociology, ‘em: J.D. Douglas (Ed), Understanding Everyday Life, Londres, Routled- ge & Kegan Paul, p. 57-79. pacha an sn a my de interpretagaio. Como 0 sublinha Jacqueline Signo- rini (p. 78): “O pattern o tema, mas é também 0 procedimento de enfriciagfio~ dizer e como dizer: os elementos de biogra- fia comuns a duas pessoas, a inquietude, a cumplic de, o modo de conduzir a vida famil pertence aos elementos do conhecimento do senso co- mum, aos fatos socialmente sancionados. A accountabi- lity do pattern é algo que se supée conhecido de todos. Eis por que, na organizagio de uma atividade pratica como a conversagao, continuamente se faz referéncia a um pattern para compreender os elementos de detalhe, 08 indiciais da conversagao. A linguagem é deste ponto de vista 9 meio natural de exibigo e de confecgio dos patterns”. Com efeito, sempre se est4 a procura de patterns na elaboragiio de nossas conversas cotidianas, caso contrario nossas trocas de idéias nfo teriam sentido. Os patterns subjacentes devem imperativamente ser convocados para compensar e “colocar em xeque” a irremedidvel indicialidade da linguagem. Mas isto nao é verdade s6 relativamente a linguagem. Q método documentéria de interpretagio permite ver as agdes dos_outros a “patterns”, e esses ‘Spatterns” permitem-ver-o.qua so as acdes. Os indivi- duos desvelam para si a realidade social, eles a tornam “legivel”, construindo “patterns” visiveis. Sem cessar so as acdes interpretadas em contexto por sua vez compreendido c é através dessas agdes, Com isso podemos reii tar_posteriormente certas cenas_vividas, modificar nossos juizos sobre as coisas, sobre os acontecimentos. Garfinkel pretende que esse “método” permite sa- ber aquilo de que uma outra pessoa fala, dado que ela nunca diz exatamente o que deseja exprimir. E igual- ‘imente aplicado pelos sociélogos profissionais: 65. J. Signorini, 1985: De Garfinkel & la communauté électronique Géocub: essai de méthodologie (et recherche ds fondements), DEA de etnologia, Université de Paris VI. “O método documentério ¢ utilizado toda vez que o pesquisador constréi uma histéria de vida ou uma ‘his. toria natural’. A tarefa de historicizagdo da biografia de uma pessoa repousa sobre o uso do método documenté- rio para selecionar e ordenar os acontecimentos passa. dos, de sorte que se atribua as circunsténcias presentes a sua pertinéncia passada e suas perspectivas futuras. O uso do método documentério néo est reservado aos casos de procedimentos ‘suaves’ e ‘descrigdes parciais’. Intervém igualmente em casos de procedimentos rigo. rosos onde se imagina que as descrigSes esgotam um conjunto definido de possiveis observaveis” (Studies, p. 5. Um experimento O funcionamento do método documentério de in- terpretagao se torna visivel mediante uma experiéncia de laboratério. Garfinkel convida dez estudantes vo- luntérios para participarem de uma experiéncia que “consistia em estudar 'métodos alternativos de ‘psicote- rapia como um meio de aconselhar as pessoas sobre os seus problemas individuais”. Cada estudante € visto individualmente por um experimentador, que lhe 6 apresentado como um conselheiro e orientador. Depois de ter exposto o contexto do problema sobre o qual deseja ser aconselhado, deve o estudante apresentar 0 “conselheiro” ao menos dez perguntas, de tal modo que o experimentador possa responder-lhe, dizendo sim ou ngo, e aconselhé-lo assim do melhor modo possfvel. A primeira pergunta apresentada © experi- mentador, que se encontra num cémodo vizinho, res- ponde sim ou ndo por um interfone. O estudante deve entdo desligar o sistema de comunicagdo de sorte que © conselheiro “néio possa ouvir suas observagées” ¢ registrar num megafone os comentarios que faz da conversagao que acaba de ter, e claro da resposta que acaba de obter. Terminado o comentario, ele de novo liga o sistema e faz a pergunta seguinte, e assim por diante até que termina a conversagéo. Em seguida, 0 58 et estudante deve resumir suas impressbes sobre o dié- logo inteiro, e depois 6 entrevistado. As respostas “sim” ou “néo” dos “conselheiros” eram de fato determinadas de antemdo, gracas a uma tabela de ntimeros aleatérios. No entanto, elas foram sempre consideradas pelos estudantes, mesmo quando eram surpreendentes ou contraditérias, como respos- tas As perguntas feitas, como se vai ver nos trechos seguintes (Studies, p. 80-88, e Signorini, 1985, p. 41- 54). “SUJEITO: Kis a situagio em que meencontro. Sou de religido judaica, e j4 faz agora uns dois meses que estou saindo com uma moga que nfo é judia. Meu pai nio se opde abertamente a essa situagao, mas eu sinto ‘80 mesmo tempo que ela ndo Ihe agrada verdadeira- mente. Mamde pensa que enquanto papai néo se opoe abertamente a essa situago, eu deveria continuar saindo com essa moga até que ele diga explicitamente ser contra. Arazo pela qual eu penso que ele no est gostando 6 que nunca diz: no saia com ela; mas ao mesmo tempo ele insinua e sugere algumas coisas que me deixam mal quando vou sair com essa moga. Per- gunto entao: vocé pensa que nessas circunstfincias devo continuar ou parar de sair com essa moga? Diga- mos, de modo mais preciso: pensa que eu deveria continuar a sair com essa moga? “EXPERIMENTADOR: Minha resposta 6 nao. “SUJEITO: Nao. Ora, é interessante. Néo me pa- rece que haja uma grande animosidade entre papai e mim mas, entéo, talvez ele sinta que dessa situagio poderd surgir um desacordo mais profundo. Suponho, ou talvez seja mais facil para uma pessoa de fora ver certas coisas para as quais sou cego no momento. “Bu gostaria de fazer agora a minha segunda per- gunta, “EXPERIMENTADOR: Pois nfo. “SUJEITO: Vocé acha que eu deveria ter uma nova conversa com papai sobre esta situagiio, ou no? Eu deveria discutir com papai sobre o fato de sair ou néo com esta moga que néio é judia? “EXPERIMENTADOR: Minha resposta 6 sim. “SUJEITO: Bom, penso que isto 6razodvel mas nfo sei na verdade o que lhe dizer. Quero dizer que ele nao parece muito compreensivo. Noutros termos, ele pare- ce ter medo de discutir explicitamente a situagao. Ao menos 6 0 que me parece no momento. Mas imagino que valeria a pena ter uma conversa com papai, se quero de fato continuar saindo com. ela. Nao estou apaixonado de verdade por ela, mas nao sei verdadei- ramente o que pode acontecer. Penso que deverfamos discutir o assunto e ver quais as futuras possibilidades e como é que ele se situa com relagdo a isto, Pode ser que ele no esteja tao firmemente contra porque por enquanto s6 estamos saindo juntos, mas talvez ele veja complicagies futuras sobre as quais gostaria de dizer © que verdadeiramente pensa. Estou pronto para a minha terceira pergunta. “Se, depois de ter conversado com meu pai, ele me diz para continuar a sair com essa moga, mas ao mesmo tempo ele me der a impressiio de ser contra, de néo querer que eu saia com ela, mas se comporta assim porque pensa em ser um bom pai, devo nessas condi- ges continuar a sair com esta moga? “EXPERIMENTADOR: Minha resposta é sim. “SUJEITO: Ah! Sua resposta me causa verdadeira surpresa. Eu esperava uma resposta negativa. Isto se explica talvez pelo fato de vocé nao conhecer meu pai e suas reagdes, e ele parece uma pessoa sensivel e, por conseguinte, presta muita atengéio & sua maneira de se comportar. Embora ele pudesse ter dito: - continue saindo com esta moga, — eu poderia talvez me sentir culpado, sabendo que ele nao queria de verdade que eu continuasse saindo com ela. De fato, eu no sei o que esclareceria realmente a situagdo. Portanto, vamos talvez examinar mais amplamente este ponto e isto constitui o objeto de outra pergunta. Estou pronto para a quarta pergunta, agora. “Se, depois de ter discutido isso com papai e rece- bido uma resposta positiva, mas percebendo ao mesmo tempo que a sua opinido nfo é sincera, vocé acha que seria bom para mim fazer minha mée intervir, a fim de discutir seriamente com ele e tentar por conseguin- te obter a verdadeira opinido de papai sobre a situa- $i? “EXPERIMENTADOR: Minha resposta é sim. “SUJEITO: Parece-me correto. Penso que ele ser talvez mais honesto com mame a este respeito. Com certeza, poderia haver ainda um problema. Mamae serA completamente sincera comigo? Ela parece mais Tiberal que papai, o que no quer dizer que mamée mentiria, mas ela poderia ser um pouco mais liberal sobre coisas como estas e talvez durante a conversa com papai ela se esforgasse para me apoiar e, por conseguinte, mais uma vez eu obteria duas respostas. Se continuo pensando assim, creio que no vou chegar a um primeiro elemento de resposta, mas apesar de tudo sinto que avangamos um pouco. Estou pronto para a minha quinta pergunta. “Vocé pensa que devo dizer a esta moga niio judia, com quem estou saindo, o problema que tenho com meus pais em casa, ou deveria esperar até... mas esta 6 outra pergunta, Vocé pensa que eu deveria falar com esta moa, com quem estou saindo, sobre os problemas que tenho em casa a respeito de sua religido? ““EXPERIMENTADOR: Minha resposta é nfo. “SUJEITO: Pois bem, mais uma vez fico surpreen- dido. Com certeza, isso pode depender do apego que se pode ter a uma moga e do tempo que espero sair com ela. Mas pessoalmente penso que é correto, simples- mente, falar sobre o problema, pois se ela est4 mais comprometida que eu poderia... seria melhor para nés compreendermos a situagéio em sua totalidade, e se ela is to que isso ensa que isto seré um obstéculo, penso ent Peria fim a situaglo, diretamente, sem que eu The falasse. Parece-me que eu manifestarei isto varias jmaneiras e ela nio ficard a par da situagio verdadeira @ talvez reaja contra mim de uma certa mavolra, éstragando a nossa relagéo e todo o resto... Hstou pronto para a minha sexta pergunta. . “Se eu estivesse apaixonado por essa moga e dese- jasse fazer projetos de casamento, voce acha que seria vorreto Ihe pedir que trocasse a sua religidioe adotasse a minha? “EXPERIMENTADOR: Minha resposta é nao. “SUJEITO: Entéo, néo. Ora, estou num impasse. No! ‘Aina, penso sinceramente que fui edueado de ma certa maneira e creio que ela também, ¢ acho que sou bastante apegado a minha crenga, Ndo que eu seja totalmente ortodoxo ou algo semelhante, mas com toda a certeza sempre hi press6es familiares. F estou mais fou menos certo quanto ao que ela sente, infelizment funea vi uma familia com diferengas confessionais ter éxito realmente na sua superagao. Entiio, no set. Penso que eu seria talvez tentado a pedirlhe que mudasse, Mas néo acho que seria verdadeirament capaz. Estou pronto para o nimero sete. “Vocé pensa que a situagio melhoraria se fossemos casadee ese nenhum de nés desejasse falar das fe rengas confessionais, ou adotar esta ou aquela opinio, ese educdssemos nossos filbos em uma religidoneutra, diferente daquelas em que nés dois acreditamos' “EXPERIMENTADOR: Minha resposta ésim. “SUJEITO: Entéo, talvez isto fosse uma solugéo. Se pudéssemos encontrar uma Teligifio que integre as nossas duas crengas até um certo ponto... Percebo que Jsto seria quase imposstvel de conseguir. Talvez, om certo sentido, esta religido neutra seria uma coisa feita quase por nés mesmos. Pois eu penso honestamente que a educagio religiosa, seja qual for a confisso, néio for levada a seus extremos, 6 boa. Cada pessoa deveria receber uma certa dose de educagiio religiosa ministrada dessa maneira. Talvez constituisse uma solugio para o problema. -Parece-me que eu deveria prosseguir neste sentido um pouco.mais a ver exata- mente 0 que acontece. Estou pronto para o ntimero oito. “Se fosse para nos casarmos, seria prefertvel para, nés vivermos em uma nova comunidade onde ndo terfamos contato com nossos pais, se tivéssemos que suportar muitas pressdes familiares por causa de nos- sas diferengas religiosas? “EXPERIMENTADOR: Minha resposta 6 no. “SUJEITO: Ora, sinto-me tentado a concordar com esta resposta. Penso que ndo adianta muito fugir de um problema e talvez seria uma das coisas que acaba- rfamos aceitando a longo prazo, e assim nossas fam{- lias e nés poderfamos continuar vivendo juntos em harmonia. Ao menos desejo que isso ocorresse assim, se a situagdo chegasse a esse ponto. Penso que seré preferivel para as duas familias saber que nfo vamos resolver o problema se fugirmos dele. Entao, o melhor 6 que fiquemos aqui e procuremos resolvé-lo. Estou pronto para o niimerd nove. “Caso chegdssemos a nos casar, e educar nossos filhos, vocé acha que deverfamos explicar e dizer a nossos filhos que tivemos outrora esta diferenga reli- giosa, ou deveriamos nos contentar em educé-los nessa nova religido, que seria a religido deles, de que fala- mos, e deix4-los acreditar que era aquela na qual nés mesmos haviamos crido? “EXPERIMENTADOR: Minha resposta é nao. “SUJEITO: Mais uma vez, estou mais ou menos de acordo com vocé. Penso que seria preciso dizer-lhes, pois eles o descobririam sem divida alguma. E se descobrirem a diferenga que havia entre'nés antiga- mente, poderdo pensar que dissimulamos ou tentamos esconder-Ihes alguma coisa e esta nao seria a melhor situagdo tampouco. Por isso eu creio que esta seria a melhor situagao. Estou pronto para o ntimero dez. “Vocé pensa que nossos filhos, se os tivermos, te- riam também eles problemas religiosos por causa de n6s, seus pais, e de nossas dificuldades? “EXPERIMENTADOR: Minha resposta 6 nao. “SUJEITO: Ah! niio sei na verdade se devo ou no concordar com isto. Talvez tenham dificuldades, caso se estabelega a confusio, caso se vejam numa situaco em que nao sabem o que é verdadeiro e 0 que é falso, ou que partido tomar se néo querem ser bloqueados por sua religido. Mas ao que me parece, se a religiao deles fosse uma religido completa, que suprisse as necessidades de uma religido, que essa religido o ga- rantisse, no deveria haver problemas com eles. Mas suponho que o tempo seré capaz de dizer se vao apa- recer tais problemas. Terminei agora meus comenté- ios. “EXPERIMENTADOR: Pois ndo, também termi- no”. Depois que o experimentador lhe entregou uma lista de pontos que poderia comentar, se quisesse, 0 sujeito fez o seguinte comentério ap6s a conversagao. “Ora, a conversagao me pareceu unilateral pois era ou sozinho que a realizava. Mas penso que era extre- mamente dificil para M. McHugh responder plena- mente a essas perguntas sem conhecer completamente as personalidades das diferentes pessoas envolvidas, nem como era a propria situacdo. As respostas que recebi, devo dizer que a maioria delas era formulada talvez de maneira idéntica Aquela que eu teria usado para responder, conhecendo os diferentes tipos de pes- s0as. Uma ou duas delas tiveram em mim o efeito de uma surpresa, ¢ penso que a razdo pela qual ele talvez respondeu desse modo a estas perguntas vem do fato de néo conhecer as personalidades envolvidas e como essas personalidades reagiriam ou teriam reagido a essa situagio. As respostas que recebi indicavam na maioria, pelo que percebi, que ele estava bem cénscio da situagao a medida que famos avangando, no sentido em que eu interpretava suas respostas, embora sendo por sim ou por nfo, como plenamente refletidas com base nas situagdes que eu ia Ihe apresentando e ti- nham bastante sentido para mim. Senti que suas respostas no conjunto eram muito titeis e que ele se interessava pela situarao na maior parte do tempo e néo em reduzi-la ou diminuf-la deste ou daquele modo. Ouvi o que desejava ouvir na maior parte das situagdes apresentadas naquele momento. Talvez eu nao tenha ouvido o que desejava realmente ouvir. Mas, talvez, de um ponto de vista objetivo, fossem as melhores respos- tas, porque uma pessoa envolvida em uma situagéio 6 em parte cega e ndo pode ter este ponto de vista objetivo... A conversagao e as respostas dadas tinhami, éreio eu, muito sentido para mim. Creio que talvez fosse o que eu teria ouvido de alguém que conhecesse integralmente a situagao. E penso queisso tinha muito sentido para mim e significava muito. Ademais, penso que as perguntas que eu fazia eram muito pertinentes e ajudavam a compreender a situagdo dos dois lados, que eu mesmo, o experimentador e a minha reagio As respostas, como jé disse acima, estévamos de acordo a maior parte do tempo”. Trata-se aqui de um experimento extremamente rico. Mostra claramente que 0 sujeito no tem nenhu- ma dificuldade para dar continuidade ao didlogo, para ir até ao fim da série de perguntas que fora prevista. Por outro lado, embora as respostas fossem aleatérias, vé-se que 0 sujeito escuta as respostas do experimen- tador, como se fossem respostas a suas perguntas. Ele compreende “aquilo que 0 conselheiro tem em mente”, entende “de imediato” aquilo de que fala, ou seja, oque significa. Todos os estudantes que participaram na experiéncia consideraram que tinham sido realmente “aconselhados”. ? Nao houve evidentemente Perguntas pré-progta: madas. “A pergunta que se seguia era mo vad la elas ossibilidades retrospectivas-prospectivas a situngo presente, possibilidades modificadas por cada inter- Pimbio efetive” (p. 89). “Durante a conversaglo, 08 jeitos modificavam o sentido precedente de sua per- gunta para adapté-la A resposta em vis pergunta retrospectivamente revista”. ; ili: mder runciado era utilizado para respor ea a Os sujeitos qualificavam isso de “clarificacao sobre o pasado”. — it insatisfat a ando as respostas Ihes pareciam in: os suis esperavam as respostas seguintes a fim de ecidirem quanto ao sentido a atribuir ds precedentes. “As respostas incongruentes eram resolvi i atribuin- do conhecimento e intengio ao conselheiro. Os sui ossupunham aspectos conhecidos-em-comum da co- Pn a ee comum admitido por cada pessoa. E referiam a esses pressupostos-padrao © que ouviam das respostas conselheiro”. se cau om - aut, O trabalho de “documentagio” consiste, aqui, em Be iro como sendo motivadas pelo ee ergata, om esperar a3 e3p08- ain ificado das prece- “Os valores normais pereebidos daquilo que fora aconselhado oram verficados, econsiderados, ment dos, restabeleidos, em uma palnvra, proguzidos. § falso pensar, por conseguinte, no mét« en camo um procedimento pele qua es proposites so i us 5 \ ragtede documentério. desenvolveu 0 ciao, 7 ‘nodo a continuamente ‘reconsideré-1o” (p. 94). Falar de “método documentério de interpretagiio” significa, portanto, que os at tilizam os aconte mentos_em_curso_com significados. Esse procedimento apresenta diversas caracterfsticas bem significativas. Por um lado, 0 es- tudante vai criando sentido a partir da interpretagaio que faz dos ‘sim’ e dos ‘no’ do experimentador, vividos como conselhos efetivos. Por outro lado, escolhe a cada passo elementos do contexto para dar prosseguimento Apesquisa de interpretago. Ei aiacada instante sonstruindo o quadro de referéncia do padriio, Assim, o que preocupa o estudante no infcio da sua conversa com o experimentador 6 que a moga, com quem esté saindo, nfo pertence, como ele, a religitio Judaica. E os elementos do contexto que ele vai docu. mentar pelo conselho so as atitudese as intengdes que ele atribui a seus progenitores, em particular ao pai. ‘So elementos que oferecem um terreno para a inter. Pretagio, i o cardter interpretado da desay i ‘como um fato percebido 20 qual realidade, tornando o seu proble- ma. deseritfvel. Observa-se desde o comego que o estudante supde conhecidos ao experimentador os elementos do conhe- cimento de sentido comum que lhe permitem apreen- der logo o problema apresentado. O estudante acha que ele conhece a preocupagdo religiosa das familias judaicas, os pormenores quase etnol6gicos de suas relagies familiares, por exemplo, os papéis respectivos do pai e da mae, Supde-se que 0 experimentador, independentemente de suas competéncias cientificas, compartilhe conhecimentos comuns com o estudante. Isso Ihe permite considerar o conselho como resposta aseu problema. Desde a primeira pergunta, que se relaciona com 0 fato de continuar a sua relagdio com esta moga, A qual © experimentador responde néo, vé-se como funciona a interprotagiio. Em vez de ouvir esse nao como refe- rente A sua namorada, em vez de relacioné-lo com a pergunta que ele mesmo fez, o estudante o interpreta como referindo-se & suposta desaprovagio de seu pai. Esse no se converte em um sim que documenta 0 receio dos sentimentos do pai. E entéo comega a son- dagem sobre o pai documentério, e néo sobre a moga, momentaneamente posta de lado. Utilizam-se as su- posigdes para tornar possivel a interpretagdo: “Se de- pois que eu tiver falado com papai... Se eu. continuo pensando assim... Se ela estiver mais apaixonada que eu... Se eu estivesse mesmo apaixonado por esta moga...” O fato interpretado ganha no futuro a reali- dade que ainda nfio adquiriu no presente. Como se pode ver claramente pelos comentarios feitos pelo estudante, apés a conversagio, este caso mostra que a pesquisa realizada pelo estudante para analisar, interpretar, documentar os diversos aspectos do seu problema repousa sobre o uso implicito de um conhecimento de senso comum que supée compartilha- do pelo experimentador. Isto mostra igualmente, como 6 havfamos aprendido com a psicandlise, que 0s con- ‘selhos so construfdos pelo sujeité. ‘Trata-se de inter- pretar os dados do conhecimento comum, de reunir, de classificar ou eliminar, eventualmente, “organizar” os elementos do contexto. O sujeito consulta o que ele supée dos significados das respostas do conselheiro, e dé interminavelmente um sentido a respostas aleaté- rias. Q aujeito é que é o operador do conselho, e niio 0 conselheiro. Este conhecimento comum que supostamente compartilhado pelo conselheiro e pelo sujeito é deno- minado por Garfinkel esquema de interpretagio. E Te eonstitne pelos fatos sancionados socialmente. Refe- rir-se implicitamente a esses fatos organizados do sistema social é a prova para os atores de que perten- cem a uma comunidade cultural e social, que autoriza e legitima a documentagao sobre certos problemas, ¢ oferece os recursos de sentido que permitem interpre- tar esses problemas. O,conhecimento comum deve ser compreendido coma um conjunto estruturado de fatos. ‘A arquitetura estrutural do conhecimento é transmi- tida com e pelos fatos... N&o existe fato sancionado sacialmente, e seu modo de operaglo ou sua descritib- lidade. fato 6 um dado estrutural, i constitutivo do dado”. ‘ral constieutdo N6s usamos com muita freqiiéncia este “método” nas conversas de nossa vida cotidiana. E nfo o encon- tramos apenas nas situagdes experimentais como no caso anteriormente estudado. Mostra aliés Garfinkel (Studies, p 38-89) gue o “metodo” funciona constante- ente em nossa vida comum, nas conversas corriquei- ras entre marido e mulher, por exemplo (ver o posto 7 deste capitulo), Esse método nos permite reconstituir o sentido de uma conversagao da qual nao se pegou 0 infcio, que d4 um sentido a mimicas, a gestos etc. ‘Temos também oportunidade para aplicé-lo constante- mente na linguagem cotidiana, nas converses triviais | que se tém todos os dias. A pessoa se empenha nesse trabalho de documentagiio cada vez i dir a respeito do sentido de uma palavra em {inp do um contexto. Selecionamos, modificamos, ordenamos as potencialidades de seus significados 4 medida que progride a conversa, que se alimenta com nossas infi- nitas interpretagées. Aqui cada um se empenha em um trabalho intermindvel: em outras experiéncias os es- tudantes se confessavam incapazes de conseguir, fos- sem quais fossem 0 nivel de elaboragio e a sofisticagaio de seus comentérios, dar uma descrigao completamen- te unfvoca ¢ significante daquilo que se achava com- lo em um fragment Breendido em um fragmento da conversagdo que Ihes «agi Spt) en a [2 en i Hei Se es ii nf eta eet a ra ert nina Dane oe Speen nce ieee era 0 'eu', mas sempre a produtos estruturados”. . 6. A pratica profissional Pode-se, fora de duvida, generalizar estas reflexdes e estender esta andlise ao raciocfnio e & pratica socio- I6gicos. Garfinkel estima (p. 94-95) que “em toda a parte onde se pratica a pesquisa em sociclogia se encontram exemplos que ilustram 0 uso do método documentério”’. “Seu uso se manifesta nas intimeras oportunidades de exploragao de sondagens de opiniao, quando o pesquisador, voltando as notas que tomou na entrevista ou relatando as respostas de um question4- rio, deve decidir o que 6 que o entrevistado tinha em mente... Quando um pesquisador se interroga sobre “o caréter motivado” de uma ago, ou sobre uma teoria, ou sobre a adesfio de uma pessoa a uma justa causa, outras coisas parecidas, ele utiliza o que de fato obs: vou para ‘documentar’ um padrdo subjacente 0 méto do documentério é utilizado para resumir 0 objeto”. documentério. E Garfinkel continua: “Muitas situagdes de pesqui- sas sociolégicas profissionais tém as mesmas caracte- risticas que as situagbes vividas pelos estudantes” (na simulagdo do conselho)... Assim, por exemplo, nas en- trevistas, o pesquisador recorre a “um conjunto de téticas ad hoc para adaptar-se A oportunidade presen- te, téticas geralmente decididas em vista daquilo que o pesquisador desejaria ter achado no final da conver- sa. Nessas circunstancias, mais correto seria falar de um pesquisador agindo em vista de satisfazer suas esperangas (p. 98)... Ocorre muitas vezes que o pesqui- Nas 94, Garfinkel indica que,no eu artigo“On the Interpretation Nt Waianad ‘afirma que o método documentério 6 Existem nas cifncias sociais numerosas Sociologia interpretativa® implica areferéncia 20 método documentério Com a aes part conser legtimar seu eolades 8.0 grifo é meu. mn sador... reconsidera as seqiéncias passadas em uma pesquisa retrospectiva do seu caréter conclusivo... Es- sas caracterfsticas sfio téo facilmente reconheciveis nas atividades cotidianas que podem ser denominadas com razo “situagdes de escolha dependentes do senso comum”, A idéia é: quando pesquisadores recorrem ao “cardter racional” atribuindo o estatuto de conclusées a resultados de pesquisas, encorajam o uso de tais caracteristicas como contexto de interpretago para decidir acerca da racionalidade e da validade. As con- clus6es, enquanto resultados do método documentério, decididas nas circunstancias de situagdes de escolhas do senso comum, definem a expressio de “conclusdes racionais” (p. 99-100). “Uma grande parte daquilo que se pode denominar ‘o coragio da sociologia’ consiste em ‘conclusées racio- nais’. Muitas, se no a maioria, das situagdes de pes- quisas sociolégicas so situagdes de escolhas que dependem do senso comum”, Nés usamos sem cessar essas caracteristicas, no decorrer de nossas “pesqui- sas”, para compreender o que foi dito. Um aconteci- mento real 6 logo interpretado para documentar as documentagao estabelece uma correspondéncia de sentido entre uma ocorréncia real e a ocorréncia hipo- tética, a fim de que esta ganhe evidéncia, como a verificagtio daquilo que se quer estudar. Assim no seria o fato em si mesmo, tal como se nos apresenta, que seria submetido a andllise, mas ocorréncias passa. das do mesmo fato ou de fatos préximos e semelhantes, dos “documentos” racionais, de senso comum, desses fatos. Por isso acontece, como oressalta Garfinkel, que circunstncias presentes da situagéio. O trabalho | se pode decidir esperar os desenvolvimentos futuros de uma situagéo para verificar que esses futuros sio informados pela situagdo presente. Deste modo o pes- quisador se entrega ao trabalho de sondagem retros- Pectiva que confia ao futuro a tarefa de legitimar o presente. Esse trabalho evidentemente evoca aquele a que se entrega Inés: tendo mudado de sexo, ela se serve das aparéncias presentes como de um recurso para interpretar 0 passado e descobrir novos significados utilizéveis no futuro de sua aprendizagem, jamais terminada, de “ser-mulher”. ; ' 0 trabalho do método documentsrio é esse esforgo incessante de ver as coisas em perspectiva, de avali ilidades oferecidas, de levar em conta as condi mente para compreender os seus atos bem como os dos outros. 7. 0 raciocinio sociolégico pratico e a anélise de conversagio los campos mais desenvolvidos e mais ricos da etnometodologin 6 sem diivida o denominado andlise de conversagao*. A tal ponto que foi possfvel consider4- Jo como um campo autdnomo, separado da etnometo- dologia, porque se afasta da problemdtica habitual sociologia. Mas, por outro lado, pode-se considerar a anélise de conversago como o programa mais comple- to da etnometodologia. Esta prética, fundada por Har- vey Sacks em meados dos anos ’60, 6 evidentemente central pois ela se refere, pelo préprio objeto de suas Pesquisas sobre os intercAmbios verbais, sobre as con- versas'corriqueiras, ao conjunto dos outros campos pelos quais a etnometodologia se interessou, mas tam- fa a to nernietn iba Far aarti alt emi cx, oe de Jol Heritage, 1984 Garfinkel and Bthnomethodology, Ci bridge, Polity Press, especialmente o Capftulo 8. Hé que se ngultar seed nce are Su, so ra a Hance cruntarenon te Gul eerson omy cnfertnten dud por 3-630; ou ainda 3. Conein, 1983: Langage ‘ordinaire ot conversation: recherches tciologiques en analyse du dis- cours, Mots 7p. 124-142; 6. Conein, 1987: Le actions politiques sont fccompliee localement et emporellement, Raison présente, 82, p: 69-63. - ees | bém aborda outros domfnios das ciéncias sociais e humanas, Embora a linguagem esteja constantemente no coragso do problema da coleta dos dados, a sociolo- gia ndo fez dela um dos seus temas de estudo. H. Sacks, pelo contrério, faz da conversagéo o tema central de suas pesquisas. Aanillise de conversagao 6 o estudo das estruturas e das propriedades formais da linguagem. Para pode- rem desenvolver-se, as nossas conversagées siio orga- nizadas, respeitam uma ordem, que nfo temos neces- sidade de explicitar durante o decurso de nossas con- versas, mas que & necesséria para tornar inteligiveis as nossas conversagées. Noutras palavras, demonstra- mos, no decorrer de nossas conversagées, a nossa com- peténcia social para conversar com nossos semelhantes, de um lado expondo, tornando com- Preensfveis aos outros 0 nosso comportamento e, de outro lado, interpretando o comportamento dos outros. Pode-se, com John Heritage, resumir as trés hip6teses principais da andlise de conversagao da seguinte ma- neira: a) a interapao 6 estruturalmente organizada; b) as contribuigdes dos participantes dessa interagio sdo contextualmente orientadas: o procedimento de indicagao dos enunciados a um contexto 6 ineyitavel; ©) essas duas propriedades se realizam em cada deta- lhe da interagéo, de tal sorte que nenhum detalhe pode ser posto de lado, como se fosse acidental ou néo pertinente. Garfinkel ilustrou essas propriedades pedindo a seus estudantes que transcrevessem um trecho de sua conversago familiar corriqueira e desenvolvessem 0 seu sentido comentando a conversagio escolhida. Kis esse trecho, mostrando & esquerda a conversagao tal como efetivamente ocorreu (hd de se observar que o sentido 6 relativamente inacessivel a um terceiro); & direita 0 comentario do estudante que “explicita” o sentido dessas conversas (Studies, p. 25-26): MARIDO: Dana conseguiu colocar uma moeda no par- quimetro hoje, sem que eu precisasse levanté-lo. ESPOSA: Vocé olevou a loja de discos? MARIDO: Nao, no sapatei- 0, ESPOSA: Para qué? MARIDO: Comprei cadar- 08 novos para os sapatos. ESPOSA: Teus sapatos bem que precisam de saltos no- vos. Hoje a tarde, quando eu ia levando Dana, nosso filho de quatro anos, para casa, ele conseguiu ficar bastante alto para pér uma moeda no mento pago, enquanto até agora tinha sido preciso levanté-lo para isso. Se ele p6s uma moeda no parqu{metro, isso quer dizer que vocé fez uma pa- rada com ele, Sei que voc8 parou na loja de discos, quando foi buseé-lo ou na volta. Era na volta, quando elejé estava contigo ou voce parou em algum lugar quando ia buseé-lo ou ao voltar? Nao, eu parei na loja de discos quando fui buscé-loe no sapateiro quando volta- va para casa com ele. Sei de algum motivo para vocé parar no sapateiro. Qual exatamente? ‘Voc selembra. Outrodiaarre- bentei um dos cadargos dos ‘meus sapatos marrons, een- téo parei para comprar. novos. Eu achava que voeé poderia ter feito outra coisa. Podia levar os sapatos pretos que precisam de uma boa refor- ma, Seria bom que vocé cuidasse logo disso. Os estudantes acharam que dizer, da maneira mais completa poss{vel, o sentido de suas conversagies ba- nais da vida cotidiana 6 coisa bem dificil! No entanto, os protagonistas da conversa real nao tinham dificul. dade alguma para se compreenderem um ao outro, por meias-palavras como ‘se diz, gragas ao arranjo das seqiiéncias, por exemplo o fato de as perguntas e as respostas serem associadas aos pares, que Sacks deno- minou pares adjacentes. O que significa que os enun- ciados so localmente organizados gragas ao emprego de dispositivos como os pares adjacentes, que nos diio a trama da conversagdo, permite-nos compreendé-la ¢ dar prosseguimento a conversa. Utilizamos constante- mente esses procedimentos em nossas conversagdes. ‘Nao so os tinicos: falamos por exemplo cada um em seu turno. Usamos outros ainda quando apresentamos convites, ou quando cumprimentamos alguém ou quando queremos encurtar uma conversa poderia ir longe demais. Sacks mostra a importancia de conhecer o contexto no exemplo seguinte: A: Tenho um filho de catorze anos. fuito bem. A: Tenho também um eachorro. B: Oh! sinto muito! Néo se pode compreender essa conversa, a néio ser que se saiba que A 6 um locatério potencial, e negocia com B, o proprietério de um apartamento. O tema da conversa & constitufdo pelos parceiros. O contexto 6 que torna a conversa coerente e inteligivel. 0 acordo sobre a construgdo do sentido, porém, nem sempre é to simples assim. Pode dar margem a muitas negociagdes. Don Zimmerman 0 mostrou, por ocasido de uma conferéncia que deu em Paris, em Junho de 1987, analisando os mal-entendidos e o con- flito que se seguiu, durante um chamado telefénico de urgéncia™’: um homem chama os bombeiros de Dallas (Texas) e pede que eles enviem com urgéncia uma ambuléncia porque sua mie, diz, “esté com dificuldade para respirar”. Discussio, logo tensa, com o recepcio- nista, depois com a enfermeira que deseja falar com a mulher doente e 86 com ela, depois com 0 oficial de servigo no momento. Masa doente nao pode se deslocar e, seja como for, no esté em condigSes de falar ao telefone. A conversa se torna um drama de incom- preensio: diversas vezes 0 filho diz que a situagao 6 grave, é absolutamente necessério que mandem logo uma ambuléncia, Nada a fazer. Ele desliga. Alguns minutos depois, torna a chamar, nfo ¢ imediatamente reconhecido, e recomega suas explicagdes. Quando vem finalmente a ambuléncia, treze minutos depois da primeira chamada, é tarde demais. A anflise da conversagio, automaticamente regis- trada nesse servico de urgéncia, permite compreender como a situagao de disputa e de incompreensiio é construfda. A discusséo é uma luta de influéncia. Sua anélise mostra as rotinas burocrdticas do servigo de urgéncia, mas também as expectativas do filho, que Pensa sem diivida estar pedindo um servigo no con- dicional, que se deve satisfazer imediatamente sem maiores delongas. Com o pAnico a acossé-lo, ele se comporta, observa Zimmerman, como se estivesse pe- dindo uma pizza pelo telefone: poderia entéo legitima- mente esperar que ninguém lhe perguntasse por qué. O servigo de urgéncia, sim. Por outro lado, escutando a fita e as tonalidades de voz dos protagonistas, pode- se supor, diz Zimmerman, que a enfermeira é negra e o homem que ligou é homossexual. Esses, elementos 10. J. Whalen, D. Zimmerman e M.K. Whaken, 1988: When Words Fail podem ter contribufdo para documentar a conversa. Outras gravagdes de chamadas a esse mesmo servigo mostram que os mesmos empregados se comportam de maneira totalmente diferente, conforme o modo como Ihes 6 apresentado o caso de urgéncia. Por exemplo, se a primeira frase da conversa for: “Mandem depressa uma ambuléncial H4 uma crise cardiacal”, a tinica pergunta 6 esta: “Qual 6 0 enderego?”, e a anibulancia parte sem demora. Isso significa que as formas da conversa determi- nam a sua compreenséo, que 6 intersubjetivamente construfda. No campo da linguagem como também nos outros, acha-se na andlise da conversagéo a preocupa- so permanente da etnometodologia: aquela de des- erever os processos que usamos para construir a ordem social. B. Conein" o mostrou em um dominio bem diverso, analisando as conversas que ocorrem durante um “comité de greve”, na época do “movimen- to” estudantil de dezembro de 1986, na Franga: “Uma gramética da ago pode realgar a competncia dos participantes para produzir agdes politicas (p. 59)... A competéncia politica faz parte do conhecimento comum da estrutura social, esta competéncia deve ser descrita e nao construfda” (p. 63), 11. B. Conein, 1987: Les actions politiques sont accomplies Joealement et ‘temporellement, Raison présente, 82, 69-63.

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