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Primerra Part O QUE £ A ESCRITURA? Sabe-se que a lingua é um corpo de prescrigées e de habitos, comum a todos os escritores de’ uma €poca. Isso quer dizer que a lingua é como uma Na- ‘tureza que passa inteiramente através da fala do’ es- critor, sem contudo dar-lhe forma alguma e nem se- quer alimenta-la: é como um circulo abstrato de ver- dades, fora do qual — e stmente fora déle — comega a depositar-se a densidade de um verbo solitério. Ela encerra téda a criagao liter4ria, assim como o céu, 0 cho e a jungao de ambos desenham para o homem um habitat familiar. Ela € muito menos uma provi- so de materiais do- que um horizonte, ou seja, um limite e uma parada ao mesmo tempo, numa palayra, a extensdo tranqUilizadora de uma economia. O es- critor nao extrai nada dela, a rigor: para éle, a lingua constitui antes uma linha cuja transgresso designaré talvez uma sobrenatureza da linguagem: cla é a area de uma agio, a definigéo ¢ a espera de um possivel. Nao € o lugar de um engajamento ‘social, mas ssmente um reflexo sem escolha, a propriedade indivisa dos homens e nao dos escritores; ela permanece fora. do ritual das Letras; é um objeto social por definicio, nao 19 por eleig&io. Ninguém pode, sem preparagao, inserir sua liberdade de escritor na opacidade da lingua, por- que através dela tida a Histéria se mantém, com- pleta ¢ unida A mancira de uma Natureza. Assim, para o escritor, a lingua é apenas um horizonte huma- no que instala ao Jonge uma certa familiaridade com- pletamente negativa por sinal: dizer que Camus ¢ Queneau falam a mesma lingua, € apenas presumir, por uma operacio diferencial, tédas as linguas, arcai- cas ou futuristas, que ‘éles nao falam: suspensa entre formas abolidas e formas desconhecidas, a lingua do escritor é menos um fundo que um limite extremo; é o lugar geométrico de tudo aquilo que éle nao pode- ria dizer sem perder — tal como Orfeu olhando para tras ~~, a estavel significag&o de seu andar e o gesto essencial de sua sociabilidade. A lingua, portanto, estA aquém da Literatura. O estilo est quase além: imagens, um fluxo verbal, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e tor- nam-se pouco a pouco os préprios automatismos de sua arte. Assim, sob o nome de estilo, forma-se uma linguagem autarquica que s6 mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor, nessa hipofisica da fala, onde se forma o primeiro par das palavras e das coisas, onde se instalam de uma vez por tédas os grandes te- mas verbais de sua existéncia. Seja qual fér seu refi- namento, o estilo tem sempre algo de bruto: é uma forma sem destinagio, 0 produto de um impulso, nao de uma intengiio, é como que uma dimensao vertical ~e solitaria do pensamento. Suas referéncias estao ao nivel de uma biologia ou de um passado, nao de uma Histéria: éle é a “coisa” do escritor, seu esplendor e 20 sua prisio, sua solidio. Indiferente e transparente & sociedade, gesto cerrado da pessoa, de modo algum constitui produto de uma escolha, de uma reflexio sobre a Literatura. E a parte privada do ritual; eleva-se a partir das profundezas miticas do escritor e expande-se fora de sua responsabilidade. E a voz decorativa de uma carne desconhecida e secreta; fun- ciona 4 maneira de uma Necessidade, como se, nessa espécie de explosao floral, o estilo f6sse apenas o tér- mo de uma metamorfose cega e obstinada, brotada de uma infralinguagem que se elabora no limite da carne ¢ do mundo. © estilo é prdpriamente um fend- meno de ordem germinativa, a transmutagio de um Humor. Assim, as alusdes do estilo repartem-se em profundidade; a fala tem uma estrutura horizontal, seus segredos esto na mesma linha que suas palavras eo que ela esconde se desvenda pela propria duragio de seu continuo; na fala, tudo é oferecido, destinado a um gasto imediato, e 0 verbo, o siléncio ¢ 0 movimen- to. de ambos so precipitados num sentido abolide: trata-se de uma transferéncia sem rastro e sem demo- ra. O estilo, pelo contrario, s6 tem uma dimensido vertical, mergulha na lembranga fechada da pessoa, compée sua opacidade a partir de certa experiéncia da matéria; o estilo nado passa de metafora, vale di- zer, equacdo entre a intenco literdria e a estrutura carnal do autor (convém lembrar que a estrutura é o depésito de uma duracio). Por isso, o estilo é sem- pre um segrédo; mas a vertente silenciosa de sua re- feréncia nao provém da natureza mével e constante- mente condicional da linguagem; seu segrédo é uma lembranga encerrada no corpo do escritor; a virtude 21 alusiva do estilo nfo é um fendmeno de velocidade, como na fala, onde o que nao se diz permanece, mesmo assim, um fnterim da linguagem, mas um fenédmeno de densidade, pois aquilo que se mantém erguido ¢ -profundo sob o estilo, congregado dura ou ternamente nas suas figuras, sfo0 os fragmentos de uma realidade completamente estranha A linguagem. O milagre de tal transmutagao faz do estilo uma espécie de opera- ¢ao supraliteréria, que leva o homem ao limiar da poténcia e da magia. Pela sua origem bioldgica, o . estilo situa-se fora da arte, ou seja, fora do pacto que liga o escritor 4 sociedade. Podemos, pois, ima- ginar autores que prefiram a seguranca da arte a solidéo do estilo. O tipo exato do escritor sem estilo. é Gide, cuja maneira artesanal explora o prazer mo- derno de um certo etos classico, do mesmo modo como Saint-Saéns refez Bach, ‘ou Poulenc refez Schu- bert. Inversamente, a poesia moderna — a de um Hu- go, de um Rimbaud ou de um Char — estA saturada de estilo e sé € arte por referéncia a uma intengao da Poesia. E a Autoridade do estilo, vale dizer, o elo completamente livre entre a linguagem e seu duplo de carne, que impée o escritor como um Frescor acima da Histéria. O horizonte da lingua e a verticalidade do esti- lo desenham, portanto, para o escritor, uma natureza, pois @le nao escolhe nenhum dos dois. A lingua fun- ciona como uma negatividade, o limite inicial do pos- sivel; o estilo € como uma Necessidade que vincula o humor do escritor A sua Jinguagem. Naquela, éle en- contra a familiaridade da Histéria; neste, a de seu 22 préprio passado, Nos dois casos, trata-se realmente de uma natureza, vale dizer, de um gestudrio familiar, em que a energia é apenas de ordem operatéria, dedi- ° cando-se aqui a enumerar, 14 a transformar,.mas nun- ca a julgar ou a significar uma escolha. Ora, téda Forma é também um Valor; por isso, entre a lingua ¢ o estilo, h4 lugar para outra realidade formal: a escritura. Em téda e qualquer forma li- terdria, existe a escolha geral de um tom, de um etos, por assim dizer, e é precisamente nisso que o escri- tor se individualiza claramente porque é nisso que éle se engaja. Lingua e estilo sfo dados antecedentes a téda problematica da linguagem, lingua e estilo cons- tituem o produto natural do Tempo e da pessoa biold- gica; mas a identidade formal do escritor s6 se esta- belece realmente fora da instalacdo das normas da gramatica e das constantes do estilo, no ponto em que o continuo escrito, reunido e encerrado de inicio numa natureza lingiiistica perfeitamente inocente, vai tornar-se enfim um signo total, a escolha de um com- portamento humano, a afirmagio de um certo Bem, engajando assim o escritor na evidéncia e na comu- nicagéo de uma felicidade ou de um mal-estar, e li- gando a forma ao mesmo tempo normal e singular de sua fala 4 ampla Histéria de outrem. Lingua esti- lo sao férgas cegas; a escritura é um ato de solidarie- dade histérica, Lingua e estilo sio objctos; a escri- tura € uma fungdo: € a relagio entre a criacho e a sociedade, é a linguagem liter4ria transformada por, sua destinagao social, é a forma apreendida na sua intengdo humana e ligada assim As grandes crises da Histéria. Por exemplo, Mérimée ¢ Fénelon esto se- 23 parados por fenémenos de lingua e por acidentes de estilo; todavia, ambos praticam uma linguagem car- regada da mesma intencionalidade, referem-se & mes- ma idéia da forma e do fundo, aceitam a mesma or- dem de convengées, sio o lugar’ dos mesmos' refle- xos técnicos, empregam com os mesmos gestos, a um século e meio de distancia, um instrumento idéntico, um pouco modificado no seu aspecto, sem divida, mas de modo algum na sua situagio ou no seu uso: em suma, éles tém a mesma escritura. Pelo contra- rio, quase contemporAneos, Mérimée ¢ Lautréamont, Mallarmé ¢ Céline, Gide e Queneau, Claudel e Ca- mus, que falaram ou falam o mesmo estado histéri¢o de nossa lingua, usam escrituras profundamente dife- rentes; tudo os separa, o tom, o fluxo verbal, o fim, a moral, o natural de sua fala, de tal modo que a co- munidade de época e de Ifngua é muito pouca coisa comparada com escrituras tio opostas e tao bem de- finidas pela sua prépria oposigao. Tais escrituras sio de fato diferentes mas compa- r4veis, porque sio produzidas por um moviinento idéntico, que é a reflex4o do escritor sébre 0 uso so- cial da forma e a escolha que éle assume. Colocada no 4mago da problematica literaria, que s6 comega com ela, a escritura portanto é, essencialmente, a mo- ral da. forma, a escolha da Area social no seio da qual o escritor decide situar a Natureza de sua linguagem. Mas esta Area social nao é a de um consumo efetivo. Para 0 escritor, n&o se trata de escolher o grupo so- cial para que escreve: éle sabe perfeitamente que, a menos que se conte com uma Revolugio, sera sem- 24 pre para a mesma sociedade. Sua escolha é uma es- colha de consciéneia, nfo de eficdcia. Sua escritura - constitui uma maneira de pensar a Literatura, nao de difundi-la. Ou melhor ainda: o escritor nao pode modificar em nada os dados objetivos do consumo li- terdrio (tais dados puramente histéricos Ihe escapam, mesmo que éle tenha consciéncia déles), e € por isso que transporta propositadamente a exigéncia de uma Iinguagem livre para as fontes desta linguagem e nao para o térmo do seu consumo. Désse modo, a escri- tura é uma realidade ambigua: de um lado, riasce incontestavelmente de uma confrontagio do escritor com a sociedade; de outro lado, por uma espécie de transferéncia m4gica; ela remete o escritor, dessa fina- lidade social, para as fontes instrumentais de sua cria- cfc. Por nado poder fornecer-lhe uma linguagem li- vremente consumida, a Histéria lhe propée a exigén- cia de uma linguagem livremente produzida. Assim, a escolha e, depois, a responsabilidade de uma escritura, designam uma Liberdade, mas tal Li- . berdade nao tem os mesmos limites conforme os dife- rentes momentos da Histéria, Nao é dado ao escri- tor escolher sua escritura numa espécie de arsenal intemporal das formas literérias. E sob a pressio da Histéria e da Tradig&o que se estabelecem as escritu- ras possiveis de um determinado escritor: existe uma Histéria da Escritura; mas essa Hist6ria é dupla: no exato momento em que a Histéria geral propde — ou impée — uma nova problematica da linguagem li- teraria, a escritura continua ainda cheia da lembranga de seus usos anteriores, porque a linguagem nunca é inocente: as palavras tém uma memédria segunda que 25 se prolonga misteriosamente em meio As significagées novas. A escritura é precisamente ésse compromisso entre uma liberdade © uma lembranga; é essa liber- dade lembrante que s6 é liberdade no gesto da esco- lha, mas j4 nao o é mais na sua duracdo. Hoje, pos- so sem divida escolher para mim esta ou aquela es- critura, ¢ nesse gesto afirmar minha liberdade, pre- tender um frescor ou uma tradigio; jA nfo posso mais desenvolvé-la numa durag%o sem tornar-me pouco a pouco prisioneiro das palavras de outrem e até de mi- nhas préprias palavras.. Uma remanéncia obstinada, vinda de tédas as escrituras precedentes e do passado mesmo da minha prépria escritura, cobre a voz pre- sente de minhas palavras. Todo vestigio. escrito pre- cipita-se com um elemento quimico a principio trans- parente, inocente e neutro, no qual a simples duragdo faz aparecer, aos poucos, todo um passado em sus- pensdo, téda uma criptografia cada vez mais densa. Como Liberdade, a escritura é, portanto, apenas um momento. Mas éste momento é um dos mais ex- Plicitos da Histéria, j4 que a Histéria é sempre € antes de tudo uma escolha e os limites dessa escolha- Porque deriva de um gesto significativo do. escritor, a escritura aflora a Histéria, muito mais sensivel- mente do que qualquer outro corte da literatura. A unidade da escritura cléssica, homogénea durante sé- culos, a pluralidade das escrituras modernas, multipli- cadas desde hA cem anos até o préprio limite do fato literério — essa espécie de explosfo da escritura fran- cesa corresponde em verdade a uma grande crise da Historia total, visivel de maneira muito mais confusa na Histéria literdria prdpriamente dita. O que separa 26 o “pensamento” de um Balzac e o de um Flaubert, é uma variagdo de escola; o que opde a escritura de ambos, € uma ruptura essencial, no momento exato em que duas estruturas econédmicas formam uma char- neira, acarretando, na sua articulagiio, modificagdes de- cisivas de mentalidade e de consciéncia. 27 I ESCRITURAS POLITICAS ‘Tédas as escrituras apresentam um cardter de fe- chamento que é estranho 4 linguagem falada. A es- critura nao é nenhum instrumento de. comunicagio, nao é um caminho aberto por onde passaria uma s6 intengao de linguagem. Téda uma desordem se es- coa através da fala, dando-lhe 0 movimento devora- do que mantém essa mesma desordem em estado de eterno adiamento. Inversamente, a escritura é uma linguagem endurecida que vive de si mesma ¢ no tem em absoluto a misso de confiar & sua prépria durag3o uma. seqiiéncia mével de aproximagées, mas, ao con- trario, de impor, pela unidade e pela sombra de seus signos, a imagem de uma fala construida muito antes de’ ser inventada. O que opde a escritura A fala, é que a primeira parece sempre simbélica, introverti- da, voltada ostensivamente para uma vertente secre- ta da linguagem, ao passo que a segunda nio passa de uma duragao de signos vazios, dos quais s6 o movimen- to € significative. Téda a fala esté nesse gasto das palavras, nessa espuma levada sempre mais longe, ¢ 86 existe fala onde a linguagem funcione claramente como uma voragdo que arrancasse apenas a ponta 31 mével das palavras; a escritura, pelo contrario, esta sempre enraizada num além da linguagem, desenvolve- se como um germe ec nao como uma linha, mani- festa uma esséncia e ameaga de um segrédo, é uma contracomunicagao, intimida. Encontrar-se-4 pois, em téda a escritura, a ambigilidade de um objeto que é ao mesmo tempo linguagem e coergao: h4 no fun- do da escritura uma “circunst&ncia” estranha 4 lin- guagem, hA como que o olhar de uma intengdo que J4 nao é mais a da linguagem. fisse olhar pode muito bem ser uma paixao da linguagem, como na escritu- ra liter4ria; pode ser também a ameaga de uma pe- nalidade, como nas escrituras politicas: a escritura, entfo, encarrega-se de reunir de uma s6 vez a reali- dade dos atos e a idealidade dos fins. E por isso que o poder ou a sombra do poder acaba sempre por ins- tituir uma escritura axiolégica, na qual o trajeto que habitualmente separa o fato do valor -é suprimido no préprio espacgo da palavra, dada ao mesmo tempo como descrigéo e como julgamento. A palavra torna- -se um 4libi (isto é, um alhures e uma justificagao) . Isso, que é verdadeiro para as escrituras literarias, em que a unidade dos signos se vé constantemente fascinada por zonas de infra ou ultralinguagem, o é ainda mais para as escrituras politicas, nas quais o Alibi da linguagem constitui ao mesmo tempo intimi- dagao e glorificagao: realmente, é 0 poder ou 0 comba- te que produzem os tipos de escritura mais puros. Veremos mais adiante que a escritura classica manifestava cerimonialmente a implanta¢do do escri- tor numa sociedade politica particular, e que falar 32 como Vaugelas foi, a principio, vincular-se a0 exerci- cio do poder. Se a Revolucdo nao modificou as nor- mas dessa escritura, porque o grupo pensante, no fun- do, parmanecia o mesmo ¢ nao fazia mais que passar do poder intelectual para o poder politico, as condigées excepcionais da luta produziram, todavia, no préprio seio da grande Forma classica, uma escritura prdpria- mente revolucionéria, nao pela sua estrutura —-mais académica que nunca — mas pelo seu fechamento e pelo seu duplo, de vez que o exercfcio da linguagem estava ligado, como nunca antes na Histéria, ao San- gue derramado. Os Revoluciondrios nao tinham ne- nhum motivo: para querer modificar a escritura clas- sica; nao pretendiam pér em causa a natureza huma- na, menos ainda a sua linguagem, e um “instrumento” herdado de Voltaire, Rosseau ou Vauvenargues, nao podia parecer-Ihes comprometido. Foi a singularida- de das situag6es histéricas que formou a identidade da escritura revoluciondria. Baudelaire falou em algum lugar da “verdade enfatica do gesto nas grandes cir- cunstancias da vida’. A Revolugao foi por excelén- cia uma dessas grandes circunstancias em que a verda- de, pelo sangue que custa, se torna tao pesada que exige, para se exprimir, as préprias formas da ampli- ficagao teatral. A escritura revoluciondria foi ésse gesto enfatico que podia, éle sé, continuar o cadafal- so cotidiano. O que hoje parece exagéro, nada mais era que © talhe da. realidade, Essa escritura, que exi- be todos os signos da inflag&o, foi uma escritura exata: nunca linguagem alguma foi mais inverossimil e me- nos impostora. Tal énfase nfo era apenas a forma moldada conforme ao drama: era também a cons- ciéncia déle. Sem essa roupagem extravagante, pré- pria de todos os grandes revoluciondrios, que permi- tia ao girondino Guadet, préso em Saint-Emilion, de- clarar sem ridiculo porque ia morrer: “Sim, eu sou Guadet. Carrasco, cumpre a tua obrigagfo. Leva minha cabega aos tiranos da patria. Ela sempre os féz empalidecer: cortada, ela os fara empalidecer ainda mais” — a Revolucao nfo poderia ter sido ésse acontecimento mitico que fecundou a Histéria e téda idéia futura da Revolugio. A escritura revoluciond- ria foi como a enteléquia da legenda revolucionaria: ela intimidava e impunha uma consagracg&o civica do Sangue. A escritura marxista é completamente diferente. Nela, o fechamento da forma nao provém de uma amplificagao retérica nem de uma’ énfase do fluxo verbal, mas de um léxico t&o particular, tao funcio- nal quanto um vocabuldrio técnico: suas préprias metaforas sdo rigorosamente codificadas. A escritura revolucionéria francesa fundava sempre um dircito sangrento ou uma justificagio moral;‘a principio, a escritura marxista € dada como uma linguagem do co- nhecimento; trata-se de uma escritura univoca porque se destina a manter a coesio de uma Natureza; é a identidade lexical dessa escritura que lhe permite im- por uma estabilidade das explicagdes e uma permanén- cia de método; 's6 ao fim de sua linguagem encontra o marxismo comportamentos puramente politicos. As- sim como a escritura revoluciondria francesa é enfa- tica, a escritura marxista é litética, dado que cada palavra nao passa de uma referéncia exigua ao con- 34 junto de principios que a fundamenta de maneira in- confessada. Por exemplo, a palavra “implicar”, fre- qiiente na escritura marxista, nao tem nela o sentido neutro do diciondrio; alude sempre a um processo his- térico preciso, é como um signo algébrico que repre- sentasse todo um paréntese de postulados anteriores. Ligada a uma aco, a escritura marxista depres- sa tornou-se, na realidade, uma linguagem do valor. Este carater, j4 visivel em Marx, cuja escritura, toda- via, é geralmente explicativa, invadiu de todo a es- critura estalinista triunfante. Certas nogdes, formal- mente idénticas e que o vocabuldrio neutro nao de- signaria duas vézes, sao cindidas pelo valor e cada vertente leva a um nome diferente: por exemplo, “cos- mopolitismo” é o nome negativo de “internacionalis- mo” (j4 em Marx). No universo estalinista, onde a definigdo, ou seja, a separagio entre o Bem ¢ o Mal, passa a ocupar téda a linguagem, n3o ha mais pala- vras sem valor, e a escritura tem finalmente por fun- ¢Ho fazer a economia de um processo: nao h4 mais nenhum intervalo entre a denominag&o e o julgamen- to, e o fechamento da linguagem é perfeito, uma vez que se da finalmente um valor como explicagaio de outro valor; por exemplo: dir-se-4 que tal criminoso exerceu uma atividade nociva aos interésses do Esta- do; o que equivale a dizer que um criminoso é aqué- Ie que comete um crime. Como se vé, trata-se de uma verdadeira tautologia, processo constante na escritu- ra estalinista. Esta, com efcito, nfo visa mais a fundamentar uma explicagdo marxista dos fatos ou uma racionalidade revolucion4ria dos atos, mas a dar o real sob a sua forma julgada, impondo uma leitura 35 imediata das condenagées: o conteGdo objetivo da palavra “desviacionista” é de ordem penal. Se dois desviacionistas se retnem, tornam-se “fraccionistas”, o que nao corresponde a um delito objetivamente dife- rente, mas a uma agravagao da penalidade. Pode-se distinguir uma éscritura propriamente marxista (a de Marx e Lenine) e uma escritura do estalinismo tri- unfante (a das democracias populares) ; existe tam- bém, certamente, uma escritura ‘trotskista e uma es-. critura tatica, que 6, por exemplo, a do comunismo francés (substituigao de “classe operaria” por “povo”, e depois por “gente honesta”, ambigitidade volunta- ria dos térmos “democracia”, “liberdade”, “paz”, etc.) ‘'B fora de divida que cada regime possui sua es- critura, cuja histéria ainda est para ser feita. A escri- tura, sendo a forma espetacularmente engajada da . fala, contém simultfneamente, por uma ambigitidade preciosa, o ser e o parecer do poder, o que éle € € 0 que éle queria parecer: uma histéria das escrituras po- liticas constituiria, portanto, a melhor das fenomenolo- gias sociais. Por exemplo, a Restauracao elaborou uma escritura de classe, gracas ao que 4 repressio aparecia imediatamente como uma condenag&o sur- gida espontancamente da “Natureza” classica: os ope- rrios reivindicativos eram sempre “individuos”; os fu- radores de greve, “opcerdrios tranqiiilos”, ¢ a subser- viéncia dos juizes tornava-se a “vigilancia paternal dos magistrados” (em nossos dias, é por um processo andlo- go que o gaullismo chama os comunistas de “separa- tistas”), Vemos que a escritura funciona aqui como uma boa consciéncia e que tem a missio de fazer coin- cidir fraudulentamente a origem do fato com seu ava- 36 tar mais remoto, dando 4 justificag&o do ato a caugio de sua realidade. fiste fato de escritura, por sinal, é préprio de todos os regimes autoritdrios; € 0 que se po- deria chamar de escritura policial: todos conhecem, por exemplo, o contetido eternamente repressivo da pa- Javra “Ordem”. A expans4o dos fatos politicos e sociais no cam- po da consciéncia das Letras produziu um tipo névo de seripteur *, situado a meio caminho entre o militan- te e o escritor, herdando do primeiro uma imagem ideal do homem engajado, e do segundo a idéia de que a obra escrita €é um ato. Ao mesmo tempo que 0 intelectual substitui o ‘escritor, nasce nas revistas e nos ensaios uma escritura militante inteiramente liberta do estilo, que € como uma linguagem profissional da “pre- senca”. Nessa escritura, os matizes abundam. Nin- -guém pode negar que ha, por exemplo, uma escritu- ra “Esprit” ou uma escritura “Temps modernes”. O carter comum dessas escrituras intelectuais é que ne- las a linguagem, de lugar privilegiado que era, tende a tornar-se o signo suficiente do engajamento. Alcangar uma fala fechada pelo impulso de todos aquéles que nao a falam, é alardear o proprio movimento de uma escolha, quando no sustentar tal escolha; a escritura torna-se, no caso, uma espécie de assinatura que a pessoa coloca embaixo de uma proclamagio coletiva (que, por sinal, ndo foi redigida por ela). Assim, ado- tar uma escritura — diriamos melhor —, assumir uma * Térmo de chencelaria romana; oficial que escreve as bu- las expedidas em original gético (Littré). (N, dos T.) 37 escritura ——- é fazer economia de tédas as premissas da escolha, é manifestar como adquiridas as razbes'de ‘tal escolha. Téda escritura intelectual constitui, por- tanto, o primeiro dos “saltos do intelecto”. Enquanto uma linguagem idealmente livre nunca poderia assi- nalar minha pessoa ¢ deixaria ignoradas minha hist6- ria e minha liberdade, a escritura a que me confio ja é téda ela instituigdo; ela descobre meu passado e mi- nha escolha, d4-me uma histéria, alardeia minha si- tuagSo, engaja-me sem que eu tenha que dizé-lo. A Forma torna-se assim, mais que nunca, um objeto au- ténomo, destinado a significar uma propriedade cole- tiva e defendida, e tal objeto tem um valor de pou- panca, funciona como um sinal econdmico gragas ao qual o scripteur impde constantemente sua propria conversio sem nunca tracar-lhe a histéria. Tal duplicidade das escrituras intelectuais de ho- je é acentuada pelo fato de que, a despeito dos es- forgos da época, a Literatura nao péde ser inteira~ mente liquidada: ela forma um horizonte verbal sem- pre prestigioso. O intelectual -nfo passa de um escri- tor mal transformado, e a n&o ser que se ponha a pique ¢ se torne para sempré um militante que nao escreve mais (alguns, por definigfo esquecidos, assim fizeram), s6 Ihe resta voltar & fascinagao de escritu- rag anteriores, transmitidas a partir da Literatura como um instrumento intacto e fora de moda. Essas escri- turas intelectuais sAo, portanto, instdveis;, permane- cem literérias na medida em que séo impotentes, e s6 sio politicas pela sua obsessio de engajamento. Em suma, trata-se ainda de escrituras éticas, em que a consciéncia do scripteur (nfo se ousa mais dizer do 38 escritor) encontra a imagem trangililizadora de uma salvacao coletiva. : Mas da mesma maneira que, no estado presente da Histéria, téda escritura politica s6 pode confirmar um universo policial, assim também téda escritura in- telectual sé pode instituir uma paraliteratura, que nao ousa mais dizer seu nome. O impasse dessas es- crituras 6, portanto, total; clas s6 podem remeter a uma cumplicidade ou a uma impoténcia, ou seja, em todos os casos, a uma alienacAo, : 30 Il A ESCRITURA DO ROMANCE Romance e Histéria tiveram relagGes estreitas no préprio século que viu o maior desenvolvimento de ambos. Essa ligagio profunda, que deveria ajudar a compreender Balzac e Michelet ao mesmo tempo, é, nos dois casos, a construgo de um universo autar- quico, que fabrica @le proprio suas dimensdes e seus limites, ¢ néles dispde seu Tempo, seu Espago, sua populagio, sua colegio de objetos e scus mitos. Essa esfericidade das grandes obras do século XIX exprimiu-se através dos longos recitativos do Romance e da Histéria, espécies de projegdes planas de um mundo curvo e ligado, do qual o romance-folhetim, nascido ent&o, apresenta, em suas volutas, uma ima- gem degradada. E no entarito a narragdo nao é obri- gatoriamente uma lei do género, Uma época péde conceber romances epistolares, por exemplo; outra pode praticar uma Histéria por andlises. Por conse- guinte, a Narrativa, como forma extensiva ao Roman- ce e 4 Hist6ria, ao mesmo tempo, € geralmente a es- colha ou a expressio de um momento histérico. Desaparecido do francés falado, o passado sim- ples, pedra angular da Narrativa, assinala sempre uma arte; faz parte de um ritual das Belas-Letras. B Nao estA mais encarregado de exprimir um tempo. Seu papel é reduzir a realidade.a um ponto, ¢ abstrair da multiplicidade dos tempos vividos e superpostos, um ato verbal puro, desembaragado das raizes exis- tenciais da experiéncia, ¢ orientado para uma ligagdo légica com outras acGes, outros processos, um ‘movi- mento géral do mundo: éle visa a mariter uma hierar- quia no império dos fatos. Pelo passado simples, o verbo faz parte implicitamente de uma cadeia cau- sal, participa de um conjunto de agées soliddrias ¢ dirigidas, funciona como o signo algébrico de uma intengio; mantendo um equivoco entre temporalida- de e causalidade, éle reclama um desenvolvimento, isto é, uma inteligéncia da Narrativa. Por isso, €'0 instrumento ideal de tédas as construgdes de univer- sos; é o tempo facticio das cosmogonias, dos mitos, das Histérias e dos Romances. Supde .um mundo construido, elaborado, destacado, reduzido a linhas sig- nificativas, e ndo um mundo jogado, exibido, ofere- cido..Por detras do passado simples, esconde-se sem- pre um demiurgo, deus ou narrador; o mundo néo fica inexplicado quando 0 narram; cada um de seus’ acidentes -é apenas circunstancial, e o passado simples constitui precisamente o signo operatério pelo qual o narrador reduz a explosio da realidade a um verbo infimo e puro, sem densidade, sem volume, sem de- senvolvimento, cuja tnica fungio é unir o mais rapi- damente possivel uma causa e um fim. Quando o his- toriador afirma que o Duque de Guise morreu em 23 de dezembro de 1588, ou quando o romancista conta que a Marquesa saiu as cinco, tais agdes emergem de um outrora sem espessura; livres do estremecimen- 44 to da existéncia, tém a estabilidade ec o desenho de uma Algebra, constituem uma recordagio, mas uma recordagéo_ util, cujo interésse conta muito mais que a duragio. Portanto, 0 passado simples é, finalmente, a ex- pressdo de uma ordem é, por conseguinte, de uma eu- foria. Gragas a éle, a realidade ndo é nem misteriosa, nem absurda; é clara, quase familiar, a cada momen- to reunida e contida na mao de um criador; sofre a. presséo engenhosa de sua liberdade. Para todos os grandes narradores do século XIX, 0 mundo pode ser patético, mas nao abandonado, pois é um conjun- to de relagdes coerentes, pois nao h4 imbricamento dos fatos .escritos, pois quem conta o mundo tem o " poder de recusar a opacidade e a solidfo das exis- téncias que 0 compdem, pois pode dar provas'a cada frase de uma comunicagéo e de uma hierarquia dos atos, pois, afinal de contas, tais atos podem ser, éles préprios, reduzidos a signos. © passado narrativo faz, portanto, parte de um sistema de seguranga das Belas-Letras. Imagem de uma ordem, constitui um désses numerosos pactos for- mais estabelecidos entre o escritor e a sociedade, para a justificagdo daquele e a serenidade desta. O passa- do simples significa uma criagio: ou seja, éle a assi- nala e a impde. Mesmo empenhado no mais sombrio realismo, éle tranqitiiliza, porque, gracas a éle, o verbo exprime um ato fechado, definido, substantivado; a Narrativa tem um nome, escapa ao terror de uma fala sem limites: a realidade se apequena e se torna familiar, enquadra-se num estilo, nao transborda da 45 linguagem; a Literatura fica sendo o valor de uso de uma sociedade advertida, pela prépria forma das palavras, do sentido daquilo que consome. Ao contra- rio, quando a Narrativa é rejeitada em beneficio de outros géneros literarios, ou entdo, quando no inte- rior da narragéo, o passado simples é substituido por formas menos ornamentais, mais frescas, mais den- sas ¢ mais préximas da fala (o presente ou o passado composto), a Literatura torna-se depositaria da es- pessura da existéncia, e nao de sua significagao. Se- parados da Histéria, os atos j4 nao se separam das pessoas. Entende-se, ent&0, o que o passado simples do Romance tem de itil e de intoleravel: é uma mentira manifestada; traga 0 campo de uma verossimilhanga que desvelaria o possivel no momento mesmo em que o designaria como falso. O Romance e a Histéria nar- yada tém por finalidade comum alienar os fatos: o passado simples é 0 préprio ato de possessio da socie- dade no tocante ao seu passado e ao seu possivel. Ble institui um continuo crivel mas cuja ilusdo é alardea- da; éle € 0 térmo dltimo de uma dialética formal que vestiria o fato irreal com roupagens sucessivas de ver- dade e, depois, de mentira denunciada. Isto deve ser correlacionado com certa mitologia do universal pré- pria da sociedade burguesa, da qual o Romance é um produto caracterizado: dar ao imagindrio a caugio formal do real, mas deixar a éste signo a ambigtiida- de de um objeto duplo, ao mesmo tempo verossimil e falso, cis uma operagao constante de téda a: arte oci- © dental, para a qual o falso iguala o verdadeiro, n&o por agnosticismo ou duplicidade poética, mas porque 46 o verdadeiro € tide como possuidor de um germe de © universalidade, ou melhor, de uma esséncia capaz de fecundar, por simples reprodugao, ordens diferentes pelo afastamento ou pela ficgao. Por um processo désse tipo, a burguesia triunfante do século passado pode cohsiderar seus préprios valéres como univer- sais ¢ transferir para partes absolutamente heterogé- neas de sua sociedade todos os Nomes de sua moral. Ei &sse, precisamente, o mecanismo do mito, e 0 Ro-- mance —- e no Romance, o passado simples, sdo obje- tos mitolégicos que superpdem, A intengao imediata, © recurso segundo a uma dogmiatica, ou melhor, a uma pedagogia, jé que sc trata de transmitir uma essén- cia sob a aparéncia de um artificio, Para apreender e significagao do passado simples, basta comparar a arte romanesca ocidental com certa tradicio chinesa, por exemplo, em que a arte nada mais é do que a perfeigio na imitagao do real; mas aqui nada, abso- lutamente nenhum signo, deve distinguir o objeto na- tural do objeto artificial: esta noz de madeira nao me deve transmitir, juntamente com a imagem de uma noz, a intengSo de fazer-me notar a arte que lhe deu origem. A escritura romanesca faz justamente o contrario. Sua fung%o é colocar a mascara e, ao mes- mo tempo, aponta-la. Essa fungao ambigua do passado simples encontra- -se também em outro fato de escritura: a terceira pessoa do Romance. ‘Todos hao de lembrar-se de um romance de Agatha Christie no qual téda a inven- ¢4o consistia em dissimular 0 assassino sob a primeira pessoa da narrativa. O leitor procurava:o assassino 47 atras de todos os “€le” da intriga: le se encontrava atras do “eu”. Agatha Christie sabia perfeitamente que, no romance, 0 “ew” costuma ser testemunha, en- quanto o “€le”.é ator. Por qué? O “éle” é uma con- vengao-tipo do romance; da mesma forma que o tempo narrativo, assinala‘e realiza 6 fato romanesco; sem a terceira pessoa, ha impoténcia para atingir o romance, ou vontade de destrui-lo. O “éle” mani- festa formalmente 0 mito;.ora, no Ocidente pelo me- nos, como acabamos de ver, nao ha arte que nao aponte sua m4scara com o dedo. A terceira pessoa, assim como o passado simples, presta, pois, ésse ser- vigo 4 arte romanesca e fornece aos consumidores a seguranga de uma fabulagio crivel mas, por outro lado, permanentemente manifestada como falsa. Menos ambiguo, o “eu” € por isso mesmo menos romanesco: conseqiientemente, €, ao mesmo tempo, a solugdo mais imediata quando a narrativa fica aquém da convengio (a obra de Proust, por exemplo, quer ser apenas uma introdug&o 4 Literatura), e a mais elaborada, quando o “eu” se coloca além da conven- ¢do e tenta destruf-la, remetendo a narrativa para a falsa naturalidade de uma confidéncia (tal é 0 as- pecto artificioso de certas narrativas gideanas). Do mesmo modo, o emprégo do “éle” romanesco empenha duas éticas opostas: como a terceira pessoa do roman- ce representa uma convengdo indiscutida, ela seduz os mais académicos e os menos atormentades tanto quanto os outros, que, no fundo, julgam a convengao necess4ria ao frescor de sua obra. De qualquer for- ma, ela é 0 signo de um pacto inteligivel entre a so- ciedade e o autor; mas, para éste, € também o pri- 48 z meiro meio de fazer o mundo manter-se da maneira que éle quer. Portanto, mais do que uma experién- cia literdria, a terceira pessoa € um ato humano que liga a criagéo 4 Histéria ou a existéncia. Em Balzac, por exemplo, a multiplicidade dos “@le”, téda a vasta réde de pessoas insignificantes pelo volume do corpo, mas conseqiientes pela duragdo dos atos, revela a existéncia de um mundo de que a His- téria constitui o primeiro dado, O: “éle” balzaquiano nao constitui o térmo de ima gestag’o comegada num “eu” transformado e generalizado; é’o0 elemento ori- ginal e bruto do romance, o material e nao o fruto da criagio: nio haé uma histéria balzaquiana ante- rior histéria de cada terceira pessoa do romance bal- zaquiano, O “éle” de Balzac é semelhante ao “éle” de César: a terceira pessoa realiza no caso uma es- pécie de estado algébrico da agio, no qual a existén- cia tem a menor parte possivel, em proveito de uma ligagdo, de uma clareza ou de uma tragicidade das relagdes humanas. Ao contrdrio — ou em todos os casos, anteriormente —, a fungdo do “éle” romanesco pode ser a de exprimir uma experiéncia existencial. Em muitos romancistas modernos, a histéria do ho- mem confunde-se com o trajeto da conjugagaio: par- tindo de um “eu” que é ainda a forma mais fiel do anonimato, o homem-autor conquista pouco a pouco o direito 4 terccira pessoa, 4 medida que a existéncia " se vai tornando destino, € o soliléquio Romance. Aqui, a aparicado do “éle” n&o é 0 ponto de-partida da His- téria, mas o térmo de um esférco que conseguiu des- tacar, de um mundo pessoal de humores e movimen- tos, uma forma pura, significativa, portanto logo de- 49 saparecida, gragas ao cen4rio completamente conven- cional e insignificante da terceira pessoa. E ésse cer- tamente o trajeto cxemplar dos primeiros romances de Jean Cayrol. Mas, enquanto nos classicos — sabe- -se que, no tocante A escritura, o classicismo s¢ pro- longa até Flaubert — a retirada da pessoa bioldgica atesta uma instalagao do homem essencial, em roman- cistas como Cayrol, a invasfo, do éle é uma conquista progressiva dirigida contra a sombra espéssa do ew existencial; isto porque 0 Romance, identificado por seus signos mais formais, é um ato de sociabilidade; éle institui a Literatura. Maurice Blanchot indicou, a propésito de Kafka, que a elaboragao da narrativa impessoal (quanto a €ste térmo, observe-se que a. “terceira pessoa” é sem- pre dada como um grau negativo da pessoa) era um ato de fidelidade 4 esséncia.da linguagem, jA que esta tende naturalmente para sua prépria ‘destruigéo, Com- preende-se, entao, que o “éle” seja uma vitéria sdbre o “eu”, na medida em que realiza um estado mais literArio e, ao mesmo tempo, mais ausente. Todavia, a vitéria est4 permanentemente comprometida: a con- vencao literaria do “éle” é necessdria ao desbaste da pessoa, mas a todo instante corre o risco de atravanca- -la com’ uma espessura inesperada. A Literatura é como o fésforo: brilha mais no momento em que ten- ta morrer. Mas como, por outro lado, é um ato que ~ implica necessdriamente a duragio — sobretudo no Romance —, finalmente nunca -h4 Romance sem Belas-Letras, Por isso, a terceira pessoa do Romance € um dos signos mais obsessivos dessa tragicidade da escritura, nascida no século passado quando, sob 0 50 péso da Histéria, a Literatura se viu separada da so- ciedade que a consome. Entre a terccira pessoa de Balzac e a de Flaubert, ha um mundo inteiro (o de 1848): naquele, uma Histéria dspera no seu espeta- culo, mas coerente e segura, o triunfo de uma ordem; neste, uma arte que, pata escapar A sua consciéncia culpada, sobrecarrega a convencao ou tenta destrui- -la violentamente. A. modernidade comeca com a busca de uma Literatura imposstvel. Assim, encontra-se no Romance ésse aparelho a um s6 tempo destrutivo ¢ ressurreccional préprio de téda a arte moderna. O que se quer destruir é a duragéo, vale dizer, a ligag&o inefavel da existéncia: a ordem, seja a do continuo poético ou a dos signos romanescos, a do terror ou a da verossimilhanga, a erdem € um assassinio intencional. Mas o que re- conquista ao escritor é ainda a duragio, de vez ser impossivel desenvolver uma negacéo no tempo sem elaborar uma arte positiva, uma ordem que deve ser destrufda novamente, Assim, as maiores obras da mo- dernidade, por uma espécie de conteng4o miraculosa, se detém por tanto tempo quanto possivel no limiar da Literatura, nesse estado vestibular em que a espes- sura da vida é dada, é estirada, sem contudo ser des- truida pelo coroamento de uma ordem dos signos: por exemplo, h4 a primeira pessoa de Proust, cuja obra inteira resulta de um esférgo prolongado e re- tardado no sentido da Literatura. H4 Jean Cayrol que s6 chega voluntariamente ao Romance ao térmo mais tardio do soliléquio, como se o ato literario, ex- tremamente ambiguo, s6 desse 4 luz uma criacdo con- a1 sagrada pela sociedade, no momento em que’ conse- guisse destruir a densidade existencial de uma dura- gao até entio sem significado. O Romance é uma Morte; faz da vida um des- tino, da lembranga um ato util, eda duracéo um tem- po dirigido ¢ significativo. Mas essa transformacgio s6 pode verificar-se aos olhos da sociedade. E a so- ciedade que impde o Romance, isto é, um complexo de signos, como transcendéncia e como Histéria de uma duragao. Portanto, é pela evidéncia de sua inteng&o, apreendida na clareza dos signos, romanescos, que se reconhece © pacto que liga, com toda a solenidade da arte, o escritor 4 sociedade. O passado simples ¢ a terceira pessoa do Romance nada mais sio do que ésse gesto fatal pelo qual o escritor aponta com o dedo a m4scara que usa. Téda a Literatura pode dizer:, “Larvatus prodeo”, avango apontando minha mascara com o dedo. Quer se trate da experiéncia inumana do poeta, assumindo a mais grave das rup- turas, a da linguagem social; quer da mentira credi- vel do romancista — a sinceridade precisa. aqui de signos falsos, e evidentemente falsos, para durar ¢ ser consumida. O produto e, finalmente, a fonte de tal ‘ambigilidade, é a escritura. Essa linguagem es- pecial, cujo uso d& ao escritor uma fung&o gloriosa mas vigiada, manifesta uma espécie de servidao in- visivel nos primeciros passos que é caracteristica de téda responsabilidade: a escritura, a principio livre, é finalmente o clo que acorrenta o escritor a uma His- téria que j4 est acorrentada: a sociedade o marca com os signos bem claros da arte a fim de arrasta-lo mais facilmente na sua prépria alienagao. 32 Iv EXISTE UMA ESCRITURA POETICA? Nos tempos classicos, a prosa e a poesia sao gran- dezas, a diferencga entre elas é mensuravel; nao estado nem mais nem menos distantes do que dois nimeros difcrentes, contiguas como éles, mas distintas pela prépria diferenga de quantidade. Se eu chamar pro- sa a um discurso minimo, veiculo mais econdmico do pensamento, e chamar a, b, c, a atributos particulares da linguagem, initeis mas decorativos, tais como o metro, a rima ou o ritual das imagens, téda a super- ficie das palavras se encaixar4 na dupla equagdo de M. Jourdain: Poesia = Prosa +a+b+c Prosa = Poesia - a — b—c Dai resulta evidentemente que a Poesia é€ sempre di- ferente da Prosa. Mas tal diferenca nao é de esséncia, é de quantidade. Nao atenta, portanto, contra a uni- dade da linguagem, que é um dogma classico. Dosam- -se diferentemente as maneiras de falar conforme as ocasides. sociais: aqui, prosa ou cloqiiéncia; 14, poesia ou preciosismo, todo um ritual mundano de expressdes, 55 mas sempre uma linguagem dnica, que reflete as ca- tegorias eternas do espirito. A poesia classica era sen- tida apenas-como uma variagdo .ornamental da prosa, o fruto de uma arte (ou seja, de uma técnica), nunca como uma linguagem diferente ou como o produto de uma sensibilidade particular. Téda poesia, entao, nada mais é que a equagio decorativa, alusiva ou car- regada, de uma prosa virtual que jaz em esséncia € poténcia em todos os modos de expressao. “Poética”, nos, tempos classicos, nfo designa nenhuma extensdo, nenhuma espessura particular do sentimento, nenhu- ma coeréncia, nenhum universo separado, mas somen- te a inflexio de uma técnica verbal, a de “exprimir- -se” segundo regras mais belas, portanto mais sociais, que as da conversag’o, ou seja, projetar para fora de um pensamento interior saido ja armado do Espirito, uma fala socializada pela propria evidéncia de sua convengao. . Dessa estrutura, sabe-se que nao resta nada na poesia moderna, a que parte, no de Baudelaire, mas de Rimbaud, a nao ser que se retomem, de um modo tradicional adaptado, os imperativos formais da poe- sia cldssica; os poctas instituem doravante sua fala como uma Natureza fechada, que abarcaria ao mesmo tempo a funcfo ¢ a estrutura da linguagem. A Poe- sia nfo é mais entSo uma Prosa decorada de ornamen- tos ou amputada de liberdades. & uma qualidade ir- redutivel e sem hereditariedade. Nao é mais atri- buto, é substfincia e, por conseguinte, pode muito bem renunciar aos signos, pois traz em si sua natureza € nfio precisa assinalar exteriormente sua identidade: as linguagens poéticas e prosaicas estao suficientemen- 56 te separadas para poderem prescindir dos préprios signos de sua alteridade. Além disso, as supostas relagdes entre o pensa- mento ¢ a linguagem ficam invertidas; na arte clds- sica, um pensamento j4 formado da a luz uma fala que o “exprime”, que o “traduz”, O' pensamento classico é sem durag&o, a poesia classica possui apenas a que é necessdria ao seu arranjo técnico. Na poética mo- derna, pelo contr4rio, as palavras produzem uma es- pécie de continuo formal do qual emana aos poucos uma densidade. intelectual ou sentimental impossivel sem elas; a fala é, entHo, o tempo espésso de uma ges- taco mais espiritual, durante a qual o “pensamento” é preparado, instalado pouco a pouco pelo acaso das palavras. Esse acaso verbal, de onde vai cair o fruto maduro de uma significagdo, supde portanto um tem- po poético que nao é mais o de.uma “fabricacio”, mas o de uma aventura possivel, o encontro de um signo com uma intengo. A Poesia moderna opée-se 4 arte classica por uma diferenga que abrange téda a estrutura da linguagem, sem deixar entre essas duas poesias outro ponto comum que n4o seja uma mesma intengao sociolégica. A economia da linguagem classica (Prosa e Poe-. sia) é relacional, vale dizer: nela, as palavras sfo o mais possivel abstratas, em beneficio das relagdes. Nenhuma palavra é densa por si mesma; constitui ape- nas.o signo de uma coisa, é muito mais a via de uma ligagio. Longe de mergulhar numa realidade inte- rior consubstancial a seu desenho, ela se estende, tao logo proferida, a outras palavras, de maneira ‘a for- 7 mar uma cadeia superficial de intengdes. Uma vista de olhos & linguagem matematica permitir4 ‘talvez compreender a natureza relacional da prosa e da poe- sia clAssicas: sabe-se que na escritura matematica, nao ‘sdmente cada quantidade est4 provida de um signo, mas também as relagdes que ligam tais quantidades sao igualmente transcritas por um sinal de operagio, de igualdade ou de diferenga; pode-se dizer que todo © movimento do continuo matemético provém de uma leitura explicita de suas ligagdes. A linguagem clas- sica € animada por um movimento andlogo, embora menos rigoroso, evidentemente: suas “palavras”, neu- tralizadas, ausentadas pelo recurso severo a uma tra- digo que lhes absorve o frescor, evitatn o acidente sonoro ou semAntico que concentraria num ponto o sabor da linguagem.e lhe deteria o movimento inte- ligente em beneficio de uma volipia mal distribuida. O continuo classico é uma sucessao de elementos de densidade igual, submetidos a uma mesma pressio emocional; éle retira déles téda tendéncia a uma signi- ficagao individual e como que inventada. O. préprio léxico poético € um léxico de uso, ndo de invengao: néle, as imagens sao particulares em grupo, nao isola- damente; por costume, nfo por criagéo. A fungao do poeta classico ndo é, portanto, encontrar palavras novas, mais densas ou mais brilhantes, mas ordenar um protocolo antigo, aperfeigoar a simetria ou a con- cisdo de uma relagio, levar ou reduzir um pensamento ao limite exato de um metro. Os concetti clssicos sdo concetti de relagées, nao de palavras: trata-se de uma arte da expresso, nao da invenco; nela, as pa- lavras nao reproduzem, como mais tarde, por uma es- 58 pécie de elevagiio violenta e¢ inesperada, a profundi- dade e a singularidade de uma experiéncia; elas se ordenam em superficie, segundo as exigéncias de uma economia elegante ou decorativa. O que encanta é a formulagao que as reine, nao a poténcia ou beleza delas, Sem diwida, a fala classica no atinge a perfei- ¢4o funcional da réde matematica: nela, as relagdes nao se manifestam por signos especiais, mas apenas por acidentes de forma ou de disposigao. EB a prépria retracao das palavras, o alinhamento delas, que rea- liza a natureza relacional do discurso classico; des- gastadas num pequeno nimero de relagdes sempre iguais, as palavras classicas esto a caminho de uma Algebra: a figura retérica, o cliché, sio os instrumen- tos virtuais de uma ligagio; perderam sua densida- de em favor de um estado mais solidario do discurso; operam 4 maneira das valéncias quimicas, desenhan- do uma 4rea verbal cheia de conexées simétricas, de estrélas e de nés, dos quais surgem, sem que haja nun- ca o repouso de um espanto, novas intengdes de sig- nificagao. Assim que as parcelas do discurso classi- co transmitem seu sentido, tornam-se veiculos ou anincios, levando sempre mais longe um sentido que nao quer depositar-se no fundo de uma palavra, mas estender-se 4 medida de um gesto total de intelecgao, isto & de comunicacgio. ~ Ora, a distorsfo que Hugo tentou impor ao ale- xandrino, que é 0 mais relacional de todos os metros, ja contém todo o futuro da poesia moderna, porque se trata de anular uma intengao de relagdes para subs- 59 tituf-la por uma explosio de palavras. Com efeito, a poesia moderna, jA que devemos opé-la 4 poesia clAssica e a qualquer prosa, destréi a natureza espon- taneamente funcional da linguagem para deixar sub- sistir-lhe apenas os alicerces lexicais. Das relagdes, ela sé conserva o movimento, a misica, nao a ver- dade. A Palavra explode acima de uma linha de re- laces esvaziadas; a gramatica fica desprovida de sua finalidade, torna-se pros6dia, nao passa de uma in- flexdo que dura para apresentar a Palavra. A rigor, no se suprimem as relagées; elas séo simplesmente lugares reservados, so uma parédia de relagdes € asse vazio é necess4rio, pois cumpre que a’ densidade da Palavra se eleve para fora de um encantamento 6co, como um ruido e um signo sem fundo, como “um furor e um mistério”. Na linguagem classica, so as relagdes que diri- gem q palavra, levando-a logo para um sentido sem- pre projetado; na poesia moderna, as relagdes sao apenas uma extens&o da palavra; é a Palavra que é “a morada”; ela é implantada como uma origem na pro- sédia das fungdes, percebidas mas ausentes. Aqui, as relagdes fascinam; € a Palavra que alimenta ¢ satis- faz como a sibita revelagio de uma verdade; dizer que tal verdade é de order poética equivale apenas a dizer que a Palavra poética nunca pode ser falsa porque € total; ela brilha com uma liberdade infinita © prepara-se para resplandecer no rumo de mil rela- Ges incertas e possiveis. Uma vez abolidas as rela- Ges fixas, a palavra sé tem um projeto vertical; é como um bloco, um pilar que mergulha num total de sentidos, de reflexod ¢ remanéncias: é um signo de 60 pé. A palavra poética é, neste caso, um ato sem pas- sado imediato, um ato sem contornos, e que propde apenas a sombra esptssa dos reflexos de téda a pro- cedéncia que lhe est&o ligados. Assim, sob cada Pa- lavra da poesia moderna, jaz uma espécie de geolo- gia existencial, onde se retime o contetdo total do Nome, ¢ nao mais seu contetido eletivo como na prosa e na poesia cl4ssica. A Palavra nado é mais dirigida de anteméo pela intengdo geral de um discurso socia- lizado; 0 consumidor de poesia, privado do guia das relagées seletivas, desemboca na Palavra, frontalmen- te, e a recebe’ como uma quantidade absoluta, acom- panhada de todos os seus possiveis, Aqui, a Palavra é enciclopédica, contém simultaneamente tédas as acepgées entre as quais um discurso relacional a teria obrigado a escolher. Ela realiza entéo um estado que s6 é possivel no diciondrio ou na poesia, onde 0 nome pode viver privado de seu artigo, reduzido a uma espécie de estado zero, mas prenhe de tédas as espe- cificagdes passadas e futuras. A palavra tem aqui uma forma genérica, € uma categoria. Cada palavra poé- tica constitui assim um objeto inesperado, uma caixa de Pandora de onde escapam tédas as virtualidades da linguagem; ela € portanto produzida e consumida com uma curiosidade particular, uma espécie de gu- lodice sagrada. Essa Fome da Palavra, comum a téda a Poesia moderna, faz da fala poética uma fala terrivel e inumana. Ela institui um discurso cheio de buracos ¢ cheio de luzes, cheio de auséncias e de sig- nos supernutritivos, sem previsio nem permanéncia de intengao e, por isso mesmo, de tal modo oposto 4 fungdo social da linguagem que o simples recurso m 61 a uma fala descontira. abre caminho para tédas as sobrenaturezas. Com efeito, o que significa a economia racional da linguagem sen&o que a Natureza é plena, possui- vel, sem fuga e sem sombra, inteiramente submetida as armadilhas da fala? A linguagem classica se re- duz sempre a um continuo persuasivo, postula 0 dia- logo, institui um universo onde os homens no estado sos, onde as palavras nunca tém o’ péso terrivel das coisas, onde a fala € sempre o encontro com outrem. A linguagem classica € portadora de euforia por ser uma linguagem imediatamente social, Nao ha ne- nhum género, nenhum escrito classico que nao se con- sidere um consumo colctivo e, de certa maneira, fala- do; a arte literAria classica é um objeto que circula entre pessoas reunidas pela classe, um produto con- cebido para a transmissao oral, para um consumo re- gulado segundo’ as contingéncias mundanas: € essen- cialmente uma linguagem falada, a despeito de sua codificag4o severa. Vimos que a poesia moderna, pelo contrario, des- truia as relagées da linguagem e€ reduzia o discurso a estagdes de palavras. Isso implica uma inversao no conhecimento da Natureza. O descontinuo da nova linguagem poética institui uma Natureza interrom- pida que s6 se revela por blocos. No exato momento em que a retracdo das fung6es obscurece as ligagGes do mundo, 0 objeto passa a ocupar, no discurso, um lugar de realce: a poesia moderna € uma poesia obje- tiva. A Natureza torna-se nela um descontinuo de ob- jetos solitérios e terriveis, porque éles s6 tém ligagdes 62 virtuais; ninguém hes escolhe um sentido privilegia- do ou um, emprégo ou servigo, ninguém lhes impée uma hierarquia, ninguém os reduz 4 significagdo de um comportamento mental ou de uma intengdo, isto é, de uma ternura, afinal. A explosdo da palavra poé- tica institui entdo um objeto absoluto; a Natureza torma-se uma sucessio de verticalidades, 0 objeto ergue-se de repente, referto de todos os seus possiveis: @le s6 pode delimitar um mundo no preenchido e, por isso mesmo, terrivel. Essas palavras-objetos sem ligagdo, ornadas de téda a violéncia de sua explosio, cuja vibragio puramente mecAnica toca de maneira estranha a palavra seguinte, mas logo se extingue essas palavras poéticas excluem'os homens: ndo existe humanismo poético da modernidade: ésse discurso de pé é um discurso cheio de terror, vale dizer, que poe o homem em ligag&o n&o com os outros homens, mas com as imagens mais inumanas da Natureza; o céu, o inferno, o sagrado, a infancia, a loucura, a matéria pura, etc. A essa altura, dificilmente se pode falar de uma escritura poética, porque se trata de uma linguagem cuja violéncia de autonomia destréi qualquer alcance ético. O gesto oral aqui visa a modificar a Natureza, é uma demiurgia; nao é uma atitude de consciéncia, mas um ato de coergao. Tal é, pelo menos, a lingua- gem dos poetas modernos que vao até o fim de seu designio e assumem a Poesia, no como um exerci- cio espiritual, um estado de alma ou uma tomada de ’ posicéo, mas sim como o esplendor e o frescor de uma linguagem sonhada. Para tais poetas, é to inutil fa- 63 lar de escritura quanto de sentimento poético. A Poe- sia moderna, no seu absoluto, num Char, por exem- plo, esta além désse tom difuso, dessa aura preciosa, que sao, éles sim, uma escritura, ¢ aos quais s¢ chama geralmente sentimento poético, Nao ha inconvenien- te em falar de uma escritura poética a propésito dos classicos e de seus epigonos, ou ainda da prosa poéti- ca ao gosto das Nourritures Terrestres, onde a Poesia é realmente uma certa ética da linguagem. Em am- bos os casos, .a escritura absorve o estilo, e pode-se ima- ginar que para os homens do século XVII, nao era facil estabelecer uma diferenga imediata, e¢ sobretudo de ordem poética, entre Racine ¢ Pradon, assim como no é facil, para um leitor moderno, julgar os poetas contemporaneos que usam a mesma escritura poéti- ca, uniforme e indecisa, porque, para éles, a Poesia € um clima, vale dizer, essencialmente uma convengao da linguagem. Mas quando a linguagem poética poe radicalmente em questio a Natureza, pelo simples efeito de sua estrutura, sem recorrer ao contetido do discurso sem fazer parada numa ideologia, nao ha mais escritura, s6 h4 estilos, através dos quais 0 ho- mem se volta completamente e enfrenta o, mundo objetivo sem passar por nenhuma das figuras da His- téria ou da sociabilidade. 64

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