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MARTIN, Emily “Science and the construction of Gendered Bodies” In: LASLETT, Barbara Gender and scientific autority. Chicago, University bd of Chicago , 1996. O Svulo eo espermatozéide: como a ciéncia construiu um romance baseado ve | em papéis estereotipados masculinos ¢ femininos A teoria do corpo humano é sempre uma parte de wna imagem universal...A teorta do corpo humano é sempre parte de uma fantasia (James Hillman, The Myth of Analysis)" Como antropéloga, intriga-me a possibilidade da cultura configurar_o modo como 0s bidlogos descrevem suas descobertas sobre o mundo natural. Se for assim, COLO) 98 biog 8 ere e ee eee ee estariamos aprendendo mais do que o mundo natural nas aulas de biologia do ensino ‘médio; estariamos aprendendo também sobre crengas e priticas culturais, como se estas fossem parte da natureza. No curso de minha pesquisa percebi que as representagdes populares do évulo e do espermatozéide, assim como relatos cientificos sobre biologia reprodutiva, apoiam-se em estereétipos centrais as nossas definigées culturais de masculino e feminino. Os estereétipos implicam nao somente em que os processos bioldgicos femininos tenham menor importéncia do que seus correspondentes ‘masculinos, mas também que as mulheres sejam menos valorizadas que os homens. Ao escrever este artigo, tenho por objetivo iluminar a questo dos esteredtipos dos géneros ocultos no interior da linguagem cientifica da biologia. Ao expor este aspecto sob este prisma, espero que estes esteredtipos possam perder boa parte de seu poder, que tanto nos prejudica. Ovulo ¢ espermatozéide: um conto de fadas cientifico Os principais compéndios de nivel fundamental de ensino designam os orgios reprodutores masculino e feminino como sistemas produtores de substncias valiosas, como dvulos e espermatozéides.” No caso das mulheres, o ciclo menstrual é descrito artes desse artigo foram apresentadas como a ‘1987 Becker Lecture, Comell University’. Sou rata as sugestdes e idéias recebidas nessa ocasido. Agradego a Richard Cone, Kevin Whaley, Sharon Stephens, Barbara Duden, Susan Kuechler, Lorna Rhodes e Scott Gilbert, pela ajuda especial e pertinente acerca dos meus argumentos ¢ dados. © artigo foi fortalecido ¢ clarficado pelos comentirios dos revisores Signs andnimos, bem como pelas qualidades editoriais de Amy Gage. "James Hillman, The Mjth of Analysis (Evanston, Il: Northwestem University Press, 1972), 220. 2°Qs textos consultados sio os principais utiizados para estudantes de nivel pré-médico ou para cestudantes de medicina (ou para os reservados na biblioteca para estes niveis) durante os iltimos anos na Universidade John Hopkins. Estes textos sfo também amplamente utilizados em outras universidades do pais. MARE, tly io (eignein Seater") cite, da reatighidecd: da Go como determinado & produgdo de ovulos e & preparacio de um local adequado & sua fertilizagdo ¢ erescimento, visando a geracio de bebés. Contudo o entusiasmo termina neste ponto, Ao se comsiderar 0 ciclo feminino como uma empresa produtiva, 8 ¢— rmenstruagio deve _ser_vista_necessariamente como uma falha. Textos médicos descrevem a menstruagdo como o desmoronamento dos “escombros” do forro uterino, como 0 resultado de necrose ou morte do tecido. As descrigBes implicam na idéia de tema se desempenhou mal, fazendo produtos no uti queo dos, gastos e velhos. ‘Uma ilustragio de um texto médico amplamente utilizado mostra a menstruaso como ‘uma desintegragéo caética da forma, complementando os textos que descrevem 0 processo como “cessante”, “moribundo”, “em perda’”? z [A fisiologia reprodutiva masculina é avaliada de forma bastante diferenciada \ ‘Um dos textos que pereebe a menstruagio como uma produgso falha, utiliza uma pros sem folego a0 descrever a maturagéo do espermatozbide: “Os mecanismos que guiam & extraordinéria transformag3o celular de espermétide a espermatozbide maduro continuam duvidosos.., Talvez a mais incrivel caracteristica da espermatogénese seja sua magnitude: 0 hiomem normal pode produzir centenas de milhares de espermatozéides por dia”.* No texto classico Medical Physiology, editado por Vernon Maintcastle, a comparagio produtiva/destrutiva, masculino/feminino € mais explicta: Tid, 801 te ‘Atualmente, 0 funcional é enfocado somente em conexio & mulher: € nelas que os varios, itero ¢ vagina possuem uma interdependéncia intermindvel, Nos homens a reprodugio paroce envolver apenas “orgs” 434 0 espermatozbide, assim como 0 évulo, depende de uma série de processos inter- relacionads. Para proteger 0 espermatozdide ha secrepSes que atemuam a rina na uretra antes da ejaculagdo, Hi 0 reflexo de desconexdo da bexiga, as provistes de secrepbes prostiticas © -rios outros tipos de propulsio muscular. O espermatoz6ide ndo é mais independente de seu nei que 0 évulo, ¢, mesmo que por desejo fosse, os concederam o conceito de que a mulher, {niiando pelo évulo,é mais dependente que o homem.”** Sobre outro aspecto referente & autonomia do espermatozdide, um artigo do jornal Cell aponta o espermatozéide tomando uma “decisio existencial” para penetrar no évulo: “Espermatozéides so células com um repertorio comportamental limitado, direcionar-se a fortilizagao de dvulos. Para executar a decisio de abandonar o estado hapléide, 0 espermatozbide nada na dirego do évulo e entio adquire a habilidade de efetuar fusio com a membrana.” Esta € a versdo deste gerente de uma corporagao sobre a atividade do espermatozéide ~ “tomando decisées”, atemorizado e desanimado diante das dificeis opgdes que podem colocé-lo em grande risco? Ha uma outra forma em que 0 espermatozéide, a despeito de seu pequeno tamanho, pode se apresentar como tendo maior importancia do que o évulo, Em uma coletinea de artigos cientificos, uma eletromicrografia de um gigantesco évulo e de um mindsculo espermatozéide tem o titulo de “ Um Retrato do Espermatozoide™”, o que seria semelhante a mostrar a foto de um cachorro e dizer que seria uma fotografia de pulgas, Certamente os microscépicos espermatozéides so mais dificeis de serem fotografados do que os évulos, que so grandes o suficiente para serem vistos a olho nu. Mas seguramente 0 uso do termo “retrato”, uma palavra associada 4 forga e & abundancia, é significativo. Os 6vulos possuem apenas micrografias ou gravuras, no possuindo retratos. ‘Uma representagio do espermatozdide como fraco e timido, ao invés de forte poderoso ~ a tinica que conhego na civilizago ocidental — aparece no filme de Woody Allen, Tudo 0 que vocé queria saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar. Allen encena um espermatozoide apreensivo no interior de um testiculo humano, assustado > Ruth Herscherger, Adam's Rib (New York: Pelligrinni & Cudaby, 1948), esp. 84. Sou grata a Ruth “Hubbard por me contar sobre o trabalho de Herschberger, apesar do fato de que este texto jf estivesse quase todo redid, ‘Bennet M. Shapiro. “the Existencial Decision of a Sperm,” Cel! 49, n. 3(May, 1987): 293-94, esp. 293. * Lennart Nilsson, “A Portrait of the Sperm,” em The Functional Anatomy of the Spermatozoan, ed. Bjorn A Afzelius (New York: Pergamon, 1975), 79-82. com um orgasmo que se aproxima, Ele reluta em se langar na escuridio, com medo de métodos contraceptivos, e teme também ser jogado no teto, no caso de uma masturbagio. Nao se pode provar que o quadro mais comum — 0 do évulo condenado, em desvantagem, protegido somente por seu traje sagrado e 0 do herdico espermatozbide, ‘guerreiro em missio de busca ~ seja ditado pela biologia. Os “fatos” da biologia no sio sempre construidos em termos culturais, mas, neste caso especifico, considero que 0 40. O nivel de contetidos metaforicos presentes nestas descrigdes; a dimenstio com que so enfatizadas as diferengas entre o dvulo e o espermatozdide; os paralelos entre os esteredtipos culturais acerca de comportamentos masculino e feminino, e o caréter do ‘évulo e do espermatozéide — todos estes aspectos apontam para esta conclusdo. ‘Nova pesquisa, velha imagem Com a emergéncia de novas compreensdes do évulo e do espermatozbide, a imagem dos textos esta sendo revisada, Contudo a nova pesquisa, longe de fugir das representages estercotipadas do dvulo e do espermatozéide, simplesmente replicam elementos das imagens dos textos de um modo diferente. A persisténcia deste imaginétio esta associada a0 que Ludwik Fleck denominou como a natureza “auto- contida” do pensamento cientifico, Em sua descrigdo, “a interagao entre 0 que jé € conhecido, o que resta a ser conhecido e os fatos que deverio ser apreendidos, tudo se associa no sentido de assegurar a harmonia do sistema, Simultaneamente eles preservam a harmonia das ilusées, o que é bem assegurado nas fronteiras de um determinado estilo de pensamento.”* E necessério entender a forma com que 0 contetido cultural presente nas descrigées cientificas se transforma através das revelagdes das descobertas biologicas, e se 0 conteiido cultural é solidamente fortalecido ou é facilmente alterado. Em todos 08 textos citados acima, o espermatozbide € descrito como penetrando © Ovulo, e algumas substincias na cabega do espermatozdide sio descritas como se ligando ao dvulo. A descrigdo desses eventos foi rescrita recentemente em um. Jaboratério de biofisica na Universidade de John Hopkins — transformando o évulo de sujeito passivo em ativo.” Anteriormente a esta pesquisa acreditava-se que a zona ¢ as vestimentas internas do 6vulo formavam uma barreira impenetravel. Os espermatozéides ultrapassariam essa ® Ladwik Fleck, Genesis and Development of a Scientific Fact, ed. Thaddeus J. Trenn. and Robert K. Merton (Chicago: University of Chicago Pres, 1979), 38. > Jay M. Baltz desenvolveu a pesquisa que descrevi quando ele era um estudante no Departamento de Biofisica Thomas C. Jenkins da Universidade John Hopkins. barreira por mecanismos de penetragdo, perdendo suas caudas e trabalhando lentamente a0 longo de seu trajeto. Pesquisas posteriores mostraram que 0 espermatozbide liberava cenzimas digestivas que quebravam quimicamente a zona. Deste modo, os cientistas suspeitaram que 0 espermatozbide utilizasse meios mecénicos e quimicos para atingir © ovulo. Nessa investigagéo mais recente, os pesquisadores comegaram a questionar a forga quimica da cauda do espermatozbide (a meta do laboratorio era desenvolver um contraceptivo que agisse topicamente no espermatozide), Descobriram, com grande surpresa, que o impulso para a frente do espermatozéide é extremamente fraco, 0 que contradiz a afirmativa de que os espermatozéides so penetradores potentes."” A cabega do espermatozbide, mais do que impulsionadora, passou @ ser vista se movendo principalmente para trés e para frente. Os movimentos laterais da cauda do cespermatozide fazem com que a cabega se mova lateralmente com uma forga que € dez. ‘vezes mais forte do que o seu movimento para a frente. Assim, mesmo que toda a forga do espermatozéide fosse potente o suficiente para romper mecanicamente @ zona, a maior parte seria direcionada lateralmente — ao invés de para a frente. De fato, ha uma tendéncia a fugir da tentativa de se intrometer no évulo. Assim, o espermatozéide deve ser excepcionalmente eficiente para escapar de contato com a superficie de qualquer célula, A superficie do dvulo deve ser projetada para prender 0 espermatozbide e evitar sua fuga. Se nio fosse assim, poucos ou nenhum espermatozdide conseguiria atingir évulo. Os pesquisadores da John Hopkins concluiram que o espermatozdide ¢ 0 évulo se juntam em consequéncia da existéncia de moléculas adesivas presentes em suas superficies. O dvulo captura o espermatozéide e se adere a ele tdo fortemente que @ cabega do espermatozbide ¢ forgada a penetrar na superficie da zona, do mesmo modo como certa vez me foi contado que “o Coelho foi ficando cada vez mais colado em sua parceira, se enrodilhando cada vez mais.” O espermatozéide capturado continua se ‘movimentando — sem resultado algum ~ para os lados. A forga mecinica de sua cauda é to pequena que um espermatozdide nem consegue romper uma ligagdo quimica. EB exatamente neste ponto que as enzimas digestivas liberadas pelo espermatozdide entram © Sabe-se bem menos sobre a fisiologia do espermatozbide do que sobre as substincias compardveis femininas, 0 que as feministas consideram que mo seria por acaso. Foram realizadas mais investigagbes sobre a reproduedo feminina, permitindo que as responsabilidades do controle da natalidade ficassem a cargo das mulheres. Neste cas0, a descoberta dos pesquisadores niio dependen do desenvolvimento de em ago, Se elas comegarem a dissolver zona somente na area da ponta do espermatozbide 0s lados permanecem aderidos, entéo os espermatoz6ides fracos poderdo se orientar na diregio correta e atravessar a zona — j estabelecida a dissolugo de sua ligagdo com a zona, ¢ conseguirao penetrar no ovulo. [Apesar dessa nova versio da saga do ovulo ¢ do espermatoz6ide ter aberto um caminho para novas expectativas culturais, 0 pesquisadores que fizeram a descoberta continuaram a escrever textos como se os espermatozbides fossem participantes ativos, que atacam e penetram no évulo. A ‘nica diferenga foi a de que o espermatozdide cestaria realizando essas ages de forma fraca."' Foi somente em agosto de 1987 — mais de trés anos apés estas descobertas descritas acima — que 08 pesquisadores reformularam este proceso, legando ao évulo um papel mais ative. Comegaram a descrever a zona como uma armadilha agressiva para o espermatozoide, coberta por moléculas adesivas que podem capturar 0 espermatozéide através de um simples contato e prendé-los na superficie da zona. * Nas palavras de seu relato publicado: “A -vestimenta interna, a zona pellucida, 6 uma concha glicoproteica que captura e submete © espermatozbide antes da penetragio... © espermatozdide ¢ capturado no primeira ‘contato entre sua ponta e a zona... A introdugao usa menos forga do que a utilizada para romper @ ligagZo quimica, o primeiro contato da ponta do espermatoz6ide com a zona resulta na captura desse.”"? Experimentos em outro laboratério revelam padres semelhantes na interpretagio dos dados. Gerald Schatten e Hellen Schatten mostraram, contrariamente & visio convencional, que o “ovulo nfo é simplesmente grande, uma esfera completamente untada na qual o espermatozéide vai penetrar para dar uma nova vide Pesquisas recentes sugerem além, que tanto 0 évuilo como o espermatozbide so ‘Jenhuma tecnologia nova, Nos experimentos foram utlizadas pipetas de vidro, um mandmetro ¢ um ‘imples microscdpio — todos instrumentos disponiveis hi mais de c2m anos. sR Baltze Richard A Cone, “What Force Is Needed to Tether a Sperm?” (resumo para a Society for the Study of Reproduction, 1985) ¢ “Flagellar Torque on the Head Determines the Force Neoded to "Tether a Sperm” (resumo para a Biophysical Society, 1986). i iiy M. Balt, David F. Katz e Richard A. Cone, “The Mechanics of Sperm-Egg Interaction at the ‘Zod Palivcida Biophysical Jounal 54 n° 4 (outubro 1988):643-54. Os membros do laboratrio estavam, Richard Cone, que chefia 0 laboratéri, € meu marido, ¢ eventualmente conversa com seus colegas sobre Tninhas pesquits sobre este tema, Contudo, como mina pesquisa enfoca a imagem biolgica ¢ como eb Tiutbe poticias frequentes sobre o laboratério, eu mesma no reconheci o papel da imagem do “spermatozdide af algumas semanas apis o periodo de pesquisa ¢ de claboragdo do artigo, Porsoto, $rrotno que qualquer eonsciéncia que os membros do Laboraério possuam sobre como essa metifora possa condhizir esta pesquisa particular tera sido incompleta © pid, 643, 650. Parceiros mutuamente ativos.”"“ Esta afirmativa soa como uma despedida da visio estereotipada dos textos, mas uma leitura mais aprofundada de Schatten e Schatten revela que sua visio permanece em conformidade com a metéfora do espermatozbide agressivo. Eles descrevem como “o espermatozbide 0 dvulo se tocam pela primeira vex quando, da ponta da cabeca triangular do espermatoz6ide, um filamento longo e fino atinge ¢ fisga o dvulo,” Assim aprendemos que “extraordinariamente o arpaio nao é to poderoso a ponto de agrupar em alta velocidade, molécula por molécula, um Conjunto de proteinas estocadas em uma regio especializada denominada acrossoma. O filamento pode crescer até vinte vezes o tamanho da cabega do espermatozbide antes que sua ponta atinja e se introduza no évulo,”"* Por que nao dizer “fazer uma ponte” ou “esticar um filamento” ao invés de langar um arpio? Um arpao fere e mata, enquanto o filamento apenas liga. E por que nao enfocar, como fez 0 laboratério Hopkins, a adesio do ovulo, a0 invés da ligagio dos espermatozbides?® Mais adiante em seu artigo, os Schatten replicaram a visio comum da perigosa jomada do espermatozéide através da escuridio quente da vagina, neste ponto a propésito de explicarem a jonada na diregao do interior do évulo: “{o espermatozéide] ainda tem uma ardua jornada pela frente. Ele deve penetrar mais profundamente no grande citoplasma do évulo e, de alguma forma, encontrar 0 nucleo, de modo que os cromossomas das duas células possam se fundir, O espermatozéide mergulha fundo no citoplasma, com sua cauda batendo, mas é logo interrompido pela migragio rapida e sibita do nmicleo do évulo, que o precipita com luma velocidade trés vezes maior do que a do movimento dos cromossomos durante a divisdo celular, atravessando o évulo inteiro em cerca de um minuto.” Como Schatten ¢ Schatten ¢ os biofisicos da John Hopkins, outro pesquisador fez novas descobertas recentemente, que apontam uma visio mais interativa entre o 6vulo € 0 espermatozoide, Nesse trabalho, a partir de espermatozdides e dvulos de camundongos, Paul Wassarman concentra-se em identificar as moléculas especificas do evestimento do ovulo (a zona pelucida), envolvida na interagao Svulo-espermatozbide, Inicialmente suas descrigdes pareciam seguir um modelo igualitario de relacionamento. Gametas masculino e feminino “se reconhecem mutuamente” eas “interagdes, “ Schatten e Schatten (a, 29 * Bid, 52. “ Surpreendentemente, em um artigo voltado para uma audiéncia mais ampla, os autores no apontam he trata-se do espermatordide do ourigo, ¢ apontam que o espermataz6ide humane lana filamentos, Schatten e Schatten, 53, ima), 51. ‘ocorrem entre espermatozdide e dvulo.”“* Mas o artigo na Scientific American no qual essas descrigdes aparecem inicia com uma vinheta que aponta o motivo dominante de sua apresentagdo: “Jé faz mais de um século desde que Herman Fol, um zoélogo suigo, tornou-se a primeira pessoa a presenciar uma penetrago de um espermatozdide em um 6vulo, fertilizando e formando a primeira célula de um novo embrido, através de um microscépio.”” Essa imagem do espermatozdide como a parte ativa — a que penetra, fertiliza 0 ovulo e produz 0 embrido — nfo é citada como exemplo de uma nova opinio, De fato, o autor reitera mais adiante a idgia em seu artigo: “Muito espermatozoides podem se atar ¢ penetrar na zona pellucida ou camada mais extema de um évulo nfo fertiizado de um camundongo, mas somente um iré finalmente se fundir com a membrana plasmitica fina que envolve a esfera interna, fertilizando 0 évulo e dando vida a um novo embrido.”*? A imagem do espermatozéide como agressor & particularmente assustadora neste caso: a descoberta principal a ser relatada é 0 isolamento de uma molécula particular na camada que reveste 0 dvulo, com uma fungao importante para a fertilizagao! O vocabulério escolhido por Wassarman sustenta o enquadre, Ele chama a molécula que foi isolada de ZP3, a “receptora de espermatozéide.” Considerando que 0 évulo desempenhe um papel passivo de espera, Wassarman segue descrevendo o espermatozéide como ator, aquele que faz com que tudo acontega: “O processo basico & iniciado quando varios espermatozéides se ligam imprecisamente ¢ depois atam-se tenazmente aos receptores na superficie da camada mais espessa do évulo, a zona pellucida, Mais especificamente, um local em cada proteina adesiva do dculo encontra- se com o local complementar no receptor de espermatozéides, como uma chave em uma fechadura.”*' Ao nomear o espermatozdide como a “chave” e 0 évulo como a “fechadura”, fica Sbvio quem é 0 ator e quem recebe a ago. Essa imagem nao poderia ser invertida, com o espermatozbide (fechadura) a espera do évulo que produz a chave? (Ou entio falar de duas metades de igual responsabilidade e do emparelhamento como a agdo que inicia a fertilizagao? E como se Wassarman estivesse decidido a posicionar o évulo como o parceiro receptivo. Frequentemente em pesquisa biolégica, a proteina responsavel pela adesio é Paul M, Wassarman, “Fertilization in Mammals”, Scientific American 259, n. 6 (december 1988): 78- 84, esp. 78, 84 * Ibid, 78. ® Ibid, 79. *" Tid, 78. chamada de receptora e fisicamente tem uma cavidade semelhante a uma fechadura. Como mostram os diagramas do artigo de Wassarman, as moléculas dos ‘espermatoz6ides s4o proteinas e possuem “cavidades”. As moléculas pequenas e moveis que se encontram nessas cavidades sto denominadas de adesivas (ligantes). Como ‘mostram os diagramas, ZP3 no évulo é um polimero de “‘chaves”, com varios pequenas protuberdncias aderidas. Seguindo 0 padrao tipico, as moléculas do espermatozbide seriam chamadas de receptoras as do évulo adesivas. Wassarman escolheu 0 nome ZP3 como receptor no évulo ¢ criou um novo termo, “a proteina fixadora no évulo”, para a molécula do espermatozdide que, por um contra-senso, seria chamada de receptora.® ‘Wassarman afirma que a camada que reveste 0 évulo tem outras flngdes, além da de receptora de espermatozbides. Enquanto aponta que “o tecido que reveste a zona tem sido visto pelos pesquisadores como um incémodo, uma barreira para os espermatozbides e um impedimento para fertilizago”, sua nova pesquisa revela que a superficie do dvulo “serve como um sistema de biolégico de seguranga que protege a entrada de espermatozbides, selecionando somente os compativeis com fertilizagio e seu desenvolvimento, prepara o espermatozéide para a fustio com o évulo e adiante protege o futuro embriéo contra a poliespermia [condicao letal gerada pela fustio de mais de um espermatozdide com um tinico évulo].”*? ‘Nao obstante o posicionamento nesta descrigo do Svulo como desempenhando um papel ativo, este papel descrito em termos de esterestipos femininos. O évulo seleciona um parceiro adequado, prepara-o para fusfo, ¢ logo depois protege a geragao resultante contra danos. Isso é visto pelos colhos de um sociobiélogo como um comportamento de um relacionamento a dois: uma mulher que, apés a unio com o escolhido, iré se tornar mulher - como criada e mae. Wassarman no para por ai. Em uma resenha para a Science ele traga a “cronologia da fertilizagio.”** Quase no final de seu artigo ha dois assuntos que se destacam. Um é “A penetragao do espermatozéide”, no qual Wassarman descreve como a dissolucao quimica da superficie da zona se combina com a “forga propulsiva gerada pelo espermatozéide”. O outro assunto é “A fusio espermatozéide-6vulo”, na qual * A partir do principio que moléculas receptoras slo relativamente iméveis e que as ligantes que aderem a clas so relativamente méveis, poderia se supor que 0 Gvulo seria o receptor e o espermatozbide o ligante, No entanto, as moléculas em questo, tanto no Gvulo como no espermatezdide, sfo iméveis. Eo ‘espermatozéide que, como célula, tem motilidade e 0 dvulo, como célula, que tem uma relativa imobilidade. © Wassarman, 78-79, Getalha 0 que ocorre no interior da zona apés a “penetragéo” do espermatozbide. O espermatozbide “pode fazer contato, aderir ¢ fundir-se (0 €, fertilizar) com um ovulo.* A escolha do vocabulario de Wassarman € novamente inclinada assimetricamente em favor da atividade do espermatozéide, de modo que logo em seguida ele afirma que o espermatozdide perde sua mobilidade, ao concretizar a fusio com a superficie do dvulo. Em évulos de camundongos e de ourigos, o espermatozoide penetra de acordo com a vontade do dvulo, de acordo com a descrigao de Wasarman: “Uma vez aderido a membrana plasmética ovular [superficie do évulo], como o espermatozdide penetra no évulo? A superficie desses évulos é coberta com milhares de projegdes de membrana plasmética, denominadas microvilli [“cabelos” delgados]. Nos ourigos, evidéncias comprovam que, apés a fisio na membrana, um grupo de microvilli alongadas se agrupa em volta recobrindo a cabega do espermatozdide. Com a reabsorgo destas microvilli, 0 espermatozoide é sugado para dentro do évulo, Portanto, ‘a mobilidade do espermatozdide que cessa com a fuso dos évulos ~ tanto dos ourigos como dos camundongos - no é um requisito para a sua entrada.” A seco denominada “A penetragdo do espermatozbide” deveria ser seguida logicamente pela segdo nomeada “o envolvimento do Svulo”, ao invés de “fusto espermatozbide-svulo” ~ © que teria um sentido mais acurado de que tanto o dvulo como o espermatozdide iniciam a agao. Wassarman menospreza a atividade do dvulo de outra forma, ao descrever alguns componentes do évulo e referir-se a0 espermatozbide como uma entidade completa. Deborah Gordon denominou este procedimento de “atomismo” (“a parte independente e primordial para o todo), identificando tal postura como uma “afirmativa obstinada” da ciéncia e da medicina ocidental.”” Wassarman emprega 0 atomismo a seu favor ao se referir a processos que ocorrem no interior do espermatozdide, quando simplesmente retoma as descrigdes referentes a origem dessas atividades: fazendo parte do espermatozéide que penetra o évulo, ou que gera forga propulsiva. Quando se refere processos ocorrendo no interior dos évulos, 0 autor no se conduz da mesma forma. Como resultado, todo papel ativo surge relacionado as partes do Svulo, € nfo ao évulo Paul Wassarman, “The biology and Chemistry of Fertilization,” Science 235.n. 4788 (january 30, 1987) 553-60, esp, 554, Ibid, $57. % Thid, 557-58. Este resultado pOe questiona a descrigo dos Schatten (n.29 acima) sobre o ¢spermataz6ide, com as batidas de sua cauda, mergulhando no évulo, * Deborah R. Gordon, “ Tenacious Assumptions in Western Medicine”, em Biomedicine Examined, ed, Margaret Lock e Deborah Gordon (Dordrecht : Kluwer, 1988), 19-56, esp. 26, ‘em si, Na citagio acima, so os microvilli que se agrupam ao redor do espermatozbide. Em outro exemplo, “a forga para engolfar o espermatozéide aderido origina-se de uma regido do citoplasma, abaixo da membrana plasmatica do vulo.”** Implicagdes sociais: pensando além Estes trés relatos de revisio sobre o évulo € 0 espermatozdide nao conseguem fugir da imagem hierarquica de valores antigos. Mesmo que cada novo relato relacione a0 évulo a um papel mais ativo, quando tomados em conjunto eles conduzem a um novo estereétipo cultural: a mulher € percebida como uma ameaga perigosa e agressiva. No modelo revisado do laboratério da John Hopkins, 0 évulo termina como um agressor feminino que “captura e submete” o espermatozéide em sua zona, como uma aranha em sua teia.? Segundo o laboratério dos Schatten, 0 micleo do évulo “interrompe” o mergulho do espermatozbide “rapida e subitamente”, “capturando 0 espermatozbide guiando seu niicleo para o centro.” A descrigio de Wassarman sobre a superficie do ‘évulo, “coberta com milhdes de projegdes de membrana plasmética, denominadas microvilli", que procuram e capturam 0 espermatozdide, aponta para a imagem da aranha.®' Essas imagens outorgam ao évulo um papel ativo, as custas de uma imagem incomodamente agressiva. Imagens de mulheres perigosas ¢ agressivas, a fémea fatal que vitimiza 0 homem, sio muito difundidas © empregadas na literatura e cultura cocidental.? Mais especificamente, a ligagiio entre a imagem da aranha com a idéia da mae devoradora. Novos dados no conduziram os cientistas a eliminar os esteredtipos de género em suas descrigées do dvulo ¢ do espermatozéide, Muito pelo contrario, os cientistas simplesmente passaram a descrevé-los em termos diferentes, mas no menos depreciativos. Sera possivel uma visio menos estereotipada? A propria biologia promove outro modelo que pode ser aplicado ao évulo ¢ ao espermatozdide. O modelo cibernético — com um mecanismo de feed-back, com uma adaptagio flexivel a mudanga, com a coordenagio das partes no interior do todo, com a evolugao através do tempo, com alteragio de resposta de acordo com 0 meio ~ presente na genética, endocrinologia ¢ ® Wassarman, “The Biology and Chemisuy of fertilization”, $8. Baltz, Katz ¢ Cone (n. 42 acima), 643, 650. © Schatten e Schatten, 53. © Wassarman, “The Biology and Chemistry of Fertilization”, 557 © Mary Ellman, Thinking about Women (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1968), 140; Nina ‘Auerbach, Woman and the Demon (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982), esp. 186, ecologia, com uma crescente influéncia na medicina em geral.* Esse modelo tem 0 potencial de alterar nossa imagem de algo negativo, no qual o sistema reprodutivo feminino & repreendido por nao produzir 6vulos apés 0 nascimento e também por produzir (¢ esbanjar) uma quantidade excessiva de Svulos, para algo mais positivo. O sistema reprodutivo feminino poderia ser visto como respondendo ao ambiente (gravidez ou menopausa), se ajustando as alteragées mensais (menstruago), € se alterando flexivelmente da reprodutividade pés-puberdade vida nio reprodutiva posterior. A interagio entre o espermatoz6ide e o dvulo poderia também ser descrita nos termos cibernéticos. A pesquisa de J. F. Hartman em biologia reprodutiva demonstrou ha quinze anos que, se um évulo & morto através da perfurago com uma agulha, 0 espermatozéide vivo no consegue atravessar a zona.” Decerto esta evidéncia aponta que 0 évulo e 0 espermatozbide se integram mutamente, indicando que a biologia se recusa a construir 0 processo nestes termos. Entretanto, devemos ter consciéncia de que a imagem cibernética ¢ dificilmente neutra. No passado, modelos cibernéticos desempenharam um papel relevante na imposigio do controle social. Esses modelos proporcionam inerentemente uma corrente de pensamento sobre um “campo” de componentes que se interagem. Uma vez que 0 campo possa ser visto, pode tornar-se objeto de novas formas de conhecimento, podendo permitir novas formas de controle social a serem exercidas sobre os componentes do campo. Durante a década de 1950, por exemplo, a medicina passou a lidar com 0 meio psicossocial do paciente: a familia do paciente e suas psicodindmicas, ProfissGes como servigo social comegaram a enfocar esse novo meio, e 0 conhecimento resultante se tormou uma nova forma de controle sobre 0 paciente. Os pacientes deixaram de ser vistos como corpos isolados, individualizados e passaram a ser vistos como entidades psicossociais localizadas em seu sistema “ecologico”: administragio da “psicologia do paciente se tornou um nova forma de controle do paciente. = Os modelos utilizados pelos bidlogos para descrever seus dados podem acarretar efeitos sociais relevantes. Durante o século XIX, as ciéncias naturais e sociais causaram grande influéncia umas sobre as outras: as idéias sociais de Malthus sobre como evitar 0 © Kenneth Alan Adams, “Arachnophobia: love American Style", Jounal of Psychoanalytic Anthropology 4,n.2 (1981): 157-97, © William Ray Amey and Bemard Bergen, Medicine and Management of Living ( Chicago: University of Chicago Press, 1984.) © 1-F Hartman, R. B. Gwatkin, and C. F, Hutchison, “Early Contact Interactions between Mammalian Gametes In Vitro” , Proceedings of the National Academy of Sciences (U.S.) 69, n.10 (1972): 2767-69. © Amey and Bergen, 68 sxmento populacional dos pobres, inspirou A Origem das Espécies de Darwin.” Uma vez que a Origem é uma descrigao do mundo natural, marcada pelas competigdes ¢ lutas de mercado, poderia ser transportado para as ciéncias sociais, como um Darwinismo social, com 0 objetivo de justificar a ordem social da época. O que vemos atualmente é semelhante: a importagdo de idéias culturais sobre mulheres passivas e homens herdicos para as “personalidades” de gametas, Esta concepgdo se soma a “implantago social de uma imagem social nas representagdes da natureza de modo a fundar uma base firme para reimportar exatamente a mesma imagem como explicagbes naturais de fenémenos sociais.”* Uma outra pesquisa aponta exatamente quais efeitos sociais estio sendo produzidos pela imagem biologica do évulo e espermatozéide. Essas imagens mantém vivos alguns dos velhos estereétipos sobre donzelas fracas, em contraste com os homens fortes prontos para salvé-las. Que esses estereétipos estejam sendo escritos ao nivel de uma célula constitui um forte movimento na diregio de que paregam to naturais, a ponto de estarem além de qualquer alteragao. ‘A imagem estereotipica também pode encorajar as pessoas a imaginarem que os resultados da interago do Svulo com o espermatozéide — um dvulo fertilizado — seja 0 resultado da ago “humana” deliberada a um nivel celular, Quaisquer que sejam as intengdes do casal, nessa “cultura” microscépica, uma “noiva” celular (ou fémea fatal) ¢ um “noivo” celular (sua itima) fazem um beb¢ celular. Rosalind Petchesky afirma que, através das representagGes visuais so transmitidas “imagens cada vez mais jovens cada vez mais fechadas, de fetos sendo “salvos” ~ 0 que pode conduzir a um “ponto de visibilidade impulsionado _indefinidamente.”” Considerando 0 ovilo e 0 espermatozdide como possuindo ago intencional — aspecto chave para a Pessoa de nossa cultura — encontramos entdo as bases para o aspecto da viabilidade voltado diretamente ao momento da fertilizagdo. Tal colocagao poderé conduzir a uma maior aceitagio de desenvolvimentos tecnologicos ¢ novas formas de escrutinio ¢ manipulagdo, para o beneficio dessas “pessoas” internas: restrigGes legais as atividades © Ruth Hubbard “Have Only men Evolved?” (n.12 above), 51-51. © David Harley, comunicagdo particular, novembro 1989, © Rosalind Petchesky, “Fetal Images; The Power of Visual Culture in the Politics of Reproduction”, Feminist Studies 13, n. 2 (Summer 1987): 263-92, esp. 272. 7 i & oma mulher grivida visando a protegio do feto, cirurgia fetal, amniocentese © aboligdo aos direitos de aborto, para citar alguns exemplos. - Mesmo que alcancemos com sucesso uma substituigo mais igualitéria, o utilizaggo de metéforas interativas na descrigio das atividades do 6vulo © do espermatozbide, administrando 0s relatos no sentido de evitar os erros presentes nos modelos cibernéticos, ainda assim seriamos culpados por atribuir as entidades cetulares a condigéo de Pessoa. O aspecto crucial da questio seria discriminar quais os tipos de personalidades que seriam concedidos as células. Estes processos poderiam ter conseqiiéncias sociais da maior gravidade. ‘Um desafio feminista relevante € despertar metiforas adormecidas da ciéncia, particularmente as que envolvem descrigbes sobre o vulo e o espermatoztide, Embora as convengSes da literatura denominem essas metéforas como “mortas’, elas néo se ‘encontram tio mortas assim, estio adormecidas, ocultas no interior dos textos cientificos — conservando seu poder.”" Ao despertar tais metAforas, tomando consciéncia da projegdo de imagens culturais sobre o que estudamos, poderemos aperfeigoar nosse habilidade em investigar ¢ compreender a natureza. Despertando tais metéforas, estando conscientes de suas consequéncias, retiraremos delas seu poder de naturalizagio de nossas convengdes sociais de género. Departamento de Antropologia Universidade John Hopkins nnctirge Sh | Rhtatarden Penglily Rachel fissercgnl VIER 7 Rm Andi, Renate Kikin e Shelley Minden, Testetube Women (London: Pandora, 1984), lien Gorkaan “Whose Right 1 life?” Balimore Sun (November 17, 1987); Tamar Lewin, “Cours Aeting oo aracaye of te Unborn, New Tork Times (November 23, 1987), Al and B10; Sussan Irwin and Figs Jordan, “Knowledge, Practive, and Power, Cout Ordered Cesarean Sections, Medica! “Anthropology Quarterly 1, n° 3 (september 1987): 319-34. + Qortgnda a Etizbeth ¢ David Spain, ue em fevereiro de 1989 ¢ em abril, respectivamente, izeram “observagées sobre este pont.

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