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CIENCIA E POLITICA: DUAS VOCACOES Max Weber A obra de Max Weber 6, ao lado das de Marx, Comte « Durkheim, um dos fundamentos da metodologia da Sociologia contempovinea. Dai o especial interesse que este livro teré para os leitores desejosos de informar-se acerca do pensamento sociolé: gico moderno, Pela leitura dos dois ensaios aqui reunidos, pode- rio eles iniciar-se no conhecimento da contribuigao metodolégica tweberiana, ao mesmo tempo que apreciar brilbantes andlises subs- tantivas daquilo que, no entender dos seus exegetas mais auto- ritados, € 0 niicleo des preocupagdes de Weber: a racionalidade. Nesses dois ensaios, o grande socidlogo alemao estuda a mancira pela qual a pritica cientifica contribui para o desenvolvimento da raciondlidade bumana e analisa com percuciéncia as con- digdes de funcionamento do Estado moderno, focalizando assim 4 oposigao bésica entre a “‘ética de condigéo” do cientista e a “‘Gtica de responsabilidade” do politica, dois fuleros polarizadores das opgées bumanas. CIENCIA POLITICA duas vocacdes MAX WEBER CIENCIA E POLITICA Duas Vocagdes Preficio de ‘Manoa T. Berane (Professor-Adjunto de Sociologia da Escola de Administragio de Empresas de S. Paulo, da Fundagio Getdlio Vargas) Tradustio de Leownpas Hucenneno e Octany Su.vetsa pa Mora Os dois textos incluidos neste volumne inttulam-se, no original alemlo, Wussenschaft Als Berufe PolitikAls Beruf. Copyright © 1967 ¢ 1968 Dunkeré Hunblot, Berlim, ‘Todos 0s direitos reservados. Neohumna parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de quelquer forma ou por qualquer meio, eletrénico ou mectnica, inclusive fotocdpias, gravagdes ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem ppermissao por eserito, exceto nos casos de trechos curtos citedos em resenhas eriticas ou artigos denevistas, (© primeira nimero a esqurda inden aed, ou recip, desta obs, primeira deze ‘ieit index o uno em que esa eli, ou roeigto fo publiada Edigao Ano 14-15-16-17-18-19-20 07-08-09-10-11-12-13 INDICE Norfcra Sonne Max WEBER A Cifcta Como Vocacko ‘A Poxitica Como Vocagio 17 55 t NOTICIA SOBRE MAX WEBER Max Weber nasceu em Erfurt, Turingia, Alemanha, em 21 de abril de 1864. Seu pai, Max Weber Sr., cra advogado ¢ po- litico; sua mie, Helene Fallenstein Weber, era mulher culta ¢ liberal que manifestava profundos tracos pietistas de 48 pro- testante. O ambiente erudito e intelectual do lar contribuin decisi- vamente para a precocidade do joven: Weber, Basta dizer que aos 13 anos de idade jé escrevia ele ensaios bistbricos penetrantes. Weber terminou os estudos pré-universitarios na primave- ra de 1882 ¢ foi para Heidelberg, onde se matriculou no curso de Direito, Estudou também diversas outras matérias, como His- téria, Economia e Filosofia, que, em Heidelberg, eram ensina- das por entinentes professores. Depois de trés semestres 14, Weber mudow-se para Estras- burgo a fim de servir o exército por um ano. Quando dew baixa, retomou seus estudos universitérios em Berlin ¢ Goettin- igen onde, em 1886, submeten-se a0 primeiro exame de Direito, Escreven ent 1889 sua tese de doutoramento sobre a histbria das companhias comerciais da Idade Média; para isso, teve de con- sultar centenas de documentos espanbéis e italianos, 0 que Ibe ‘exigin o aprendizado desses idiomas, No ano seguinte, estabele- ceu-se como advogado em Berlim; escreveu, por essa época, um tratado intitulado Histéria das Instituigges Agrarias; 0 modesto Htulo encobre, na verdade, uma anilise sociolégica e econdmi- ca do Inpério Romano. Em 1893, Weber casow-se com Marianne Schnitger, sua pa- rente longingua. Depois de casado, passou a levar uma vida de académico bem-sucedido em Berlim. No ontono de 1894 acei tou a cadeira de Economia da Universidade de Friburgo e, dois 7 anos mais tarde, passava a substituir 0 eminente Knies em Hei- delberg. Em 1898, Weber apresentou sintomas de esgotamento ner- voso e de neurose; até o fim de sua vida, iria sofrer depresses agudas intermitentes, entremeadas de periodos de trabalho in- telectual extraordinariamente intenso. A doenca o manteve afas- tado das atividades académicas durante mais de trés anos; resta- belecido, volton para Heidelberg e reassumiu parcialmente as atividades docentes. Seu estado de saide néo, lbe permitia, en- tretanto que se dedicasse inteiramente ao magistério, Em decor- réncia disso, solicitou afastamento das atividades didéticas e pro- mosio para o cargo de professor titular, 0 que lhe foi concedi- do pela Universidade, Apesar das crises nervosas, Weber, juntamente com Som- bart, assumin em 1903 a diregao do Archiv fiir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, gue se transformou em uma das mais impor- tantes revistas de ciéncias sociais da Alemanba, até seu fecha- mento pelos nazistas, No ano seguinte, a produtividade intelectual de Weber re- cebeu novo impulso; ele publicou enti diversos ensaios além da primeira parte de A ¥itica Protestante e o Espirito do Capi- mo. Em meados de 1904, Weber viajou para os Estados Uni- dos, que causaram profunda impressio sobre seu esplrito anali- tico. O foco central do seu interesse na América foi o papel da burocracia na democracia. De volta @ Alemanba, retomou suas atividades de escritor em Heidelberg, concluindo entéo A Etica Protestante e 0 Espirito do Capitalismo, No pertodo que medeia entre 1906 e 1910, Weber parti- cipou intensamente da vida intelectual de Heidelberg, mantendo longas discusses com eminentes académicos, como seu irmio Al- fred, Otto Klebs, Eberhard Gotheim, Wilhelm Windelband, Georg Jellinek, Ernst Troeltsch, Karl Neumann, Emil Lask, Friedrich Gundolf, Arthur Salz. Nas férias, muitos amigos vi- nham a Heidelberg visitélo; entre eles, Robert Michels, Werner Sombart, o fildsofo Paul Hensel, Hugo Miinsterberg, Ferdinand Toennies, Karl Vossler , sobretudo, Georg Simmel. Entre os jovens niversitérios que procuravam o estimulo de Weber con- tavam-se Paul Honigsheira, Karl Lowenstein e Georg Lukacs. & Apés @ Primeira Guerra Mundial, na qual participou ativa- mente, Weber mudowse para Viena, Durante o verdo de 1918, ‘ministrou seu primeiro curso, depois de dezenove anos de afas- famento da cétedra, Nesse curso, apresentou sua sociologia das religides e da politica sob o titulo de Uma Critica Positive da ‘Concepsio Materialista da Histéria. Em 1919, tendo abandonado 0 monarquismo pelo republi- canismo, Weber substituiu Brentano na Universidade de Muni- que. Suas tltinas aulas, feitas a pedidos de alunos, foram pu. Slicadas sob 0 titulo Histéria Econdmica Geral. Eve meados de 1920, adoeceu de pneumonia. Morreu em junho de 1920, dei- xando inacabado um livro de revisio e sintese de toda a sua obra, intitulado Wirtschaft und Gesellschaft, que & de importincia jandamental para a compreensio de seu pensamento. Os numerosos trabalbos de Weber foram, sem exagero, fun- damentais para o desenvolvimento da sociologia contempordnea. ‘Pode-se dizer que sua obra, juntamente com a de Marx, de Comte e de Durkheim, é um dos fundamentos da metodolo- gia da sociologia moderna, Nos dois ensaios apresentados neste volume, o leitor se poderd familiarizar nao 36 com ama amostra da contribuigzo me- todoldgica de Weber como também com uma de suas mais bri- Uhantes. andlises substantivas. Tanto a vida como a obra de Weber tém sido objeto de amplas andlises, realizadas por sociélogos fanrosos como Ray- mond Aron, Hans Gerth, C. Wrigth Mills e Reinhard Bendix. Este prefdcio nao pretende, portanto, fornecer subsidios originais ‘para a compreensao do pensamento weberiano. O leitor que desejar aprofundar-se no assunto deveré reportar-se aos traba- Thos interpretativos escritos pelos socidlogos acima mencionados, além, naturalmente, de compulsar as obras do proprio Weber. E certo, entretanto, que a compreensio dos ensaios apresentados neste volume poderd ser facilitada por meio de algumas suges- tes interpretativas, que 0 leitor euidard de desenvolver na me- dida em que se interesse pela obra de Weber. Alvin Gouldner, em penetrante ensaio, sugere que tanto as virtudes como os defeitos do pensamento de Weber podem ser explicados a partir das relagdes estruturais que cle mante- ve durante sua vida. Mais especificamente, 0 pensamento de Weber teria sido influenciado principalmente pelas relacoes qie manteve com seus parentes (especialmente com a mie), pelo clima universitirio existente na Alemanba, pelas viagens que rea lizou (especialmente aos Estados Unidos) e pelo clima politico da Alemanba, Esse conjunto de influéncias acabou por produsir, em We- ber, aguilo que muitos consideram a preocupacao central de sua obra: a racionalidade. A impressio que se tem é a de que seus estudos sobre religides, a andlise do surgimento do capitalismo, os estudos sobre poder e burocracia, os escritos metodoldgicos ¢ sua sociologia do Direito sto tentativas de resposta a pergun- tas tais como: quais as condigbes necessérias para o aparecimen- to da racionalidede?; qual a natureza da racionalidade?; quais as consegiiéncias sécio-econémicas da racionalidade? Se tal im- pressio for verdadeira, os dois ensaios que sao apresentados em seguida constituem verdadeiros marcos do pensamento de Weber pois ambos se referem especificamente 2 racionalidade. Para Weber, a racionalidade diz respeito a uma equagio di- namica entre meios e fins. Nesse particular, ele acreditava (e essa crenca permeou o pensamento dos sociélogos funcionalistas contempordneos, tais como Parsons, Williams, Homans, etc.) que toda acao humana 6 realizada visando a determinadas metas — concepedes afetivas do desejivel — ou valores. Tais valo- res sto fenémenos culturais ¢ possuem bases extracientificas. Em outras palavras, as definicoes do que & bom e do que'é mau, do que é bonito e do que feio, do que é agradével e do que é desagradével constituem proposigées extraempiricas, Nio se pode provar empiricamente que uma coisa seja bela ou feia, etc. Semelbantes proposigies constituem, nas palavras de Hempel, “julgamentos categoricos de valor”. Para atingir tais metas ou obter tais valores, 0 bomen: pre- cisa agir. A ago bumana pode, entretanto, ser mais ou menos eficaz para a consecucao de valores. A eficécia do comportanten- to € relativa porque (a) existem sempre diferentes formas de acho, isto &, a acto humana nao é determinada ow limitada por 10 em apenas um curso, mas bd sempre alternativas do curso de agio ao dispor do bomem e (b) 0 homem possui uma série de va lores que precisam ser selecionados, bierarquizados ¢ visados. Por outro lado, a cada momento e espaco, 0 bomem nio con- segue fazer duas coisas ao mesmo terapo.. Ere linguagert so- fisticada, pode-se dizer que o Princkpio da Complementarida- de descoberto por Bobr (segundo o qual o eléctron pode ser considerado como onda e como particula, dependendo do con- texto) aplicase também ao comportamento bumiano. Como afir- ma um fisico, Von Pauli: “Posso escolber a observagao de um experimento A e arruiner B ou escolher a observacao de B e ar- ruinar A. Nao posso, entretanto, deixar de escolber a ruina de um deles”, Ene vista dessa situagio, 0 homem esta constante- mente enfrentando e sendo obrigado a realizar opedes. O pro- blema da opcio, como sugere Raymond Aron, confere & obra de Weber um sentido existencialista. Que este problema tem in- tenso significado € coisa que se verifica pela oposigio entre “Gtica de condicio” (imperativo categdrico para o cientista) @ 4 “ética de responsabilidad (moral de Maguiavel — neces- sdria para a politica). Os critérios de opsio da agao humana variam. Segunda Weber, hi quatro tipos de orientacao para a agio: (a) trad nal, baseada em habitos de longa pritica; (b) affektueel, basea- da nas afeigBes e nos estados sensorios do agente (c) wertra- tional, baseada em crenca no valor absoluto de um comporta- mento ético, estético, religioso, ou outra forma, exclusivamente or sew valor independentemente de qualquer experanca quar 10 ao sucesso externo; e (d) zwectational, baseada na expecta- tiva de comportamento e objetos da situacao externa e de outros individuos usando tais expectativas como “condicées” ou “meios” para a consecucio bem-sucedida dos fins racionalmente escolbi- dos pelo préprio agente. F Iégico que Weber sabia que cada uma dessas orientagoes é“racionat” quando se leva em conta a equagao meios-fins, Mas 0 seu interesse estava voltado para as condigbes necessérias, para as manifestagdes e consegiiéncias da orientacto zwectational. En: A Politica Como Vocagio, tal interesse se volta para as condigies necessérias ao funcionamento do Estado moderno, para a burocracia como organizagéo social baseada numa orien- it tapio rwrecrational de agées e nas consegiiéncias da burocratiza- yo do Estado moderno para a sociedade em que se encontra in- serido. Para Weber, diferentes tipos de sociedades apresentant diferentes formas de lideranga politica. Entretanto, a manuten- sao dessas liderancas depende de organizagdes administrativas que realizam a “expropriagio” politica, Sao tais organizagoes que irao, afinal de contas, determinar a “racionalidade” do sis- tema politico; sto elas que irdo exercer, com maior ou menor sucesso, 0 monopolio do poder de uma sociedade. A “racionali- dade” de semethantes organizagies depende, em primeiro lugar, de uma distingao entre "viver para a polltica’”'e "viver da po- tia". Ainda que Weber nio 0 firme categoricamente, essa distingio ajuda a compreender as motivacées da agio politica ¢, Por sua vez, gera o problema da corrupgio, na organizacao poli- tica. Em segundo lugar, a racionalidede do sistema politico au- menta na medida em que ocorrem uma diferenciagio de status- -papéis ¢ una especializagio funcional dentro das organizagoes administrativas. A brithante e erudita anélise de Weber sugere que a diferenciacio ocorre quando bé uma especializacto entre 4 administragio, que deve ser exercida sine ita et studio, ¢ a li- deranca politica, cuja ago 6, por natureza, fundamentada na iva et studium. Essa especializacao, por sua vez, tende a mudar os critérios de alocagio de status-papéis na organizacao politica. Os critérios deixam de ser plutocréticos e passam a basear-se no de- sempenbo e no conhecimento especializado. Néo hé portanto, nessa nova organizacio, lugar para o dilettante, pois 0 seu “ste. cesso” depende, cada vex mais, da agio especializada, Em A Ciéncia Como Vocagio, o interesse de Weber pela orientagdo 2wecrational se manifesta no exame da propria pré- tica da racionalidade, Segundo ele, a Ciéncia ou a pritica da Ciéncia contribui para o desenvolvimento da tecnologia, que con- trola a vida Contribui, também, para o desenvolvimenta de métodos de pensamento, para a construcéo de instrumentos e adestramento do pensar. Finalmente, a Ciéncia contribui para o “ganbo da clareza’”. O que Weber quer dizer com isso? Quer dizer que a Ciéncia indica os meios necessdrios para atingit determinadas metas. E que tais metas devers, portanto, ser cla- ramente formuladas, a fim de se identificarem ox meios de atingi- -las, Por via desse processo, entretanto, os homens ficam saben- do 0 que querer ¢ 0 que devem fazer para obter 0 que querem. 12 E isso possibilita a opcio nto 6 de meios mas de metas de com. portamento. E eis, segundo Weber, « grande contribuigio da Ciéncia. Em tiltima anilise, portanto, a contribuicio da prética cientifica é, para o pensador alemio, o desenvolvimento da ra- cionalidade. ; Tense a impressio de que 0 problema da racionalidede as- sume, por vezes, em Weber, wm caréter formalise, que se tre iduz na adequacao entre meios e fins e nio no exame critica dos fins. As experiéncias de Hiroxima e Nagasiqui, a “guerra fria doutras manifestacoes “racionalistas” do pds-guerra sugerizam dios cientistas contempordneos os perigos existentes numa atitu. de formalista com relagio & “racionalidade”. Weber, entretanto, era um bomem de seu tempo e s6 uma andlise da esirutura emt que estava inserido nos pode ajudar a compreender sua preocupagao com a racionalidade ¢ a mancira como a define. Ele teve a grande virtude de perceber que, na Alemanha de Weimar, as Universidades estavam sendo impregnadas por ideo- logias estranhas 2 educagto. Mais precisamente, que o fascismo da nascente politica nacional socialista estava comecando a amea- {gar o espirito critico e a liberdade de pensamento. Os cargos fcadémicos eram, muitas veres, preenchidos por individuos que iutilizavam as cétedras para discursos politicos demagégicos de inspiracao fascista, A educagio racionalista e juridica de Weber contribuiu para que ele pudesse perceber o perigo que tal prética ‘trazia nao 56 para a educagao como para o préprio futuro da ‘Alemanha, Dai a sua preocupagio com a racionalidade e com a objetividade. ; ‘Ainda, entretanto, que se descubram as causas estrutarais do pensamento weberiano e suas limitagdes epistemoldgicas, sua contribuigéo @ Sociologia permanece central nao sb por suas ani ses comparativas, por seu método da compreensio (verstchen), ou pela descoberta das conexdes entre orientacdes valorativas ¢ omportamentos estruturai. O pensamento de Weber persists também porque muitas das caracteristicas da estrutura social da Republica de Weimar basicantente se repetem em outras socie- dades, em outros tempos. Manoet T. Bertincx, Ph. D. 3 A CIENCIA COMO VOCACAO PEDIRAM-ME 05 SENHORES que Ihes falasse da ciéncia como wocagio, Ora, nds economistas temos o habito pedante, a que me agradaria permanecer fiel, de partir sempre do exame das condigdes externas do problema. No caso presente, parto da seguinte indagacio; quais sio, no sentido material do termo, as condigées de que se rodeia a'ciéncia como vocagio? Hoje em dia, essa pergunta equivale, praticamente ¢ em csséncia, a esta outta: quais sdo as perspectivas de slguém que, tendo coneluido seus estudos supetiores, decida dedicar-se profissionalmente & cieneia, no ambito da vida universitéria? Para compreender a peculiatidade que, sob esse ponto de vista, apresenta a situacio alema, convém recotrer a0 processo da comparagéo € conhecet as condigées que vigem no estrangeiro. Quanto a esse aspecto, sio os Estados Unidos da América que apresentam. os contrastes mais violentos com a Alemanhe, razo por que ditigiremos nos- sa atencio para aquele pais. Sabemos todos que, na Alemanha, a catreisa do jovem que se consagta a ciéncia tem, normalmente, como primeito passa, a posigao de Privatdozent, Apés longo trato com especialistas da matéria escolhida, e apés haverhes obtido o consentimento, 0 candidato se habilita ao.ensino superior redigindo uma tese submetendo-se a um exame que €, as mais das vezes, formal, pe- rante uma comissio integrada por docentes de sua Universidade. Ser-lhe-&, entio, permitido ministrar cursos a propésito de as- suntos por le préprio selecionados dentro do quadro de sua venia legendi, sem receber qualquer remuneragio, a n%0 set_as taxas pagas pelos estudantes, Nos Estados Unidos da América, inicia-se a carreira académica de maneita inteiramente diversa: parte-se do desempenho da funcio de “assistente”. Trata-se de modo de proceder muito préximo, por exemplo, ao dos grandes 7 Institutos alemies das Faculdades de Ciéncias e de Medicina, ‘onde « habilitaco formal & posigio de Privatdozent s6 € tenta da por pequena fracio de assistentes e, com freqiiéncia, em fase avangada das respectivas catteiras, A’ diferenga que nosso sis- tema apresenta em relagdo ao americano significa que, na Ale- manhs, a carteita de um homem de ciéncia se apéia em alicer- ces plutocriticos. Para um jovem cientista sem fortuna pessoal é com efeito, extremamente atriscado enfrentar os azares da catreira universitéria. Deve ele ter condigdes para subsistir com seus préprios recursos, 0 menos durante certo nimero de anos, sem ter, de maneira alguma, a certeza de que um dia Ihe serd aberta a possibilidade de ocupar uma posi¢do que lhe dard meios de viver decentemente. Nos Estados Unidos da América reina, em oposicéo 20 nosso, 0 sistema butoctdtico. Desde que inicia 2 carreira, o jovern cientista recebe um pagamento, Tratase de salésio modesto que, freqiientemente, € apenas igual a0 de um trabalhador semi-especializado. No obstante, o jovem parte de uma situaglo aparentemente estével, pois recebe ordenado fix. E de regra, entretanto, que se possa despedi-lo, tal como séo afastados os assistentes alemaes, quando nio correspondem is cexpectativas. E que expectativas so essas? Pura ¢ simples- mente que cle consiga “‘sala cheia”. Isso & algo que no afeta © Privatdozent, Uma vez admitido, ele no pode ser desalojado. Nap lhe permitem, por certo, quaisquer reivindicagdes, mas ele adquite o sentimento, humanamente compreensivel, de que, apés anos de trabalhos, tem o direito moral de esperar alguma consi- deragio, A situacdo adquiida é levada em conta — e isso é, com freqiiéncia, de grande importincia — no momento de even tual “habilitagio” de outros Privatdozenten.. Surge, a pattit daf, um problema: deve-se conceder a “‘habilitacio" a todo jovem cientista que haja dado provas de sua capacidade, ou deve-se tet em conta as “necessidades do ensino”, dando aos Dozenten jd qualificados 0 monopélio do lecionar?’ Essa indagagio faz sut- gir um dilema penoso, que s¢ liga a0 duplo aspecto da vocacéo universitéria ¢ que seré, dentro em pouco, objeto de considera. des. Na generalidade dos casos, as opinides se inclinam em fa- vor da segunda solucdo. Mas ela nfo faz senfo com que se acen- tuem certos perigos. Em verdade, a despeito de sua probidade pessoal, 0 professor titular da disciplina que se ache em causa se verd, apesar de tudo, inclinado a dar preferéncia a seus pré- 18 prios alunos. Se posso falar de minha atitude pessoal, adotei a diretriz seguinte: pedia ao estudante que havia elaborado sua tese sob minha orientagdo que se candidatasse © “habilitasse” perante outro professor, em outra universidade, Desse proced mento resultou que um de meus alunos, ¢ dos mais capazes, ndo foi aceito por colegas meus, porque nenhum destes acreditou no motivo que o levava a procurélos. Existe outta diferenga entre o sistema alemio © 0 ameri- cano. Na Alemanha, 0 Privatdozent dé, em geral, menos cursos do que desejaria, Tem ele, por certo, 0 direito de oferecer to- dos 0s cursos que estejam dentro de sua especialidade, Mas, agir assim, setia considerado indelicadeza grande para com os Dozenten mais antigos; em conseqiiéncia, os “grandes” cursos ficam reser- vados pata os professores ¢ os Dozenten devem limitar-se 40s cursos de importincia secundaria. Em tal sistema encontram os Dozenten a vantagem, talvez involuntétia, de, durante a juven- tude, dispor de lazeres que podem ser consagrados aos trabalhos cientificos. Nos Estados Unidos da América, a organizagio ¢ funda- mentalmente diversa, E precisamente durante os anos de juven- tude que o assistente se vé literalmente sobrecarregado de tra- balho, exatamente porque é remunerado. Num departamento de estudes germinicos, o professor titular dé cerca de trés horas de cutso sobre Goethe ¢ isso € tudo — enquanto que o jovem as- rente deve considerar-se feliz se, ao longo de suas doze horas de trabalho semanal, a par dos exercicios priticos de alemio, for avtotizado a dat algumas ligSes sobre escritores de métito maior que, digamos, Ubland. Instincias superiores elaboram 0 programa ¢ a ele o assistente se deve curvat, tal como ocozre, na Alemanha, com 0 assistente de um Instituto. Nos limos tempos, podemos observar claramente que, ‘em numerosos dominios da ciéncia, desenvolvimentos recentes do sistema universitério alem#o orientam-se de acordo com padrées, do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciéncia e de medicina se tzansformaram em empresas de “‘capitalismo esta- tal”, Jé nfo € possivel geri-las sem dispor de recursos financei- ros considerdveis, E nota-se 0 surgimento, como aliés em to- dos os lugares em que se implanta uma empresa capitalista, do fendmeno especifico do capitalismo, que é 0 de “privar 0 tra 19 balhador dos meios de produsio”. O trabalhador — o assisten- te — nio dispée de outros recursos que nfo 0s instrumentos de trabalho que o Estado coloca a seu alcance; conseqiiente- mente, ele depende do diretor do instituto tanto’ quanto o em- pregado de uma fébrica depende de sew patrio — pois o diretor de um instituto imagina, com inteira boa-fé, que aquele é sew Instituto: ditige-o a scu belprazer. Assim, a posigfo do assis- tente €, com freqiiéncia, nesses institutos, to precéria quanto a de qualquer outra existéncia “proletardide” ou quanto a dos assistentes das universidades norte-americanas. Tal como se dé com outros setores de nossa vida, a univer-" sidade alemi se americaniza, sob importantes aspectos. Estou convencido de que essa evolugio chegaré mesmo a atingir as disciplinas em que o trabalhador € proprietério pessoal de seus meios de trabalho (essencialmente, de sua biblioteca). No mo- mento, o trabalhador de minha especialidade continua a ser, em larga medida, seu proprio patrio, a semelhanga do artesio de outtora, no quadro de seu mister préprio, A evolugio se pro- cessa, contudo, a grandes passos. Nao se podem negar as incontestéveis vantagens técnicas dessa evolugio, que se manifestam em quaisquer empresas que tenham, ao mesmo tempo, caracteristicas burocréticas e capit listas, "“Todavia, 0 novo “espirito” & bem diferente da velha atmosfera histérica das universidades alemis. Hé um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitéria capitalista e o professor titular ¢o- mum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneita fatima de set. Nio quero, entretanto, descer a pormenores. A antiga o ginizagio univetsitéria tornou-se uma ficgio, tanto no que se refere 20 espirito, como no que diz respeito A estrutura. Hi, no obstante, um aspecto préprio da carreira universitétia que se manteve ¢ se vem manifestando de maneita ainda mais sens(vel: © papel do acaso. E a ele que o Privatdozent e, em patticulat, © assistente deverio atribuir o fato de, eventualmente, passa- rem a ocupar uma posicio de professor titular ou de diretor de um instituto, Claro esté que o atbitrério néo reina sozinho em tais dominios, mas apesar disso, exerce influéncia fora do comum, Nao me’consta existir, em todo o mundo, carreira em relagio & qual o seu papel seja mais importante. Estou & vonta- 20 de para falar do assunto, pois, pessoalmente, devo a um con- curso de circunstincias particularmente felizes o fato de havet sido convocado, ainda muito jovem, para ocupat uma posi¢éo de professor titular dentro de um campo de especialidade em que colegas de minha idade jd haviam produzido muito mais do que eu mesmo. Com base em tal experiéncia, creio possuir visio penetrante para compreender 0 imerecido’ fado de numerosos colegas para os quais a fortuna nfo sorria, ¢ ainda nio sotti, € que, devido aos processos de selecio, jamais puderam ocupar, a despeito do talento de que sio dotados, as posigdes que mere- ceriam. Se 0 acaso ¢ nao apenas o valor desempenha papel tio re levante, culpa nio cabe exclusivamente, nem principalmente, as fraquezas humanas que se manifestam, evidentemente, na sele- gio a que me refiro e em qualquer outta, Seria injusto imputar a deficiéncias pessoais que se manifestam no quadro de faculdades ou de ministérios responsabilidade por uma situagio que leva tio grande mimero de mediocridades a desempenharem fungdes importantes nas carreiras universitérias, A razio deve set bus- cada, antes, nas Jeis que regem a cooperacéo humana, especial- mente a cooperacéo entre organizagdes diversas, e, em nosso caso particular, a colaboracio entre as faculdades que ptopdem 0s candidatos ¢ o ministério que os nomeia. Podemos tecorrer a um patalelo com a eleicéo dos papas que, 20 longo de séculos mumerosos, nos vem fornecendo 0 mais importante exemplo concreto desse tipo de selegio. O cardeal que se indicava como “favorito” raramente vinha a ser eleito. Regta getal, elegiase © candidato mimero dois ou mimero trés. Ocorre fendmeno idéntico nas eleigGes presidenciais dos Estados Unidos da Amé- rica, $6 excepcionalmente 0 candidato mémero um ¢ mais proe- minente é “‘escolhido” pelas convengdes nacionais dos partidos: na maioria das vezes, escolhe-se 0 candidato mimero dois e, com freqiiéncia, 0 nimero tres. Os norteamericanos j4 chegaram mesmo a criar expresses técnicas e socioldgicas para caracterizar essas categorias de candidatos, Seria, é claro, interessante exa- minar, a partir de tais exemplos, as leis de uma selegio que se faz pot ato de vontade coletiva, mas esse no 0 nosso propé- sito de hoje. Essas mesmas leis se aplicam também as cleigbes nas assembléias universitérias. E devemos espantar-nos nfo com 05 erros que, nessas condigées, so freqiientemente come- 21 tidos, mes sim com o fato de que, guardadas todas as propor- goes, constata-se, apesar de tudo, que hé nimero igualmente con- siderdvel de nomeagoes justificadas. Sé em alguns paises em que 0 Parlamento tem iafluéncia no caso ou em nagdes em que os monarcas intervém pot motivos politicos (0 resultado € 0 mesmo em ambas as situacdes), tal como acontecia na Alemanha até poca recente e, de novo, em nossos dias, com os detentores do poder revolucionério, é que podemos estar certos de que os medioctes e 08 attivistas s40 05 tnicos a terem possibilidade de ser nomeados. Nenhum professor universitério gosta de relembrar as dis- cusses que se travaram quando de sua nomeacio, porque elas raramente sio agraddveis. Posso, entretanto, declarar que, nos umerosos casos que sfo de meu conhecimento, constatei, sem excegio, a existéncia de uma boa vontade preocupada com evi- tar que na decisio interviessem razSes outras que nfo as pura- mente objerivas. & preciso, por outro lado, compreender clatamente que as deficiéncias observadas na selesio que se opeta por vontade co- letiva no explicam, por si mesmas, 0 fato de que a decisio re- Jativa aos destinos universitétios é em grande porcio, deixada a0 “acaso”, “Todo jovem que actedite possuir a vocagio de cien- tista deve dar-se conta de que a tarefa que 0 espera reveste du- plo aspecto. Deve ele possuit nio apenas as qualificagdes do ientista, mas também as do professor. Ora, essas duas cai terfsticas nio sio absolutamente coincidentes, & possivel ser, a0 ‘mesmo tempo, eminente cientista e péssimo professor. Penso na atividade docente de homens tais como Helmholtz ou Ran- ke que, por certo, no sio excegées, Em verdade, as coisas se passam da seguinte maneira: as universidades alemas, parti- culatmente as pequenas, entregamse, entre si, 2 mais ridicula concorréncia para atrait estudantes. Os locadores de quartos para estudantes, primétios como camponeses, organizam festas em honra do milésimo aluno e apreciariam organizar marchas & Juz de tochas, para saudar o milésimo seguinte. A renda que advém da contribuigdo dos estudantes é, importa confessé-lo, condicionada pelo fato de outtos professores que “‘atraem grande niimero de alunos” sministearem cursos de disciplinas afins. Ainda que se faca abstragio de tal circunstancia, continuard a 22 set verdade que o mimero de estudantes matticulados. constitui tum critério tangivel de valor, enquanto que o mérito do cientis ta pertence a0 domfnio do imponderdvel. Dé-se freqiientemente (e é natural) que se utilize exatamente esse argumento para res- ponder aos inovadores audaciosos. Eis por que tudo quase sein- pre se subordina a obsessio da sala cheia ¢ dos frutos que daf decorrem. Quando de um Dozent se diz que é mau professor, {sso equivale, na meioria das vezes, a pronunciar uma sentenca de morte universitéria, embora seja ele 0 primeiro dos cientistas do mundo. Avalia-se, portanto, 0 bom € o mau professor .pela assiduidade com que os Senhores Estudantes se disponham a hon- rélo. Ora, 6 indiscutivel que os estudantes procuram um deter- minado professor por motivos que sio em grande parte — parte to grande que é dificil acreditarmos em sua extensio — alheios A ciéncia, motives que dizem respeito, por exemplo, ao tempera- mento ou A inflexdo da voz. Experiéncia pessoal j4 bastante am- pla ¢ reflexio isenta de qualquer fantasia condaziram-me a des- confiar fortemente dos cursos procurados por grande massa de estudantes, embora o fato pareca inevitdvel, A democracia deve set praticada onde convém. A educacao cientifica, tal como, por tradigao, deve ser ministrada nas universidades alemis consti- tuise numa tarefa de aristoctacis espiritual. 1 initil querer dissimulé-lo, Ora, € também verdade, por outro lado, que den- tre todas as tatefas pedagégicas, a mais diffcil € a que consiste em expot problemas cientificos de maneira tal que um espirito nao preparado, mas bem-dotado, possa compreendé-lo ¢ formar ‘uma opiniéo propria — o que, para nés, cottesponde ao tinico éxito decisivo. Ninguém o contestard, mas nio é, de maneira al- guma, o nimero de ouvintes que dard a solugdo do problema. ‘Aquela capacidade depende — para voltar a nosso tema — de um dom pessoal e de maneira alguma se confunde com os conhe- cimentos cientificos de que seja possuidora uma pessoa. Contra- riamente ao que se dé na Franga, a Alemanha nao tem uma cor porasio de imortais da ciéncia, mas sio as universidades que de- vem, por tradigio, responder as exigéncias da pesquisa ¢ do ensi- no. Sera mera coincidéncia o fato de essas duas aptidées se en- contrarem no mesmo homem, A vida universitéria est4, portanto, entregue a um acaso cego. Quando um jovem cientista nos procura para pedir con- selho, com vistas A sua habilitagdo, énos quase imposstvel as- 23 sumir a responsabilidade de Ihe aprovar o desfgnio, Se se trata de um judeu, a ele se diz com naturalidade: lasciate ogni sperar za, Impoe-se, porém, que-a todos os outros candidatos também se pergunte. “‘Vocd se acredita capaz de vet, sem desespeto em amargor, ano apés ano, passar & sua frente mediocridede apés mediocridade?” Claro esté que sempre se recebe a mesma resposta: “Por certo que sim! Vivo apenas para minha voca- io”. Nao obstante, eu, pelo menos, s6 conheci muito poucos candidatos que tenham suportado aquela situacéo sem grande prejuizo para suas vidas interiores. Eis al o que era necessério dizer acesca das condigies exte- riores da ocupagio de cientista. Creio que, em verdade, os senhores esperam que eu Ihes fale de outro assunto, ou seja, da vocagao cientifica propriamente dita, Em nossos dias e referida & organizagio cientifica, essa vo- cago € determinada, antes de tudo, pelo fato de que a ciéncia atingiu um estégio de especializacio que ela outrora no conhe- cia e no qual, ao que nos € dado julgar, se manterd para sempre. A afirmagio tem sentido no apenas em relacio as condigées externas do trabalho cientifico, mas também em relagéo as dis- posigées interiores do prdprio cientista, pois jamais um indivi duo poderd ter a certeza de alcancar qualquer coisa de verdadei- ramente valioso no dominio da ciéncia, sem possuir uma rigoto- sa especializacio. Todos os trabalhos que se estendem para 0 campo de especialidades vizinhas — é experiéneia que nés, eco- omistas, temos de tempos em tempos e que os sociélogos tém constante ¢ necessariamente — levam a marca de um resignado reconhecimento: podemos propor aos especialistas de discipli- nas afins perguntas ‘iteis, que eles nio se tetiam formuilado tao facilmente, se partissem de seu proprio ponto de vista, mas, em contrapartida, nosso trabalho pessoal petmanecerd inevits- velmente incompleto. $6 a especializacio estrita permitiré que © trabalhador cientifico experimente por uma vez, e certamen- te no mais que por uma vez, a satisfacio de dizer a si mesmo: desta vez, consegui algo que permaneceré, Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva ¢ importante € sempte obra de espe- ialista, Conseqiientemente, todo aquele que se julgne incapaz de, por assim dizer, usar antolhos ou de se apegat a idgia de que 0 destino de sua alma depende de ele formular determinada con- jetura e precisamente essa, a tal altura de tal manuscrito, far 24 melhor em permanecer alheio ao trabalho cientifico. Ele jamais sentiré o que se pode chamar a “experiéncia” viva da ciéncia. Sem essa embriaguez singular, de que zombam todos os que se mantém afastados da ciéncia, ‘sem essa paixio, sem essa certeza de que ‘‘milhares de anos se escoaram antes de voc ter acesso a vida e milhares se escoario em siléncio” se voc nao for ca- paz de formular aquela conjetura; sem isso, vocé nio possuird jamais a vocagio de cientista e melhor seté que se dedique outra atividade. Com efeito, para 0 homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que ele possa fazé-lo com paixio, Outra coisa, entretanto, é igualmente certa: por mais inten- sa que seja essa paixio, por ‘mais sincera e mais profunda, ela nfo bastard, absolutamente, para assegurar que se alcance éxito. Em verdade, essa paixiio ndo passa de requisito da “inspiragio”, que € 0 tinico fator decisivo. Hoje em dia, acha-se largamente disseminada, nos meios da juventude, a idéia de que a ciéncia se teria transformado numa operacao de célculo, que se realizaria em laborat6rios e esctitérios de estatistica, ndo com toda “glma”, porém apenas com o auxilio do entendimento frio, 4 semelhanga do trabalho em uma fabrica. Ao que se deve desde Jogo responder que os que assim se manifestam nao tém, fre- qiientemente, nenhuma idéia clara acerca do que se passa numa fabrica ou num labotatério, Com efeito, tanto sum caso como no outro, € preciso que algo ocorra ao espirito do trabalhador —e precisamente a idéia exata — pois, de outra forma, ele nun- ca seré capaz de produzit algo que encetre valor. Essa inspira- gio nfo pode set forcada. Ela nada tem em comum com o célculo fri. Claro esté que, por si mesma, ela no passa tam- bém de um requisite. Neshum socidlogo pode, por exemplo, acteditar-se desobtigado de executar, mesmo em scus anos mais avangados ¢, talvez, duranté meses a fio, operagdes trivials. ‘Quando se quer atingir um resultado, nfo se pode impunemente, fazer com que 0 trabalho seja executado por meios mecanicos — ainda que esse resultado seja, freqtientes vezes, de significa- fo reduzida, Contudo, se nfo nas acudir ao espitito uma “dgia” precisa, que oriente a fotmulacio de hipéteses, e se, en- quanto nos entregamos 2 nossas conjeturas, nao nos corre uma “idéia’” relativa ao alcance dos resultados ‘patciais obtidos, no chegaremos nem mesmo a alcangar aquele mfnimo. Normelmen- te, a inspiragio s6 ocorte apés esforgo profundo. Nao hé divi 25 da de que nem sempre é assim. No campo das ciéncias, a intui- do do diletante pode ter significado tao grande quanto a do especialista ¢, por vezes, maior. Devemos, alids, muitas das hi- péteses mais frutiferas ¢ dos conhecimentos de maior aleance a diletantes, Estes nao se distinguem dos especialistas — con- forme 0 julzo de Helmholtz a respeito de Robert Mayer — se- nio por auséncia de seguranga no método de trabalho e, amiuda- damente, em conseqiiéncia, pela incepacidade de verificar, apre- cia ¢ explotat o significado da propria intuigao. Se a inspirago no substitui 0 trabalho, este, por seu lado, nfo pode substituir, nem forcar 0 surgimento da intuigéo, o que a paixio também no pode fazer. Mas o trabalho e a paixio fazem com que sur- ja a intuigio, especialmente quando ambos atuam ao mesmo tem- po. Apesar disso, a intuigio ndo se manifesta quando és 0 queremos, mas quando ela o quer. Certo € que as melhores idéias nos ocorrem, segundo a observacio de thering, quando ros encontramos sentados em uma poltrona e fumando um cha- rato ou, ainda, segundo o que Helmholtz observa a respeito de si mesmo, com preciséo quase cientifica, quando passeamos por uma estrada que apresente ligeiro aclive ou quando ocorram circunstincias semelhantes. Seja como for, as idéias nos acodem quando nio as esperamos € nZo quando, sentados @ nossa mesa de trabalho, fatigamos 0 cérebro a procurélas. E verdade en- tretanto, que elas no nos ocotreriam se, antetiormente, nfo hou- vvéssemos refletido longamente em nossa mesa de estudos ¢ no houvéssemos, com devocéo apaixonada, buscado uma resposta, De qualquer modo, 0 estudioso esta compelido a contar com 0 caso, sempre presente em todo trabalho cientifico: ocorreré ou no ocorreré a inspiracio? Pode dat-se que alguém seja traba- Ihador notével, sem que jamais Ihe ocorra uma inspiraco. Co- meter-se-ia, alids, etto grave, se se imaginasse que téo-somente no campo das ciéncias € que as coisas se passam de tal modo € que num escritério comercial elas se apresentam de maneira inteiramente diversa do modo como se apfesentam em um labo- ratério. Um comerciante ou um grande industrial que no te- nham “imaginacgo comercial”, isto é, que nfo tenham inspira- gio, que nfo tenham intuigées geniais, no passarao nunca de homens que tetiam feito melhor se houvessem permanecido na condicéo de funcionérios ou de técnicos: jamais criatio for- mas novas de organizacéo. A intuigio, ao contrério do que jul- 26 gam os pedantes, desempenhe, em ciéncia, papel mais im- portante do que o papel que the toca no campo dos problemas da vida prdtica, que 0 empreendedor moderno se empenha em resolver, De outra patte — e é ponto também freqiientemente esquecido — 0 papel da intuigéo nfo ¢ menos importante em ciéncia do que em arte. ¥ pueril acreditar que um matemético, preso a sua mesa de trabalho, pudesse atingir resultado cienti- ficamente titil através do simples manejo de uma régua ou de um instrumento mecinico, tal como a méquina de calcular. A imaginago matemdtica de um Weierstrass é, quanto a seu sen- tido ¢ resultado, orientada de maneita inteitamente diversa da maneira como se orienta a imaginacio de um artista, da qual se distingue também, e radicalmente, do ponto de vista da quali- dade; mas 0 proceso psicolégico idéntico em ambos os casos. Ambos equivalem a embriaguez (“mania”, no sentido de Pla- tio) € “inspiracio”. ‘As intuigdes cientificas que nos podem ocorrer dependem, portanto, de fatores ¢ “dons” que sfo por nés ignorados. Essa verdade incontestével serve de pretexto, aos olhos de certa men- talidade popular (disseminads, 0 que ¢ compreensivel, especial- mente entre os jovens), para levar & devogio {dolos, cujo culto, hoje em dia, se faz ostensivamente, em todas as esquinas e em todos os jornais, Esses {dolos sfo os da ‘“personalidade” ¢ da “experiéncia pessoal”, Hé, entre esses {dolos, ligagdes estreitas, pois, um pouco por toda a parte, ptedomina a idéia de que « experiéncia pessoal constituitia a personalidade e se incluitia em sua esséncia, Tortura-se o espirito para fabricar “experién- cias pessoais”, na conviegio de que isso constitui atitude digna de uma personalidade e, quando nfo se aleanca resultado, pode-se, 40 menos, assumir o ar de possuir essa graca. Outrora, em Iin- gua alemd, a “experiéncia pessoal” era chamada “sensacio”, E ereio que, naquela época, tinha-se idéia mais clara do que seja a personalidade e do que ela significa, Senhoras ¢ senhores! 6 aquele que se coloca pura e sim- plesmente ao servico de sua causa possui, no mundo da ciéncia, “personalidade”, E nfo € somente nessa esfera que assim acon- tece. No conheco grande artista que haja feito outra coisa que no 0 colocar-se 20 servigo da causa da arte e dela apenas. Mes- mo uma personalidade da estatura de Goethe, na medida em que 27 sua arte osté em pauta, teve de expiar a liberdade que tomou de fazer de sva “vida” uma obra de arte. Os que ponham em ddvida essa afirmativa admitirfio, nfo obstante, que era neces- sétio ser um Goethe para poder permitir-se tentativa semelhan- te ¢ ninguém contestard que mesmo uma personalidade de seu tipo, que s6 aparece uma vez cada mil anos, nao teve condigio de assumir essa atitude impunemente. Coisa diversa nfo acon- tece no dominio da politica, mas hoje, no abordaremos esse tema, No mundo da ci€ncia, é absolutamente impossfvel consi- derat como uma “personalidade” 0 individuo que nfo passa de empresirio da causa a que deveria dedicar-se, que se langa Ai cena com a esperanga de se justificar por uma “experiencia pessoal” ¢ que s6 6 capaz de indagar: “Como poderia eu pro- ‘var que sou coisa diversa de um simples especialista? Como po- deria eu proceder para afirmar, na forma e no fundo, algo ja- mais dito por pessoa alguma?” Trata-se de fenémeno que, em rnossos dias, assume proporgdes desmesuradas, embora s6 produ- za resultados despreziveis, para nfo mencionat que diminuii quem propSe aquele género de pergunta, Em oposigio a isso, aquele que poe todo 0 coracio em sua obta, ¢ s6 nela, elevase a al tura e A dignidade da causa que deseja servir. E para o artis- tao problema se coloca de maneira perfeitamente idéntica, A despeito dessas condigées prévias, que so comuns a ci- éncia € & atte, outras existem que fazem com que nosso trabalho seja profundamente diverso do trabalho do artista. O trabalho cientitico esté ligado ao curso do progresso. No dominio da arte, a0 contrério, nfo existe progresso no mesmo sentido. Nao é verdade que uma obra de arte de época determinada, por em- pregar recursos técnicos novos ou novas leis, como a da pets- pectiva, seja, por tais razées, artisticamente superiot a uma ou- tra obra de atte elaborada com ignorncia daqueles meios e leis, com a condigéo, evidentemente, de que sua matétia e forma tes- peitem as leis mesmas da arte, que vale dizer com a condicio de que seu objeto haja sido escolhido'e trabalhado segundo a esséncia mesma da arte, ainda que nao recorrendo aos meios que vyém de ser evocados, Uma obra de arte verdadeiramente “aca- bada” no seré ultrapassada jamais, nem jamais envelhecerd. Cada um dos que a contemplem apreciaré, talvez diversamente, a sua significacio, mas nunca poderé alguém dizer de uma obra 28 verdadeiramente “acabada” que ela foi “ultrapassada”” por uma outta igualmente “‘acabada”. No dominic da ciéncia, entretanto, todos sabem que a obra construida ter envelhecido dentro de dez, vinte ou cingtienta anos. Qual é, em verdade, o destino ou, melhor, a significaczo, em sentido muito especial, de que estd revestido todo trabalho cientifico, tal como, aliés, todos os ou- tros elementos da civilizagéo sujeitos A mesma lei? Eo de que toda obra cientifica “acabada” no tem outto sentido senio 0 de fazer surgirem novas “indagagdes”: cla pede, portanto, que seja “ultrapassada” e envelheca. Quem pretenda servir a cién- cia deve resignarse a tal destino, E indubitével que trabalhos cientificos podem conservar importincia duradoura, a titulo de “fruigio”, em virtude de quelidade estética ou como insttumen- to pedagégico de iniciagdo & pesquisa. Repito, entretanto, que na esfera da ciéncia, nao sé nosso destino, mas também nosso objetivo € 0 de nos vermos, um dia, ultrapassados. Nao nos € possfvel concluit um trabalho sem esperar, ao mesmo tempo, que outros avancem ainda mais, E, em principio, esse progresso se prolongard so infinito, Podemos, agora, abordar © problema da significagao da ci- éncia, Com eleito, nao €, de modo algum, evidente que um fe- _némeno sujeito a Jei do progresso albergue sentido ¢ razéo. Por que motivo, entdo, nos entregamos a uma tarefa que jamais en- contra fim € nfo pode encontré-lo? Assim se age, zesponde-se, ‘em fungao de propésitos puramente priticos ou, no sentido mais amplo do termo, em fungio de objetivos técnicos; em outras palavras, para orientar a atividade prética de conformidade com a8 perspectivas que a experiéncia clentifica nos oferega. Muito bem, ‘Tudo isso, entretanto, s6 se reveste de significado pata © “homem pritico”. A pergunta a que devemos dat tesposta € a seguinte: qual a posicio pessoal do homem de ciéncia pe- rante sua vocasio? —- sob condicio, naturalmente, de que ele a procute como tal, Ele nos diz que se dedica a ciéncia “pela ci éncia” e@ nfo apenas para que da ciéncia possam outros retirar vantagens comerciais ou técnicas ou pata que os homens possam melhor nutrirse, vestinse, iluminar-se ou dirigir-se. Que obras significativas espeta o homem de ciéncia realizar gragas a desco- bertas invariavelmente destinadas ao envelhecimento, deixando-se aptisionar por esse cometimento que se divide em especislida- 29 des e se perde no infinito? Resposta a essa pergunta exige que facamos previamente algumas consideragSes de ordem geral. * progresso cientifico € um fragmento, 0 mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualizagio a que esta- mos submetidos desde milénios e relativamente ao qual algumas pessoas adotam, em nossos dias, posicao estranhamente negativa. Tentemos, de inicio, perceber claramente o que significa, cna pritica, essa racionalizagio intelectualista que devemos 3 ci- éncia e A técnica cientifica. Significard, por acaso, que todos os que estio reunidos nesta sala possuem, a respeito das respecti- vas condigdes de vida, conhecimento de nivel superior ao que um hinda ou um hotentote poderiam alcancar acerca de suas proprias condigdes de vida? 1 pouco provével. Aquele, den- tre nds, que entra num trem néo tem nogéo alguma do mecanis- mo que permite ao vefculo pérse em marcha — exceto se for um fisico de profissio, Alids, nfo temos necessidade de conhe- cet aquele mecanismo. Basta-nos poder “contar” com o trem ¢ orientar, conseqiientemente, nosso comportamento; mas nfo sa- bemos como se constréi aquela méquina que tem’ condigées de deslizar. O selvagem, ao contrério, conhece, de maneita incom- paravelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza, Eu se- tia capaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, acaso presentes nesta sala, dariam respostas dife- rentes & pergunta: como explicar que, utilizando a mesma soma de dinheiro, ora se possa adquirir grande,soma de coisas ora uma quantidade minima? © selvagem, contudo, sabe perfeita- mente como agit para obter o alimento quotidiano e conhece os meios capazes de favorecé-lo em seu propésito. A intelectua- Tizago e a tacionalizagio crescentes no equivalem, portanto, a um conhecimento geral ctescente acerca das condicdes em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, podertamos, bastando que o quiséssemos, ptovar que nio existe, em principio, nenhum poder misterioso ¢ imprevistvel que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da_previsio. Equivale isso a despojar de magia o mundo. Para nés nao mais se trata, como para o selvagem que acredita na existéncia da 30 queles poderes, de apelar a meios mégicos pata dominar os es- pititos ou exorcizé-los, mas de recorrer a técnica ¢ & pteviséo. ‘Tal € a significacio essencial da intelectualizaao. Surge dat uma pergunta nova: esse processo de desencanta- mento, realizado a0 longo dos milénios da civilizacéo ocidental ¢, em termos mais gerais, esse “progresso” do qual participa a ciéncia, como elemento e motor, tem significagio que werapasse essa pura prdtica e essa pura técnica? Esse problema mereceu cexposicéo vigorosa na obra de Leon Tolst6i, Tolstdi a ele che- gou por via que Ihe & propria, © conjunto de suas meditagses cristalizou-se crescentemente ao tedor do tema seguinte: a mor- te € ou no € um acontecimento que encerra sentido? Sua res- posta € a de que, para um homem civilizado, aquele sentido nao existe, E no pode existir porque a vida individual do civiliza- do esté imersa no “progresso” ¢ no infinito e, segundo seu sen- tido imanente, essa vide no deveria ter fim. Com efeito, ha sempre possibilidade de novo progresso para aquele que vive no progtesso; nenhum dos que morrem chega jamais a atingir o ico, pois que o pico se pe no infinito. Abrio ou os campone- ses de outrora mozreram "velhos e plenos de vida”, pois que estavam instalados no ciclo orginico da vida, porque esta thes havia ofertado, ao fim de seus dias, todo o sentido que podia proporcionarlhes ¢ porque no subsistia enigma que eles ainda teriam desejado xesolver. Podiam, portanto, considerar-se sa- tisfeitos com a vida. O homem civilizado, 20 contrério, coloca- do em meio a0 caminhar de uma civilizagdo que se entiquece continuamente de pensamentos, de experiéncias e de problemas, pode sentir-se “‘cansado” da vida, mas no “'pleno” dela. Com efeito, ele no pode jamais apossar-se senfo de uma parte infi ma do que a vida do esplrito incessantemente produz, ele nio pode captar senfo o provisério ¢ nunca o definitive. “Por esse motivo, a morte é, a seus olhos, um acontecimento que nfo tem sentido, E porque a morte nfo tem sentido, a vida do civi zado também nfo o tem, pois a “progressividade” despojada de significago faz da vida um acontecimento igualmente sem signi- ficagio, “Nes ultimas obras de Tolstéi, encontra-se, por toda a parte, esse pensamento, que dé tom 4 sua arte, Qual a posigio possivel de adotar a esse respeito? Tem o “progtesso”, como tal, um sentido discernivel, que se estende it pata além da técnica, de maneira tal que porse a seu servigo equivaleria a uma vocagio penetrada de sentido? indispen- sivel levantar esse problema. A questiio que se coloca nio é mais a que se tefere téo-somente A vocacao cientifica, ou seja a de saber o que significa a ciéncia, enquanto vocagio, para aque- Je que a ela se consagra; a pergunta é inteiramente diversas qual © significado da ciéncia no contexto da vida humana ¢ qual o seu valor? Ora, a esse respeito, enorme é 0 contraste entre o passado co presente. Lembremos a maravilhosa alegoria que se contém 420 inicio do livro sétimo da Republica de Platéo, a dos ptisio- rcitos confinados & caverna. Os rostos desses prisioneitos esto voltados para a parede rochosa que se levanta diante deles; as costas, 0 foco de Iuz que eles mio podem ver, condenados que estéo 2 s6 se ocuparem das sombras que se projetam sobre a patede, sem outra possibilidade que a de examinar as relagies que se estabelecem entre tais sombras. Ocorre, porém, que um dos prisioneiros consegue romper suas cadeias; voltase ¢ en- cata 0 sol, Deslumbrado, ele hesita, caminha em sentidos dife- rentes ¢, diante do que vé 36 sabe balbuciar. Seus companhei- ros 0 tomam por louco. Aos poucos, ele se habitua a encarar a luz, Feita essa experiéncia, 0 dever que lhe incumbe ¢ 0 de totnar ao meio dos prisioneiros da caverna, a fim de conduzi-los para a luz. Ele € 0 filésofo, e 0 sol reptesenta a verdade da ci- ancia, cujo objetivo é 0 de conhecer nfo apenas as apaténcias as sombras, mas também 0 ser vetdadeiro, Quem continua, entretanto, a adotar, em nossos dias, essa mesma atitude diante da ciéncia? A juventude, em particular, esté possuida do sentimento inverso: a seus olhos, as constru- es inteleceuais da ciéncia constituem um reino itreal de abs- tragdes artificiais e ela se esforca, sem éxito, por colher, em suas mos insensfveis, o sangue ¢ a seiva da vida real, Actedita-se, atualinente, que a tealidade verdadeita palpita justamente nessa vida que, aos olhos de Platio, nfo passava de um jogo de som- bras projetadas contra a parede da caverna; entende-se que todo 6 testo sfo fantasmas inanimados, afastados da realidade, e nada mais. Como ocorreu essa transformacio? O apaixonado entu- siasmo de Platio, em sua Repsiblica, explica-se, em iltima andlise, pelo fato de, naquela época, haver sido descoberto o sentido de 32 uum dos maiores instrumentos de conhecimento cientifico: 0 con- teito. O mérito cabe a Sécrates que compreende, de imedia- to, a importincia do conceito. Mas néo foi o winico a percebé- ‘Ig. Em esctitos hindus, € possivel encontrar os elementos de lume légica andloga & de Aristételes. Contudo, em nenhum outto lugar que aio a Grécia percebe-se a consciéncia da importincia do conceito, Foram os gregos os ptimeiros a saberem utilizar esse instrumento que permitia prender qualquer pessoa aos gri- Thdes da l6gica, de maneiza tal que ela nfo se podia Hibertar se- io reconhecendo ou que nada sabia ou gue esta e nao aquela afitmagGo correspondia & verdade, uma verdade everna que nun- ca se desvaneceria como se desvanevem a agio e agitacdo cegas dos homens, Fol uma experiéncia extraordindria, que encon- trou expansio entre os discipulos de Sécrates. Acreditouse pos- sivel concluir que bastava descobrit 0 verdadeiro conceito do Belo, do Bem ou, por exemplo, 0 da Coragem ou da Alma — on de qualquer outto objeto — pata ter condigio de compte- enderihe o set verdadeito. Conhecimento que, por sua vez, per mitizia saber ¢ ensinar a forma de agir cotteramente na vida e, antes de tudo, como cidadio. Com efeito, entre os gregos, que 86 pensavam com referéncia 4 categoria da politica, tudo con- duzia a essa questo, Tais as razdes que os levaram a ocupar-se da ciéncia ‘A. essa descoberta do espitito helénico associou-se, depois, 0 segundo grande instrumento do trabalho cientifico, engendrado pelo Renascimento: a experimentagio racional, Tornou-se ela meio seguro de controlar a experiéncia, sem o qual a ciéncia em- pitiea moderna néo teria sido possivel. Por certo que m0 se haviam feito experimentos muito antes dessa época. | Haviam tido Inger, por exemplo, experiéncias fisiolégicas, realizadas na India, no interesse de técnica ascética da Toga, assim como expe- rigncias matematicas na antiguidade helenica, visando fins mili- tates e, ainda, experiéncias na Idade Média, com vistas & explo- racdo de minas. Foi, porém, o Renascimento que elevow a ex: petimentacio 20 nivel de um principio da pesquisa como tal. Os precursores fotam, incontestavelmente, os grandes inovadores no Yominio da arte: Leonardo da Vinci ¢ seu compankeiros ¢, pat ticularmente e de maneira caracteristica no dominio da misica, fos que se dedicaram & experimentacdo com o cravo, no século XVI. Daf, a experimentagio passou para o campo das ciéncias, 33 devido, sobretudo, a Galileu ¢ alcangou o domfnio da teoria, gracas a Bacon; foi, a seguit, perfilhada pelas diferentes univer. sidades do continente europeu, de inicio e principalmente pelas da Itélia e da ‘Holanda, estendendo-se a esfera das ciéncias exatas. Qual foi pata esses homens, na aurora dos tempos moder. nos, @ significagao da ciéncia? Aos olhos dos. experimentadores do tipo de Leonardo da Vinci e dos inovadores no campo da miisica, a expetimentagdo era o caminho capaz de conduzir A arte verdadeira, 0 que equivalia dizer o caminho capaz de con- duzit & verdadeira natureza, A arte deveria set elevada 20 nivel de uma ciéncia, o que significava, a0 mesmo tempo e antes de tudo, que o artista deveria ser elevado, socialmente e por seus proptios méritos, eo nivel de um doutor. Essa ambigio serve de fundamento a0 Tratado da Pintura, de Leonardo da Vinci. E que se diz hoje em dia? “A ciéncia vista como caminho capaz de conduzit: & natureza” —~ seria frase que haveria de soar aos ouvidos da juventude como uma blastémia. Nao, é exatamente © oposto que aparece hoje como verdadeiro, Libertando-nos do intelectualismo da cifneia € que poderemos aprender nossa pr6- pria natureza e, pot essa via, 2 natureza em geral. Quanto a di- zer que a ciéncia € também caminho que conduz 2 arte — eis opinigo que nfo merece gue nela nos detenhamos. Todavia, & época da formacio das ciéncias exatas, esperava-se ainda mais ‘da cigncia. Lembremos 0 aforismo de Swammerdam: “Apresento- clhes aqui, na anatomia de um piolho, a prova da providéncia divina” e’ compreenderemos qual foi, naquela época, a tarcfa propria do trabalho cientifico, sob influéncia (indireta) do pro- testantismo e do puritanismo: encontrar 0 caminho que conduz a Deus. Toda a teologia pietista daqucle tempo, sobretudo a de Spener, estava ciente de que jamais se chegatia a Deus pela via que tinha sido tomada por todos os pensadores da Idade Média — ¢ abandonon seus métodos filoséficos, suas concep- gSes e dedugdes. Deus estd oculto, seus caminhos nao so os ossos, nem seus pensamentos os nossos pensamentos. Esperava- se contudo, descobrir tragos de suas intengées através do exame da natureza, por intermédio das ciéncias exatas, que permitiriam apreender fisicamente suas obras, E em nossos dias? Quem continua ainda a acreditar — salvo algumas criangas grandes que encontramos justamente entre os especialistas — que os conhecimentos astrondmicos, biolégicos, fisicos ou quimicos po- 34 detiam ensinat-nos algo a propésito do sentido do mundo ou poderiam ajudar-nos a encontrar sinais de tal sentido, se € que dle existe? Se existem conhecimentos capazes de extixpar, até As rafzes, a crenga na existéncia de seja Id 0 que for que se pax zega a uma “significagio” do mundo, esses conhecimentos sio exatamente os que se traduzem pela ciéncias. Como poderia a ciéncia nos “conduzir a Deus”? Nao é ela a poténcia especifi- camente ateligiosa? Atvalmente, homem algum, em seu foro intimo — independentemente de admiti-lo de forma explicita — coloca em divida esse cardter da cigncia, O. pressuposto funda- mental de qualquer vida em comonhio com Deus impele 0 ho- mem ase emancipar do racionalismo e do intelectualismo da ci. éncia: essa aspiracio, ou outra do mesmo género, erigiv-se em ‘uma palavea de otdem essencial, que faz vibrar a juventude alema inclinada & emocio religiosa ou em busca de experién- cias religiosas. Alids, a juventude alema nfo corre & cata de ex- peritncia religiosa, mas de experiéncia da vida, em geral. S6 pi rece desconcertante, dentro desse género de aspiracées, o método escolhido, no sentido de que o dominio do irracional, tinico do- minio em que o intelectualismo ainda nfo havia tocado, tornow-se objeto de uma tomada de consciéneia e ¢ minuciosamente exa- minado, A isso conduz, na prética, 0 moderno romantismo in- telectualista do itracional. Contudo, esse método, que se pro- pée a livrar-nos do intelectualismo, se traduzité, indubitavel- mente, pot um resultado exatamente oposto ao que esperam atingir os que se empenham em sepuir essa via. Enfim, ainda {que um otimismo ingénuo haja podido celebrar a ciéncia — isto é, técnica do dominio da vida fundamentada na ciéncia — como ‘0 caminho que levaré a felicidade, creio ser posstvel deixar in- teiramente de parte esse problema, tendo em vista a critica de- vastadora que Nietzsche ‘dirigin contra “‘os tiltimos homens” que “descobriram « felicidade”. Quem continua a acreditar ni so — excetuadas certas criancas grandes que se encontram nas chtedras de faculdades on nas salas de tedacéo? Voltemos atr4s. Qual é, afinal, nesses termos, 0 sentido da cigncia enquanto vocacio, se estio destrufdas todas as ilu- sées que nela divisavam © caminho que conduz ao “ser verda- deiro”, & “verdadeita arte”, & ‘‘verdadeira_natureza”, a0 “ver~ dadeiro Deus”, a “verdadeita Felicidade”? Tolstéi dé a essa per- gunta a mais simples das respostas, dizendo: ela ne tem sent 35 do, pois que nfo possibilita responder A indagacéo que real. mente nos importa — “Que devemos fazer? Como devemos viver?” De fato, € incontestdvel que resposta a cssas questGes nao nos é tornada acessivel pela ciéncia. Permanece apenas o problema de saber em que sentido a ciéncia nfo nos proporciona resposta alguina e de saber se a ciéncia poderia ser de alguma utilidade para quem suscite corretamente a indagagio. * Instalou-se, em nossos dias, o hébito de falar insistentemente numa “ciéncia sem pressupostos”. Existe uma tal ciéncia? Tudo depende do que se entenda pelas palavras empregadas. ‘Todo trabalho cientifico pressupde sempre a validade das regtas da Isgica e da metodologia, que constituem os fundamentos gerais de nossa orientaciio no mundo. Quanto & questo que nos pteo- cupa, esses pressupostos sio o que hé de menos problemético. A ciéncia pressupde, ainda, que o resultado a que o trabelho ci- entifico leva é importante em si, isto €, merece set conhectdo, Ora, € nesse ponto, manifestamente, que se retinem todos os nossos problemas, pois que esse pressuposto escapa a qualquer demonstrasio por meios cientificos. Néo € possivel interpretar © sentido tiltimo desse pressuposto — impée-se, simplesmente, aceité-lo ou recusé-lo, conforme as tomadas de posicio pessoais, definitivas, face A vida, A natureza da relag@o entre trabalho cientifico ¢ os pres- supostos que 0 condicionam varia, ainda uma vez, de acordo com a estrutura das diversas ciéncias, As ciéncias da natureza, como a Fisica, ¢ Quimica ou a Astronomia pressupdem, com natu. talidade, que valha a pena conhecer as leis diltimas do devir obs. mico, na medida em que a ciéncia esteja em condigdes de estar belecélas, E isso nfo apenas porque esses conhecimentos nos permitem atingir certos resultados. téenicos, mas, sobretudo, por- que tais conhecimentos tém um valor “em si”, na medida, pre- cisamente, em que traduzem uma “vocaciio”.’ Pessoa alguma poderd, entretanto, demonstrar esse pressuposto. E menos ain- da se podeté provar que o mundo que esses conhecimentos des- crevem merece existir, que cle encetra sentido ou que nio é absurdo habitélo. Aquele género de conhecimentos nio se pro- pe esse tipo de indagaclo. ‘Tomemos, agora, um outro exem- plo, 0 de uma tecnologia altemente desenvolvida do ponto de 36 a Sci te vista cientifico, tal como ¢ a medicina moderna, Expresso maneira trivial, 0 “pressuposto” geral da Medicina assim se co- Toca: o dever do médico est na obrigagdo de conservar a vida pata e simplesmente e de reduzir, quanto possivel, o softimento. Fado isso é porém, problemético, Gracas aos meios de que dispée, 0 médico mantém vivo o moribundo, mesmo que este Ihe implore pér fim a seus dias e ainda que os parentes dese- jem e devam desejar a morte, conscientemente ou nfo, porque }é nao tem mais valor aquela vida, porque os sofrimentos cessa- iam ou porque os gastos para conservat aquela vida inétil — tratase, talvez, de um pobre demente — se fazem pesadissi- mos. $6 0s pressupostos da Medicina e do cédigo penal impe- dem o médico de se apartar da Jinha que foi tragada. A Medi- tina, contudo, nfo se propde a questio de saber se aquela vida merece ser vivide ¢ em que condises. Todas as céncias de a nos dio uma resposta A pergunta: que deveremos fa- et, J qulsermos ser Tecricamente seniores da vida, Quanto a indagagGes como “isso tem, no fundo e afinal de contas, algum sentido”, “devemos ¢ queremos ser tecnicamente senhores da vida?” aquelas ciéncias nos deixam em suspenso ou aceitem pressupostos, em funséo do fim que perseguem. Recorramos a uma outra disciplina, a ciéncia da arte. A estética pressupde 2 obra de arte. E, €m conseqiiéncia, apenas se prope pesqui- sar o que condiciona a génese da obra de arte. Mas nfo se pergunta, absolutamente, se o reino da arte ngo seré um reino de esplendor diabélico, reino gue & deste mundo ¢ que se levan- ta contra Deus ¢ se levanta, igualmente, contra a fraternidade rumana, em razdo de seu espitito fundamentalmente aristocté- tico, A estética, em conseqiiéncia, nfo se pergunta: deveria haver obras de arte? —- Tomemos, ainda, 0 exemplo da ciéncia do Diteito, Essa disciplina estabelece o que é vélido segundo as regras da doutrina juridica, ordenada, em parte, por necessidade I6gica e, em parte, por esquemas convencionais dados; estabe- Tece, por conseguinte, em que momento determinadas reatas de Direito e determinados métodos de interpretacio sto havidos ‘como obrigat6rios. Mas a ciéncia juridica nfo dé resposta A per gunta: deveria haver um Direito e dever-se-iam consagrar exata- mente estas regras? Aquela cigncia 86 pode indicar que, se de- sejamos certo resultado, tal regra de Direito é, segundo as nor- ‘mas da doutrina juridica, 0 meio adequado para atingtlo, — 37 ‘Tomemos, por fim, o exemplo das citacias histéricas, Elas nos capacitam a compreender os fendmenos politicos, artisticos, lite- ririos ou sociais da civilizagio, a partir de suas condigdes de for- magio. Mas nao dio, por si mesmas, resposta & pergunta: esses fenémenos mereceriam ou merecem existic? Elas pressupdem, simplesmente, que hé intetesse em tomar parte, pela pratica des. ses conhecimentos, na comunidade dos “homens civilizados”, Nao podem, entretanto, provar “cientificamente” que haja van- tagem nessa participagio; e o fato de pressuporem tal vantagem nio prova, de forma alguma, que ela exista. Em verdade, nada do que foi mencionado é, por si préptio, evidente. ‘Detenhamo-nos, agora, pot um instante, nas disciplines que Et sao famili iarcs, a saber, a Sociologia, a Histéria, a Economia itica, a Cigncia Politica’e todas as espécies de filosofia da cul. tara que tém por objeto a interpzetagio dos diversos tipos de conhecimentos precedentes. Costuma-se dizer, ¢ eu concordo, que a politica no tem seu lugar nas salas de aulas das universi. dhades." Nao o tem, antes de tudo, no que concerne sos estudan- fez. Deploto, por exemplo, que, no anfiteiro de mex antigo lega Dietrich Schafer, de Berlim, cetto nimero de estudantes pacifistas se haja reunido em turno de sua cétedra, para fazer uma manifestacio, e deploro também o comportamento de esti. dantes antipacifistas que, ao que patece, organizaram manifesta: sio contra 0 Professor Foerster, do qual, em raréo de minhas concepgées, me sinto, entretanto, muito afastado © por muitos motivos. Mas a politica néo tem lugar também, no que concerne aos docentes. E, antes de tudo, quando eles tratem cientfica. mente de temas politicos, Mais do que nunca, a politica csté entio deslocada, Com efcito, uma coisa é tomar uma posicio politica prética, e outra coisa € analisar cientificamente 8 estra. turas polfticas ¢ as doutrinas de partidos. Quando, numa reunizo publica, se fala de democracia, nio se faz segredo da posicéo pes. soal adotada ¢ a necessidade de tomer partido de mancita clara se impée, entio, como um dever maldito. As palavras empre- gadas Ruma ocasido como essa nao séo mais instrumentos de and- lise cientifica, mas constituem apelo politico destinado a solicitar que 0s outros tomem posisio. Nio si mais relhas de arado para revolver a planicie imensa do pensamento contemplativo, porém glidios para acometer os adversérios, ou numa palavra, meios de combate. Seria vil emptegar as palavras de tal maneira 38 em uma sala de aula, Quando, em um cutso universitério, ma- nifesta'se a intengio de estudar, por exemplo, « ‘“democracia”, procede-se ao exame de suas diversas forinas, o funcionamento pidprio de cada uma delas ¢ indagase das conseqiiéncias que Juma ¢ outza acarretam; em seguida, opde-se & democtacia as for- mas pio-democriticas ‘da ordem politica e tente-se levat essa andlise até a medida em que 0 proprio owvinte se ache em con- digées de encontrar o ponto a partir do qual poderé tomar posi- 20, em fungio de seus ideais bésicos, O verdadeizo professor ge impediri de impor, do alto de sua cétedta, uma tomada de posigio qualquer, seja abertamente, seja por sugestio — pois a maneita mais desleal é evidentemente a que consiste em “dei- xxat, os fatos falarem”. Por que razdes, em esséncia, devemos abster-nos? Presu- mo que certo nimero de meus respeitéveis colegas opinaré no sentido de que é, em getal, impossivel por em prética esses es- cerdpulos pessoais e que, se possivel, seria fora de propésito ado- tar precaugoes semelhantes, Ora, niio se pode demonstrat a ninguém aquilo em que consiste 0 dever de um professor uni- versititio. Dele nunca se poderé exigir mais do que probidade intelectual ou, em outras palavras, a obtigagio de reconhecer que constituem dois tipos de problema beterogéneos, de uma parte, 0 estabelecimento de fatos, a determinacao das realida- es matemsticns ¢ légicas ou a identificagio das estruturas in- trinsecas dos valores culturais e, de outra parte, a sesposta a questies concernentes ao valor da cultura e de seus contetidos particulates ou a questées relativas 4 maneira como se deveria agit na cidade ¢ em meio a agrupamentos politicos. Se me fos- se perguntado, neste momento, por que esta ultima série de questies deve set exclufda de uma sala de aula, eu responderia ue 0 profeta € 0 demagogo esto deslocados em uma citedra universitéria, Tanto a0 profeta como ao demagogo cabe dizer: “VA a rua e fale em publico”, o que vale dizer que ele fale em Jugar onde possa ser criticado. Numa sala de aula, enfrenta-se © auditério de maneira inteiramente diverst: 0 professor tem a palavea, mas os estudantes esto condenados ao siléacio. As ciscunstincias pedem que os alunos sejam obtigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a fututa carreita e que neshum dos ptesentes a uma sala de aula possa critiear © mes- tre. A um professor é imperdodvel valer-se de tal situagio para 39 buscar incutir, em seus discfpulos, as suas préptias concepgses politicas, em vez de hes ser wtil, como é de seu dever, através da trensmissio de conhecimentos e de experiéncia cientifica, Pode, por certo, ocotret que este ou aquele professor s6 imper- feitamente consiga fazer celar sua preferéncia, Em tal caso, es- tard sujeito & mais severa das criticas no foro de sua propria consciéncia. Uma falha dessas nfo prova, entretanto, absotuta- mente nada, pois que existem outros tipos de falha como, por exemplo, os erros matetiais, que também nada provam contra a obrigaco de buscar a vetdade. Além disso, é exatamente cm nome do interesse da ciéncia que eu condeno essa forma de proceder, ~ Recorrendo as obras de nossos historiadores, tenho condigio de hes fornecer prova de que, sempre que um homem de cincia permite que se manifestem’ seus préprios jutzos de valor, ele petde a compreensao integral dos fatos. Tal demons- tragéo se estenderia, contudo, para além dos limites do tema que nos ocupa esta noite e exigiria digressées demasiado longas. Gostaria, apenas, de colocar esta simples pergunta: Como € possivel, numa exposi¢éo que tem por objeto o estudo das di- versas formas dos Estados ¢ das Igrejas ou a histéria das reli- aides levar um crente catdlico e um franco-macom a submeterem ‘esses fendmenos aos mesmos critérios de avaliagao? Isso é algo. de que nio se cogita, E, entretanto, 0 professor deve tet a ame bigao © mesmo erigir em dever o torner-se titi! tanto a um quanto @ outro, em razfio de seus conhecimentos € de sex método. Pode ser-me objetado, a justo titulo, que o crente catélico jamais acei- tard a maneita de compreender a histéria das otigens do cristiae nismo tal como a expée um professor que nfo admite os mes. mos pressupostos dogmaticos. Isso ¢ verdade! A tazio das dis- cordiincias brota do fato de que a ciéncia “sem pressupostos”, recusando submissio a uma autoridade religiosa, nfo conhece nem “milagre” nem revelacio”. Se o fizesse, seria infiel a seus préprios pressupostos. O crente, entretanto, conhece as duas posigdes. A cigncia “sem pressupostos” dele exige nada menos — mas, igualmente, nada mais — que a cautela de simplesmente reconhecer que, se 0 fluxo das coisas deve ser explicado sem intervengio de qualquer dos elementos sobrenaturais a que a explicacio empftica tecusa cardter causal, aquele fluxo sé pode ser explicado pelo método que a ciéncia se esforca por aplicar. E isso o crente pode admitir sem nenhuma infidelidade a sua {6 40 ‘Uma nova questiio, contudo, se Jevanta: tem algum sentido © trabalho realizado pela cigncia aos olhos de quem permanece indiferente aos fatos, como tais, e s6 dé importincia a uma to- mada de posi¢io prética? Creio que, mesmo em tal caso, a ci éncia nfo estd despida de significagao. Primeiro ponto a assi- ‘nalar: a tarefa primordial de um professor capaz é a de Jevar seus disefpulos a reconhecerem que ha fatos que produzem des- conforto, assim entendidos os que sio desagradaveis % opinizo pessoal de um individuo; com efeito, existem fatos extremamente desagradaveis para cada opinido, inclusive a minha. Entendo ‘que um professor que obriga seus alunos a se habituarem a esse género de coisas realiza uma obra mais que puramente intelec- tual € nfo hesito em qualificé-la de “moral”, embora esse adje- tivo possa parecer demasiado patético para designar uma evidén- cia tio banal. _ | . Nao mencionei, até agora, sendo as razdes préticas que fus- tificam recusa a impor convicgées pessoais, He razdes de outra cordem. A impossibilidade de alguém se fazer campeio de con- vicges préticas “em nome da ciéncia” — exceto 0 caso dnico que se refere a discussio dos meios necessérios pata atingit fim teviamente estabelecido — prende-se a razGes muito mais pro- jundas. Tal atitude é, em prinefpio, absurda, porque as diversas ordens de valores se defrontam no mundo, em luta incessante. Sein pretender tragar 0 elogio da filosofia do velho Mill, impoe- “se, nfo obstante, reconhecer que ele tem tazio, ao dizer que, quando se parte da experiéncia pura, chega-se ao politefsmo. ‘A formula reveste-se de aspecto supetficial e mesmo paradoxal, mas, apesar disso, encerra uma parcela de verdade. Se ha uma coisa que atualmente no mais ignoramos € que uma coisa pode ser santa no apenas sem ser bela, mas porque ¢ na medida em gue nao é bela — e a isso ha referéncias no capitulo LIII do Livro de Isafas ¢ no salmo 21. Semelhantemente, uma coisa pode cer bela néo apenas sem set boa, mas precisamente por aquilo que nfo a faz boa. Nietzsche telembrou esse ponto, mas Baudelaire jé 0 havia dito por meio das Fleurs du Mal, titulo que escolheu para sua obra pottica, A sabedoria popular nos ensina, enfim, que uma coisa pode ser verdadeira, conquanto néo seja bela nem santa nem boa. Esses, porém, nao passam dos ca- sos mais elementares da luta que opde os deuses das diferen- tes ordens € dos diferentes valores, Ignoro como se poderia 41 cacontrar base para decidir “cientificamente” 0 problema do valor da cultura trancesa face & cultura salem; af, também, die ferentes deuses se combatem e, sem divida, por todo o sempre, ‘Tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mun. do antigo, que’ se encontrava sob 0 encanto dos deuses ¢ demé- nios, mas assume sentido diverso. Os gzegos ofereciam sacti- ficios a Aftodite, depois a Apolo e, sobretudo, a cada qual dos deuses da cidade; n6s continuamos a proceder de mancira seme- Thante, embora nosso comportamento haja rowpido 0 encanto € se haja despojado do mito que ainda vive em nds, Eo desti- ‘no que governa os deuses e nfo uma ciéncia, seja esta qual for. maximo gue podemos compreender € 0 que o divino signi- fica pata determinada sociedade, ou o que esta ou aquela so- ciedade considera como divino, Bis af 0 limite que um pro- fessor néo pode ultrapassar enquanto ministra uma aula, 0 que no quer dizer que se tenha assim resolvido 0 imenso proble- ma vital que se esconde por detrés dessas questdes. Entram, en- #o, em jogo podetes outros que no os de uma cétedra univer- sitéria. Que homem teria a pretensio de refutar “cientificamen- te” a ética do Sermao da Montanka, ou, por exemplo, a méxi- ma ‘“néo oponha resisténcia ao mal” ou'a parébola do oferecer a outra face? E, entretanto, claro que, do ponto de vista estri- tamente humano, esses preceitos evangélicos fazem a apologia de uma ética que se levania contra a dignidade. A cada um cabe decidir entre a dignidade religiosa conferida por essa ética ea dignidade de um ser viril, que prega algo muito diferente, como, por exemplo, “resiste ao mal ou setas responsdvel pela yitéria que ele alcance”. Nos termos das conviccées mais pto- fundas de cada pessoa, uma dessas éticas assumird as feigdes do diabo, @ outra as feigdes divinas e cada individuo terd de deci- dir, de seu proprio ponto de vista, 0 que, para ele, é deus e 0 que € 0 diabo, O mesmo aconiece em todos os planos da vida. O tacionalismo grandioso, subjacente & orientagio ética de nossa vida e que brota de todas as profecias religiosas, destronow 0 po- Titeismo, em beneficio do “Unico de que temos necessidade”; mas, desde que se viu diante da realidade da vide interior ¢ ex: terior, foi compelido a consentir em compromissos ¢ acomoda- ses de que nos deu noticia a histéria do cristianismo. A reli- siio torouse, em nossos tempos, “rotina quotidiana”. Os deu- ses antigos abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes 42 impessoais, porque desencantados, esforgam-se por ganhar poder sobre nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas. Dai os tore mentos do homem’ mode:no, tormentos yue atingem de maneira particalarmente penosa a nova geragio: como se mostrar a al- fura do quotidiano? Todas as buscas de “‘experiéncia vivi tém sua fonte nessa fraqueza, que € fraqueza mio ser capaz de cencarar de frente 0 severo destino do tempo que se vive. Tal é 0 fado de nossa civilizacao: impée-se que, de novo, tomemos claramente consciéncia desses choques que a orien- tagdo de nossa vida em fungio exclusiva do pathos gtandioso da ética do cristianismo conseguiu mascarar por mil anos. Basta, porém, dessas questées que ameacam levar-nos de- masiado longe. © erro que uma parte de nossa juventude co- mete, quando, ao que observamos, replica: “Sejal Mas se fre- qiientamos os cursos que vocés ministram é para ouvir coisa diferente das andlises e determinagies de fatos”, esse erro con- siste em procurar no professor coisa diversa de’ um mestre di- ante de seus discfpulos: a juventude espera um lider e néo um professor. Ora, s6 como professor € que se ocupa uma cétedra, ¥ preciso que nao se faca confusio entre duas coisas tio diver- sas ¢, facilmente podemos convencer-nos da necessidade dessa distingio. Permitam-me que os conduza mais uma vez aos Es- tados Unidos da América, pois gue 1 se pode observat certo ndimero de realidades em sua feiglo original e mais contundente. jovem notte-americano aprende muito menos coisas que o jovem alemio. Entzetanto, ¢ apesar do niimero incrivel de exa- mes a que € sujeitado, nfo se tomnou ainda, em razio do espt- ito que domina a universidade norte-americana, a besta de fexames em que esté transformado 0 estudante slemfo. Com feito, a burocracia, que faz do diploma um requisito prévio, uma espécie de bilhete de ingresso no reino da prebenda dos empre- gos, esté apenas em seu periodo inicial, no além-Atlantico, O jovem norte-americano nada respeita, nem a pessoa, nem a tra- digio, nem a situagio profissional, mas inclina-se diante da gran- deza pessoal de qualquer individuo. A isso, ele chama “demo- cracia”, Por caricatural que possa parecer a realidade ametica- na quando a colocamos diante da significacfo verdadeira da pa- lavra democracia, aquele é 0 sentido que Ihe atribuem e, de mo- mento, 86 isso importa. O jovem norte-americano faz de seu professor uma idéia simples: € quem Ihe vende conhecimentos 43 ¢ métodos em troca de dinheito pago pelo pai, exatamente como © merceeiro vende repolhos @ mie. Nada além disso. Se o pro- festot for, por exemple, campeto de futebol, ninguéan hesiard em conietirlhe posigo ‘de lider em tal setot. Mas, se nio é uum campedo de futebol (ou coisa similar em outro esporte), ndo passa de um professot e nada mais. Jamais ocorreria a um jovem norteamericano que sea professor pudesse vender-lhe “concepgées do mundo” ou regras vélidas para a conduta na vida. Claro esté que nés, alemics, rejeitamos uma concep¢io formulada em tais tetmos. Cabe, contudo, perguntar se nessa maneita de ver, que exagerei até certo ponto, no se contém tima parca de eceto, ‘Meus caros alunos! Voots acorrem a nossos cursos exigindo de nés, que somos professores, qualidades de lider, sem jamais levar em consideracio que, de cem professores, noventa e nove néio tm e nao devem ter a pretensZo de set campedes do fute- bol da vida, nem “orientadores” no que diz respeito as ques- tes que concernem A conduta na vida. E preciso no esquecer que 0 valor de um ser humano nfo se pée, necessariamente, na dependéncia das condigdes de Mder que ele possa possuir. “De qualquer maneira, o que faz, 0 que transforma um homem em sdbio eminente ou professor universitério néo é, por certo, o que poderia transformé-lo num lider no dominio da condata prética da vida e, especialmente, no dotninio prético O fato de um homem possuir esta ultima qualidade € algo que brota do puro acaso. Seria inguietante o fato de todo professor titular de uma cétedta universitatia abrigar o sentimento de estar co- Jocado diante da impudente exigéncia de provar que é um lider. E mals inguietante ainda seria o fato de permitirse que todo professor de universidade julgasse ter a possibilidade de desenm. penhar esse papel na sala de aula. Com efeito, os individuos que a si mesmos se julgam lideres sao, freqiientemente, os menos ualifieades pare eal fungio: de qualquey forma a ala de ala ‘do seré jamais o local em que o professor posea fazer prova de tal aptidio. O professor que sente a vocagio de conselheiro. da juventude ¢ que frui da confianca dos mocos deve desempenhat esse papel no contacto pessoal de homem pata homem. Se cle se julga chamado a patticipar das Iutas entre concepydes de mmun. do € entre opinides de partidos, deve fazé-lo fora da sala de aula, deve fazé-lo em lugar publico, ou seja, através da impren- 44 sa, em reunides, em associagSes, onde queira. , com efeito, de- masiado cmodo exibir coragem num local em que os assistentes ¢, talvez, os oponentes, esto condenados ao siléncio, * ‘Apés tais consideragées, os senhores poderdo dizer: se as- sim é, qual, em esséncia, a contsibuigio positiva da ciéncia para a vida pritica e pessoal? Essa pergunta levanta, de novo, 0 pro- blema do papel da ciéncia. Em primeiro lugar, a ciéncia coloca naturalmente & nossa disposigdo certo mimeto de conhecimentos que nos permitem do- minar tecnicamente a vida por meio da previséo, tanto n0 que se refere a esfera das coisas exteriores como a0 campo da ati- vidade dos homens. Os senhores replicatio: afinal de contas, isso nfo passa do comércio de legumes do jovem notte-ameri- cano. De acordo, Em segundo lugar, a cigncia nos fornece algo que 0 comér- cio de legumes no nos pode, por certo, proporcionar: mévodos de pensamento, isto é os instrumentos ¢ uma disciplina, Os se- nhores retrucario, talvez, que nfo se trata, agora, de legumes, porém de meios através dos quais obter legumes. Assim scja. ‘Admitamo-lo por enquanto. Felizmente, nfo chegamos ainda 20 fim da jotnada, ‘Temos a possibilidade de apontar para uma tetceira vantagem: a ciéncia contribui pata clareza, Com con- digo de que nés, os cientistas, de antemao a possuamos. Se assim for, poderemos dizer-Ihes claramente que, diante de tal problema de valor, possfvel adotar, na prética, esta ou aquela posicaéo — e, para simplificar, peo que recotramos a exemplos comuns tomados de situagées sociais a que temos de fazer face. ‘Quando se adota esta ou aquela posigéo, sera preciso, de acordo com 0 procedimento cientifico, aplicar tais ou quais meios para conduzit 0 projeto a bom termo. Poder ocorrer que, er. certo momento, os métodos apresentem um carter que nos obtigue @ recusé-los. Nese caso, setd preciso escolher entre o fim © os meios inevitaveis que esse fim exige. O fim justifica ow mio justifica os meios? © professor s6 pode mostrar a necessidade da escolha, mas no pode ir além, caso se limite a seu papel de professor ¢ nfo queira transformar-se em demagogo. Além disso, ele poderd demonstrar que, quando se deseja tal ou qual fim, 45 tomnase necessério consentis em tais ou quais conseqtiéncias subsidiérias que também se manifestario, segundo mostram as ligées da experiéncia, Na hipétese, podem apresentar-se as mes- mas dificuldades que surgem a propésito da escolha de meios. ‘A este nivel, s6 defrontamos, entretanto, problemas que podem igualmente apresentar-se a qualquer técnico; este se ve compe- lido, em numerosas circunstincias, a decidir apelando para o principio do mal menor ou para 0 prinefpio do que é relativa- mente melhor. Com uma diferenga, entretanto: geralmente, 0 sécnico dispée, de antemao, de um dado ¢ de um dado que é capital, 0 objetivo. Ora, quando se trata de problemas funda- mentais, 0 objetivo nio nos é dado. Com base nessa observa- so, podemos referir, agora, a viltima contribuicéo que a ciéncia dé ao servigo da clareza, contribuigio além da qual nfo hé ou- tras. Os cientistas podem — e devem — mostrar que tal ou qual posicio adotada deriva, logicamente ¢ com toda certeza, quanto a0 significado de tal ou qual visio whima e bisica do mundo, Uma tomada de posigfo pode derivar de uma visio tinica do mundo ou de wétias, diferentes entre si. Dessa forma, © cientista pode esclarecer que determinada posicéo deriva de uma e no de outra concepgio. Retomemos a metéfora de que ha pouco nos valemos. A ciéncia mostrar que, adotando tal posicio, certa pessoa estard a servico de tal Deus ¢ ofendendo tal outro e que, se se desejar manter fiel a si mesma, chegard, cet- tamente, a determinsdas conseqtigncias {ntimas, tltimas e sig- nificetivas. Eis 0 que a ciéncia pode proporcionar, ao menos em principio, Essa mesma obra € 0 que procuram realizar a disci- plina especial que se intitula filosofia e as metodologias proprias das outtas disciplinas. Se estivermos, portanto, enquanto cien- tistas, & altura da tarefa que nos incumbe (0 que, evidentemente, € preciso aqui pressupor) poderemos compelir uma pessoa a dar-se conta do sentido dltimo de seus préprios atos ov, quando menos, ajudéla em tal sentido. Pareceme que esse resultado nao € desprezivel, mesmo no que diz. respeito a vida pessoal, Se um professor alcanca esse resultado, inclino-me a dizer que ele se poe a setvico de poténcias “‘motais”, ou seja, a servigo do dever de levar a brotarem, nas almas alheias, a clareza e 0 sen- tido de responsabilidade, " Crefo que lhe seté tanto mais fecil realizar essa obra quanto mais ele evite, escrupulosamente, im- por ou sugerir, 2 audiéncia, uma convicgio. 46 ‘As opiniges que, neste momento, Ihes exponho tém por base, em verdade, a condi¢ao fundamental seguinte: a vida, en- quanto encerra em si mesma um sentido e enquanto se compre- ende por si mesma, s6 conhece 0 combate eterno que os deuses travam entre si ou — evitando a metéfora — s6 conhece a in- compatibilidade das atitudes wltimas possiveis, a impossibilida- de de ditimir seus conflitos ¢, consegiientemente, a necessidade de se decidir em prol de um ou de outro. Quanto a saber se, em condigées tais, vale a pena que alguém faca da ciéncia a sua “gocagio” ou a indagar se a cincia constitui, por si mesma, uma vocasio objetivamente valiosa, impSe-se reconhecer que esse tipo de indagacao implica, por sua vez, um juizo de valor, a pro- pésito do qual nio cabe manifestagio em uma sala de aula. A resposta afirmativa a essas perguntas constitui, com efeito ¢ precisamente, o pressuposto do ensino. Pessoalmente, eu as tes- pondo de maneita afitmativa, tal como atestado por meus tra- balhos. Tudo isto se aplica igualmente e, mesmo, especialmente a0 ponte de vista fundamentalmente hostil ao intelectualismo onde vejo, tal como a juventude moderna vé ou na maior parte das vezes imagina ver, 0 mais perigoso de todos os deménios. £ talvez este o momento de relembrar a essa juventude a sen- tenga: “Nao esqueca que 0 diabo é velho e, assim, espere tornar- -se velho para poder compreendé-lo”. O que nfo quer dizer que se faca necessério provarlhe a idade apresentando uma certidio de nascimento. O sentido daquelas palavras € diverso: se voc’ deseja se defrontar com essa espécie de diabo, nfo cabera optar pela fuga, tal como acontece muito fregiientemente em nossos dias, mas seré necessirio examinar a fundo os caminhos que trilha, para conhecer-Ihe o poder ¢ as limitacdes. ‘A ciéncia é atualmente, uma “vocacio” alicergada na es- pecializagio © posta ao serviso de uma tomada de consciéncia de nés mesmos ¢ do conhecimento das relacées objetivas. A ci- éncia no € produto de revelagdes, nem é graca que um profeta ou um visiondrio houvesse recebido para assegurar a salvacio das alms; nfo é também porcio intesrante da meditagio de sébios e filésofos que se dedicam a refletir sobre 0 sentido do mundo. Tal € 0 dado inclutével de nossa situagdo histérica, a que nfo poderemos escapar, se desejarmos permanecer fidis a ngs mesmos, E agora, se 4 mancira de Tolstéi novamente se colocar a indagacio; “Falhando a ciéncia, onde poderemos obter 47 uma resposta pata a pergunta — que devemos fazer ¢ como de- vemos organizer nossa vida?” ou, colocando o problema em tet- mos empregados esta noite: “Que deus devemos servir dentre ‘os muitos que se combatem? devemos, talvez, servit um outro deus, mas qual?”, — a essa indagacdo eu tesponderei: procurem um profeta ou um salvador. E se esse salvador no mais existe ou se nao ¢ mais ouvida sua mensagem, estejam certos de que nfo conseguitio fazé-lo descer 4 ‘Terra apenas porque milhares de professores, transformados em pequenos profetas privilegia- dos © pagos pelo Estado, procuram desempenbar esse papel em uma sala de aula, Por esse caminho 36 se conseguiré uma coisa ¢ & impedir a getagio jovem de se dar conta de um fato decisivo: © profeta, que tantos integrantes da nova geragio chamam a plena voz, no mais existe, Além disso, 86 se conseguiré impedir ‘que essa geragio apreenda o significado amplo de tal austncia, Estou certo de que no se presta nenhum servico a uma pessoa que “vibra” com a religiio quando dela se esconde, como, aliés, dos mais homens, que seu destino ¢ 0 de viver numa época indi- ferente a Deus e aos profetas; ou quando, aos olhos de tal pes- soa, sé dissimula aquela situacfo fundamental, por meio dos su- cediineos que sio as profecias feitas do alto de uma cétedra uni- versitéria, Parece-me que o crente, na pureza de sua fé, deveria insurgir-se contra semelhante engodo. Talvez, entretanto, thes ocorta, agora, nova pergunta: qual a posigio a adotar diante de uma teologia que pretende o titulo de “ciéneia”? Nao vamos nos esquivar e contornar a questio, Por certo que nao se encontram, em toda parte, “teologia”” e “dogmas”, 0 que, entretanto, nfo equivale a dizer que eles s6 se encontrem no cristianismo. Contemplando o curso da Histé- ria, encontramos teologias amplamente desenvolvidas no islamis- mo, no maniqueismo, na gnose, no orfismo, no parcismo, no taofsmo, no budismo, nas seitas hindus nos Upanishades ¢, na- turalmente, também no judaismo. Tais teologias tiveram, em cada caso, desenvolvimento sistemético muito diferente, Nao é, porém, produto do acaso o fato de o ctistianismo ocidental tet no somente eleborado ou procurado elaborar de maneita mais sistemética sua teologia —- contratiamente ao que se passou com 0s elementos de teologia que se encontram no judafsmo —, como também procurado emprestar-the desenvolvimento cuja signifi- cago histétice & indiscutivelmente, a de maior relevincia, Isso 48 se explica por influéncia do espiito helénico, pois toda teologia cocidental dimana desse espitito, como toda teologia oriental pro- cede, manifestamente, do pensamento hindu. A teologia é uma ‘racionalizagao intelectual da inspiacio religiosa. Jé dissemos que do existe ciéncia inteiramente isenta de pressupostos ¢ dissemos ‘também que ciéncia alguma tem condicéo de provar seu valor a quem Ihe rejeite of pressupostos. A teologia, entretanto, acres- ‘centa outros pressupostos que Ihe sio prdprios, especialmente no que diz respeito a seu trabalho e 2 justificagéo de sua exis- téncia. Naturalmente que isso ocorre em sentido e medida muito varidveis. Nao hé divida de que toda teologia, mesmo a teo- Togia hindu, aceita 0 pressuposto de que o mundo deve ter um sentido, mas o problema que se coloca € 0 de saber como inter- pretar tal sentido, para poder pensélo. Tratase de ponto idén- tico 20 enfrentado pela teoria do conhecimento elaborada por Kant, que, partindo do pressuposto “a verdade cientifica existe e € vdlida”, indaga, em seguida, dos pressupostos que a tornam possivel, A questfo nos lembta, ainda, 0 ponto de vista dos estetas moderos que pattem (explicitamente, como faz, pot exemplo, G. V. Lukacs, ou de forma efetiva) do pressuposte de que “existem obras de arte” ¢ indagem, em seguida, como € isso possivel, Certo que, em geral, as teologias nao se contentam ‘com esse pressuposto ultimo, que brota, essencialmente, da filo- sofia da religifo. Partem elas, normalmente, de pressupostos su- plementares: pattem, de um lado, do pressuposto de que se im- poe crer em certas “tevelagGes” que sao importantes para a sal- vacio da alma — isto é, fatos que sio os Gnicos a tornar possi- vel que se impregne de sentido certa forma de conduta na vida; e, de outro lado, partem do pressuposto de que existem certos estados e atividades que Bossuem o caréter do santo — isto que dio lugar 2 uma conduta compzeensivel do ponto de vista da religido ov, pelo menos, de seus elementos essenciais. Con- tudo, também a teologia se vé diante da questo: como com- preender, em fungG0 de nossa representagio total do mundo, esses pressupostos que nfo podemos senao accitar? Responde fa teologia que tais pressupostos pertencem a uma esfera que se situa para além dos limites da “ciéncia”. Nao correspondem, por conseguinte, a um “saber”, no sentido comum da palavra, mas a um “ter”, no sentido de que nenhuma teologia pode fazet as vezes da fé.e de outros elementos de santidade em quem nfo 49 03 “possui”. Com mais forte raziio, niio o poderé também ne- nhuma outra ciéncia. Em toda teologia “positive”, 0 crente chega, necessariamente, num momento dado, a um ponto em que s6 lhe seré possivel recotrer 4 méxima de Santo Agostinho: Credo non quod, sed quia absurdura est. O poder de realizar essa proeza, que é 0 “sactificio do intelecto” constitui 0 trago decisive e ca- racterfstico do crente praticante. Se assim é, vé-se que, apesar da teologia (ou antes por causa dela) existe uma tensio inven- cfvel (que precisamente a teologia revela) entre o dominio da crenga na “ciéncia”” eo dominio da salvacio religiosa. $6 0 discipulo faz legitimamente o “sactificio do intelecto” em favor do profeta, como s6 0 crente o faz em favor da Igreja. Nunca, porém, se viu nascer uma nova profecia (repito delibera- damente essa metéfora que ter4 talvez chocado alguns) em razio de certos intelectuais modernos experimentarem a necessidade de mobiliar a alma com objetos antigos ¢ portadores, por assim dizer, de garantia de autenticidade, aos quais acrescentam a re- ligido, que aliés nfo praticam, simplesmente pelo fato de recor- darem que ela faz parte daquelas antiguidades. Dessa maneira, substituem a religizo por um sucedaneo com que enfeitam a alma como se enfeita uma capela privada, ornamentando-a com fdolos ttazidos de todas as partes do mundo. Ou criam sucedancos de todas as possiveis formas de experiéncia, aos quais atribuem a dignidade de santidade mistica, para traficé-los no mercado de livros. Ora, tudo isso nfo passa de uma forma de chaslatanis- mo, de maneita de se iludir a si mesmo, Hé, contudo, um outro fendmeno que nada tem de charlatanismo € que consiste, 20 con- trério, em algo muito sétio e muito sincero, embora as vezes in- terpretado, talvez falsamente, em sua significagio. Pretendo referime a esses movimentos da juventude que se vém desen- volvendo nos tiltimos anos e que tém o objetivo de dat as re- lagdes humanas, de caréter pessoal, que se estabelecem no in- tetior de uma comunidade, 0 seatido de uma relacdo zeligiosa, edsmica ou mistica. Se é certo que todo ato de verdadeira fra- ternidade pode acompanhar a consciéncia de juntar algo de im- perecivel ao mundo das relagdes suprapessoais, parece-me, 10 contrétio, duvidoso que a dignidade das relagées conunitérias possa ser realcada por essas interpretagdes religiosas. Estas con- sideragdes, contudo, nos afastam do assunto. 50 © destino de nosso tempo, que s¢ caracteriza pela raciona- lizagio, pela intelectualizacio e, sobretudo, pelo ‘“‘desencantamen- to do mundo” levou os homens a banirem da vida piblica os va- ores supremos ¢ mais sublimes. Tais valotes encontraram re- figio na transcendéncia da vida mistica ou na fraternidade das relagdes diretas ¢ reciprocas entre individuos isolados, Nada bi de fortuito no fato de que a arte mais eminente de nosso tempo G fatima e nfo monumental, nem no fato de que, hoje em dia, 86. nos pequenos circulos comunitérios, no contacto de homem a homem, em pianésimo, se encontza algo que poderia corres- ponder 20 pnewma profético que abrasava comunidades antigas fe as mantinha solidérias, Enguanto buscamos, a qualquer pte~ 0, “inventar” um novo estilo de arte monumental, somos le- vados a esses lamentéveis horrores que so 0s monumentos dos ‘iltimos vinte anos, E enguanto tentarmos fabricar intelectual- mente novas teligides, chegaremos, em nosso fntimo, na ausén- cia de qualquer nova'e auténtica profecia, a algo semelhante que terd, para nossa alma, efeitos ainda mais desastrosos. As profecias que caem das cétedras universitétias nfo tém outro resultado senio o de dar lugar a seitas de fandticos ¢ jamais produzem comunidades verdadeiras. A quem nfo é capaz de suportar virilmente esse destino de nossa época, s6 cabe dar 0 conselho seguinte: volta em silencio, sem dar a teu gesto a pu- Dlicidade habitual dos renegados, com simplicidade e recolhi- mento, 20s bragos abercos e cheios de misericérdia das velhas Tgrejas. Elas no tornaro penoso o retorno, De uma ou de outra mancira, quem retorna ser inevitavelmente compelido a fazer 0 “‘sactificio do intelecto”. E nfo serei eu quem 0 cot dene, se ele tiver, verdadeiramente, forca para fazélo. Realmen- te, aquele sacrificio, feito para dar-se incondicionalmente a uma religiio, € moralmente superior 4 arte de fugit a um claro de- ver de probidade intelectual, que se poe quando nfo existe a coragem de enfrentar claramente as escolhas iiltimas, se mani- festa, em seu lugar, inclinacéo por consentit em um relativismo precdrio, A meu ver, esse dom de si é mais louvével que todas esses profecias de universitérios incapazes de perceber claramen- te que, numa sala de aula, nenhuma virtude excede, em valot, a da probidade intelectual.’ Fssa integridade nos compele a di- zet que todos — e sio numerosos — aqueles que, em nossos dias, vivem A espera de novos profetas e de novos salvadores 51 se encontram na situagio que se desereve na bela cangio de exlio do guarda edomita, cangZo que foi incluida entre os oré- culos de Isaias: “Perguntam-me de Seir: “Vigia, que é da noite? “Vigia, que € da noite?” O vigia responde: “Vem a manhi e depois a noite. Se quereis, interrogai, Convertei-vos, voltai!”” O povo a que essas palavras foram ditas no cessou de fazer a pergunta, de viver a espera hé dois mil anos, e nds Ihe conhe- cemos 0 destino perturbador. Aprendamos a ligio! Nada se fex até agora com base apenas no fervor ¢ na espera. E preciso agit de outro modo, entregar-se a0 trabalho e responder as exi- géacias de cada dia — tanto no campo da vida comum, como no campo da vocagio. Esse trabalho seré simples ¢ fécil, se cada qual encontrar e obedecer ao deménio que tece as teias de sua vida. 52 A POLITICA COMO VOCACAO EstA CONFERENCIA, gue os senhores me pediram para fa- zer, decepcionard necessariamente ¢ por miltiplas razées. Numa palestra que tem por titulo a yocasio politica, os senhores ho de esperar, instintivamente, que eu tome posi¢ao quanto a pto- blemas da’atualidade. Ora, a tais problemas eu s6 me referiret ao fim de minha exposicgo ¢ de maneira puramente formal, quando vier a abordar certas questées que dizem respeito a significagio da atividade politica no conjunto da conduta hu: mana. Excluamos, portento, de nosso objetivo, quaisquer in- dagacées como: que politica’ devemos adotar? ou que conted- dos devemos emprestar a nossa atividade politica? Com efeito, indagagSes dessa ordem nada tém a ver com o problema geral que me proponho examinar nesta oportunidade, ou seja: que é a vocagio politica e qual o sentido que pode ela revestic? Pas- semos 40 assunto, Que entendemos por politica? O coneeito é extraordina- riamente amplo e abrange todas as espécies de atividade direti- va autOnoma, Fala-se da politica de divisas de um banco, da polftica de descontos do Reichsbank, da politica adotada por um sindicato durante uma greve; ¢ também cabivel falar da politi- ca escolar de uma comunidade urbana ou rural, da politica da diretoria que esté 2 testa de uma associagio e, até, da politica de uma esposa hébil, que procura governar seu matido. Nao darei, evidentemente, significagto to larga 20 conceit que set- vird de base as reflexGes a que nos entregaremos esta noite. Entenderemos por politica apenas a diregio do agtupamento polftico hoje denominado “Estado” ou ¢ influéncia que se exet- ce em tal sentido. ‘Mas, que € um agrupamento “politico”, do ponto de vista de um socidlogo? O que é um Estado? Sociologicamente, 0 55 Estado nio se deixa definir por seus fins, Em verdade, quase que nfo existe ume tarefa de que um agrapamento politico qual- quet nfo se haja ocupado alguma vez; de outro lado, néo é possivel referir tarefas das quais se possa dizer que tenham sem- pre sido atribuidas, com exclusividade, aos agrupamentos polf- ticos hoje chamados Estados ou que se constitutram, historica- mente, nos precursotes do Estado moderno. Sociologicamente, © Estado nao se deixa definir a nio ser pelo especitico meio que Ihe € peculiar, tal como € peculiar a todo outro agrapamento politico, ou seja, © use da coasio fisica, “Todo Estado se funda na forca”, disse um dia Trotsky a BrestLitovsk. E isso é verdede. Se s6 existissem estruturas so- ciais de que a violéncia estivesse ausente, o conccito de Estado teria também desaparecido e apenas subsistitia 0 que, no sen- tido préptio da palavra, se denomina “anarquia”, A’ violéacia nfo é, evidentemente, 0 tinico instrumento de que se vale 0 Estado — nao haja a respeito qualquer diivida —, mas € seu instrumento especifico. Em nossos dias, a relacio entre o Ex tado ea violéncia € particularmente intima, Em todos os tem- os, os agrupamentos politicos mais diversos — a comecar pela familia — recorreram & violencia fisica, tendo-a como instru- mento normal do poder. Em nossa época, entretanto, devemos conceber 0 Estado contemporineo como uma comunidade hu- mana que, dentro dos limites de determinado tertitério — a no- so de tertitério corresponde a um dos elementos essenciais do Estado — reivindica o monopélio do uso legitimo da violéncia Hisica. , com efeito, proprio de nossa época 0 nao reconhecer, em relagio a qualquer outro grupo ou aos individuos, o .direito de fazer uso da violéncia, a nfo set nos casos em que o Estado © tolere: 0 Estado se transforma, portanto, na tinica fonte do “direito” & violencia, Por politica entenderemos, conseqiiente- mente, 0 conjunto de esforgos feitos com vistas a participar do poder’ ou a influenciar a divisio do poder, seja entre Estados, seja no interior de um tinico Estado, Em termos gerais, essa definigio corresponde ao uso cor- rente do voctbulo. Quando de uma questo se diz que & “po- Itica”, quando se diz. de um ministro ou funciondrio que so “po- Iiticos”, quando se diz de uma decisio que foi determinada pela “politica”, 6 preciso entender, no primeito caso, que os interes- 56 ses de divisio, conservagio ou transferéncia do poder sao fa- tores essenciais para que se possa esclarecer aquela questo; no segundo caso, impée-se entender que agueles mesmos fatores condicionam a esfera de atividade do funciondtio em causa, as- sim como, no ultimo caso, determinam a deciséo. Todo homem, que se entrega & politica, aspira a0 poder — seja porque o con- sidere como instrumento a setvico da consecucio de outros fins, ideais ou egofstas, seja porque deseje o poder “pelo poder”, para gozar do sentimento de prestigio que cle confere. ‘Tal como todos os agrupamentos politicos que_historica- mente o precederam, o Estado consiste em uma relagio de do- minagéo do homem sobre o homem, fundada no instrumento da violéncia legitima {isto é, da violéncia considerada como le- gitima). O Estado s6 pode existit, portanto, sob condigio de que os homens dominados se submetam a autoridade continua- mente teivindicada pelos dominadores. Colocam-se, em conse- qiiéncia, as indagagdes seguintes: Em que condicdes se subme- tem eles e por qué? Em que justificagdes internas ¢ em que meios externos se apsia essa dominacio? Enxistem em principio — e comegaremos por aqui — tts razBes internas que justificam a dominagio, existindo, conse- qientemente, trés fundamentos da legitimidade, Antes de tudo, a autoridade do “‘passado eterno”, isto ¢, dos costumes santifi- cados pela validez imemorial e pelo hébito, enraizado nos ho- mens, de respeité-los. Tal € 0 “poder tradicional”, que o patti- arca ou o senor de terras, outrora, exercia, Existe, em segun- do lugar, a autotidade que se funda em dons pessoais ¢ extraor- dingrios de um individuo (catisma) — devosio ¢ confianca es- tritamente pessoais depositadas em alguém que se singulatiza por gualidades prodigiosas, por herofsmo ou por outras quali- dades exemplares que dele fazem o chefe. Tal é o poder “‘caris- mético”, exercido pelo profeta ou — no dominio politico — pelo ditigente guerteiro eleito, pelo soberano escolhido através de plebiscite, pelo grande demagogo ou pelo dirigente de um partido politico, Ezxiste, por fim, a autoridade que se impde em razio da “legalidade”, em razdo da crenca na validez de um estatuto legal e de uma “competéncia” positiva, fandada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outros termos, a auto- ridade fundada na obediéncia, que reconhece obrigacSes confor- 37 mes a0 estatuto estabelecido. Tal € © poder, como o exerce © “servidor do Estado” em nossos dias e como o exercem todos 0 detentores do poder que dele se sproximam sob esse aspecto. E dispensével dizer que, na realidade concreta, a obedién- cia dos stiditos € condicionada por motivos extremamente pode- 030s, ditados pelo medo ou pela espetanca — seja pelo medo de uma vinganca das poténcias mégicas ou dos detentores do poder, seja a esperanca de uma recompensa nesta tetta ou ei outro mundo, A obediéncia pode, igualmente, ser condicionada por outros interesses € muito vatiados. A tal assunto voltare- mos dentro em pouco. Seja como for, cada vez que se prope Jntertogacio acerca dos fundamentos que “legitimam” a obe- diéncia, encontram-se, sempre ¢ sem qualquer contestagao, essas trés formas “puras” que acabamos de indicas, Essas representagdes, bem como sua justificagéo interna, tevestem-se de grande impostincia para compreender a estru- tura da dominagio, Certo é que, na realidade, s6 muito rara- mente se encontram esses tipos puros. Hoje, contudo, nfo nos sed possivel expor, em pormenor, as variedades, transigSes ¢ combinacdes extremamente complexas que esses tipos assumem; estudo dessa ordem entra no quadro de uma “teoria geral do Estado”, No momento, voltaremos a atengio, particularmente, para © segundo tipo de legitimidade, ou seja, o poder brotado da sub- missio 20 “carisma” puramente pessoal do “chefe”, Esse tipo nos conduz, com efeito, & fonte de vocacio, onde encontramos seus tragos mais caracteristicos. Se algumas pessoas se abando- nam ao carisma do profete, do chefe de tempo de guerra, do sgtande demagogo que opera no seio da ecclesia ou do Parlamento, quer isso dizer que estes passam por estar interiormente “cha. mados” para © papel de condutores de homens ¢ que a cle se dé obediéncia nfo por costume ou devido a uma lei, mas por- que neles se deposita f€. B, se esses homens forem mais que presungosos aproveitadores do momento, viverio para seu tre balho ¢ procurario tealizar uma obta. A’ devogio de seus disci- pulos, dos seguidores, dos militantes orienta-se exclusivamente ‘para a pessoa ¢ para as qualidades do chefe. A Histéria mostra ‘que chefes carisméticos surgem em todos os dominios e em todas as épocas. Revestiram, entretanto, 0 aspecto de duas figuras 58 essenciais: de uma parte, a do mégico e do profeta ¢, de outta parte, a do chefe escolhido para dirigir a guerra, do chefe de grupo, do condottiere, Préptio do Ocidente € entretanto — ¢ isso nos interessa mais especialmente — a figura do livre “de- magogo”. Este 6 triunfou no Ocidente, em meio as cidades in- dependentes e, em especial, nas regides de civilizagio mediter- rinea, Em nossos dias, esse tipo se apresenta sob 0 aspecto do “chefe de um partido parlamentar”; continua a sé ser encontra- do no Ocidente, que € 0 ambito dos Estados constitucionais. Esse tipo de homem politico “por vocacio”, no sentido préprio do tetmo, no constitui de mancira alguma, em pafs algum, a tinica figura determinante do empreendimento politico e da luta pelo poder. O fator decisivo reside, antes, na natureza dos meios de que dispdem os homens politicos. De que modo conseguem as forgas politicas dominantes afirmar sua autoridade? Essa indagacio diz respeito a todos os tipos de dominacio vale, conseqiientemente, para todas as formas de dominagéo po- IMtica, seja tradicionalista, legalista ou carismética, Toda empresa de dominagio que reclame continuidade ad- ministrativa exige, de um lado, que 2 atividade dos sididos se oriente em funcio da obediéncia devida aos senhores que pre- tendem ser os detentores da forca legitima e exige, de outro lado © em virtude daquela obediéncia, controle dos bens mate- riais que, em dado caso, se tornem necessities pasa aplicagio da forca fisica, Dito em outeas palavras a dominacao organiza- da, necessita, por um lado, de um estedo-maior administrativo e, por outro lado, necessita dos meios materiais de gestio, estado-maior administrative, que representa externamen- te a orgenizagio de dominagio politica, tal como aliés qualquer outra organizacio, nfo se inclina a obedecer ao detentor do poder em fazo apenas’ das concepcies de legitimidade acima discuti- das. A obeditncia funda-se, antes, em duas espécieis de motivo que se relacionam a interesses pessoais: retribuigao material e ptestigio social, De uma parte, 2 homenagem dos vassalos, a prebenda dos dignitarios, os vencimentos dos atuais servidores piblicos e, de outra parte, a hoara do cavaleiro, os privilégios das ordens e a dignidade do servidor constituem a recompensa esperada; e 0 temor de perder o conjunto dessas vantagens € a razio decisive da solidatiedade que liga 0 estado-maior admi- 59 nistrativo aos detentotes do poder. E 0 mesmo acorte nos ca: de dominagéo carismética: esta proporciona, aos soldados «a gléria guerreira ¢ as riquezas conquistadas e proporciona, aos seguidotes do demagogo, 08 “despojos”, isto é a exploracéo dos administrados gracas a0 monopélio dos tributos, as peque- nas vantagens da atividade politica e as recompensas da vaidade. Para assegurar estabilidade a uma dominagio que se ba- seia na violencia fazem-se necessétios, tal como em uma empresa de carter econémico, certos bens materiais. Desse ponto de vista, é possivel classificar as administragdes em duas categozias, ‘A primeira obedece ao seguinte principio: 0 estado-maior, os fun- cionérios ou outros magistrados, de cuja obediéncia depende o detentor do poder, sio, eles préprios, os proprietétios dos ins- trumentos de gestio, instrumentos esses que podem ser recursos financeiros, edificios, material de guerra, parque de velculos, cavalos etc. A segunda categoria obedece a principio oposto: 0 estado-maior € “privado” dos meios de gesto, no mesmo sen- tido em que, na época atual, o empregedo e 0 proletério sio “‘privados” dos meios materiais de produgéo numa empresa ca- pitalista. 1, pois, sempre importante indager se o detentor do poder dirige e organiza a administragéo, delegando poder exe- cutivo a servidores ligados a sua pessoa, a empregados que ad- mitiu ou a favoritos ¢ familiares que no so proprietérios, isto 6, que nio so possuidores de pleno direito dos meios de gestio ou se, pelo contririo, a administracio est nas mios de pessoas economicamente independentes do poder. Essa diferenca € ilus- trada por qualquer das administragées conhecidas. Daremos © nome de agrupamento organizado “segundo. 0 princfpio das ordens” ao agrupamento politico no qual os meios materiais de gestio so, total ou parcialmente, propriedade do estado-maior administrativo. Na sociedade feudal, por exemplo, © vassalo pagava, com seus prdprios recursos, as despesas. de administragio e de aplicagio da justica no tertitério que lhe havia sido confiado e tinha a obrigacio de equipar.se © apro- visionarse, em caso de guerra. E da mesma forma procediam os vassalos que a cle estavam subordinados, Essa situacio tinha alguns efeitos no que se refere ao exercicio do poder pelo suze- rano, de vez que o poder deste fundava-se apenas no juramento pessoal de fidelidade e na citcunstincia de que a “legitimida- 60 de” da posse de um feudo ¢ honra social do vassalo derivavam do suzerano. Contudo, encontra-se também disseminado, mesmo entre as formagées politicas mais antigas, 0 domfnio pessoal do chefe. Busca este transformarse no dominador da administragio entre- gando-a a siiditos que a ele se ligam de maneira pessoal, a es- cravos, a servos, a protegidos, a favoritos ou a pessoas a quem cle assegura vantagens em dinheiro ou em espécie, O chefe en- frenta as despesas administrativas langando mio de seus préprios bens ow disttibuindo as rendas que seu patrimdnio proporcione ¢ cria um exército que depende exclusivamente de sua autoti- dade pessoal, pois que ¢ equipedo e suptido por suas colheitas, armazéns ¢ arsenais. No ptimeiro caso, no caso de um agru- pamento estruturado em “Estados”, 0 soberano sb consegue g0- vernat com o auxilio de uma aristocracia independente ©, em razio disso, com ela patilha do poder. No segundo caso, o governante busca apoio em pessoas dele diretamente dependen- ‘tes ou em plebeus, isto € em camadas sociais desprovidas de fortuna e de honra social prépria, Conseqiientemente, estes «l- timos, do ponto de vista material, dependem inteiramente do chefe e, principalmente, no encontram apoio em nenhama ou- tra espécie de poder capaz de contrapor-se a0 do soberano, ‘To- dos 08 tipos de poder patriarcal ¢ patsimonial, bem como o des- potismo de um sultéo e os Estados de estratura burocritica fi- Tiam-se a essa wiltima espécie — e insisto muito particularmente no Estado butoctético por ser ele 0 que melhor caracteriza o de- senvolvimento racional do Estado moderno. De modo geral, o desenvolvimento do Estado moderno tem por ponto de partida 0 desejo de o principe expropriar os pode- res ‘‘ptivados” independentes que, a par do seu, detém forca administrativa, isto é todos os proprietirios de meios de ges- to, de recursos financeitos, de instrumentos militares e de quaisquer espécies de bens suscetiveis de utilizasio para fins de cardter politico. Esse processo se desenvolve em paralelo perfeito com 0 desenvolvimento da empresa capitalista que do- mina, a pouco e pouco, os produtores independentes, E nota-se enfim que, no Estado moderno, 0 poder que dispée da totali- dade dos meios politicos de gestfo tende a reunir-se sob mio Yinica. Funciondrio algum permanece como proprietério pes- 61 soal do dinheiro que ele manipula ou dos edificios, reservas € miquinas de guerra que ele controla. O Estsdo moderno — e isto é de importancia no plano dos conceitos — conseguiu, portanto, e de maneita integral, “privat” a direcio administrati- va, 0s funciondrios ¢ trabalhadores burocriticos de quaisquer meios de gestio, Nota-se, a essa altura, o surgimento de um proceso inédito, que se desenrola a nossos olhos ¢ que ameaca expropriar do expropriador os meios politicos de que ele dis- poe e 0 seu poder politico. Tal é, a0 menos aparentemente, a consegiiéncia da revolugio (alema de 1918), na medida em que novos chefes substituiram as autoridades estabelecidas, em que se apossaram, por usutpagio ou eleig&o, do poder que controla © conjunto administrative ¢ de bens materiais e na medida em que fazem derivar — pouco importa com que dircito — a legi- timidade de seu poder da vontade dos governados. Cabe, en- tretanto, indagar se esse primeiro éxito — ao menos aparente — permitirs que a revoluggo alcance o dominio do aparelho econémico do capitalismo, cuja atividade se orienta, essencial- mente, de conformidade com leis inteiramente diversas das que regem’ a administracdo politic. Tendo em vista meu objetivo, limitar-me-ei a registrar esta constatago de ordem puramente conceitual: 0 Estado moderno é ui agrupamento de dominacio que apresenta cardter institucional e que procurou (com éxito) monopolizar, nos limites de um territ6rio, @ violencia fisica egitima como instrumento de dom{nio ¢ que, tendo esse obje- tivo, reuniu nas mios dos dirigentes os meios materiais de ges- tio. Equivale isso a dizer que 0 Estado moderno expropriou todos os funcionérios que, segundo o principio dos “Estados” dispunham outrora, por direito proprio, de meios de gestio, substituindo-se a tais funcionérios, inclusive no topo da hierarquia. Sem embargo, 20 longo desse processo de expropriagio que se desenvolveu, com éxito maior ou menor, em todos os pafses do globo, nota-se 0 aparecimenta de uma nova espécie de “‘po- Mticos profissionais”. ‘Trata-se, no caso, de uma categoria nova, que permite definir o segundo sentido dessa expressio. Vemo- clos, de inicio, colocarem-se a servigo dos principes. Nao tinham 2 ambigZo dos chefes catisméticos e nfo buscavam transformar- -se em senhores, mas empenhavam-se na uta politica para se colocarem 4 disposigo de um principe, na gestio de cujos in- teresses politicos encontravam ganhe-pio e conteédo moral para 62 suas vidas, Uma vez mais, € s6 no Ocidente que encontramos essa categoria nova de politicos profissionais a servigo de pode- es outros que no o dos principes. Nao obstante, foram eles, em tempos passados, o instrument mais importante do poder dos principes da expropriagéo polftica que, em beneficio des- tes, se processava. Antes de entrar em potmenores, tentemos compreender claramente, sem equivocos € sob todos os aspectos, a significa- io do aparecimento dessa nova espécie de “homens politicos profissionais”. Sao possiveis miiltiplas formas de dedicagio a politica —e € 9 mesmo dizer que & possivel, de muitas manei- ras, exercer influéncia sobre a divisio do poder entre formagées politicas diversas ou no interior de cada qual delas, Pode-se exercitar a politica de maneira “ocasional”, mas & igualmente possivel transformar a politica em profissio secundéria ou em profisséo principal, exatamente como ocorze na esfera da ativi- dade econdmica. ‘Todos exercitamos “ocasionalmente” a politi- ca ao introduzirmos nosso voto em uma urna ou a0 exprimir- mos nossa vontade de maneira semelhante, como, por exemplo, manifestando desaprovaso ou acordo no curso de uma reuniio “politica”, pronunciando um discurso “politico” ete. Alis, para numerosas pessoas, 0 contacto com a politica se reduz a esse género de manifestagSes. Outros fazem da atividade politica a profissio “secundaria”. “Tal & 0 caso de todos agueles que de- sempenham o papel de homens de confianga ou de membros dos partidos politicos e que, via de regra, s6 agem assim em caso de necessidade, sem disso fazerem “vida”, nem no sentido material, nem no sentido moral, ‘Tal é também o caso dos integrantes de conselhios de Estado ou de outros drgios consultivos, que s6 exercem atividades quando provocados. Tal é, ainda, 0 caso de numerosissimos parlamentares que s6 exercem atividade politica durante o periodo de sessdes. Esse tipo de homem politico era comum outrora, na estruturagio por “ordens”, propria do anti- go regime. Por meio da palavra “ordens”, indicamos os que, por direito pessoal, eram proprietérios dos'meios materiais de gestio, fossem de carter administrative ou militar, ou os be- neficidrios de privilégios pessoais. Ora, grande parte dos mem- bros dessas “ordens” estava longe de consagrar totalmente, ou ‘mesmo precipuamente, a vida & politica; & politica s6 se ded cavam ocasionalmente. Ngo encaravam suas prerrogativas senéo 63 como forma de assegurar rendas ou vantagem pessoal. No in- terior de seus préprios agrupamentos, s6 desenvolviam stivida- de politica nés ocasioes em que seus suzeranos ou seus pares lhes ditigiam solicitasdo expressa. E 0 mesmo se dava com selagéo ‘2 uina importante fragio das forcas auxiliares que o principe colocava a seu serviso, para transformé-la em instrumento na luta que ele travava com o tito de constituir uma orgenizacéo poll- tica a ele pessoaimente devotada, Os “conselheiros privados” integravam-se a essa categoria, bem como a ela também se in- tegrava, remontando no tempo, grande parte dos conselheiros que se assentavam nas curias ou em outros Stgios consultives a servigo do principe. Evidentemente, entretanto, esses auxi- liares que 66 ocasionalmente se dedicavam 4 politica oa que nela viam tio-somente uma atividade secundaria estavam longe de astar ao principe. Nao lhe restava, portanto, outra alterna- tiva senio a de buscar rodearse de um corpo de colaboradores inteira ¢ exclusivamente dedicados & sua pessoa e que fizessem da atividade politica sua principal ocupagio. Naturalmente que fa estrutura da organizacio politica da dinastia nascente, assim como a fisionomia da civilizasio examinada, dependeré muito, em todos 05 casos, da camada social onde o principe v4 recrutar seus agentes. E o mesmo cabe dizer, com mais forte razio, dos agrupamentos politicos que, apés a abolicdo completa ou = Ii mitagio considerdvel de poder senhorial se constituam politi camente em comunas “livres” — livres nfo no sentido de fuga 20 dominio através de recursos a violéncia, mas no sentido de auséncia de um poder senhorial ligitimado pela tradigio e, muito freqiientemente, consagrado pela religifo e considerado como fonte tinica de qualquer autoridade. Historicamente, essas co- munas 36 se desenvolveram no mundo ocidental, sob « forma primitiva da cidade etigida em agrupamento politico, tal como a vemos surgir, pela primeira vez, no Ambito da civilizagio me- diterranes. * duas maneiras de fazer politica. Ou se vive “para” politica ou se vive “da” politica. Nessa oposicio no hd nada de exclusive. Muito a0 contrétio, em geral se fazem uma © foutra coisa ao mesmo tempo, tanto idealmente quanto na prd- tica. Quem vive “para” a politica a transforma, no sentido 4 mais ptofundo do termo, em “fim de sua vida”, seja porque encontra forma de gozo na simples posse do poder, seja porque © exercicio dessa atividade lhe permite achar equilibrio interno ¢ exptimir valor pessoal, colocando-se a servigo de uma ‘‘causa” que dé significacéo a sua vida. Neste sentido profundo, todo homem sério, que vive para uma causa, vive também dela, Nossa distingio sssentase, portanto, num aspecto extremamente impor- tante da condigio do homem politico, ou scja, 0 aspecto econé- mico. Daquele que vé na politica uma permanente fonte de rendas, diremos que “vive da politica” ¢ diremos, no caso con- trério que “vive para a politica”. Sob regime que se funde na propriedade privada, € necessétio que se renam certas con digies, que os senhores poderio considerar triviais, para que, no sentido mencionado, um homem possa viver “‘para” a poll tica. O homem politico deve, em condigées normais, ser econo- micamente independente das vantagens que @ atividade politica Ihe possa proporcionar. Quer isso dizer que Ihe & indispensével possuir fortuna pessoal ou ter, no ambito da vida privada, tuagdo suscetivel de the assegurar ganhos suficientes. Assim deve ser, pelo menos em condigSes notmais, pois que os segui dotes do chefe guerreiro dio tio pouca importancia as condi ges de uma economia normal quanto os companheiros do agita- dor revolucionétio, Em ambos os casos, vive-se apenas da pre- sa, dos roubos, dos confiscos, do curso forgado de bénus de pa- gamento despidos de qualquer valor — pois que tudo isso é, no fundo, a mesma coisa, Tais situag6es so, entretanto, necessa- riamente excepcionais; na vida econdmica de todos os dias, 96 a fortuna pessoal asseguta independéncia econémica. O.homem polftico deve, além disso, ser “economicamente disponivel”, equi- valendo a afirmacéo a dizer que ele nio deve estar obrigado a consagrar toda a sua capacidade de trabalho e de pensamento, constante e pessoalmente, @ consecugio da prépria subsisténcia, Ora, em tal sentido, o mais “dispontvel” € 0 capitalista, pessoa que recebe rendas sem nenhum trabalho, seja porque, A seme- Thanga dos grandes senhores de outrora ou dos grandes proprie- térios ¢ da alta nobreza de hoje, ele as aufere da exploracéo imo- bilidria — na Antigiiidade e na Tdade Média, também os escra- vvos servos representavam fontes da renda —, seja porque as aufere em razio de titulos ou de outras fontes andlogas, Nem © operdrio, nem muito menos — ¢ isso deve ser particularmen- 65 te sublinhado’— 0 modetno homem de negécios e, sobretudo, © grande homem de negécios sio disponiveis no sentido men: cionado. O homem de negécios esté ligado a sua empresa ¢, portanto, nao se encontra disponivel © muito menos dispontvel estdo que se dedica a atividades industriais do que © dedicado a atividades ageicolas, pois que este € bencticiado pelo cardter sazonal da agricultura. Na maioria das vezes, o homem de ne- gécios tem dificuldade para deixar-se substivuir, ainda que tem- porariamente, O mesino ocorre com relagio a0 médico, tanto menos dispontvel quanto mais eminente mais consultado. Por motivos de pura técnica profissional, as dificuldades ja se mos- tram menores no caso do advogado, 0 que explica a circunstin- cia de ele ter desempenhado, como homem politico profissio- nal, papel incomparavelmente maior ¢, com freqiiéncia, prepon- derante. Nio se faz necessétio, entretanto, estender ainda mais esta casuistica; mais conveniente & deixar claras algumas conse- qincias do que se acabou de expor, © fato de um Estado ou de um partido serem dirigidos por homens que, no sentido econémico da palavra, vivam exclusiva. mente para a politica e no da politica significa, necessariamente, que as camadas ditigentes so recrutadas segundo critério “plu tocrético”. Fazendo essa assergio, nfo pretendemos, de manei- ra alguma, dizer que a direcao plutocrética nao busque tirar van- tagem de’ sua situa¢io dominante, com o objetivo de também viver “da” politica, explorando essa posisio em beneficio de seus intereses econdmicos. Claro que isso ocorre, Nao hé ca madas dirigentes que no tenham sido levadas a essa explora- fo, de uma ou de outra maneira, Nossa assergio significa sim- plesmente que os homens politicos profissionais nem sempre se véem compelidos a reclamar pagamento pelos servigos que em tal condigio prestam, ao passo que 0 individuo desprovido de fortuna est sempre obrigado a tomar esse aspecto em considera- Gio. De outra parte, nao é de nossa intencio insinuar que os ho- mens politicos desprovidos de fortuna tenham como tinica preo- cupacio, durante 0 curso da atividade politica, obter, exclusiva: mente ou mesmo principalmente, vantagens econdmices ¢ que eles nfo se preocupem ou nao considerem, em primeiro lugar, a causa a que se dedicaram, Nenhuma afirmagio seria mais falsa que a feita em tal sentido, Sabese, por experiéncia, que a preocupagio com a “seguranga”” econdmica é, com efeito — de 66 maneita consciente ou nio — o ponto cardial na orientagio da vida de um homem que jé possui fortuna. O idealismo politico, que no se detém diante de nenhuma consideragdo e de nenhum principio, € praticado, se nfo exclusivamente, a0 menos princi- fpalmente, por individuos que, em razéo da pobreza, estio & margem das camadas sociais interessadas na manutengao de cer- ta ordem econémica em sociedade determinada, Eo que se nota especialmente em perfodos excepcionais, revolucionétios. Tudo que nos interessa realcar é entretanto o seguinte: o recru- tamento nao plutoctético do pessoal politico, sejam chefes ou seguidores, envolve, necessariamente, a condigio de a organiza do politica assegurat-lhe ganhos regulates e garantidos, Nunca existem, portanto, mais de duas possibilidades. Ou a ativida de politica se exerce “honorificamente” ¢, nessa hipdtese, so- mente pode set exercida por pessoas que sejam, como se cos- tuma dizer, “independentes”, isto é, por pessoas que gozam de fortuna pessoal, traduzida, especialmente, em termos de rendi- mentos; ou as avenidas do poder so sbertas a pessoas sem fortuna, caso em que a atividade politica exige remuneragio. © bomem polftico profissional, que vive “da” politica, pode ser um puto “beneficiério” ou’ um “funciondrio” remunetado. Em outras palavras, cle receberd rendas, que so honordrios ou emolumentos por setvicos determinados — no pasando a got- jeta de uma forma desnaturada, irregular ¢ formalmente ilegal dessa espécie de renda — ou que assumem a forma de xemune- rago fixada em dinheiro ou espécie ov em ambos ao mesmo tempo, © politico pode revestir, portanto, a figura de um “em- preendedor”, a maneira do condottiere, do meeito ou do com- prador de carga ou revestir 0 aspecto de boss norte-americano que encara suas despesas como investimentos de capital, que ele transforma em fonte de lucros, mercé da exploracéo de sua influéncia politica; ou pode ocorrer que cle simplesmente rece- ba uma remuneracao fixa, tal como se dé com 0 redator ou se erétario de um partido, com 0 ministro ou funcionério politico modernos. A compensacéo tfpica outrora outorgada pelos prin- cipes, pelos conquistadores vitotiosos ou pelos chefes de par tido, quando triunfantes, consistia em feudos, doacéo de tertas, prebendas de todo tipo e, com o desenvolvimento da economia financeira, traduziv-se, mais particularmente, em gratificagées. Em nossos dias, sio empregos de toda espécie, em partidos, em 67 jornais, em cooperativas, em organizacdes de seguro social, em municipalidades ou na administragio do Estado — distribuidos pelos chefes de partido a seus partidérios, pelos bons ¢ leais ser- vigos prestados. As lutas partidétias nfo so, portanto, apenas Tutas para consecucio de metas objetivas, mas sfo, a pat disso, ¢ sobretudo, rivalidades para controlar a distribuigdo de empregos. Na Alemanha, todas as lutas entre as tendéncias particula- ristas ¢ as tendéncias centralistas giram, também ¢ principalmen- te, em torno desse ponto. Que poderes itio controlar a dis- tribuigdo de empregos — os de Berlim ou, a0 contritio, os de Munich, de Karlsruhe ou de Dresde? Os partidos se irritam muito mais com arranhies a0 direito de distribuigio de empre- gos do que com desvios de programas. Na Franca, um movi- ‘mento municipal, fundado nas forcas tespectivas dos partidos politicos, sempre’ foi considerado perturbasio mais importante do que uma alteragio no programa governamental e, com efeito, suscitava agitacdo maior no pais, dado que, geralmente, 0 pro: grama de governo tinha significagio apenas verbal, Numerosos partidos politicos, notadamente nos Estados Unidos da América do Norte, transformaram-se, depois do desaparecimento das ve- has divergéncias a propésito de interpretagio da Constituicio, fem organizagies que $6 se dedicam 4 caga aos empregos € que modificam seu programa concreto em funcao dos votos que haja por captar. Na Espanha, pelo menos até os uiltimos anos, os dois partidos se sucediam no poder, segundo um principio de alternincia consentida, sob a cobertura de cleigées “préfabrica. das” pelas altas diregdes, com o fim de permitir que os partidé- ios dessas duas organizagées se beneficiassem, alternadamente, das vantagens propiciadas pelos postos administrativos. Nos ter- ritérios das antigas coldnias espanholas, as ditas “cleigdes” ¢ as ditas “tevolugées” nfo tiveram outro objetivo se no o de dis- por da vasilha de manteiga de que os vencedores esperavam servirse. Na Suica; os partidos pacificamente repartem entre si os empregos, segundo o princfpio da distribuicio proporcio- nal. Aliés, mesmo na Alemanka, certos projetos de constitui- Gio ditos “revolucionatios” como, por exemplo, o primeiro pro- jeto elaborado em Baden, propdem estender o sistema suigo 2 distribuigdo dos cargos ministetiais ¢, conseqiientemente, consi- detam o Estado e os postos administrativos como instituigées destinadas a simplesmente proporcionar prebendas. Foi espe- 68 Gialmente 0 partido do Centro que se entusiasmou com proje tos desse tipo e, em Baden, chegou a inscrever em sew progra ma a aplicagio do principio de distribuigao proporcional de car- gos segundo as confissGes religiosas, sem se_preocupat com a capacidade politica dos futuros dirigentes. Tendéncia idéntica se manifestou em todos os demais partidos, com o aumento crescente do niimero de cargos administrativos que se deu em conseqiiéncia da generalizada burocratizagio, mas também se deu por causa da ambigéo crescente de cidadios atraidos por ‘uma sinecura administrativa que, hoje em dia, se tornou espé- cie de seguro especifico para 0 futuro, Dessa forma, aos olhos de seus aderentes, os partidos aparecem, cada vez mais, como uma espécie de trampolim que lhes permitirs atingit este obje- tivo essencial: garantir 0 futuro, ‘A essa tendéncia opde-se, entretanto, 0 desenvolvimento moderno da fungéo piblica que, em nossa época, exige um cor- po de trabalhadores intelectusis especializados, altamente quali ficados © que se preparam, a0 longo de anos, para o desempe- nho de sua tarefa profissional, estando animados por um sen- timento muito desenvolvido de’ honra corporativa, onde se acen- tua o capitulo da integtidade, Se tal sentimento de honta nao existisse entre os funciondrios, estaziamos ameagados por uma cortupgio assustadora © no escapariamos ao dominio dos filis- teus, Estaria em grande perigo, ao mesmo tempo, o simples rendimento técnico do aparelhamento estatal, cuja importancia econémica se acentua crescentemente € no deixaté de crescer, sobretudo se consideradas as tendéncias atuais no sentido de so- cializagéo, Mesmo nos Estados Unidos da América do Norte, onde, em épocas passadas, se desconhecia a figura do funciond- rio de cazreira ¢ onde o diletantismo administrative dos politicos deformados permitia que, em fungio do acaso de uma eleicio presidencial, fossem substitufdas varias centenas de milhares de funciondtios, mesmo nos Estedos Unidos da América do Norte, repitamos, @ antiga forma de recristamento foi, de hé muito, superada pela Civil Service Reform. Na otigem dessa evolugio, enconteam-se exigéncias imperio- sas, de ordem técnica exclusiva, Na Europa, a funcio piblica, organizada segundo o principio da divisio do trabalho, desen- volvew-se progressivamente, ao longo de processo que se esten- 69 de por meio milhar de anos. As cidades ¢ condados italianos foram os ptimeiros a tomatem por essa via; e, no caso das mo- narquias, esse primeiro lugar foi tomado pelos Estados conquis- tadores normandos. © passo decisivo foi dado relativamente A gestdo das fizancas do principe, Os obstéculos surgidos quan- do das reformas administrativas levadas a efcito pelo Imperador Max permitem-nos compreender quanto foi diffcil para os fun cionétios, mestno sob pressio de necessidade extrema e sob ameaga turca, privar 0 soberano da gestio financeita, embora esse campo seja, sem ciivida, 0 menos compativel com 0 dile- tantismo de um principe que, por aquela época, aparecia, ainda e antes de tudo, como um cavaleito, Razio idéntica fazia com que o desenvolvimento da técnica militar impusesse a presenca de um oficial de carreira e 0 aperfeisoamento do processo judi- cidrio reclamasse um jutista competente. Nesses trés dominios —0 financeito, 0 do exército e o da justica — os funcionétios de carreira triunfaram definitivamente, nos Estados evolufdos, da- rante 0 século XVI, Dessa maneita, paralelamente ao fortale- cimento do absolutismo do principe em relagao as “ordens”, ocorreu sua progressiva abdicagio em favor dos funcionérios que haviam, precisamente, auxiliado o principe a alcangar vitéria so- bre as “ordens”. A par dessa ascensio de funcionérios qualificados, eta pos- sfvel constatar — embora com transigées menos claras — uma ‘outra evolusio envolvendo os “dirigentes politicos”. Desde sem- pre e em todos os paises do mundo, houve, evidentemente, con- selheiros reais que gozatam de grande autoridade. No Oriente, a necessidade de reduzir tanto quanto possivel a responsabilida- de pessoal do sultio, com o fito de assegutar 0 éxito de seu rei- nado, conduziu a criagio da figura tipica do “grio-vizir”. No Ocidente, a0 tempo de Carlos V — que foi também o tempo de Maquiavel — a influéncia que, sobre os circulos especializa dos da diplomacia, exerceu a Icitura apsixonada dos relatérios de embaixadores transformou a atividade diplomética numa atte de Connoisseurs. Os aficcionados dessa nova arte, formados, em sua maioria, dentro dos quadros do humanismo, conside- ravam-se como uma categoria de especialistas, & semelhanga dos Ietrados da China do baixo periods, o perfodo da divisio do pais em Estados miltiplos. Foi, entretanto, a evolugéo dos re- gimes politicos no sentido do constitucionalismo 0 que permi- 70 tiu sentir, de maneira definitiva utgente, uma otientagio for- malmente unificada do conjunto da politica, inclusive a politica interna, sob a égide de um s6 homem de Estado. Sempre hou- ve, por certo, fortes personalidades que ocuparam a posigio de conselheiros ou — em verdade — a de guia do principe. Nao obstante,. a organizagio dos poderes piblicos havia, primitiva- mente, seguido via diversa daquela que acabamos de assinalar, tendo ocorrido esse fato mesmo nos Estados mais evoluidos. Nota-se, com efeito e desde logo, a constituigéo de tim corpo administrative supremo, de cardter colegiado, Em teoria, embo- 1a com freqiiéncia cada vex menor na pritica, esses organismos reuniamse sob presidéncia pessoal do principe, tnico a tomar decisdes, Através de tal sistema, que deu origem as propostas, contrapropostas e votos segundo 0 principio da maioria e, a pat disso, devido a0 fato de que o soberano, além de recorrer as supremas instincias oficiais, apelava a homens de confianca, a le pessoalmente ligados — 0 “gabinete” —, por cujo inter- médio tomava decisées em resposta as resolugées dos Conselhos de Estado ou de outros érgios da mesma espécie (sem importar © nome que recebessem) — 0 principe, que se colocava cada vex mais na posigio de um diletante, julgou poder escapar & importincia inexoravelmente crescente’ dos funcionétios especia- lizados ¢ qualificados, retendo em suas mos a diresio mais alta. Percebe-se, por toda parte, essa luta latente entre os fancioné- rios especializados e a autocracia do principe. Esse estado de 6 se alterou com o surgir dos parla- mentos ¢ das aspiragdes politicas dos chefes dos partidos ps lamentares. Embora as condigdes desse novo desenvolvimento fosscm diferentes nos diferentes paises, conduzitam, nfo obstan- te, a um resultado aparentemente idéntico, Com algumas nuan- cas, € certo. Assim, em todos os lugares onde as dinastias con- seguiram conservar um poder verdadeiro — na Alemanha, no- tadamente —, os intetesses do principe se aliaram aos dos fun- cionérios, contra as pretensdes do Parlamento e suas aspiragies 20 poder. Os funciondtios tinham, com efeito, interesse na pos- sibilidade, aberta a alguns, de ascender a postos do executivo, inclusive os de ministro, que se transformavam, desse modo, em posigo superior da carreira. De sua parte, o monarca tinha interesse em poder nomear os ministros a seu bel-prazer ¢ de es- colhé-los entre os funcionérios a ele devotados, E havia, entim, 71 ‘um interesse comum dessas partes no assegurar unidade de di- regio politica, vendo surgirein condigées de enfrentar o Parla- mento sem ciséo interna: tinham essas partes interesse, portan- to, em substituir o sistema colegiado por um chefe de gabinete que exprimisse a unidade de vistas do ministério. Acrescente- -se que, para manter-se ao abrigo des sivalidades entre partidos dos eventuais ataques desses partidos, o monarca tinha neces- sidade de conter com um responsdvel vinico, em condigdes de Ihe dar cobertura, isto é com um homem que pudesse dat ex- plicagies aos patlamentares, opor-se aos projetos que estes apre- sentassem ow negociar com os partidos, ‘Todos esses. diversos interesses agiram conjuntamente ¢ num mesmo sentido, con duzindo 3 autoridade unificada de um ministeo-funcionétio. O proceso de desenvolvimento do poder parlamentar teve, contu- do, conseqiiéncias ainda maiores no sentido de unificacio quan- do, como na Inglaterra, 0 Parlamento conseguiu sobrepor-se a0 monarca, Em tal caso, 0 “gabinete”, tendo a frente um dirigen- te parlamentar nico, 0 “lider”, assumiu a forma de uma comis- so que se apoiava exclusivamente em seu priptio poder, de- tendo, no pafs, uma forsa real, embora ignorada nas leis, a sa- bet, a forsa do partido politico que, na ocasiao, contava com maioria no Parlamento, Deixaram, portanto, os organismos co- legiados oficiais de ser 6rgio do poder politico dominante — que havia passado aos partidos — e, consegiientemente, nao po- diam permanecer como resis detentores do governo, "Para ter condigdes de afirmar sua sutoridade interna ¢ de orientar a po- Iftica exterior, 0 partido dirigente necessitava, antes de tudo, de um 6rgi0 diretor composto unicamente pelos verdadeiros ditigentes do partido, « fim de estar em condigdes de manipular confidencialmente os negécios. Esse drgéo era, precisamente, 0 gabinete, Contudo, aos olhos do piblice , em especial, aos olhos do piblico parlamentar, havia um chefe tinico responsé- vel por todas as decisdes: 0 chefe do gabinete, Somente nos Estados Unidos da América e nas democracias por eles influen- ciadas € que se adotou sistema totalmente diverso, consistente em colocar 0 chefe do partido vitorioso, eleito por sufrégio uni- versal direto, a frente do conjunto de funcionérios por ele no- meados, dependendo da autorizasio do Parlamento apenas em matéria de orgamento e de legislacio. 72 ‘A evolucfio, 20 mesmo tempo em que transformava a po- Kitica em uma “emprésa”, ia exigindo formagéo especial daque- les que participavam da luta pelo poder e que aplicavam os mé- todos politicos, tendo em vista os princfpios do partido moderno. A evolucio conduz, assim, a uma divisdo dos funcionérios em duas categorias: de um lado, os funcionérios de carreira e, de outro, os funciondrios “politicos”. Nao se trata, por certo, de uma distinggo que faga estanques as duas categorias, mas ela 6, no obstante, suficientemente nitida. Os funciondrios “politicos”, no sentido préprio do termo, sio, regra geral, xeconhectveis ex- ternamente pela circunstincia de que & possivel deslocé-los a vontade ou, pelo menos “coloci-los em disponibilidade”, tal como ocorre com os préfets na Franca ou com funciondtios do mesmo tipo em outros paises. Tal situagio & radicalmente diversa da que tém os funcionérios de carreita de magistratura, estes “inamoviveis”. Na Inglaterra, € possivel incluir na cate- goria de funcionétios politicos todos os que, por forga de con- vengio estabelecida, sbandonam seus postos, quando tem lugar uma alteragao da maioria parlamentar e, por conseqiiéncia, uma reforma do gabinete. Assim ocorre, habitual e especialmente, em relagio aos funcionérios cuja incumbéncia é a de velar pela “administracio interna”, que €, essencialmente, “politica”, im- portando, antes de tudo, em manter a “ordem” no pats ¢, por- tanto, em manter © existente equilibtio de forgas. Na Prissia. apés 0 ordenamento de Puttkamer, os funciondtios, sob pena de serem chamados A ordem, eram obrigados a “tomar a defesa da politica do governo” e,'& semelhanca dos préfets na Franga eram utilizados como instrumento oficial para influenciar as elei- ges. No sistema alemao, contudo — contrariamente 20 que se dé em outros paises — a maioria dos funcionétios “politicos” ficava submetida a uma regra que se aplicava ao conjunto de funcionérios, ou seja a de que 0 acesso as fungdes administrati- vas esté sempre ligado a diplomas universitérios, a exames pro- fissionais e a estégio preparatétio. Essa caracteristica especifica dos funciondrios modernos nao tem vigéncia, na Alemanha, no que se refere aos chefes da organizacio politica, isto é, aos mt nistros. Sob o regime antigo, j4 era possivel, na Prissia, que alguém se tornasse ministro dos cultos ou da instrugio, sem ter jamais freqientado um estabelécimento de ensino superior, a0 73 asso que, em principio, a posigio de conselheiro especial * sé estava aberta a quem houvesse obtido aprovagio nos exames prescritos. Um chefe de divisio administrativa ministerial ou conselheiro especial estavam, portanto e naturalmente — a0 tempo em que Althoff ocupava a pasta da Educagio na Prissia — muito mais bem informados do que os chefes de Departamen- to acerca dos problemas técnicos conctetos, afetos a esse depar- tamento, E nao era diferente o estado de coisas na Inglaterra. Tal a razio por que o funcionério especializado & a mais pode- rosa personagem no que diz respeito aos trabalhos em curso. Em verdade, uma situagéo dessas nada tem, por si mesma, de absurda. O ministro é, acima de tudo, o representante da cons- telacio politica instalada no poder; cabelhe, portanto, por em pritica © programa da constelagio de que faz parte, julgando, em fungio de tal programa, as propostas que Ihe sio oferecidas pelos funciondrios especializados ou dando a seus subordinados as diretrizes politicas conformes a linha de seu partido. ‘Numa empresa privada, tudo se passa de maneira semelhan- te. O verdadeiro soberano, ow seja, a assembléia de acionistas esté, numa empresa ptivada, tio desprovida de influéncias so- brea gestio dos negécios quanto um “povo” ditigido por fun- ciondtios especializados. As pessoas que tém poder de decisio no que se refere a politica da empresa, isto é, os membros do “conselho de administragéo”, dominadas pelos bancos, nao fa- zem mais que tragar as ditetivas econémicas e designar quem seja competente para ditigir 2 empresa, pois que elas proprias nao tém aptidao para gerila tecnicamente. Desse ponto de vista, é evidente que nfo constitui novidade alguma a estrutura atual do Estado revoluciondtio, que entrega a diregio adminis. trativa a verdadeitos diletantes, apenas porque estes dispéem de metralhadoras, e¢ que nfo vé nos funciondrios especializados mais que simples agentes executivos. Nao , portanto, por esse Jado, mas por outro que se impde buscar as causas das dificulda- des enfrentadas pelo sistema atual. Nao temos intencio, entre- tanto, de abordar esse problema em nossa palestra de hoje. * * No original Vortragender Rat, alto funcionétio ministerial encar- regado da aptesentagio petiddica de ‘relatérios acerca das atividades do rio em que servia 74 Convém, agora, dirigir nossa atengio para os tragos. par- ticulares dos ‘politicos profissionais, tanto os que detém posigio de chefia, quanto seus seguidores. Aquéles tragos se tm al- terado com o decurso do tempo e, ainda hoje, apresentam ma- tizes: variados. Como jé fizemos noter, os “politicos profissionais” surgi- ram, outrora, da lata que opunha o principe as “ordens” ¢ logo se colocaram a servigo do primeiro. Examinemos, brevemente, 0s principais tipos. Para Iutar contra as ordens, o principe buscou apoio nas camadas sociais politicamente disponiveis ¢ no comprometidas com’as mesmas ordens. A essa categoria pertenciam, em prime 0 lugar, os clétigos, tanto nas Indias orientais como nas oci dentais, na China e Japio, na Mongélia dos Lamas e nos paises ctistéos da Tdade Média." Havia, para isso, uma razio técnica: tratava-se de pessoas que sabiam escrever. Recorreu-se aos bri manes, aos sacerdotes budistas, aos Lamas ou aos bispos e sa- cerdotes, porque neles se encontrava um pessoal administrative potencial capaz de expressar-se por escrito e suscetivel de ser utilizado pelo imperador, pelos principes ou pelo khan na huta que travavam contra a aristocracia. O sacerdote, e muito par- ticularmente o sacerdote celibatatio, colocavase & margem da agitagio provocada pelo choque de interésses politicos e econdmi- cos préprios da época e, sobretudo, nao estava tentado, como © vassalo, a conquistar, em detrimento de seu senhor e no in- teresse de seus descendentes, poder politico préprio, Por sua condicio social, 0 sacerdote estava “privado” dos meios de ges- Go, dentro do sistema administrativo do. principe. A segunda categoria veio a ser constitufda pelos letrados com formago humanistica, Foi um tempo em que, para aspi- rar 8 posiczo de conselheiro do principe ¢, em especial, de histo- ridgrafo do principe, aprendia-se a fazer discursos em latim € poesias em grego. Foi a época de floragio inicial das escolas humantsticas ¢ da fundacio, pelos reis, das cétedras de “poéti- ca”: época rapidamente ultrapassada entre nds, Teve, sem dit ida influéncia duradoura sobre nosso sistema escolar, mas, em verdade, nao deu lugar a conseqiiéacias significativas no campo da politica, Coisa diversa, entretanto, ocorreu no Extremo- Oriente. O mandarim chinés é, ou melhor, foi, em sua origem, re muito semelhante o humanista da Renascenga, isto é, um le trado com educacio humanista recebida ao contacto com monu- mentos lingiiisticos do passado remoto. Quem ler o didtio de Li Houng/Tchang verificaré que ele tinha como orgulho maior ‘0 ser autor de poesias e excelente caligrafo. Essa camada social dos mandarins, nutrida pelas convencies estabelecidas segundo © modelo da antigitidade chinesa, foi a determinante de todo © destino da China. Nosso destino teria podido ser 0 mesmo, se nossos humanistas tivessem tido, em sua época, a possibili- dade de se imporem com o mesmo éxito. A terceira categoria era constitufda pela nobreza da corte. Apés ter conseguido retirar da nobreza 0 poder politico que cla detinha enquanto ordem, os soberanos a atrairam para a corte ¢ lhe atribuiram fungées politicas e diplomaticas. A trans formagio sofrida por nosso sistema educacional, durante 0 sé culo XVIL, foi, em parte, determinada pela cizcunstincia de que 05 letrados humanistas cederam a politicos profissionais recruta- dos na corte a posigio que ocupavam junto aos principes, ___ A quarta categoria & composta por uma figura tipicamente inglesa: 0 patriciado, que compreendia a pequena nobreza e os rendeiros das aldeias, © que se designa pelo termo téenico de gentry. De inicio, 0 soberano, para lutar contra os batdes, havia atraido esse patriciado e the havia confiado posigées de self-government, mas, com o cotret do tempo, viuse ele pré prio na dependéncia dessa camada social ascendente. © patri- ciado conservou todos os postos da administragio local, assue mindo, gratuitamente, todos os encargos, tendo em vista o in- teresse de seu poder social. E, assim preservou a Inglaterra da buroctatizacio, que foi o destino de todos os paises da Europa continental. A quinta categoria, 2 dos juristas formados em universida- des, constitui um tipo ocidental peculiar, e peculiar, antes de tudo, ao continente curopeu, de que determinou, de maneiza do- minante, toda a estrutura politica. A formidavel influéncia pés- tuma do direito romano, sob a forma que havia assumido no Estado romano burocratizado da decadéncia, nfo transparece, em nenhuma outra parte, mais claramente do que no fato seguinte: a revolucéo da coisa publica, entendida essa expresso em tet- mos de progressdo no sentido de uma forma estatal racional foi, 76 tem todos os lugares, obta de juristas esclarecidos. Pode-se cons- tatélo até roesmo na Inglaterta, embora as grandes corporagies nacionais de juristas hajam, ali, combatido a difusio do direito romano. Fm neahuma outra parte do mundo se encontra qual- quer anialogia com esse fendmeno. Os ensaios de pensamento jurfdico tacional levados a efeito pela escola hindu de Mimansa 05 esforgos dos pensadores islamitas para promover 0 progtes- 0 do pensamento juridico antigo nfo puderam impedir a con- taminagio desse pensamento juridico racional por formas teo- égicas de pensamento, Nenhuma dessas duas correntes fol capaz de racionalizar de maneira completa o procedimento legal. | Pa- ra levar a bom termo esse propésito, foi necessério estabelecer contacto com a antiga jurisprudéneia dos romanos que, tal como & sabido, resultou de uma estrurura politica absolutamente sin- gular, pois que se elevou de cidade-Estado a categotia de impé- fio mundial. A obra foi primeiramente empreendida pelos ju- ristas italianos, importando citar, a seguir, o Usus modernus dos pandectistas, os cénonistas da alta Idade Média e, por fim, as feorias do direito natural elaboradas pelo pensamento juridico ctistio, que, depois, se secularizaram, Os grandes representan- tes desse racionalismo juridico foram a podesta italiana, os le- sistas franceses (que encontraram meios legais para solapar 0 poder dos senhores em beneficio do poder dos reis), os cano- nistas € os tedlogos que professaram as teorias do diteito natural nos concflios, 08 juristas de corte ¢ os hibeis juizes dos prin- cipes do continente, os tedricos do direito natural na Holanda € 0s monatcmacos, os jutistas ingleses da Coton ¢ do Parla- mento, a noblesse de robe do Paslamento de Paris e, enfim, os advogados da Revolugéo Francesa. Sem esse racionalismo ju- Hidico, nfo se poderia compreender o surgimento do absolutis- mo real, nem a gtande Revolugio. Quem percorra os registros do Parlamento de Paris ou os anais dos Estados Gerais franceses, desde 0 século XVI até 1789, af encontrard presente 0 espirito dos jutistas. E quem passar ¢m revista as profissies dos mem- bros da Convensio, quando da Revolugao, encontraré um ténico proletétio — embora escolhido segundo a mesma lei eleitoral aplicavel a seus colegas — e um mimero reduzidissimo de em- preendedores burgueses. Em oposigdo a isso, encontrard nume- rosos juristas de todas as orientagGes, sem os quais seria abso- Jutamente impossivel compreender a mentalidade radical desses 7 intelectuais ou 0s projetos por cles apresentados. Desde essa époce, 0 advogado moderno e a democracia estio ligados, Por outro lado, 86 no Ocidente € que se encontz’ a figura do advo- gndo no sentido especifico de uma camada social independente © isso desde a Idade Média, quando eles se multiplicaram a partir do “intercessor”(Fursprech) do processo getménico, sob influéncia de uma racionalizagéo de procedimentos. Nada tem de fortuito a importincia dos advogados na po- litica ocidental, apds a apariczo dos partidos politicos. A em- presa politica ditigida por partidos nfo passa, em verdade, de tama empresa de interesses — ¢ logo veremos 0 que essa asset- sio pretende significar. Ora, a fungio do advogado especializa- do consiste exatamente em defesa dos intetesses daqueles que © procram, Em tal dominio — e tal € a conclusdo que se pode tetirar da superioridsde da propaganda inimiga — 0 advogado sobrepuja qualquer ““funcionério”. Sem divida algu- ma, ele pode fazer triunfar, isto é, pode “ganhar” tecnicamente uma causa cujos argumentos tém fraca base Iégica e que é, em conseqiiéncia, logicamente ‘‘mé”, porém é também 0 tinico a ter condigges de fazer trivnfar, isto é, de “genhar” uma causa que se funda em argumentos sélidos ¢ que é, portanto, “boa”, em tal sentido. Acontece infelizmente ¢ com freqiiéncla dema. siada que o funcionério, enquanto homem politico, faca de uma “boa” causa, do ponto de vista dos argumentos, uma causa “ma”, ‘em tazio de erros técnicos. ‘Temos experiéneia disso, Em me. dda cada vez maior, a politica se faz, hoje, em ptblico e se faz, portanto, com a utilizagio desses instrumentos que so a palavra falada ¢ escrita, Pois bem, pesat o efeito das palavras ¢ algo que se pde como parte relevante da atividade do advogado, mas no como parte da atividade de um funcionétio especializado que no & demagogo ¢ que, por definigio, no 0 pode ser. Se ele, por infelicidade, tentar desempenhar esse papel, s6 poderé fazélo de maneira canhestra. © verdedeiro funcionério — ¢ essa observagio é decisiva para julgamento de nosso antigo regime — no deve fazer po- Iitica exatamente devido a sua vocagdo: deve administrat, antes de tudo, de forma nao partidéria. Esse imperativo aplice-se igualmente aos ditos funcionétios “politicos”, a0 menos oficial- mente ena medida em que a “razo de Estado”, isto é, os in- 7B teresses vitais de ordem estabelecida nfo estio em jogo. Ele deve desempenhar sua missio sine ira et studio, “sem ressenti- mentos ¢ sem preconceitos”. Nao deve, em conseqiiéncia, fazer © que o homem politico, seja 0 chele, sejam seguidores, estd compelido a fazer incessante ¢ necessarlamente, isto €, com- bater. Com efeito, tomar partido, lutar, apaixonar-se — ira et studio — sio as caracteristicas do homem politico, E, antes de tudo, do chefe politico, A atividade deste tltimo esta subor- dinada a um principio de responsabilidade totalmente estranho, fe mesino oposto, a0 que norteia o funciondtio. A honra do fun- ciondrio reside em sua capacidade de executar conscienciosamen- tc uma ordem, sob responsubilidade de uma autoridade superior, ainda que — desprezando a adverténcia — ela se obstine a seguir uma falsa via. O funcionétio deve executar essa ordem como se ela correspondesse @ suas préprias convicgées, Sem essa disciplina moral, no mais elevado sentido do termo, e sem essa abnegacio, toda a organizacio tuitia. A honra do chefe politico, ao contrério, consiste justamente na responsabilidade pessoal exclusiva por tudo quanto faz, responsabilidade que ele nndo pode tejeitar, nem delegar. Ora, os funciondtios que tém visio moralmente clevada de suas fungSes so, necessariamente, maus politicos: nao se dispdem com efeito, a assumir respon- sabilidades no sentido politico do termo ¢, desse ponto de vista, sio, consegiientemente, politicos moralmente inferiores. Infeliz” mente, esse tipo de funciondrio ocupa, na Alemanha, postos de ditegio. Fa isso que damos o nome de “regime dos fanciond- ‘Nao é ferie a honta da funcao piblica alema por em evi: déncia © que bd de politicamente falso no sistema, visto do an- gulo da eficécia politica. Voltemos, porém, aos tipos de figura politica. * Desde que existem os Estados constitucionais e mesmo des- de que existem as democracias, 0 “demagogo” tem sido o chefe politico tipico do Ocidente. © gosto desagradivel que em nds provoca essa palavra nfo nos deve levar a esquecer que foi Péticles ¢ nio Cléon 0 primeito que a mereceu, Nao tendo funcéo alguma, ou melhor: ocupando 2 “nica fungdo eletiva existente, a de estratega superior — enquanto que todos os outros postos na democracia antiga cram atribuidos por sot- 79 teio —, ele dirigia 2 eclésia soberana do demos ateniense. Cer- to € que a demagogia moderna faz uso do discurso — e numa ptoporsio perturbadora, se pensarmos nos discursos eleitorais que 0 candidate moderno esté obrigado a pronunciar —, mas faz uso ainda maior da palavra impressa, Por tal motivo € que © publicista politico ¢, muito particularmente, o jornalista sao, em nossa €poca, os mais notiveis representantes da demagogia, No quadto desta conferéncia, nio nos & posstvel tragat nem mesmo um simples esbogo da sociologia do moderno jor- nalismo. Esse problema constitui, de todos os pontos de vista, tum capftulo & parte. Contentar-nos-emos com algumas observa Ges, que so importantes para o assunto de que nos ocupamos, O jornalista patticipa de condigéo de todos 0s demagogos, assim come — so menos no que se refere & Europa continental e em oposigio ao que se passa na Inglaterra ¢, outtora, ocorria na Prissia — o advogado (e 0 attista): escapa a qualquer classi- ficagio social precisa. Pertence a uma espécie de classe de parias que a “sociedade” sempre julga em fungéo de seus reptesentan- tes mais indignos sob 0 ponto de vista da motalidade, Daf a ra- zio pot que se veiculam as idéias mais estranhas a tespeito dos jornalistas ¢ do trabalho que executam. Nao obstante, a maior parte das pessoas ignora que um “trabalho” jotnalistico real mente bom exige pelo menos tanta “inteligéncia” quanto qual- quer outro trabalho intelectual e, com freqiigncia, se esquece tratar-se de tarefa a executar de imediato e sob comando, tarefa A qual impoe-se emprestar imediata eficécia, em condigdes de criacZo inteiramente diversas das enfrentadas por outros inte- lectuais, Muito ratamente se considera que a responsibilidade do jornalista ¢ bem maior que a do cientista, nio sendo 0 sen timento de responsabilidade de um jornalista hontado em nada inferior ao de qualquer outro intelectual — ¢ cabe mesmo di- zer que seja superior, quando se tém em conta as constatagSes que foi possivel fazer durante a sltima guerta, O descrédito em que tombou o jornalismo explicase pelo fato de havermos guardado na memétia os abusos de jornalistas despidos de sen- s0 de responsabilidade e que exerceram, freqiientemente, infh- éncia deplorével. Ninguém se inclina, entretanto, a admitir que 4 discrigio do jornalista seja, em geral, superior A de outras pessoas. © ponto é inegivel. As rentagdes incompatavelmente ais fortes, que se ligam a0 exercicio dessa profissio, bem como 80 coutras condigées que rodciam a atividade jornalistica implicam fem certas consegiiéncias que habituaram 0 puiblico a ver 0 jor- nal com um misto de desdém ¢ de piedosa covardia, Nio nos € dado examinar, esta noite, 0 que seria de conveniéncia fazer em tal circunstincia. © que nos interessa, no momento, € 0 problema do destino politico reservado aos jornalistas: quais as possibilidades que a eles se abrem de ascender a postos de di- regio politica? Até agora, as oportunidades s6 Ihes foram fa- voriveis no partido socialdemocrata e, mesmo dentro dessa of ganizagao, 08 postos de redator davam, em geral, a simples con- digio de fancionério, nfo se constituindo em trampolim para acesso a uma posigao de dirigente. Nos partidos burgueses, as possibilidades de chegar a0 po- der politico através do jornalismo diminufram, de modo geral, se as comparamos com as que vigiam na geragio anterior. Natu- ralmente que todo politico de alguma importancia tinha necessi- dade de contar com a imprensa ¢, conseqiientemente, necessi- tava cultivar relagdes no meio jornalfstico. Era, entretanto, in- teizamente excepcional — contratiava qualquer expectativa — ver chefes politicos aflorarem a partir do jornalismo. A razio desse fato deve ser procurada na “‘ndo-disponibilidade” que se faz notar fortemente no campo do jornalismo, sobretudo quan- do o jomnalista nio dispée de fortuna pessoal e, por tal cixcuns- tincia, tem os recursos limitados que 2 profisséo Ihe assegura. Essa dependéncia € consegiitncia do desenvolvimento enorme que, em vulto e poder, teve a empresa jornalistica. A necessi dade de ganhar a vida redigindo um artigo diério ou, pelo me- nos, semanal constitai espécie de cadefa ptesa ao pé do joma- lista ¢ conhego alguns deles que, embora possufssem o tempe- ramento de um chefe, vitam-se continuamente paralisados, ma- terial e moralmente, em sua ascensio para o poder. Certo é que, sob 0 antigo regime, as relagdes da imprensa com os po- deres dominantes no Estado e com os partidos fotam prej ciais, ao maximo, para o nivel do jornalismo, mas isso const tui capitulo a parte. Essas relagdes haviam tomado feigio teiramente diversa nos paises inimigos da Alemanha (Aliados). Gontado, mesmo ali em ger em todoe os Estados moder nos, pode-se constatar, a0 que parece, a vigencia da seguinte re- gra: eine da ‘imprensa pevde, cada vee mais, influéne politica, enquanto que 0 magnata capitalista — do tipo de Lorde 81 Northcliffe, por exemplo — v8, continuamente, aumentada essa influéncia. Os grandes consércios capitalistas de imprensa que, na Ale: manhs, se haviam apossado dos jornais que publicam “antincios populares” foram, até o momento e via de regra, os t{picos pro- pagadores da indiferenga politica. Havia-se tomado consciéncia de que, obstinando-se no seguir esse caminho, nao se tiraria qualquer vantagem de uma politica independente, no haven- do esperanga alguma de poder contar com a benevoléncia, co- mercialmente til, das forcas que se encontravam no poder. O sistema dos comunicados foi algo a que 0 governo recorrew Tatgamente, durante a iltima guerra, para tentar exercer influ- éncia politica sobre a imprensa e parece que hi, no momento, tendéncia de perseverar nessa trilha, Se € de esperar que a grande imprensa possa subtrait-se a esse tipo de informacdo, 0 mesmo nao se dard com os pequenos jornais, cuja situagao ge- ral é muito mais delicada. Seja como for, a carreita jornalistica ndo € na ocasido presente, entre nés, via normal para alcangar 4 posigio de chefe politico (o futuro nos diré se néo o & mais ow se nao o ainda), a despeito dos atrativos de que ela se possa revestir ¢ do campo de influéncia, de acio e de respon sabilidade que possa abrir para os que desejem a ela dedicar-se, Ei dificil dizer se 0 abandono do principio do anonimato, pre- conizado por muitos jornalistas — nao por todos, é certo — setd suscet{vel de alterar a situagio, A experiéncia que foi pos- sivel fazer na imprensa alema, durante a guetta, com relagio a jornais que haviam confiado ‘os postos de redator-chefe a in- telectuais de grande personalidade, que utilizavam explicitamen- te 0 proprio nome, mostrou, infelizmente, que, em alguns casos notérios, 0 método nao é tio bom quanto se poderia cter, pata inculcar elevado sentido de responsabilidade. Foram — sem dis- tinggo de partidos — as chamadas folhas de informaco, sem divida as mais comprometidas, que se esforcaram para, afas- tando o anonimato, aumentar a tiragem, no que se viram muito bem-sucedidas, AS pessoas envolvides, tanto os ditetores des- sas publicagdes como os jornalistas do. sensacionalismo, ganha- ram com isso uma fortuna, mas nada se ganhou no capitulo da honra jornalistica. Nao quer isso dizer que se deva rejeitar 0 principio da assinatura dos artigos; 0 problema é, em verdade, assaz complexo e o fenémeno que mencionamos nio tem qual- 82 quer significagao de carater getal. Constato simplesmente que essa prética ndo se revelou, até o presente, meio adequado para formar chefes verdadeiros ¢ politicos que tenham senso de res- ponsabilidade. O futuro nos dird do evoluir de tal situagio. De qualquer modo, a carteira jornalistica permaneceré como uma das vias mais importantes de atividade politica profissional. Nao se constitui, entretanto, em caminho abetto a todos. Nao esté aberto, sobretudo, para os caractetes fracos ¢, menos ainda, para ‘0s que 86 se podem realizar em situagio social isenta de ten- sdes. Se a vida do jovem intelectual est exposta a0 acaso, permanece, contudo, rodeada de cettas convengdes sociais séli- das, que a protegem contra os passos em falso. A vida do jor- nalista, entretanto, esté entregue, sob todos os pontos de vista, a0 puro azar ¢ em coadigées que o poem A prova de maneira que no encontra paralelo em nenhuma outra profissio, As ex- periéncias freqiientemente amargas da vida profissional cotres- pondem, talvez, ao aspecto menos penoso dessa atividade. So exatamente 0s jotnalistas de grande notoriedade que se véem compelidos a enfrentar exigéncias particularmente cruéis. E de mencionar, por exemplo, a circunstancia de freqiientar os sa- Wes dos poderosos da Terra, apatentemente em pé de igualda- de, vendo-se, em geral ¢ mesino com freqiiéncia, adulado, por- que temido, tendo, ao mesmo tempo, consciéncia perfeita de que, abandonada a sala, o anfitrido sentir-se-4, talvez, obrigado a se justificar diante dos demais convidados por haver feito com- parecer esses “lixciros da imprensa”. De mencionar também € 0 fato de se ver obrigado a manifestar prontamente e, a par disso, com conviegio, pontos de vista sobte todos os assuntos que © “mercado” reclama e sobre todos os problemas possiveis ¢ tudo isso nio apenas sem, cair na vulgaridade e sem perder a propria dignidade desnudando-se, 0 que teria as mais impiedo- sas conseqiiéncias, Em circunstancias tais, nfo € de qualquer modo surpteendente que numerosos jornalistas se hajam degra. dado, decaindo sob o ponto de vista humano, mas surpreenden- te € que, a despeito de todas as dificuldades, a corporagio in. clua tio grande ntimero de homens de anténtico valor e mestno uma proporsio de jornalistas honestos mais elevada do que o supdem os profanos. Se o jornalista € um tipo de homem politico profissional que, sob certo aspecto, jf tem longo passado atrds de si, a 83 gura do funciondrio de um partido politico, ao contrétio, s6 apa- receu no curso das uiltimas décadas e, em parte, no curso dos ‘iltimos anos. Para compteender 0 processo de desenvolvimento histdrico dese novo tipo de homem, faz-se necessério examinar, preliminarmente, a vida ¢ a otganizago dos partidos politicos. * Em todos os lugares — 4 excego dos pequenos cantdes ru- rais em que os detentores do poder sio periodicamente eleitos — a empresa politica se poe, necessariamente como empresa de interesses, Quer isso dizer que um ntimero selativamente restrito de homens interessados pela vida politica e desejosos de participar do poder liciam seguidores, apresentam-se como candidato ou apresentam a candidatura de protegidos seus, red- nem os meios financeiros necessétios e se poem a caga de suftd- gios. Sem essa organizagio, no hé como estruturar praticamen- te as eleigdes em grupos politicos amplos. Equivalem essas pa- lavras a afirmar que, na prética, os cidadZos com o direito a voto dividern-se em elementos politicamente ativos e em ele- mentos politicamente passivos. Como essa distingfo tem por base a livre -decisio de cada um, nio ¢ possivel suprimi-la, a despeito de todas as medidas de ordem geral que se possam su- getit, tais como o voto obrigatério, a “representagao das pro- fisses” ou qualquer outro meio destinado, formal ou efetiva- mente, a fazer desaparecer a diferenga ¢, por esse meio, 0 do- m{nio dos politicos profissionais, A existéncia de chefes e se- guidores que, enquanto clementos ativos, buscam rectutar, vremente, militantes ¢, por outro lado, a existéncia de um cor po cleitoral passive constituem condigdes indispensiveis & exis- téncia de qualquer partido politico. A estrutura mesma dos partidos pode, entretanto, vatiar, Os “partidos” das cidades medievais, como, por exemplo, o dos guelfos e dos gibelinos, compunham-se exclusivamente de seguidores pessoais. Se con- siderarmos 0 Statuto della parte Guelfa, se nos recordarmos de certas disposigdes como a relativa ao confisco dos bens dos No- bili — familias onde havia a condigéo de cavaleiros e que po- diam, conseqiientemente, tornarse proprietirias de um feudo — out se lembrarmos a supressio do direito de exercer determi- nada fungio ou a privagio do direito de voto que podia atingit membros dessas familias ou, enfim, se considerarmos a estrutura 84 das comissées inter-regionais desse partido, a severa organizagio militar a que obedeciam e as vantagens que concediam aos dela- totes, nio poderemos impediz-nos de pensar no bolchevismo, em sua organizagio militar e — sobretudo na Russia — em suas organizacdes de intormagdo, na desmoralizacdo ¢ denegagéo de direitos politicos aos “burgueses”, isto é, empreendedores, co- merciantes, clétigos, elementos ligados 4 antiga dinastia e diri- gentes da antiga policia, A analogia se torna mais contundente quando se leva em conta que a organizasio militar do partido guelfo estava apoiada em um exército de cavaleiros no qual quase todos os postos de direcio eram reservados para os nobres; com efeito, 0s soviéticos conservaram, ou, melhor, restabelece- ram, a figura do empreendedor amplamente remunerado, 0 tra- balho forgado, o sistema Taylor, a disciplina no exército ¢ na fabrica e chegam a lancar olhares para os capitais estrangeitos. Numa palavra, para colocarem em matcha a maquina econdmica ¢ estatal, viram-se eles condenados a adotar tudo quanto con- denaram como instituigdes da classe burguesa, além disso, rein- tegram nas velhas fungdes os agentes da antiga Ochrana (polt- cia secreta caarista), iransformando-os em instrumentos essen- ciais do poder politico. Nesta palestra no nos podetemos, en- tretanto, ocupar dessas organizagies apoiadss na violencia; da remos atengio, a0 contrério, aos politicos profissionais que bus- cam ascender a0 poder com 0 apoio da influéncia de um partido politico que disputa votos no mercado eleitoral sem jamais re- cortet a outros meios que nfo os racionais ¢ “pacificos”. Se considerarmos, agora, os partidos politicos ao sentido comum do temo, constatatemos que, de inicio e pot exemplo na Inglaterra, eles no passavam, no comego, de simples con- juntos de dependentes da aristocracia. Quando, por esta ou aquela razio, um par do reino trocava de partido, todos os que dele dependiam passavam-se também para 0 outro campo. Até a época do Reform Bill (de 1831), nfo era o rei, porém fs grandes familias da nobreza que gozavam das vantagens pro- piciadas pela massa enorme dos burgos eleitorais. Os parti- dos de notiveis, que se desenvolveram mais tarde gracas & as censfo politica da burguesia, conservavam ainda uma estrutura muito préxima da estrutura dos partidos da nobreza. As cama- das sociais que possuiam “fortuna e educacio”, animados e diri- gidos por intelectuais, categoria peculiar a0 Ocidente, dividiram- 85 -se em diferentes porgdes, 0 que foi devido, em parte, a interes- ses de classe, em parte & tradigio familiar ¢, em parte, a motivos puramente ideolégicos, passando a constituir partidos politicos de que conservaram a ditecio. Membros do clero, professores, advogados, médicos, farmacéuticos, fazendeiros présperos, manu- fatores — ¢, na Inglaterra, toda camada social que julgava per- tencer & classe dos gentlemen — constituiram-se, de inicio, em agrupamentos politicos episédicos ou, quando muito, em clubes politicos locais; durante os periodos dificeis, via-se surgir, tam- bém, no palco politico, a pequena burguesia € até o proletaria- do chegou, certa vez, a aparecet. E faziase ainda necessétio que essas iiltimas camadas sociais encontrassem um chefe que, via de regta, nao brotava de seu propria seio. Na época, no existiam partidos organizados regionalmente, que encontrassem base em agrupamentos permanentes do interior do pais. Nao existia outra coes4o politica sendo a criada pelos parlamentares, apesar do que as pessoas de importincia local desempenhavam papel marcante na escolha dos condidatos. Os programas in- cluiam, a par da profissio de £€ dos candidatos, as resolugoes to- madas nas reunides dos homens de prol ou resolugdes das facyées, parlamentares, Sé em cardter acessério ¢ a titulo exclusivamen- te honorifico € que um homem de projecio consagrava parte de seus lazeres a diresio de um clube, Nas localidades em que esse clube nao existia (caso mais comum), a atividade politica estava privada de qualquer organizagio, mesmo no que tangia as raras pessoas que se interessavam normalmente e de maneira continua pela situacio do pais, $6 0 jornalista era um politico profissional remunetado ¢, além das sessies do Parlamento, $6 a imprensa constitufa uma organizacio politica dotada de algum sentido de continuidade. Nio obstante, os parlamentares © 03 diretores de partido sabiam perfeitamente a quais chefes locais recorrer quando certa aco politica parecia desejavel. Tao-somen- te nas grandes cidades € que se instalavam secdes permanentes dos partidos, com mensalidades médicas pagas pelog membros, com encontros periddicos e reunies piiblicas durante as quais ‘9 deputado prestava contas de seu mandato. Vida politica s6 havia, entretanto ¢ realmente, no decurso do periodo eleitoral. Nao demorou, porém, a ser sentida 2 necessidade de uma ‘coesio mais firme no interior dos partidos. Numerosos motivos impuscram essa nova orientagao: interesse dos parlamentares 86 em conseguir compromissos eleitorais entre cixcunscrigdes dife- rentes, 0 impacto a que podia dar lugar um programa wnico ¢ adotado por largas camadas sociais do pais e, de modo geral, a utilidade que representava para o partido uma movimentagdo po- litica unificada, Sem embargo, mesmo depois de estabelecida uma rede de segdes locais do partido nas cidades de média im- portincia e de instalados em todo o pais “homens de confian- a”, que permaneciam em contacto permanente com um mem- bro do grupo parlamentar, a estrutura do aparelhamento parti- dirio nfo se modificou: manteve, em principio, o cardter de agrupamento de homens de projegio. Afora os empregados da sede central, no existiam ainda funcionérios remunerados, de vez que, por toda parte, as associagies locais eram dirigidas polticamente por pessoas “consideradas”, em razio da estima de que gozavam no meio. Os “homens de prol” que se man- tinham fora do Parlamento continuavam a exercer influéncia, a0 lado da categoria de homens de prol assentados no Parlamento. ‘As manifestagdes dadas a piblico pelo partido forneciam, de maneira natural ¢ forma crescente, o alimento espiritual de que se nutriam a imprensa e as reunides locais abertas. Tornavam-se indispensdveis as contribuigées regulares dos membros, parte das quais se destinava a cobrit gastos do organismo central, Até tecentemente, as organizagdes politicas alemas encontravam- -se ainda nesse estégio, E, na Franga, continuam a petmanecer, parcialmente, no primeiro estégio, 0 dos liames instéveis entre os parlamentares e o reduzido mimero de homens de prol locais. Naquele pais, os programas ainda sio elaborados, em cada uma das cizcunscrigSes, pelos prdprios candidatos ou por seus pre- ceptores, antes do inicio da campanha eleitoral, embora con- siderando, em maior ow menor extensio ¢ segundo exigéncias locais, as resolugdes ¢ os programas dos parlamentares. $6 par- cialmente se conseguiu, em nossos dias, abalar tal sistema. O niimero de pessoas que, até poucos anos atrés, fazia da atividade politica a ocupacdo principal era muito reduzido. Abrangia, prin- cipalmente, os deputados eleitos, o punhado de empregados do organismo central, os jornalistas e, além disso — na Franca — os que estZo “A cata de um posto” € os que, tendo jf ocupado um posto, estiio 4 espera de conseguir uma sitvacio nova, Em geral, politica se constituia, de forma preponderante, em uma segunda profissio, O nimeto de deputados “suscetiveis de se 87

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