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Giovanni PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 7 Pr o letor directamente em contacto ‘com textos marcantes da istria da lonoia — através de traducées fas a partie don rexpecivon origina, “enotas explicatvas— foo porto de partida ‘para eta coecg, 0 seu ambito entender se4 todas as épocas ea todos oF pos estos de flsofs, procurande inchir 0 textos mais signification do pensamento florea na sua muiplicidade © riquera Serd asin tum reflexo da vibraiidade do expritoflsstico perante 0 su tempo, erante a cénca ‘¢0 problema do homem ‘edo mundo ACERCA DO PENSAMENTO DE GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA A Oratio de Giovanni Pico della Mirandola, Conte di Concordia e della Mirandola, ¢ talvez © mais famoso e conhecido texto do primeiro momento do Renascimento. © seu autor, figura verdadeiramente excepcional, considerado em Iti- lia como 0 humanista mais sAbio, mais rico, jovem € belo do seu tempo: tem sido visto, de facto, como uum dos mais notiveis representantes do Huma- nismo Renascenti Com efeito, a sua figura aparece-nos envolta num halo, misto de mistério e de admiracio, de reveréncia € de veneracdo. Para tal contribufram certamente um conjunto de circunstancias de que podemos relevar a sua personalidade fascinante, 0 "GF. José Vitorino de Pina Martins, Jean Pic de la Mian: ole. Um portrait incon de humanist. Une tin tr are dees ‘oncusons. Pais, PUB, 1978, p. 16. 9 seu «charmes, aliado a um génio polifacetado, uma vida curta e trégica, mas preenchida, inter- rompida por uma morte prematura aos trinta e um anos. Giovanni Pico foi um dos homens a quem os vindouros reconheceram a marca do génio, devido 4 profundidade das suas intuigées ¢ as circunstan- cias de que colheu os bons e os maus frutos. Tudo isto, no entanto, concorreu para uma consolidacéo de uma sua imagem um pouco fantistica, traba- Ihada pela fantasia do tempo. Porém, se esta € uma visio que se impés, forjada na lenda ¢ na tradicao factual, a que nao escapa a efeméride de uma cena de amor, envolvendo rapto e fuga seguida de arre- pendimento e vida austera, nao deixa de ser verda- deira e mais real, decerto para os que se abeiram da sua obra, a sua imagem de homem extraordinario, devido a sua precocidade, dedicado ao estudo, pen- sador profundo e exigente, seguro quanto aos seus pontos de vista acerca da filosofia ¢ disposto a defendé-los mediante uma argumentacéo clara ¢ franca. Muito claramente assume-se, tal como Mar- silio Ficino, filésofo de profissao, para quem a ver- dade filosofica é, sem dtivida, um valor a salvaguar- dar. ‘Numa leitura atenta dos textos, encontramo-nos perante uma dupla imagem de Pico, onde nao ha contradigao ou exclusio, mas complementaridade: com efeito, & s6 aparente a oposicao entre uma sua faceta de homem apostando numa filosofia da aco € uma atitude que o enquadra na mistica, enquanto homem da contemplacao. Se o homem na 0 sua dimensio terrena é dignificado e se a busca da felicidade € 0 horizonte do seu agir, nao é menos verdade que dessa felicidade terrena faz parte a relagéo do homem com Deus, ¢ esta sua preocupa- ‘cdo resolve-se muitas vezes, no seu proprio itiner’- rio, numa adesio a uma mistica da luz Nao € nossa intencdo apresentar aqui um ensaio acerca do seu pensamento, mas téo-s6 apontar aqueles aspectos da sua reflexio, da sua biografia, por vezes do ambiente e da época em que viveu, que podem ajudar a uma melhor compreensio da Oratio, de que damos a traducio, aproveitando a efeméride dos cinco séculos da sua redaccio. Em 1986, com os nossos olhos de homens contempora- neos, preocupados em compreender a realidade factual e espiritual das épocas que nos precederam, tdo aproximativamente quanto possivel, encon- tramo-nos perante este texto que em 1486 se consti- tufa como um desafio para a sua época e que nos aparece, em muitos aspectos, de plena actualidade. Giovanni Pico della Mirandola é uma figura exemplar do Humanismo renascentista e este seu discurso, que mais tarde passou a ser conhecido com 0 titulo de De Hominis Dignitate, sem divida alguma, um dos textos fundamentais para uma compreensio quer do seu pensamento, quer da época em que viveu. Se com P. Kristeller podemos dizer que 0 Renascimento foi mais uma época de fermentos que de sinteses? entéo, a Oratio surge- * GE Paul Oskar Kristeller, Conet rinascimentl dll womo ed alrisaggi. Florenca, La Nuova Italia, 1978, p. 182 n -nos como uma obra em que esses fermentos sio paradigmaticamente patentes. Como refere Euge- nio Garin, esta obra é 0 manifesto do Renascimenté) mas, além disso, € também, em nosso entender, € de um ponto de vista filoséfico, um clegante dis- curso € elogio da filosofia, enquanto esta é um discurso da razio, apontando, no seu estatuto, para certa autonomia, se bem que sempre a filosofia esteja dependente da teologia, porque se abre a ‘uma realidade que a supera no plano das funda- mentacées tiltimas. Relativamente a teologia, a filo- sofia € propedéutica, mas ja nao € ancilla. Neste texto, Giovanni Pico alude bastas vezes a ‘uma ratio philasophica, a par de uma ratio thelogica, sem que entre elas se estabaleca uma relacio de dependéncia, de subordina¢ao uma @ outra, mas antes de cooperacio, de harmonia, para usar a terminologia do autor de «concérdia-. E clara a preocupacio em reivindicar um lugar proprio para a filosofia, sendo esta um investigar as causas dos processos da natureza, a razdo do universo ¢ do homem, os conselhos de Deus, enfim, os mistérios do céu ¢ da terra. Tal tematizacio esta ligada a0 novo lugar conferido ao homem no universo, esta ligada a dignidade do homem, diferente da concep- Gio de homem na Idade Média, de que se distancia conscientemente, embora possua, assumidas ou nao, muitas raizes desse mundo medieval. ¥ C. Bugenio Garin, Opere. De hominis dignitat. Hectaps. De ente et uno. Adversus astrologiam dvinaticen. Florenca, Vallecchi, 1942, vol. IIL, p. 28 2 A Oratio situa-se, contudo, de modo inequivoco no horizonte da modernidade, embora nela esteja implicado muito de conservador, a par de aspectos dlaramente inovadores, no contexto do que foi a riqueza transbordante da sua época, isto é um aspecto nao se podendo desligar do outro sendo por um processo légico, isto é, exclusivamente ana- litico. Assim sendo, a sua meditacdo filoséfica aparece-nos como um reflexo exemplar do Huma- nismo Renascentista, nao um Humanismo apenas preocupado com o cultivo das humanidades enquanto estas sio consideradas disciplinarmente, mas envol- vendo também o conceito de humanismo como valorizagao € promogio dos valores do homem, Giovanni Pico ndo é um humanista apenas preo- cupado com questées filolégicas, mas sobretudo com questées filosoficas; dai a sua polémica anti- -retérica, mantida com Ermolao Barbaro e a qual faremos adiante uma breve referéncia, para subli- nhar a diferenca que 0 nosso fildsofo estabelece entre sapiéncia e eloquéncia, criticando num certo humanismo, de que Barbaro é um dos representan- tes, © gosto excessivo pelo ornamento em detri- mento de questées mais fundamentais que a filoso- fia com toda a simplicidade coloca. Do mesmo modo que 0 Humanismo Renascen- tista pode ser considerado um processo complexo, de aspectos muitas vezes contraditérios, dificil de reconduzir a um momento linear de explicacéo, também a problematica filosofica que 0 nosso autor nos apresenta € complexa, trabalhada a partir de uma multiplicidade de vias, de explora- 13 ‘gdes, que 86 em parte, no entanto, explicam o seu inerario filos6fico. Seguindo Cesare Vasoli, somos levados a dizer que a unidade da época em que viveu reside na pertenca a uma tinica grande experiéncia cultural, muito variada ¢ até mesmo contraditéria nas suas saidas, quanto rica de influéncias decisivas para a histéria comum da lizagio europeia’ Tal consideracao aplica-se bastante aproximativamente a figura do Conde della Mirandola, de quem apresentamos em seguida breves tracos biograficos. TRAGOS BIOGRAFICOS Giovanni Pico della Mirandola, Conte di Concordia, nasce em Mirandola, Italia setentrional, em 24 de Fevereiro de 1463, € morre em Florenca, em 17 de Novembro de 1496.” Representante da nobreza do Norte da Italia, a sua formacao de humanista ndo € toscana, mas desenvolve-se nos grandes centros da regido em que nasceu: Bolonha, Padua, Ferrara, Mantua, Pavia, s6 mais tarde se estendendo a Paris € Flo- renga, © GF Cesare Vasoli, Imagini umanisiche. Napoles, Morano, 1983, p. 5. "Cf. Eugenio Garin, Ritati i unanisi. Florenga, San- soni, 1967, p. 185-217, onde o autor nos apresenta a figura de Giovanni Pico della Mirandola. Deste estudo colhemos alguns ddados para elaborar e tracar a sua biografia “4 De condicéo nobre, sua mae, senhora muito piedosa e muito ligada a este filho, destina-o a vida eclesidstica € nesse sentido, segundo o costume da época, proporciona-the a formagio necesséria a obtencéo de um alto cargo na Igreja. Assim, com catorze anos, em 1477, é enviado para Bolonha a fim de ai estudar Direito Canénico. F desta estada bolonhesa e, apés dois anos de estudo com vista & sua preparacdo para jurista, que descobre que o seu caminho nao € esse. Antes se sente atraido pela filosofia, enquanto saber universal, fundamentador ¢ fundante, que propicia a obtencio de um conhe- cimento mais aprofundado acerca da realidade humana e acerca das coisas do mundo. ‘Tal entusiasmo pela filosofia leva-o a abandonar Bolonha — centro universitario escolistico de grande tradicao no dominio das leis— e a dirigirse a outros centros que lhe permitissem adquirir certa formacao neste seu outro € novo interesse. Encontramos Giovanni Pico em 1479, em Fer- rara, onde durante dois anos, sob a orientacio de Battista Guarino, grande humanista, lé os autores gregos ¢ latinos. Ferrara era, nesta altura, uma cidade prestigiada pelo seu labor enderecado para © estudo das humanidades. Nela se veiculava o interesse por uma nova forma de cultura, Nas aulas de grego € de latim, entre muitos outros autores antigos, liam-se os originais de Platio e Aristételes. Battista Guarino foi um dos que influiram efectiva- mente na renovacio do saber em Ferrara, mas tendo também, em termos da Europa da época, contribufdo para a constitui¢io da escola, tal como 15 ‘0 Quatrocento italiano a concebeu, isto é, diferente da escola medieval, porque nao profissional ¢ nao técnica. Guarino aparece-nos essencialmente como ‘© exemplo de uma cultura laica, que despontava agora, que nao punha em questéo a cultura reli giosa, mas a par desta desenvolvia outras reas de interesses.’ Entre 1480 e 1482, encontramo-lo em Padua, onde estuda filosofia ¢ teologia ¢ onde entra em contacto com 0 pensamento escolistico — Sio Tomés de Aquino, Escoto, etc. Aqui, num ambiente aristo- télico, contacta com Nicoletto Vernia, peripatético averroista, facto que seré importante para a sua posterior actuacao filoséfica. A escola de Padua, que se mantém fiel a Aristételes, interpretado segundo a tradicéo averroista, sente, no entanto, a necessidade de recuperar este filésofo, numa lei- tura ja no medieval mas humanista e como forma de contraposi¢io ao cada vez maior impacto que a filosofia de Platéo vinha a adquirir nos circulos doutos da época Esta atitude é assumida, por exemplo, por Ermolao Barbaro, que 0 nosso filésofo no encon- tra em Padua nesta sua estada, mas de quem foi discipulo © amigo e com o qual manteve relacées de concérdia-discérdia, nao obstante a miitua admira- ao. Nesta cidade conhece um outro humanista, Elia del Medigo, também seu mestre e amigo, douto hebreu, tradutor e comentador de Averrdis © que © Acerca da figura de Batista Guarino ef, Idem, Ibid. p. 69-106, 6 presidia 4 Escola Talmidica de Italia, homem pro- fundamente religioso, que traduziu e compendiou textos filoséficos para Pico, fornecendo-the precio- sos elementos acerca da filosofia da Cabala. E este, verdadeiramente, 0 momento de iniciaco do nosso autor na mistica de Averréis, portanto, de aprofun- damento do pensamento arabe. Foi também esta a altura em que mais se dedicou a um conhecimento da filosofia hebraica. Ferrara primeiro, Padua em seguida, sio os itinerdrios da sua primeira formagao humanistica ¢ do seu conhecimento do pensamento escolistico. Em 1484, dirige-se a Florenca e entra em con- tacto com o cfrculo platénico que tem como seu mecenas Lourengo, o Magnifico, um Medici, patrono de artistas como Miguel Angelo ¢ de intelectuais ‘como Marsilio Ficino, Angelo Poliziano e a defensor incansével do préprio Conde della Miran- dola. Encontra, entio, Marsilio Ficino, neoplaté- nico, ¢ tal acontecimento ser determinante na sua conversio a0 platonismo florentino. Reencontra Angelo Poliziano, conhecimento e amizade nascidos numa sua breve estada em Mantua. Poliziano era na altura, em Florenca, preceptor dos filhos de Lou- renco de Medici. A amizade entre os dois foi cons- tante € durou até a sua morte. ‘A Academia, de que Marsilio Ficino ¢ a alma, suscita a sua reflexio sobre Platio ¢ leva-o a intuir algo que serd um dos tépicos centrais da sua medi- tacdo filos6fica, ou seja, 0 acordo, ao limite, entre Platdo € Aristételes, aspecto que ¢ 0 vestibulo de ‘uma sua tese central, a saber: a questo sobre a "7 concérdia. Além disso, a sua frequéncia da Acade- mia despertou-o para toda a problematica acerca dos mistérios plat6nicos e herméticos, de que Marsi- lio Ficino era o tenaz estudioso. Tais temas atrai- ram-no de tal modo que daqui resultou a sua con- vicgdo de que a verdade se oculta por tras dos véus do enigmas. E desta estada florentina a redaccio, em 1485, da célebre Carta a Ermolao Barbaro, de _genere dicendi philosophorum, onde defende os filéso- fos e a filosofia escolisticos. Ermolao Barbaro, humanista de orientacio aris- totélica, professor na universidade de Padua, subtil jurista e fildlogo, isto é, defensor das belas letras e, portanto, interessado em veicular um estilo ele- gante e leve por oposicio a0 estilo pesado ¢ um pouco rude, no seu entender, dos fildsofos barba- ros, € uma referéncia obrigatéria do itinerério filo- s6fico do nosso autor. Porém, nem sempre entre os dois se manteve a concérdia. Pico, em nome da filosofia, sente a necessidade de se distanciar do humanismo do professor paduano, demasiadamente centrado no dominio do filolégico, depreciativo no que respeita ao discurso filoséfico, privilegiando a mera erudiggo e eloquéncia, procurando mais a conviccéo mediante a arte da palavra do que a ‘obtencio da verdade. Ora, a possibilidade de uma demarcacio do nosso filésofo relativamente a Barbaro élhe proporcionada por este ultimo, a0 escrever-lhe uma carta na qual afirma: «Duos agnosco dominos, Christum et litteras». E com esta afirmacao quer vincar a relevancia ¢ a supremacia da elegancia estlistica, considerando-a quase como 8 um fim em si mesma, facto que o leva também a dizer que ndo & homem quem nio é literato. ‘A esta carta Giovanni Pico responde com a refe- rida Carta a Ermelao Barbaro, onde, se bem que afirme nao desprezar as letras, antes pelo contrério, coloca-as no entanto ao servico de algo mais funda- mental e que identifica com a verdade, cabendo ‘essa procura da verdade a filosofia, numa atitude de acordo com os dogmas do Cristianismo. Nesta Carta, a sua preocupacéo consiste, na esséncia, em fazer uma defesa do estatuto da filosofia e da dignidade do filésofo. Esta sua resposta, em 1485, provoca 0 esfriamento € um pouco de tensio entre os dois homens. De 1485 a 1486, encontra-se em Paris e ai con- firma decididamente a sua vocacio filoséfica, j4 ha tanto tempo entrevista em Bolonha e que o levou a desistir dos seus estudos como jurista e atinentes & carreira eclesidstica. Bolonha, Ferrara, Pédua, Florenca, Paris, sio 08 momentos necessérios para a emergéncia, a0 nivel explicativo, do seu filosofar, sio os itinerérios de uma formagio apurada que, para além de Ihe pro- porcionarem um conhecimento do mundo da escola, The vao desvelar também 0 mundo do novo saber que se est a constituir, ou seja, 0 conhecimento veiculado pela cultura humanistica que, como por exemplo em Florenca, se desenvolvia e crescia 4 margem da Universidade. © Conde della Mirandola finalmente é um huma- nista, estudou grego, hebraico, arabe, € um defen- sor dos autores clissicos, sendo significativa no seu 19 pensamento a evocacéo dos autores antigos gregos € romanos, assim como é relevante ter possuido uma das maiores bibliotecas do seu século, aspecto nitidamente renascentista, conservando-se ainda duas cépias do seu inventario, uma na Biblioteca Vaticana, outra no Arquivo de Modena. Mas, se bem que receptivo relativamente a0 novo, preo- ‘cupou-se em recuperar nao s6 esse passado grego € romano como também 0 medieval. Tal facto justi- fica-se a partir do seu convivio com os autores medievais que, como refere a Ermolao Barbaro, na sua carta, durou seis dos seus melhores anos, tendo estudado Tomis, Escoto, Alberto e Averréis, entre outros. Cerrou-se assim 0 ciclo de uma formacio excep- cional. Adepto do orientale lumen, mas, simultanea- mente, preocupado em salvar as conquistas do passado préximo, porque a verdade nenhuma filo- sofia ou escola a possui, possuiu ou possuird, constituindo-se cada uma como um ponto de vista sobre a verdade. Dai a necessidade de nada deixar de fora, tudo analisar, tudo procurar compreender, nesse esforgo permanente de aproximacéo a uma verdade que onticamente se dé ao homem como parcelar, porque metafisicamente transcendente. A REDACGAO DA ORATIO Vindo de Paris, de volta a Italia, em 1486, em Fratta, perto de Perugia, Giovanni della Miran- dola redige a sua obra mais original, se tivermos em 20 consideracao 0s contextos complexos da época em que viveu, ¢ isto devido a sua concepcio. Em tal trabalho, propde-se reunir todos os conhecimentos que até entao tinha adquirido. Estamos perante uma espécie de relatério, redigido segundo 0 método escoldstico parisiense, portanto, organizado em teses, justificativo do seu labor filos6fico, € onde se exprime mais um aspecto caracteristico do Renascimento, ou seja, a preocupacio em veicular ‘um conhecimento enciclopédico. Deste modo, em ovecentas tess, também chamadas conclusies, apre- senta quer o seu pensamento pessoal, quer 0 pensa- mento dos que antes dele deram um contributo para a filosofia, Nas primeiras quatrocentas teses, que possuem uum cardcter historico-critico, refere-se as filosofias de pensadores que 0 precederam, como, por exem: plo, Pitagoras, Platio, Aristételes, Duns Escoto, Séo Tomas de Aquino, Alexandre de Afrodisia, Aver- ris, Avicena, os Cabalistas, Merciirio Trimegisto. As outras quinhentas teses exprimem o seu pen- samento! ” Giovanni di Napoli, Giovanni Pico della Mivandola ¢ la ‘problematica dotrinale del suo tempo. Roma, Ed. Pontefcc, 195. Neste estudo, di Napoli chama a atencio de um modo muito interessante para 0 facto de verdadeiramente no se poder falar em fontes acerca do pensamento do nosso flbsofo, na ‘medida em que, a ter de se considerar as fontes, estas seriam todos os documentos que constituiam a biblioteca do seu tempo. Isto nio significa que Pico nio preferisse certs filiso- fos em detrimento de outros, mas em geral extimava todos, 2 Ora, estas novecentas teses foram escritas com a intengio de promover, em Roma, em 1487, uma discussio filos6fica piblica, tio alargada quanto possivel, que devia reunir os filésofos de todas as tendéncias, unidos num esforgo comum de aproxi- macio a verdade e de promocio da concérdia entre todas as doutrinas. Pico propunha-se discutir acerea de tudo, isto 6, de omni scibil. Tal propésito suscitou imediatamente opositores, que viam num projecto como este um gesto extrava- gante, ou um sinal de orgulho desmedido, por parte de alguém que era ainda muito jovem para poder sustentar uma disputa destas. Porém, as criticas mais contundentes e que determinaram a sorte da disputa ‘que nunca se chegou a realizar, foram as que apon- taram como estando eivadas de heresia algumas das suas teses. De facto, algum sabor heterodoxo estava contido em concepgées como aquelas em que fazia referéncia a defesa de Origenes ou a negacio da eternidade das penas do Inferno. Desagrado susci- tou também a sua defesa da magia € da Cabala. Ermolao Barbaro, nesta oposicéo & disputa romana, assume um papel de contraditor mode- rado, considerando-o um sofista e comparando-o a Gorgias, pronunciando-se contra este estilo de discussdes publicas, imiteis e vas, porque nio conduzem a uma obtencao da verdade ¢ apenas visam a obtencao de prestigio de honras. ‘com certa reserva declarada relativamente aos representantes dda astrologia judiciria que considerava nio fil6sofos, mas charlaties. 2 A Oratio, como se pode verificar, foi concebida, no como uma obra auténoma, mas como a intro- dugio necesséria & abertura da disputa romana € tendo jé presente algumas das criticas apontadas as concluses Primeiramente, treze teses da segunda parte, portanto, teses em que Giovanni Pico exprimia as suas opinides, so consideradas heréticas. Em sua defesa, escreve a Apologia (1487), onde retoma temas presentes na Oratio e que dedica a Lourenco de Medici, seu amigo e fiel protector. Com a pul cacao desta obra, escrita num estado de espirito exaltado € nervoso, Inocéncio VII condena em loco as novecentas teses. Devido a este facto, 0 Conde de Concérdia foge para Franca, onde tem- porariamente permanece prisioneiro, regressando em 1488 a Itélia, sob a proteccio de Lourenco 0 Magnifico. Alexandre IV, 0 Papa que sucedeu a Inocéncio VIII, concede-the, em 1493, a absolvicio por heresia. Desde 1488, até ao momento da sua morte em 1496, em Florenca, talvez por influéncia do seu grande amigo Savonarola, que em 1489 foi chamado a Florenca por Lourenco de Medici, por seu conse- Iho, Giovanni Pico dedica-se a uma vida austera, meditando ¢ alargando os seus conhecimentos reli giosos. J4 nao é o homem impetuoso e irrequieto, suscitador de polémicas, as suas exigéncias reli giosas ¢ morais provocam uma reflex4o mais pro- funda, embora nao Ihe tivessem apagado a insaci vel ansia de saber. Em 1496, morre em Florenca. Nesse mesmo ano, a Oratio é publicada pelo seu as sobrinho Gian Francesco della Mirandola, postuma- mente, e precedida de um breve prélogo de apre- sentagao onde procura reabilitar a figura do tio. 0 SENTIDO DA ORATIO ‘Quando nos aproximamos do pensamento de um filésofo como 0 do Conde della Mirandola, se quere- mos detectar qual 0 seu contributo para a historia da filosofia, ¢ necessério atendermos a génese do seu pensamento. Nesse sentido, o estudo da sua forma- Go, que sumariamente foi apresentada nos tracos biogréficos, constitui um elemento que ajuda & com- preensio do seu filosofar. Porém, e como é evidente, isso nao basta € € necessétio ir mais além. O que agora nos interessa salientar, numa andlise que se queira filoséfica, € 0 ritmo préprio ¢ peculiar da sua aproximacio filosofica isto 6, procurar a intuigio que deu origem & sua meditacdo, ou entio procurar determinar 0s centras da sua reflexio. Eugenio Garin, com muita acuidade, chama a atengao para 0 erro hermenéutico de se procurar fornecer visées unificantes da filosofia de Pico, *deformando gravemente o seu pensamento. Tomar como aglutinador de todas as outras probleméticas tum s6 tema é forcar e até mesmo reduzir a comple- xidade do seu pensamento, cortar a sua riqueza® © GE Eugenio Garin, Lopera¢ il penser di Giovani Pico della Mirandola, Florenca, Istituto Narionale di Studi sul Rinascimento, 1964, a Assim sendo, talvez ndo interesse tanto procurar a intuigio original, ou seja, 0 ponto de partida da sua reflexdo, porque tal metodologia nio reflecte 0 ritmo do seu filosofar, quanto interrogar-nos acerca dos centros da sua meditacio, a fim de acedermos a0 seu real processo de filosofar. Tais centros de reflexio encontram-se na Oratio, nao de um modo totalmente desenvolvido ou tema- tizado, mas pelo menos acenados. Assim, néo é tanto 0 jogo de influéncias que constitui um pro- blema filoséfico a debater quanto, numa atitude hermenéutica, colhida numa licéo dos textos, a deter- minacao dos temas que permitem organizar 0 seu pensamento. Em Giovanni Pico, 0 recurso a todo 0 aparato critico € erudito que a época propiciava, especial- mente uma plena utilizacio do retorno aos filésofos antigos? constitufa um pretexto para uma outra o do mundo, assente sobretudo numa inter zacao do jé dito ou do ja feito, uma espécie de ‘experiéncia interior da filosofia, isto é, uma concep- a0 filos6fica passada pelo crivo da sua atitude critica, que se propunha nio jurar nas palavras de ninguém ¢, simultaneamente, superar 0 «saber ape- nas de reflexo dos livros Sera, entio, tendo presente este seu ponto de vista, que procuraremos referenciar os centros da reflexdo piquiana presentes na Oratio. De um modo * Acerca da questéo do retorno dos filsofos antigs, cf Eugenio Garin, 1! retamno de flasofi antici. Napoles, Biblio. polis, 1983 2 muito claro, esta esté dividida em duas partes, uma primeira que diz respeito a dignidade do homem, luma segunda, que tematiza a questao da paz filos6- fica ou concérdia. ‘A DIGNIDADE DO HOMEM (© problema da dignidade do homem & perspecti- vado em funcio do lugar central que este ocupa no universo, ponto de referéncia de toda a realidade. Dai podermos falar em antropocentrismo. Esta preocupacio por uma valorizacéo do homem na sua condigio terrestre, se bem que encontre no nosso autor a sua méxima expressdo, nao é nova na época, pois jé tinha encontrado algumas formas de expresso em autores humanistas, especialmente a tematizacio de Gianozzo Manetti, discipulo de Ambrogio Traversari, que celebrou 0 homem ¢ a sua dignidade, ao acentuar 0 valor da actividade humana, mas s6 na medida em que esta Ihe é conferida pelo Criador. Gianozzo nao entrevé, no entanto, 0 alcance ontolégico, metafisico ¢ ético desta tese. Tal intuigio estd reservada a Giovanni Pico della Mirandola De facto, no Conte di Concordia, esta questio surge como uma tematiza¢ao muito mais elaborada, podendo nés detectar na temitica da dignidade do homem a articulagdo de trés de inteligibi- lidade: ela é um problema da razao; € um problema da liberdade humana; e é um problema de ser. Dialéctica, ética e metafisica esto aqui implicadas. 26 Com efeito, neste seu texto, surge inequivo- camente uma afirmacio da razao e do seu poder indagador, enquanto envolve uma possibilidade de compreender, sendo o filésofo o ser privilegiado or ter como atributo o discernir «com recta razio>, ¢ sendo a filosofia caracterizada como um discurso dessa mesma razio, Ora, precisamente esta capacidade racional que permite ao homem tomar consciéncia da sua dimensao como ser livre. A tematizacio do antro- pocentrismo piquiano vem dada essencialmente a partir da consideracio da liberdade humana, virada, sem diivida, para a acco ética, portanto, com alcance pratico, mas articulando um nivel ontolé- gico. O homem é o ser mais digno da Criacio de Deus, porque foi colocado no centro do universo porque de tudo quanto foi criado ele possui as sementes. Ser ontologicamente de natureza inde- terminada, distingue-se, por tal facto, tanto do mundo natural como do mundo angélico, de que € © mediador, distingue-se ainda devido a ser 0 artifice de si mesmo, de tal modo que © problema da sua natureza ndo se pode pér a priori, mas tdo-s6 @ posteriori. Enquanto o animal, devido natureza que Ihe & dada a partida, s6 pode ser animal € 0 anjo s6 pode ser anjo, o homem tem quase 0 poder divino de se constituir segundo aquilo que quiser ser: pode degenerar até aos brutos ¢ pode regenerar-se até aos anjos, mas a possibilidade de viver como os animais ou como os seres espirituais depende inteiramente de si mesmo, isto é, da sua escolha. Esta tese, para a 27 época, € verdadeiramente notivel e peculiar, 0 ho- mem, ser de natureza indefinida, com a possibilida- de de ser tudo, est4 condenado a escolher, esté condenado a liberdade, por parte de Deus. E por- que tem de escolher, o homem é fautor do seu destino. Eis o grande milagre. ‘Acentua-se assim o predominio da vontade sobre o saber abstracto, sugestio certamente colhida nas suas leituras de autores medievais de raiz augustiniana, Tal facto, determina, sem diivida, que © nosso autor considere que esta vontade, que é livre, € que como tal postula a ‘escolha livre, se se quiser realizar numa dimensao de facto humana, tem de estar orientada para o bem. Ohomem nao se deve contentar com as coisas mediocres, mas deve aspirar as mais altas. Ha aqui como que um compromisso ético diferente do dado ontolégico. Encontramo-nos perante uma ética do poder ser, em que o homem, orientado pela razdo € desde que isso seja possivel (questéo dos limites humanos da accio), age com vista a obtengao dos mais altos valores espirituais. Esta €uma outra forma de a sua superioridade se expressar relativamente a todos os outros seres criados. Mas esta questo da dignidade do homem tem também um alcance ontolégico. O facto de o homem se constituir como um ser de natureza indefinida nao aponta para uma pobreza ontolé- gica, mas para uma riqueza. Porque em si estéo colocadas todas as sementes dos seres criados, hé no homem uma superabundancia que Ihe € con- 28 ferida a partida e que Ihe compete, mediante a escolha, fazer frutificar. Como refere Sante Pignagnoli,” esta indefinicao éntica, numa lingua- gem actual, funciona como um pré-reflexivo, um pré-categorial, que tem de ser determinado a partir da accéo. O homem possui, entao, o poder de se autodeterminar € deste modo coloca-se acima do mundo fisico-biol6gico. Inscreve-se aqui 0 problema da responsabilidad moral. De facto, podemos dizer que ha na sua filosofia um predominio da filosofia moral, na medida em que esta possui um valor terapéutico para o homem. A recondugio do homem a Deus dé-se por via ética e a sua liberdade di-se como imago Dei: 0 homem acaba por aparecer como um deus terreno," necessariamente imper- feito, porque é apenas reflexo e imagem, isto é, ser semelhanca de Deus que, no entanto, sempre Ihe Permanece transcendente. Eis uma perspectiva metafisica. Retomando esta questo da dignidade, parece-nos litil relacioné-la com outros dois problemas que a Oratio aponta € que sao relevantes na economia do seu pensamento: sio eles a magia ¢ a condenacio da astrologia, que deu mais tarde origem a polé- mica anti-astrolégica. O primeiro problema pro- longa a questio da dignidade, o segundo articula-se com 0 da liberdade. CF. Giovanni Pico della Mirandola, La digniti dell wom. Introduzione di Fabio Sante Pignagnol, 24 ed., Bolonha, Patron, 1970, p. 36. "CE. Idem, Tbidem. p. 39. 9 Referindo-se & magia, 0 nosso autor distingue uma «boa» magia de uma «mé» magia, isto é, esta- belece a diferenga entre uma magia natural, que est ao alcance do homem e que € considerada louvavel, simbolo da sua dignidade, porque € 0 fruto do poder do homem, e uma magia de origem diabélica, reprovavel, que s6 & praticada secreta- mente, porque nao dignifica os seus cultores, antes ‘0s submete aos seus poderes maléficos.” ‘A boa magia identifica-se com um conhecimento da natureza que pressupée a compreensio dos seus segredos © do desfrutar das suas possibilidades escondidas, isto é, dos seus poderes. Tal questio inscreve-se na dignidade do homem, enquanto ser capaz de encontrar, pela razio, a intima harmonia do universo, dominando 0 seu poder, colocando-o a0 seu servico € desvendando os seus mais arcanos segredos. Tal concepgio e magia seria a antecessora da ciéncia experimental moderna ¢ da ciéncia tecnologica contemporanea. Dai algumas referén- cias a Pico antecipando intuitivamente a concepcéo de um homem tecnol6gico, enquanto defensor de uma ciéncia de dominio da natureza. ‘A sua condenacio da astrologia, tese a que se sempre se manteve fiel, inscreve-se, por um lado, numa problematica muito caracteristica do Renasci- ‘mento, por outro, no enraizamento da liberdade: se se aceitar a tese de que os astros influenciam a vida humana e determinam o dia a dia do homem, entio, Gf, Frances Yates, Giovanni Pico della Mirandola and magic. «Relazionin, lorenca, 1965, p. 134 30 © problema da liberdade humana nao teria sentido. Assim, desejoso de a salvaguardar, 0 nosso filésofo opée-se a todas as férmulas de ocultismo ou de astrologia, porque estas teorias acabavam por apon- tar para um necessitarismo e determinismo do agir humano, que a sua concepeao ética nao podia acei- tar. O nosso filésofo nfo nega que exista uma harmonia entre todos os seres do universo, por- tanto, ndo recusa a tese de que entre o mundo dos astros ¢ o mundo humano haja uma relaclo, o que nega efectivamente, é que 0s astros tenham de uma forma directa 0 poder de influir nos acontecimen- tos humanos. Com esta sua concepeio, opée-se, quer a Marsilio Ficino, extremamente sensivel € defensor da astrologia, quer a todo um ambiente caracteristico do Renascimento, como bem demons- tra Cesare Vasoli na sua'obra intitulada I Mit e gli Astri, onde evidencia precisamente o papel central que a astrologia tinha adquirido neste €poca.” Por tudo isto, de salientar também a posicio inovadora deste pensador, que coloca a questio dando-the uma outra dimenséo a partir da consideracéo de que a liberdade co-essencial ao homem, mas que (098 astros nao o sao. Esta sua concepcao dé origem 4 redacco, em 1493, da obra Disputationes Adversus Astrologiam Divinatriem, que envolve o seu autor em mais uma polémica, obrigando-o, para defender a sua tese, a colocar de uma maneira muito clara a relacdo entre o homem e a natureza. GE. Cesare Vasoli, I mite gi astr, Napoles, Guida Ed, 197. 31 CONCORDIA ‘A Concérdia ou paz filoséfica é também um tema central de Oratio e podemos consideré-la como tum dos centros da sua reflexdo, talvez aquele que melhor corresponde a intencio e 205 propé desta obra. ‘O tema da concérdia pode ter diferentes leituras, ou diferentes niveis de interpretacdo, no entanto, num primeiro momento, ela é suscitada por um problema filos6fico que constitui uma antiga preo- cupagio de Giovanni Pico, ou seja, 0 acordo, a0 limite, entre todos os pensadores, mesmo dos que & partida parecem mais se opor. Este acordo foi Gialmente intuido acerca da filosofia de Platao ¢ de Aristételes, mas que, embora acenado na Oratio, s6 mais tarde encontraré a sua plena tematizacao com a redaccio da obra De Ente et Uno, em 1490. Esta sua secreta conviccdo estendeu-se a todos 0s filéso- fos, a todas as correntes, € a Disputa Romana seria precisamente o lugar privilegiado, no entender do nosso autor, para demonstrar esta tese. Pico acalen- tava a ideia de, num gigantesco esforgo conciliador, promover a concérdia universal entre todos os filé- sofos. Ora, tal concepcio pode ser compreendida a partir de varias instincias: a de prisca theologia, a de unidade da religido no Cristianismo, a de unidade do pensamento humano e, por fim, a de unidade da verdade. ‘A nogio de prisca theologia, cuja introducao tem 1a sua origem em Marsilio Ficino, que a descobriu ¢ valorizou, trabalha a favor da unidade, na medida 32 em que com ela se quer significar que hé uma tradicdo religiosa ininterrupta que liga as religibes mais antigas — recuando assim ao seu inicio com Zoroastro e Trimegisto — a religido crista, tal como ela se apresentava na época de Marsilio Ficino. Como elos desta cadeia, teriamos, dentro de uma tradicéo e de um esquema apoiado nas teses neo- platénicas, sucedendo aos primeiros, isto é, a Zoro- astro € a Hermes Trimegisto, Aglaofemo, Pitégoras, Platdo, Plotino, Jamblico, Proclo e todos os medie- vais platonizantes. Marsilio Ficino considerava-se 0 iiltimo anel desta cadeia. Deste modo se teria trans- mitido a arcana sabedoria dos Egipcios e dos Caldeus aos Gregos. que por sua vez a transmitiram aos vindouros.* Ora, esta concepcao de prisca theologia, ¢ reelabo- ada por Giovanni Pico della Mirandola a luz da sua concepgao filoséfica, integrando nesta cadeia inin- terrupta outros fildsofos € sobretudo a Cabala, que, segundo a sua conviccio, se harmoniza com o essen- ial da verdade que 0 Cristianismo afirma. Porém, este seu interesse pela Cabala, mais do que uma tomada de posicéo a seu favor, é sobretudo uma estratégia conducente a elaboracio de uma tese apologética da verdade que o Cristianismo veicula. 0 problema da unidade do pensamento, no Conde della Mirandola, liga-se ao tema da unidade da verdade. Para 0 nosso fildsofo, a verdade é imutével ¢ universal ¢, se assim é, entéo todas as ™ Marsilio Ficino, Opera omnia. Turim, Botega Erasmo, 1962, 2 voll Cf. voll II, p. 1836. 33 filosofias se constituem como uma aproximacio a verdade, ou seja, cada uma, a sua maneira, participa da verdade. Toda a relevancia conferida a tradicio filoséfica fica, entio, aqui justificada. ‘A possibilidade de uma conciliacdo de todos os pensamentos reside precisamente aqui: a promosio da concérdia € possivel a partir do movimento de recondugéo de cada pensamento particular & Verdade que € perspectivada como Una, Universal € Transcendente. Esta questio da concérdia ou paz filoséfica tem os seus antecedentes, embora seja 0 nosso autor aquele que mais alargou 0 ambito da nocdo de concérdia, sinal de um espirito irénico e tolerante, Se na nogao de Prisca Theologia podemos encon- trar uma sugestio que Giovanni Pico colheu, é contudo com o pensamento de Nicolau de Cusa que maior afinidade esta sua tematizacio apresenta, ‘embora este autor alemio coloque a questio em termos essencialmente teol6gicos, € 0 nosso em termos fundamentalmente filosoficos. Nicolau de Cusa, na sua obra De Pace et Concor- dantia Fide, refere-se ao facto de as miitiplas formas € costumes segundo 0s quais os povos adoram a Deus, sob a forma de uma multipliidade de divindades, corresponder a necessidade de, mediante determina- (es concretas, se captar uma realidade que verdadei- amente € incaptavel e que 20 limite se identifica com © Deus do Cristianismo. Ora, tal tese exerceu, sem diivida, certa influéncia no seu pensamento. Este tema da paz, que ganha hoje em dia plena actualidade, quer na sua dimensio ético-reigiosa, 34 quer mesmo politico-estratégica, fax de Giovanni Pico um autor verdadeiramente universal. A paz — niicleo indiscutivel da Oratio—, no dizer de Euge- nio Garin, uma espécie de hino & paz doutrinal, ou seja, aposta num acordo de fundo e substancial entre todos os pensamentos, fildsofos ¢ correntes. Tal facto seria, no entender do nosso autor, atin- gido pelo didlogo, tal como o concebeu aquando do Projecto da disputa romana. Esta ideia de uma unidade superior justificadora de cada filosofia particular aparece-nos como uma ideia reguladora & maneira kantiana. Para o tempo de Giovanni Pico, tratava-se tam- bem de resolver, mediante uma superacio, por sintese, um dos grandes contrastes que atravessou, ‘em termos teoréticos, a sua época, ou seja, a oposi- do entre platonismo ¢ aristotelismo, sem cair, no entanto, na posicéo ficiniana de submeter este tiltimo ao primeiro, mas antes numa posicio de igualdade, de integracdo ¢ complementaridade. Ora, esta atitude —de defensor intransigente do acordo ¢ da concérdia entre Platio e Aris- tételes—esté na origem, precisamente, de uma interpretacao de Giovanni Pico como ecléctico ou mesmo sincrético. Entre os defensores da tese sin- cretistica temos, por exemplo, P. Kristeller" Porém, com outro tipo de argumentacio, a esta interpreta. ® CE. Paul Oskar Kristeller, Oto penstor del Rinascimento italiano, Mitéo-Napoles, Riccardo Ricciardi ed. 1970, p. 61-79. Exte autor expressa a opinio a favor de uma consideracio sincretista relatvamente a0 pensamento de Pico. 35 ‘cdo opée-se Pina Martins e Eugenio Garin’* que nao consideram haver uma posicéo ecléctica ou sincrética no seu pensamento. Para este tltimo espe- alista do pensamento piquiano, tais consideracées interpretativas sio superadas a partir da reformula- cio da questio: o que esti implicado na atitude filoséfica de Giovanni Pico della Mirandola é, sem dtivida, a tomada de consciéncia € a conviccéo de que € possivel integrar numa busca comum da verdade filos6fica e teologica —tarefa que € 0 objectivo primordial de toda a filosofia que seria- mente se constitui como tal — uma pluralidade de pontos de vista, tendo como horizonte a constitui io de uma harmonia superior, que esté para além da particularidade e limite da cada filosofia con- creta, ‘Quando Ermolao Barbaro o acusa, na sua céle- bre carta, de traidor, por passar do campo aristoté- lico para 0 campo plat6nico (como se de uma bata- "© "Tanto Pina Martins na sua monografia ja citada, sobre Pico, como Eugenio Garin, na sua obra fundamental de renovagio dos estudos piquianos, ittulada Giouanni Pico della Mirandola. Vita e datina, Florenca, Le Mounier, 1937, rflec- tem acerca da questio do eceetismo € ou do sincretismo do Conde de Mirandola, considerando que este fil6sofo supera cessas posigdes, Ento 0 que hi, no pentamento deste autor, & sobretudo a tomada de conscénca de uma pluralidade de pontos de vista, entre si integriveis e susceptiveis de uma harmonia superior, tendo como objectivo 2 procura da ver- dade que se di como inatingivel no plano da investigacso humana, 36 Iha se tratasse, quanto ao confronto das duas posi- Ges que apareciam como extremadas), a resposta do nosso filésofo é muito clara e j4 pré-anuncia este ideal de concérdia, ao dizer que era como explorador € nao como trinsfuga que agora acedia ao conheci- mento dos mistérios plat6nicos. Ora, uma tal afir- macdo vem acentuar e sublinhar a sua atitude de conciliador, jé também prefigurada no seu propé- sito de nao jurar nas palavras de ninguém. A intuigio do nosso autor, relativamente a este problema, centra-se na conviegio de que a verdade se apura na dialéctica dos pontos de vista, consti- tuindo-se cada filosofar concreto como uma aproxi- macao a verdade que, no entanto, transcende a particularidade de cada aproximacio. 0 ELOGIO DA FILOSOFIA Para concluir, ¢ retomando uma afirmacéo feita no inicio deste estudo, relativamente ao facto de a Oratio ser um elegante elogio da filosofia, gostariamos de aduzir, a partir do préprio texto, alguns argu- mentos a favor desta tese. Procurando aceder ao niicleo significativo do que é a filosofia para 0 nosso autor, € tal como se tem vindo a demonstrar, ele centra-se numa reflexéo sobre 0 homem, acentuando neste a moralidade, mediante uma afirmagio inequivoca da liberdade humana enquanto esta esta orientada para o bem. ‘A questo fundamental a dilucidar e que aqui esta implicada diz respeito ao homem que sabe que a7 ‘tem uma tarefa terrena a desempenhar ¢ que esta ‘esté. a todo 0 momento invadida pelo divino. Hé ‘aqui uma revalorizacio do homem apoiada no Stu- dia Humanitatis. Porém, a tematizacio de Giovanni Pico rasga os horizontes deste humanismo de cariz predominantemente literério, ao centrar a reflexio acerca do homem na sua liberdade, retirando-o da hierarquia neoplaténica dos trés mundos: elemen- tar, celestial € angélico. Gracas a possibilidade indeterminada de ser tudo, o homem é né do uni- verso, vinculo que une o mundo sensivel ao inteligi- vel, microcosmos na acep¢io de mundo huma- nizado, metaforicamente tomado como «camaledo~, porque «animal de natureza varia, multiforme e mutivels!” Esta intuicao, que impressionou fortemente a sua época, nasce de uma vivéncia muito propria ¢ que est fundada no seu claro optimismo antropo- légico, presente e estruturante do seu pensamento ‘© que justifica simultaneamente o valor que confere dignidade do homem e a sua conviccio de que a az ou concérdia como momento de afirmacéo da solidariedade fraternal é possivel ser realizada Optimismo — nao obstante os reveses que a sua biografia aponta, numa época que foi espléndida, GF. Eugenio Garin, L'umanesimo italiano, 92 ed. Bar, Laterza, 1984, p. 128: «La celebrarione pichiana dell'vorno é tutta una sottintesa polemica contro il tema del microcosmo, tritum in schols, per giungere, capovengendo la tesi dell uni- verso che si incentra nell'uomo, allaltra, delf'uomo che si prolunga nelluniverso. 38 mas no foi feliz, antes tragica" — que nio esta desligado de riscos, de tenses e de equilibrios instaveis, suscitadores de anguistias quanto 4 pro- pria destinacao humana. Joga-se aqui, numa dialéc- tica do bem e do mal, a plenitude e a realizacio humana: o seu poder de degenerar ou de se rege- nerar. E tal tarefa responsabiliza-o frente a si mesmo ¢ frente‘a Deus. © homem, universo con- tracto, tem, de acordo com a hierarquia neoplaté- nica, o dever de se elevar até as realidades superio- res, subsumindo simultaneamente as inferiores. Ao homem compete a tarefa de espiritualizar o mundo. Daqui se segue a sua tematizacao do mal ligado ignorncia, & fraqueza da carne, & alteracéo da hierarquia dos valores, correspondendo o bem a ind nacido natural, 4 vontade livre e racional. Entio, podemos dizer que é a virtus que confere ao homem a dignidade e que o eleva acima de todas as outras iaturas, esse 0 magnum miraculum. Na sequéncia desta argumentacio, de todos os homens o mais excelente € digno € 0 filésofo, animal celeste», devido a0 poder indagador da recta razio, € isto porque nele se da a coincidéncia do saber e do agir orientados por um espfrito de verdade. Mas é da dignidade da filosofia que advém "GE. Eugenio Garin, Ritrati di humanii, p. 187: 0 723) DY NIT LR, idest homo variae ac multiformis et desultoriae naturae animal. Sed quor- sum haec? ut intelligamus, postquam hac nati sumus conditione, ut,id simus quod esse volumus, curare hoc potissimurn debere nos, ut illud quidem in nos non dicatur, cum in honore essemus non cognovisse similes factos brutis et iumentis insipientibus. Sed illud potius Asaph prophetae: «Dii ests et fii excelsi ‘omnes, ne, abutentes indulgentissima Patris liberali- tate, quam dedit ille liberam optionem, e salutari oxiam faciamus nobis. Invadat animum sacra quae- ‘dam ambitio ut mediocribus non contenti anhelemus ad summa, adque lla (quando possumus si volumus) ‘consequenda totis viribus enitamur. Dedignemur terrestria, caelestia contemnamus, et quicquid mundi est denique posthabentes, ultramundanam curiam emitensissimae divinitati proximam advolemus. Ibi, ut sacra tradunt mysteria, Saraphin, Cherubin et ‘Throni primas possident; horum nos iam cedere 54 ‘casca que faz a planta, mas a sua natureza entorpecida € insensivel; nio ¢ 0 couro que faz a jumenta, mas a alma bruta ¢ sensual; nem é 2 forma circular que faz 0 céu, mas a recta razio; nem é a separacio do corpo que faz 0 anjo, mas a inteligéncia spiritual. Por isso, se virmos alguém dedicado 20 ventre rastejar por terra como serpente, nio é homem 0 que v@, mas planta; se alguém cego. como Calipso, por vis mira: ‘gens da fantasia, seduzido por sensuais engodos, escravo dos sentidos, € uma besta o que vemos, ndo € um homem. Se € um fildsofo que discerne com recta razio todas as coisas, veneri- -lo-emos, é animal celeste, nio terreno. Se é um puro contem- plante, ignaro do corpo, todo embrenhado no amago da ‘mente, este no ¢ animal terreno, nem mesmo celeste: € um espirito mais elevado, revestido de carne humana. Quem pois ‘do admiraré 0 homem? Que io por acaso nos sagrados textos moisaicos ¢ crstios & chamado ora com o nome de cada ser de carne, ora com o de cada criatura, precsamente porque se forja, modela e transforma a si mesmo segundo o aspecto de cada ser a sua indole segundo a natureza de cada criatura? persa Evantes, por iso, onde expée a teora cakdaica escreve que © homem nao possui uma sua especifica ¢ nativa imagem, ‘mas muitas estranhas ¢ adventcias. Daf o dito caldaco de que 0 hhomem ¢ animal de natureza varia, multiforme e mutavel. “Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para que com- preendamos, a partir do momento em que nascemos na condicio de sermos 0 que quisermos, que © nosso dever & preocuparmo-nos sobretudo com isto: que ndo se diga de nés que estando em tal honra nao nos demos conta de nos termos tornado semelhantes as bestas e aos estpidos jumentos de carga. Acerca de nds repitase, antes, o dito do profeta Asaph: . Iterum sciscitantibus unde ‘aquas peterent, sic per parabolam (qui erat hom ‘mos) ills respondit: «quattuor amnibus paradisus Dei abluitur et irrigatur, indidem vobis salutares aquas hauriatis. Nomen ei qui ab aquilone Pischon, quod rectum denotat, ei qui ab occasu Dichon, quod expia- tionem significat, ei qui ab ortu Chiddekel, quod lumen sonat, ei qui a meridie Perath, quod pietatem interpretari possumus», Advertite animum et dili- genter considerate, Patres, quid haec sibi velint Zoro- astris dogmata: profecto nihil aliud nisi ut morali scientia, quasi undis hibericis, oculorum sordes expiemus; dialectica, quasi boreali amussi, illorum aciem liniemus ad rectum. Tum in naturali contem- platione debile adhuc veritatis lumen, quasi nascentis 7 com a celeste ambrésia das coisas divinas a pane divina da nossa alma. Este o glo co aspect teme e venerao leo io é toda 3 poténca terrena. E exe o gal, 20 qual, segundo Jo, foi conferida aintelgéncia. Com o canto deste galo arrepende-se ‘o homem extraviado, Ete € 0 galo que canta todos s das de madrugada, quando a: estrelas de manhd louvam a Deus reste galo que Socrates, na hora da morte, no momento em ‘que esperava reunir odivino da sua alma 3 divindade de tudo ¢ jafastado do perigo de qualquer doenca corpéres, conside- rava que devia & Esculipio isto ¢, a0 médico da alma, Examinemos também ot testemunhos dos Caldeus e, se acreditarmos neles, veremos que sio as mestas artes que abrem aos mortais 0 caminho da felcidade. Escrever os intérprete caldaicos que Zoroastro hava dito sera alma alada que, quando the caem as asas, se precipita no corpo e voltaa ‘oar para o céu quando Ihe tomam a crescer. Tendo-he os dliscipulos perguntado de que modo poderiam tornar a alma fapta para o voo com asas bem plumadas, «regu as ass, disse, com @ gua da vidas. E perguntndo-he ainda estes como poderiam obter tis éguas, respondewthes, segundo 0 seu Costume, com uma parabola: © paraiso de Deus € banhado e irrigado por quatro riot: a partir dal poderesatingir as éguas salutares. O nome daquele que corre de setenriéo € Pischon, aque significa justiga; 0 que vem do ocaso chama-se Dichon, isto 6, expiagio; o que vem do oriente€ Chiddekele significa luz; por fim, aquele que corre do sul chama-se Perath € podemos interpretar como fés. Pensa bem, 6 Padres, e consi derai com atengio o significado destes dogmas de Zoroastro; ‘ertamente nada mais significam do que isto, que devemos Putifcar a viscosidade dos olhos com a céncia moral, como com ondas ocidentais; que devemos dirigit atentamente 0 clhar com a dialéctica, como com um nivel boreal: que nos ddevemos habituar a suportar na contemplacio da natureza 2 ainda fraca luz da verdade, primeiro indicio do sol nasente: até que, finlmente, com a meditacdo teologicae o santssimo ‘cuko de Deus, postamos aguentarvigorosamente, como iguias do céu, o fulgurante esplendor do sol do meioda. Talver ‘scjam estes os conhecimentos matutinos, meridianose vesper- n solis incunabula, pati assuescamus, ut tandem per theologicam pietatem et sacratissimum Dei cultum, quasi caclestes aquilae, meridiantis solis fulgidissi mum iubar fortiter perferamus. Hae illae forsan et a Davide decantatae primum, et ab Augustino explica- tae latius, matutinae, meridianae et vespertinae nitiones. Haec est illa lux meridialis, quae Sera- phinos ad lineam inflammat et Cherubinos pariter illuminat. Haec illa regio, quam versus semper an quus pater Abraham proficiscebatur. Hic ille locus, ubi immungis spiritibus locum non esse et Cabalista- rum et Maurorum dogmata traditerunt. Et si secre- tiorum aliquid mysteriorum fas est vel sub aegnimate in publicum proferre, postquam et repens e caclo casus nostri hominis caput vertigine damnavit et, iuxta Hieremiam, ingressa per fenestras mors iecur ectusque male affecit, Raphaelem caelestem medi- cum advocemus, qui nos moral et dialectica uti phar- macis salutaribus liberet. Cum ad valitudinem bonam restitutos, iam Dei robur Gabriel inhabitabit, qui nos Per naturae ducens miracula, ubique Dei virtutem potestatemque indicans, tandem sacerdoti summo Michaeli nos tradet qui, sub stipendiis philosophiae emeritos, Theologiae sacerdotio quasi corona pre- iosi lapidis insignet. Haec sunt, Patres colendissimi, quae me ad philo- sophiae studium non animarunt modo sed compule- runt. Quae dicturus certe non eram, nisi his respon- derem qui philosophiae studium inprincipibus pra- esertim viris, aut his omnino qui mediocri fortuna vivunt, damnare solent. Est enim iam hoc totum phi- losophari (quae est nostae aetatis infelicitas) in ‘contemptum potius et contumeliam, quam in hono- rem et gloriam. Ita invasit fere omnium mentes exi- tialis haec et monstruosa persuasio, aut nihil aut pau- is philosophandum. Quasi rerum causas, naturae vias, universi rationem, Dei consilia, caelorum terra- eque mysteri tinos,cantados primeizo por David e em seguida explicados amplamente por Agostinho. Esta & a luz resplandecente que inflama os Serafins ¢ do mesmo mado ilumina os Querubins. Esta € a regiio para a qual tendia sempre o antigo pai Abraso. E este 0 lugar onde, segundo 0 ensino dos Catalias ¢ dot Arabes, ndo ha lugar para os expritos impuros. Ese €lctotrazer a publicoalguma coisa dos mais secretoe rmisétos, ainda que #820 0 véu do enigma, dado que a nossa inprevista queda do céu condenow i vertigem a cabeca do hhomem: segundo as palavras de Jeremias, de facto, foram abertas as janelas& morte, a qual angio coracio eo figado, invoquemos Rafael, médico celeste, para que nos liberte com a moral e a dialética, farmacos salutares. Habitard entio em ns, jt outra vez de boa sade, Gabriel, forca de Deus, levando-nos através das maravilhas da natureza e mostrando- -n0s por todo o ldo a virtde eo poder de Deus, apresentar- -nos-4 finalmente a Miguel sumo sacerdote, 0 qual, apée termos prestado servi nas milicias da Filosofia, nos coroard, ‘como se se tratasse de uma coroa de pedras precios, com 0 sacerdécio da Teologia. Estes so 08 motvos. enerandos Padres, que no 88 me encorajaram, mas também me impeiram ao estudo da floo- fia, Geramente néo os teria exposto 56 no tvese de respon: der a todos quantos tém o habito de condenar o extudo da filosofia, sobretudo aos princpes, os que gozam em geral de uma qualquer fortuna. Todo este filosola, de facto, da so mais a0 desprezoe 20 vtupério— c isto € uma inflicidade do nosso tempo— do que a honra e & gloria. E esta funesta © rmonstruosa convieeio invadiu de tal modo a mente da maio- ¥ia que 36 pouguissimos. ou mesmo ninguém, deviam poder filosofar: como seo investigar as auras das coisas. on proces sos da natureza, a razio do universo, os conselhos de Deus, of mistéros do céue da terra nio valese de nada, a menos que dal se consiga retirar algo de wil ou de Iicrativo, Chegémos a uum al ponto, actualmente, e € uma dor de alma, que no se consideram sibios sendo os que wansformaram o eaudo da sabedoria em fonte de lucro, de tal modo que se pode ver a ‘asta Palas, enviada para o meio dos homens por dom divino, ™ sima habere nihil sit prorsus, nisi vel gratiam inde aucupari aliquam, vel lucrum sibi quis comparare ossit. Quin eo deventum est ut iam (proh dolor!) non existimentur sapientes nisi qui mercenarium faciunt studium sapientiae, ut sit videre pudicam Palladem, deorum munere inter homines diversan- tem, eiici, explodi, exsibilari; non habere qui amet, iui faveat, nisi ipsa, quasi prostans et praefloratae virginitatis accepta mercedula, male paratum aes in amatoris arculam referat. Quae omnia ego non sine summo dolore et indignatione in huius temporis, non Principes, sed philosophos dico, qui ideo non esse Philosophandum et cedunt et praedicant, quod ph phis nulla merces, nulla sint praemia constituta, quasinon ostendant ipsi, hoc uno nomine, se non esse philosophos. Quod cum tota eorum vita sit vel in quaestu, vel in ambitione posita, ipsam per se veritas cognitionem non amplectuntur. Dabo hoc mihi, et meipsum hac ex parte laudare nihil erubescam, me ‘numquam alia de causa philosophatum nisi ut philo- sopharer, nec ex studiis meis, ex meis lucubrationi- bus, mercedem ullam aut fructum vel sperasse alium vel quaesiisse, quam animi cultum et a me semper plurimum desideratae veritatis cognitionem. Cuius ita cupidus semper et amantissimus fui ut, relicta omni privatarum et publicarum rerum cura, contem- plandi ocio totum me tradiderim; a quo nullae in dorum obtrectationes, nulla hostium sapientiae male- dicta, vel potuerunt antehac, vel in posterum me deterrere poterunt. Docuit me ipsa philosophia a propria potius conscientia quam ab externis pendere Iudicis, cogitareque semper, non tam ne male audiam, quam ne quid male dicam ipse vel agam. Equidem non eram nescius, Patres colendissimi, futuram hanc ipsam meam disputationem quam vobis omnibus, qui bonis artibus favetis et augustissima vestra praesentia illam honestare voluistis, gratam atque iucundam, tam multi aliis gravem atque molestam; et scio non ” expulsa, ridicularizada e vilipendiada. Nio hé quem a ame, quem a siga sendo com a condicéo de se proscuir de iar Juco da sua vilada vrgindade e,reebido o dnheiro, dear css mal obtdo dinheiro no cofre do amante digo tudo isto, nfo sem uma enorme dor e profunda indignacio, nio jé contra os princips, mas contra os fisofos do nosso tempo, os quas aceditam e dizem que nio se deve filosofar porque nio se estabeleceram prémios ¢recompensas para 0s filésofos; como se no mostrasiem precisamente com esta afirmacio nio serem filéofos. Toda a vida destes, efect- vamente, a9 assentar no lucro ou na ambicio, mostra que el ‘io abraram por si mesmo o conhecimento da verdade ‘A mim mesmo concederei apenas isto, e no corarei, pois, por ser elogiado, que nunca filosfei senfo pelo amor da pura Filosofia, nem nunca esperei ou procurei com oF meus etidos as minhas medizagbes ober alguma mercé ou algum fruto rio ser a formacio da minha alma e 0 conhecimento da verdade, por mim ansiada acima de qualquer outa coisa. Da qual tenho sido sempre um amamte tio apaixonado que, abandonada toda ¢ qualquer preocupacdo relativamente 208 negécios privados e piblicos, me dediquei completamente & paz da meditacio; disto nem calinias de invejoios nem a ‘maldade dos inimigos do saber me puderam até aqui dewviar nunca 0 poderio. Foi flosofia que me ensinot a depender mais da minha conscigncia do que dos juizos dos outros estar sempre atento, no a0 mal que de mim se diz, mas 8 ‘io dizer ou a nio fazer eu proprio o mal. Néo ignorava certamente, venerandos Padres, que esta iscuscio acabaria por ser tio apreciada agradavel a todos 6s, amantes das artes Iberas ¢ dando voluntariamente pres Ligio 4 iniciativa com a vossa augustisima presenga, quanto intolerivel e molesta a muitos outros, ¢ bem sei que nio faltam os que jf condenaram antes e condenam agora de ‘muitas maneira a minha iniiativa, de tal modo que as boas € santatinicativas tim habieualmente implaciveiscriicas, 6 rio mais, decerto nfo menos numerosas, do que a iniquas © viciosas. Alguns hi que desaprovam este género de discussio ¢ esta minha inidativa de debater em publico quests doutr- 6 deesse qui inceptum meum et damnarint antehac et in praesentia multis nominibus damnent. Ita con- sueverunt non pauciores, ne dicam plures, habere oblatratores quae bene sancteque aguntur ad virtu- tem, quam quae inique et perperam ad vitium. Sunt autem qui totum hoc disputandi genus et hanc de literis publice disceptandi institutionem non appro- bent, ad pompam potius ingenii et doctrinae, quam ad comparandam eruditionem esse illam asseveran- tes. Sunt qui hoc quidem exercitationis genus non improbent, sed in me nullo modo probent, quod ego hac aetate, quartum sclicet et vigesimum modo natus annum, de sublimibus Christianae theologiae myste- riis, de altissimis philosophiae locis, de incognitis disciplinis, in celebratissima urbe, in amplissimo doctissimorum hominum consessu, in Apostolico senatu, disputationem proponere sim ausus. Alii, hoc mihi dantes quod disputem, id dare nolunt quod de nongentis disputem quaestionibus, tam superfluo et ambitiose quam supra vires id factum calumniantes Horum ego obiectamentis et manusillico dedissem, si ita quam profiteor philosophia me edocuisset et nunc, illa ta me docente, non responderem, si rixandi iur= gandique proposivo constituam hanc inter nos isceptationem crederem. Quare, obtrectandi omne lacessendique propositum, et quem scribit Plato a divino semper abesse choro, a nostris quoque menti- bus facessat livor, et an disputandum a me, an de tot etiam quaestionibus, amice incognoscamus. Primum quidem ad eos, qui hunc publice disputandi morem calumniantur, multa non sum dicturus, quando haec culpa, si culpa censetur, non solum vobis omnibus, doctores excellentissimi, qui saepius hoc munere, non sine summa et laude et gloria, functi estis, sed Platoni, sed Aristoteli, sed probatissimis omnium aetatum philosophis mecum est communis. Quibus ‘erat certissimum nihil ad consequendam quam quae- ebant veritatis cognitionem sibi esse, potius quam ut 6 ais, afirmando que tudo isto tem mais como intengdo mos- trar engenbo ¢ erudigio do que obter um melhor conheci- mento. Outros, embora no desaprovando esta espécie de cexercicio, nio 0 aprovam absolutamente no meu caso, visto {que eu, com esta dade, isto, com apenas vnte€ quatro anos, tive a ousadia de propor uma dscuseo acerea dos mistéios mais altos da religio erst, acerea das questhes mais profun- das da filosofia, acerea de doutrinas desconhecidas, numa Cidade famosssima, numa vasusima assembleia de homens dloutssimos, frente a0 senado Apostiico. Outros, embora consentindo que eu discuta, no admitem que eu discuta acerca de novecentosassuntos,afirmando maldosamente que isto € uma atitude to soberba e ambiciosa como acima esti das minhas foreas As objecgdes de todos estes me teria rendido imediata- mente se assim me tveste ensinado a flosofia que profes; nem mesmo agora, pelo seu ensino, responderia se eu consi- derasse que esta dicussfo tinha sido levada a cabo com 0 propésito de akerear © polemizar entre nds. Est, portant Tonge do nosso énimo qualquer intencio deliigio ¢ de provo- cacho € a inveja que, segundo Plati, afata dos deuses; fxaminemos, antes, amigavelmente se & admisivel que eu tenha inidado esta dsputa e tenha discutido tanta queses. ‘Aos que citcam o habito de discuir em piblco nio drei ‘muitas coisas, a partir do momento em que tal culpa # como culpa € considerada, no € s6 comum a todos vs, eximios doutores, que muitas vezes haveisassumido esta tarefa no sem grande lowvore gléria, mas também a Patio, a Arise les, a todos os filbsofos mais famotos de todos os tempos. Os ‘quaistinham por cersima conviegio que nada Ihes era mais favorivel para a obtencio da verdade que procuravam do que 0 exercicio continuo e frequente da discuss. De facto, do ‘mesmo modo que as forcas do corpo se robustecem com a indstica, asim também, sem divida, nesta espéce de pasta do expiito, a energia da alma se tora mais forte ¢ firme. E-eu sou levado a crer que isto quiseram dar a entender os poctas com a8 famosas armas de Palas, ou os Hebreus conside- Tando © ferro simbolo dos sapientes, acerca da conveninia n essent in disputandi exercitatione_frequentissimi Sicut enim per gymnasticam corporis vires firmiores Sunt ita dubio procul, in hac quasiliterariapalaestra, animi vires et fortiores longe et vegetiores evadunt Nec crediderim ego aut Poetas aliud,per decantata Palladis arma, aut Hebraeos, cum 5913. ferrum, sapientum symbolum esse dicunt, significasse nobis eam honestisima hoc genus certamina,adipiscen- ae sapientiae oppido quam necessaria. Quo forte fit utet Chaldaei, in eius genesi qui philosophus sit futu- rus, illud desiderent, ut Mars Mercurium triquetro aspectu conspciat, quasi, s hos congressus, habla substuleris, somniculosa et dormitans futura sit omnis philosophia. At vero cum his qui me huic provinciae Imparem dicunt, difficilior est mihi ratio defensionis: nam si parem me dixero, forsitan immodesti et de se nimia sentientis, si imparem fatebor, temerarii et inconsulti notam videor subiturus. Videte quas incidi angustias, quo loco sim constitutus, dum non possum sine culpa de me promittere, quod non possum mox sine culpa non praestare. Forte et illud Job afferre possem, spiritum esse in omnibus, et cum Timotheo audire «nemo contemnat adolescentiam tuam». Sed ex mea verius hoc conscientia dixero, nihil esse in nobis magnum vel singulare; studio, sum me forte et cupidum bonarum artium non inficiatus, docti tamen nomen mihi nec sumo nec arrogo. Quare et quod tam grande humeris onus imposuerim, non fuit propte- Tea quod mihi conscius nostrae infirmitatis non essem, sed quod sciebam hoc genus pugnis, idest literaris, esse peculiare quod in eis lucrum est vinci Quo fit ‘ut imbecillisimus quisque non detractare modo, sed appetere ultro eas iure possit et debeat. Quandoquidem qui succumbit beneficium a victore accipit, non iniuriam, quippe qui per eum et locuple- tior domum, idest doctior et ad futuras pugnas redit instructior. Hac spe animatus, ego infirmus miles cum fortissimis omnium strenuissimisque tam gra- 7 de tal género de lutas para obter a sapiéncia, asim como a necessidade delas para a defender. E talver também por isto (05 Caldeus desejavam que no nascimento daquele que se deve tornar filésofo, Marte olhe triangularmente para Merciio, de tal modo que, uma vez retiradas estas conjungées © exes contrastes, toda a filosofia resutasse soporifera ¢ sonolenta Esme mais dificil a defesa frente aqueles que néo me ‘consideram a altura desta iniciativa: se, de facto, me conside- rar a altura de tal empresa, sereitalver considerado digno da acusagio de imodesto e presuncoso; se, pelo contririo, me considerar incapaz, serei digno da de imprudente e temeri- rio. Vede, pois, em que cal, em que posicio me encontro, ji {que nio posso deixar de prometer sem reprovacio o que em Seguida nio posso sem reprovacio dar. Talver posta citar de Job que 0 espirito esti em todos, © ouvir com Timéteo: «ninguém despreze a tua juventudes. Mas, de um modo mais sincero e segundo a minha consciéncia, poderei dizer que em mim nada hi de grande e de singular; ainda que admitindo Yer estudioso € desejoso de saber, contudo néo me arrogo nem pretendo 0 nome de douto. Pelo que, se me propus realizar uma tarefa tio pesada, nio foi porque nio tivese ‘onscigncia da minha fraqueza; mas dependeu do reconheci- ‘mento, que é prerrogativa desta espécie de batalhas doutrin’- Flas, de que o ser vencido é um ganho. Por iso, acontece que (© mais fraco nio 6 as deve evitar, mas antes pode ¢ deve afronté-las por sua inictativa, j4 que quem sucumbe recebe rnio um dano, mas uma vantagem, pois volta para cas mais rico, isto é, mais douto mais armado para as futuras bata- lhas. Animado de tal esperanca, eu, fraco soldado, nio tive reeeio algum de afrontar uma to perigosa batalha com combatentes mais fortes © corajosos. Se, contudo, a minha ‘empresa ¢ ou nio temeriria, poder-s-i julgar melhor a partir do resultado do combate, ¢ nao devido & minha idade. Resta-me, em terceiro lugar, responder aqueles quem ofende o miimero exagerado das tees propostas, como se 0 peso delas recasse sobre os seus ombros e, em vez disso, nio fosse apenas eu a dever suportar tal fadiga, por muito pesida que ela possa ser. Mas é verdadeiramente inconveniemte € 9 vem pugnam decernere nihil sum veritus. Quod tamen temere sit factum necne, rectius utique de event pugnae quam de nostra actate potest quis iudicare? Restat ut tertio loco his respondeam, qui numerosa propositarum rerum multitudine offen- duntur, quasi hoc eorum humeris sederet onus, et non potius hic mihi soli, quantuscunque est labor, esset exanclandus. Indecens profecto hoc et moro- sum nimis, velle alienae industriae modum ponere, ct, ut inquit Cicero, in ea re quae eo melior quo maior, mediocritatem desiderare. Omnino tam grandibus ausis erat necesse me vel succumbere vel satisfacere; si satisfacerem, non video cur quod in decem praes- tare quaestionibus est laudabile, in nongentis etiam Prgetise culpable exinimetur. i succumberem, ‘abebunt ipsi, si me oderunt, unde accusarent, si amant unde excusent. Quoniam in re tam gravi, tam | magna, tenui ingenio, exiguaque doctrina, addles- centem hominem defecisse, venia potius dignum erit- | quam accusatione. Quin et iuxta Poetam: si deficiant vires, audacia certe Laus erit: in magnis et voluisse sat est. Quod si nostra aetate multi, Gorgiam Leontinum | imitati, non modo de nongentis sed de omnibus etiam omnium artium quaestionibus solti su Taude, proponere disputaionem, cur mi vel sine culpa, de multis quidem, sed tamen certis et determinatis disputare? At superfluum inquiunt hoc et ambitiosum. Ego vero non superfluo modo, sed necessario factum hoc a me contendo, quod et siipsi mecum philosophandi rationem considerarent, inviti etiam fateantur plane necesse est. Qui enim se cui piam ex philosophorum familiis addixerunt, Thomae videlicet aut Scoto, qui nunc plurimum in 'manibus, faventes, possunt ill quidem vel in paucarum quaes- | tionum discussione suae doctrinae periculum facere. 0 pouco razoivel querer par um limite as obras dos outros ¢, ‘como disse Cicero, querer exigir a mediocridade a0 que ¢ tanto melhor quanto maior é ‘Numa empresa tio grande como esta, é necessério que eu sucumba ou triunfe; se consigo, no vejo por que motivo € digno de louvor conseguir com dez assuntos ¢ se deva consi- derar uma culpa fazé-lo com novecentos. Se sucumbir, aque- les, se me odeiam, terlo motive para me acusirem; se me amam, para me desculparem. Que um jovem de pouco enge- nnho e de exigua doutrina nio esteja a altura de uma tio grande e arriscada empresa ¢ um facto mais digno de perdio do que de condenacio, Como diz 0 Poeta: ‘Se as foras faltam, ser fonte de lowsor ( eudécia: nas grandes empresas, é sito 0 tl querido Se, nos nossos tempos, muitos, imitando Gérgias de Leon- tino, propuseram disputas, néo sem louvor, néo 56 sobre novecentas teses, mas mesmo sobre todos os assuntos de todas as artes, porque no poderei eu, sem ser reprovado, dscutir Sobre muitas, sim, mas bem precisas e determinadas? Mas replica que isso ¢ supérfluo e ambicioso, Eu, pelo contrério, contraponho que ndo 56 nio é supérfluo, mas que para mim & necessirio fazé-lo, ¢ se aqueles considerassem as razses do ‘meu filosofar, seriam constrangidos a reconhecer tal absohuta necessidade, (Os que, de facto, seguem uma qualquer escola filos6fica, de Sio Tomés, por exemplo, ou de Escoto, que actualmente congregam os maiores consensos, cimentam a sua doutrina na discussio de poucas questées. Eu, pelo contrario, propus interessar-me seriamente por todos of mestres da flosofi cexaminar todas as posigdes, conhecer todas as escolas, mas rio jurar sobre a palavra de ninguém. Por isto, encontrando- mena necessidade de falar de todos os flésofos, para nfo parecer sustentar uma tese determinada sem tomar em consi- deracio as outras, as questBes propostas ndo podiam deixar de ser muitas no seu conjunto, ainda que sejam poucas as 81 Atego ita me institui, ut in nullius verba iuratus, me "er omnes philosophiae magistros funderem, omnes. Schedas executerem, omnes familias agnovccrem Quare, cum mihi de iis omnibus esset dicendum, ne, ai privat dogmatis defensor reliqua poshabuissem, illi viderer obstrictus, non potuerunt, etiamsi pauca de singulis proponerentur, non ese plarima quae simul de omnibus affeberantur. Nec id in me quis- piam damnet, quod me quocumque ferat tempestas, deferar hospes. Fuit enim cum ab antiquis omnibus hoc observatum, ut omne scriptorum genus evolven- tes, nullas quas possent commentationesillectas prae- terirent, tum maxime ab Aristotele, qui eam ob cau- sam dvayvwotng, idest lector, a Platone nuncupaba- tur, et profecto angustae est’ mentis intra unam se Porticum aut Academiam continuisse. Nec potest ex omnibus sibi recte propriam selegisse, qui omnes prius familiariter non agnoverit. Adde quod in una- quaque familia est aliquid insigne, quod non sit ei commune cum ceteris. Atque ut a nostris, ad quos postremo philosophia pervenit, nunc exordiar, est in Joanne Scoto vegetum quiddam atque discussum, ‘Thoma solidum et aequabile, in Aegidio tersum et ‘exactum, in Francisco acre et acutum, in Alberto pris- cum, amplum et grande, in Henrico, ut mihi visum est, semper sublime et venerandum. Est apud Ara- bes, in Averroe firmum et inconcussum, in Avenpace, in Alpharabio grave et meditatum, in Avicenna divi. num atque platonicum. Est apud Graecos in univer- sum quidem nitida, in primis et casta philosophia; apud Simplicium locuples et copiosa, apud Themis- tium elegans et conpendiaria, apud Alexandrum constans et docta, apud Theophrastum graviter ela- borata, apud Ammonium enodis et gratiosa. Et siad Platonicos te converteris, ut paucos percenseam, in Porphyrio rerum copia et multiiuga religione deiec- taberis, in Jamblico secretio rem philosophiam et barbarorum mysteria veneraberis, in Plotino pr 82 atinentes a cada um. Nem me venham reprovar que em qualquer lado que a tempestade se apresente ai chego eu como héspede. Por todos os antigos, de facto, foi observada ‘esta regra, que, examinado cada autor, no deixassem de ler, tanto quanto possivel, nenhum escrito. Tal regra observou-a ‘em particular Aristotles que, por iss, era denominado por Platio dvayvaiornG, quer dizer, o letor; ¢ ¢ verdadeiramente Préprio de mente estreta restringir-se a uma s6 escola, quer ela seja 0 Portico ou a Academia. Portanto, nio pode escolher centre todas a sua familia quem primeiro nfo examinow a fundo todas. Acrescente-se que em cada escola ha algo de peculiarmente insigne no comum com as outras, e, part ‘omecar com 0s nossos, 20s quais chegou Finalmente a invest- acto filoséfica, ha em Joio [Duns] Escoto qualquer coisa de Vigoroso e de subti, em Tomas [de Aquino) de sélido e de ‘equilibrado, em Egidio [Romano] de terso © de exacto, em Francisco [de Mayronnes} de penetrante e de agudo, em Alberto [Magno] de antigo, amplo e imponente, em Henrique [de Gand), parece-me, qualquer coisa sempre sublime e vene- randa. E entre os Arabes hi em Averréis algo de seguro e de inconcusso, em Avenpace e em Alfarrabi de grave © de ‘meditado, em Avicena de divino e de platénico, Entre os sgregos, em geral, existe acima de tudo uma filosofia cara e pura; rica e ampla em Simplicio, elegante e sinttica em ‘Temistio, constante ¢ douta em Alexandre de Afrodisia, pro- fundamente elaborada em Teofrasto, gil e graciosa em Amé- no. E se em seguida nos voltarmos para o& Platénicos, para falar s6 de poucos, com Porfirio deletar-novemos com 2 abundancia de temas e com a religido complexa, em Jamblica veneremos a filosofia oculta e os mistérios birbaros, em Plotino no hi nada que nio se possa admirar, porque em tudo ele se mostra admiravel, porque fala divinamente das cosas divi- nas, porque quando fala das coisas humanas coloca-se muito cima do humano com a sapiente subileza do discurso, de tal ‘modo que, com algum trabalho, 56 0 entendem os préprios Platnicos. E deixo os mais recentes, Proclo Iuxuriante de fecundidade asitica ¢ 0s seus alunos, Hérmias, Damasio 8 quicquam non estadmireris, qui se undique praebet admirandum, quem de divinis divine, de humanis longe supra hominem docta sermonis obliquitate loquentem, sudantes Platonic vix intelligunt. Praete- eo magis novitios, Proculum Asiatica fertilitate luxu- riantem et qui ab eo fluxerunt Hermiam, Damas- cium, Olympiodorum et complures alios, in quibus ‘omnibus illud 18 Seiov, idest divinum, peculiare Pla- tonicorum symbolum elucet semper. Accedit quod, si qua est secta quae veriora incessat dogmata et bonas, causas ingenii_calumnia Iudificetur, ea veritatem firmat, non infirmat, et, velut motu quassatam flam- mam, excitat, non extinguit. Hac ego ratione motus, non unius modo (ut quibusdam placebat), sed omni- genae doctrinae placita in medium afferre volui, ut hac complurium sectarum collatione ac multifariae discussione philosophiae, ille veritatis fulgor. cuiys Plato meminit in Epistulis, animis nostris quasi sol oriens ex alto clariusillucesceret. Quid erat, si Latino- rum tantum, Alberti scilicet, Thomae, Scoti, Aegidii, Francisci, Henricique philosophia, obmissis Graeco- rum Arabumque philosophis, tractabatur? Quando ‘omnis sapientia a Barbaris ad Graecos, a Graecis ad nos manavit. Ita nostrates semper in philosophandi ratione peregrinis inventis stare, et aliena excoluisse sibi duxerunt satis. Quid erat cum Peripateticis egisse de naturalibus, nisi et Platonicorum accersebatur academia, quorum doctrina et de divinis semper inter ‘omnes philosophias — teste Augustino — habita est sanctissima et_a me nunc primum, quod sciam, — verbo absit invidia — post multa saecula sub dis- putandi examen est in publicum allata. Quid erat et aliorum quotquot erant tractasse opiniones, si quasi ad sapientum symposium asymboli accedentes, nihil nos quod esset nostrum, nostro partum et elabora- tum ingenio, afferebamus? Profectum ingenerosum fest, ut ait Seneca, sapere solum ex commentario et, ‘quasi maiorum inventa nostrae industriae viam prac- a Olimpiodoro € muitos outros, nos quais reluz sempre aquele 16 Beioy, isto é, 0 divino, simbolo caracteristico dos Plat6- Acrescente-se que, se hi uma qualquer escola que combate as afirmagées mais verdadeiras e calunia 0s vidos juizos da razio, cla reforga e nio enfraquece a verdade, tal como 0 vento agitando a chama a alimenta e nio a apaga. Movido por esta consideracio, quis apresentar as conclu- ses nio de uma s6 doutrina, como teria agradado a alguns, mas de todas, de modo a que, do confronto de muitas escola da discussdo das mulkipla filosofias, o fulgor de verdade de que Platio fala nas Cartas resplandega nas noseas almas, como uum sol nascente no céu. Que valor teria tratar $6 da Filosofia dos latinos, isto é, de Alberto, de Tomis, de Excoto, de Egiio, de Francisco, de Henrique, esquecendo a flosofia dos Gregos dos Arabes, quando todo 0 conhecimento passou dos Birba- os aos Gregos e dos Gregos a nés? Por iso, of nossos sempre retiveram suficiente, no campo floséfico, aterem-se is des- cobertas dos outros ¢ aperfeioar pensamento alle. De que teria valido discutir acerca de questéesfisicas com os Peripaté- ticos, se no se fizesse também intervir a Academia dos Platénicos, cuja doutrina acerca das coisas divinas, segundo Agostinho, tem sempre sido considerada santssima entre todas as filosofias € agora, pela primeira ver apés tantos séculos, por mim apenas — que eu saa ¢ longe de mim que tals palavras sejam de inveja— foi razida ao exame de um debate pubblico? De que teria valido ter discutido as opiniges dos outros, se, convidados para o banquete como quem no Teva nada consigo, ndo tivéssemos trarido nada de nosso, nada roduzido e elaborado pelo noso engenho? E verdadei ‘mente pouco nobre, como afirma Séneca, saber apenas de comentario, como se as descobertas dos maiores tivessem fechado o caminho para a nossa investigacio, como se a forea dda natureza, como que esgotada, no pudesse gerar algo que. ainda que nio mostrando completamente a verdade, a faci pelo menos entrever de longe. Do mesmo modo que o campo- nés odeia a infertlidade do campo e o marido a exterilidade ‘na mulher, assim também a mente divina odiaré ainda mais 85, cluserint, quasi in nobis effeta sit vis naturae, nihil ex se parere, quod veritatem, si non demonstret, saltem innuat vei de longinquo. Quod si in agro colonus, in uxore maritus odit sterilitatem, certe tanto magis infecundam animam oderit ili complicita et associata divina mens, quanto inde nobilior longe proles desi- deratur. Propterea non contentus ego, praeter communes doctrinas multa de Mercuri Trismegisti prisca theolo- gia, multa de Chaldacorum, de Pythagorae discipli- nis, multa de secretioribus Hebracorum addidisse mysteriis, plurima quoque per nos inventa et medi- tata, de naturalibus et divnisrebus disputana pro- postimus. Proposuimus primo Platonis Aristotelis- que concordiam a multis antehac creditam, a nemine satis probatam. Boethius, apud Latinos, id se factu- rum pollicitus, non inyenitur fecisse umquam quod semper facere vou. Simplicius, apud Graecos idem yrofessus, utinam id tam praestaret quam pollicetur. ribit et Augustinus in Academicis non defuisse plu- res qui subtilissimus suis disputationibus idem pro- bare conati sint, Platonis scilicet et Aristotelis eam- dem esse philosophiam. Joannes item Grammaticus ‘cum dicat apud ¢os tanium dissidere Platonem ab Arjstotele, qui Platonis dicta non intelligunt, proban- duim tamen posteris hoc reliquit. Addidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae, plures in juibus Averrois et Avicennae sententias, quae discor- les existimantur, concordes esse nos asseveramus. Secundo loco, quae in philosophia cum Aristotelica tum Platonica excogitavimus nos, tum duo et septua- ginta nova dogmata physica et metaphysica collocavi- Thus, quae si quis teneat, peterit, nisi fallor, quod rit mox manifestum, quamcumque de rebus natura- libus divinisque propositam quaestionem longe alia dissolvere ratione, quam per eam edoceamur quae et legitur in scholis et ab huius aevi doctoribus colitur philosophiam. Nec tam admirari quis debet, Patres, 86 ‘uma alma infecunda ligada e cingida a si, quanto mais nobre & a prole que dela se deseja Por tais motivos, eu, insatisfeito por ter trazdo, além das doutrinas comuns, muitos assuntos da antiga teologia de Merciirio Trimegisto, muitas das teorias dos Caldeus ¢ de Pitégoras, muitos dos escondidos mistérios dos Hebreus, também propus & discussio muitissimos assuntos concernen- tes a0 mundo natural e divino, encontrados e meditados por ‘mim. Antes de tudo © mais, propus 0 acordo entre Platio € Aristételes, por muitos jé antes considerado possivel, mas por ninguém suficientemente provado. Boécio, entre os Latinos, tembora tivesse prometido fazé-lo, parece que nunca cumprit ‘0 que sempre disse querer fazer: Simplicio, entre os Gregos, tinha sustentado a mesma coisa, oxalitivesse mantido quanto rometera. Até mesmo Agostinho, no livro Conta as Academic, cescreve que muitos foram os que tentaram provar nas suas subtlssimas disputas que a flosofia de Plato e de Aristteles ‘io uma mesma filosofia. Assim, Jodo Gramatico, que afirma ‘que Platdo difere de Aristételes «8 para os que nio percebem © texto de Platio, deixou 08 vindouros a demonstracéo, ‘Acrescentimos ainda varias teses nas quais afirmimos que ‘as sentencas consideradas contrastantes de Escoto ¢ de ‘Tomés, de Averrdis ¢ de Avicena, pelo contratio sio concor- antes. Propusemos, pois, as conclus6es por nds encontradas quer sobre a filosofia platénica, quer sobre 2 aristottica e, portanto, setenta e duas novas teses de fisica e de metafisca as quais, apés demonstradas, qualquer um poder, (se ndo me {engano) com o que me seri manifesto dentro de pouco tempo, resolver qualquer questio natural e teolégica com um outro critério, diferente do que se ensinou e se ensina nas excolas € {que é usado pelos filsofos do noso tempo. E que ninguém se admire, 6 Padres, que eu jover em anos e de idade imatura, a ‘qual, como insinuam alguns, s6 permite que se leiam os ‘comentirios dos outros, queira propor uma nova flosofia. Tal facto sera antes de louvar, sea souber defender, de condenar, se for reprovada; enfim, os que deverio julgar as nossas descobertas e os nostos escrito, tenham em conta nio os anos do autor, mas sim os méritos ou deméritos da obra a7 me in primis annis, in tenera aetate, per quam vix licuit — ut iactant quidam— aliorum legere com- mentationes, novam afferre velle philosophiam, quam vel laudare illam, si defenditur, vel damnare, reprobatur, et denique, cum nostra inventa haec nos- trasque sint litteras iudicaturi, non auctoris annos, sed illorum merita potius vel demerita numerare. Est autem, et praeter illam, alia, quam nos attulimus, nova per numeros philosophandi institutio antiqua, illa quidem et a Priscis Theologis, a Pythagora prae- sertim, ab Aglaophamo, a Philolao, a Platone priori- busque Platonicis observata, sed quae hac tempestate, ut praedara ala, posterorim incuria sc exolevit ut vix vestigia ipsius ulla reperiantur. Scribit Plato in Epinomide, inter omnes Hberales artes et scientiat contemplatrices praecipuam maximeque divinam esse scientiam numerandi. Quarens item, cur homo ani- mal sapientissimum? respondet: quia numerare novit. Cuius sententiae et Aristoteles meminit in Problematis Scribit Abumasar verbum fuisse Avenzoar Babylonii, ‘eum omnia nosse qui noverat numerare. Quae vera esse nullo modo possunt, si per numerandi artem eam artem intellexerunt cuius nunc mercatores in primis sunt peritissimi, quod et Plato testatur, exserta nos admonens voce ne divinam hanc arithmeticam mercatoriam esse arithmeticam intelligamus. Il ergo arithmeticam, quae ita extollitur, cum mihi fear post multas lucubrationes exploratam habere, huiusce rei periculum facturus, ad quattor et septua- ginta quaestiones, quae inter physicas et divinas pri Gipales existimantur, responsurum per numeros publice me sum pollicitus. Proposuimus et magica theoremata, in quibus duplicem esse magiam signi cavimus, quarum altera daemomum tota opere et auctoritate constat, res medius fidius execranda et portentosa. Altera nihil est aliud, cum bene explora- tur, quam naturalis philosophiae absoluta consum- matio. Utriusque cum meminerint Graeci, illam 88 Propusemos ainda, além das novas teses, um outro proce dimento filoséfica com base nos niimeros, seguido pelos pri ‘meiros Tedlogos, especialmente por Pitigoras, por Aglofemo, por Filolau, por Platio ¢ pelos antigos platonicos. doutrina ‘que, como outras doutrinas iustres, se apagou de tal modo, devido a inciria dos vindouros, que delas dificimente se fencontra actualmente um ou outro traco. Escreve Platio no Epinémides que a ciéncia de contar ¢, entre todas as artes € as ciéncias de contemplar, excelente ¢ sumamente divina E perguntando-se por que razio é 0 homem o mais sapiente dos animais, responde: porque sabe contar. Esta semtenca também Aristételes recorda nos problemas. Escreve Abumasar, ‘que foi opiniéo de Avenzoar, babilinio, que tudo sabe quem ‘sabe contar. Tal coisa de modo algum poderia ser verdadeira se, por arte de contar, se entendesse a arte do cémputo de que agora sao pertos sobretudo os mercadores;e isto confirma também Platio quando nos adverte, com vor ampla, para no se confundir esta aritmética divina com a aritmética dos ‘comerciantes, Apés longus reflexdes, considerando, portanto, ter examinado a fundo a aritmética assim exaltada e estando pronto para afrontar a discussio, tomei a decisio de respon- der publicamente mediante os nimeros a setenta € q ‘questées, consideradas principais entre as fiscas ¢ divinas. Propusemos também teoremas migicos onde demonstr- ‘mos que a magia ¢ dupla; uma, fundando-se exclusivamente na obra autoridade dos deménios, & coisa execravel © monstruosa; a outra, pelo contririo, se olharmos bem, nada mais € do que a suprema realizagio da flotofia natural. Os Gregos, tendo presente uma e outra, indicam a primeira, nao a dignificando de modo algum com o nome de Magia, com 0 vocibulo yonte1ay, ¢ chamam com o proprio e peculiar nome Hyayeta & quase perfeita © suprema sapiéncia. Como disse Porfirio, de facto, na lingua persa, «mago» tem 0 mesmo significado que tem para nés intérprete € cultor das coisas divinas. Grande,portanto, melhor, enormissima, 6 Padres, €a disparidade e a dissemelhanca entre estas duas artes. Uma & condenada e detestada nio s6 pela religito cristi, mas por todas as leis, por qualquer Estado bem organizado. A outra 89 ‘magiae nullo modo nomine dignantes yonteiav nuncupant, hanc propria peculiarique appellatione hayeiav, quasi perfectam summamque sapientiam vocant. Idem enim, ut ait Porphyrius, Persarum lingua magus sonat quod apud nos divinorum inter- pres et cultor. Magna autem, immo maxima, Patres, Inter has artes dispariltas et dissimilitudo. Iiam non modo Christiana religio, sed omnes leges, omnisbene instituta respublica damnat et exsecratur. Hanc omnes sapientes, omnes caelestium et divinarum rerum stu- diosae nationes, approbant et amplectuntur. Illa artium fraudolentissima, haec firma, fidelis et solida Iilam quisquis coluit semper dissimulavit, quod in auctoris esset ignominiam et contumeliam, ex hac summa literarum claritas gloriaque antiquitus et paene semper petita. Illius nemo umquam studiosts fuit vir philosophus et cupidus discendi bobas artes; ad hanc Pythagoras, Empedocles, Democritus, Plato, discendam navigavere, hane praedicarunt reversi, in arcanis praecipuam habuerunt. Ila, ut nulls ratio- nibus, ita nec certis probatur auctoribus; haec, claris- simis quasi parentibus honestata, duos praccipue habet auctotes: Xalmosidem, quem imitatus est Abbaris hyperboreus, et Zoroastrem, non quem forte credits, sed illum Oromasi filuim. Utriusque magia quid sit, Platonem si percontemur, respondebit in Alcibiade: Zoroastris magia non esse aluid quam divinorum scientiam, qua filios Persarum reges erudiebant, ut ad exemplar mundanae Reipublica suam psi regere Rempublicam edocerentur. Respondebit in Charmide, ‘magiam Xalmosidis esse animi medicinam, per quam scilicet animo temperantia, ut per illam corpori sani- tas comparatur. Horum vestigiis postea perstiterunt Carondas, Damigeron, Apollonius, Hostanes. et Dardanus. Perstitit Homerus, quem ut omnes alias sapientias, ita hanc quoque sub sui Ulixis erroribus dissimulasse in poetica nostra Theologia aliquando probabimus. Perstiterunt Eudoxus et Hermippus. » aprovam-na ¢ abram-na todos oF sibion, dor oF pvos iantes de coisas celeste ¢ divin. Aquela€ entre toda rcs mais fraudulent: esta ¢ segura, digoa de «sda Quem quer que tenba pracad aquela sempre oexcndes, pois tera revertdo como verge como dano sabre 0 Seu fort com esta, na antiguidade © depos, quate sempre se procurou grande celeriade © gra nas letras Daguels hhunea foi estudio alum ftsfo ou homem descno de tprender as boas arte, para aprender eva, Pegoras Emp docs, Deméerio « Patio correram ov mares © quando “lara eraransa eer ao prema at to seus misteon.Aquca, porque no € uxtentada por nena ferdo, no €aprovaa por enum autor; es, quate tormada nobre por Susres pai em sobretudo dois clores “alaxides que inion Abars o Hiperreo, Zoro, ndo aquele em fue taler sts pensar, mas 0 flbo de Oromiso, Que magia €a dexter dno, eo terrogaos Plu no Alida que magia ours cosa no cr endo 0 Conhecimento ds cosas divin, que or re pera esnaram So seus fos para que aprendessem a goverar aun Reps bica, segundo exemplo a ordem do mundo. Responder row ne Caries que a magia de Zalmxies€ a medina da dima. com a qual se atnge' harmon da vida interior, do testo modo que com a uta x obtem a sade do corp ‘Na esera deses persia Carondae, Damigeron, Apo> Tonio, Mostanes, Dirdane, Segura Homero, que demons remem da, numa nossa eologia poetic, ter exondio Soba iagens do seu Uses, como tas a outa nc também ext Segiram-na Eudoxo ¢ Hermipo,Segiram-na {quse todos os que investigaram a undo os mitnos Page feos Planicos.Enre or madernos qe 4 pataram encon- trotrésodrabe Alkind, Rogerio Bacom e Guilherme de Pars [de Alvrnia), Recrda-a também Pino, quando demonstra {que o mayo éminro eno arfie da ater eal espe A magia aque homem sapientnimo aprova © sme, nua eo car, desea a pt da a 0 onvidado para os ital dos demi, responds com rasa aque era melhor que les fosem até cee no ele até les 1 Perstiterunt fere omnes qui Pythagora Platonicaque mysteria sunt perscrutati. Ex iunioribus autem, qui eam olfecerint tres reperio, Alchindum, Arabem, Rogerium Baconem et Guilielmum Parisiensem Meminit et Plotinus, ubi naturae ministrum esse et non articifem Magum demonstrat: hanc magiam pro- bat asseveratque vir sapientissimus, alteram ita abhor- rens ut, cum ad malorum daemonum sacra vocaretur, rectius esse, dixerit, ad se llos quam se ad illos accede- Te, et merito quidem. Ut enim illa obnoxium mand- ptumgue improbi potetatibus hominem redlitta ec illarum principem et dominum. Illa denique nec artis nec scientiae sibi potest nomem vendicare; haee altissimis plena mysteriis, profundissimam rerum secretissimarum contemplationem, et demum totius naturae cognitionem complectitur. Haec, inter spar- sas Dei beneficio et inter seminatas mundo virtides, quasi de latebris evocans in lucem, non tam facit miranda quam facienti naturae sedula famulatur. Haec universi consensum, quem significantius Graeci ‘oupNageray dicunt, introrsus perscrutatius rimata et ‘mutuam naturarum cognitionem habens persectam, nativas adhibens unicuique reiet suasillecebras, quae magorum ivyyeg nominantur, in mundi recessibus, in naturae gremio, in promptuariis arcanisque Dei latitantia miracula, quasi ipsa sit artifex, promit in publicum, et sicut agricola ulmos vitibus, ita Magus ferram caelo, idest inferiora superiorum dotibus virtutibusque maritat. Quo fit ut quam illa prodigiosa ‘et noxia, tam haec divina et salutaris appareat. Ob hoc Praccipte quod illa hominem, Dei hostibus mance Pans, avocat a Deo, haec in eam operum Dei admira- tionem excitat, quam propensa caritas, fides ac spes, certissime consequuntur. Neque enim ad religionem, ad Dei cultum quicquam promovet magis quam assi- dua contemplatio mirabilium Dei, quae ut per hane de qua agimus naturalem magiam bene exploraveri- ‘mus, in opificis cultum amoremque ardentius animati 2 Enquanto aquela, de facto, tora o homem esravo das freas do mal, esta tornao senhor e dono, Aquea no pode reivindi- ‘ar para si o nome da arte ou da Génca; esta, repleta de profundisimos misérios, abraca a contemplagao mais ata das foisas mais secrets e, por fim, 0 conhecimento total da natureza. Esta, como que trazendo das profundidades a luz a8 virtudes dispersase dsseminadas no mundo pela bondade de Deus, mais do que realizar milagres colocase a0 servico da rilagrosa naturera. Esta, perscrutando intimamente osecreto acordo do univers a que o8 Gregos chamam de uma maneira ‘muito signficativa oupné8eu, explorando a mitua ligacio ddas naturezas, atribuindo a cada uma delas as congénitas lisonjas que se chamam WY¥e6, isto €, encantamentos dos magos, faz & luz, como s¢ ela propria fosse o artifice, 38 tmaravilhas escondidas nas profundezas do mundo, no seio da natureza e dos mistérios de Deus, e, do mesmo modo que © camponés casa olmos com videiras, também © Mago casa a terra com 0 clu, ito €, a focasinferiores com os dotes eas propriedades superiores. Dagui se infere que, enquanto 2 primeira magia aparece como monstruosae nociva,a segunda Inostrase divinaesalutar. Sobretudo por isto, enquanto uma, colocando 0 homem i mercé dos inimigos de Deus, 0 afasa dde Deus, 2 outra exaltvo para tal admiracéo das obras de Deus, de onde seguramente derivam a caridade, a f€ ¢ a esperanca. De facto, nada conduz melhor a religto, 20 cukto de Deus, como a constante contemplacso das maravilhas de Deus; e quando as tivermos examinado bem mediante esta magia natural de_que agora tratamos, mais ardentemente animados pelo culo e por um grande amor pelo artifice, Sseremos levados a canta: «Cheios esto os céus,cheia esti a ‘Terra da Tua magestade e gloria E agora chega de maga, de que ant fle, porque sei que muitos hé que, como os cies que ladram sempre aos des conhecidos, também condenam e odeiam 0 que no com preendem. asso agora as cosas que, tiradas dos antigos mistérios Hebreus,aleguei como confirmacio da sacrossana ecatsca {, e com o fim de no serem consideradas por aqueles que 28 98 illud canere compellemur: «Pleni sunt caeli, plena est omnis terra maiestate gloriae tuae~ Ethaec satis de magia, de qua haec diximus, quod scio esse plures qui, sicut canes ignotos semper adlatrant, ita et ipsi saepe damnant oderuntque quae non intelligunt. Venio nunc ad ea quae ex antiquis Hebracorum mysterris eruta, ad sacrosanctam et catholicam fidem confirmandam attuli, quae ne forte ab his, quibus sunt ignota, commentitiae nugae aut fabulae circumlatorum existimentur, volo intelligant omnes quae et qualia sint, unde petita, quibus et quam claris auctoribus confirmata et quam reposita, quam divina, quam nostris hominibus ad propugnandam religion nem contra Hebraeorum importunas calumnias sint necessaria. Scribunt non modo celebres Hebracorum doctores, sed ex nostris quoque Esdras, Hildrius et ‘Origines, Mosem non legem modo, quam quinque ‘cxaTatans Libris posterisreligut sed secretiorem quo- {que et veram legis enarrationem in monte divinitus accepisse; praeceptum autem ei a Deo ut legem qui dem popul aret, legis interpretationem nec traderet libris, nec invulgaret, sed ipse Tesu Nave tantum, tum ille aliis deinceps succedentibus sacerdo- tum primoribus, magna silenti religione, revelaret. Satis erat per simplicem historiam nune Dei poten- tiam, nunc in improbos iram, in bonos clementiam, in omnes iustitiam agnoscere, et per divina salutariaque praecepta ad bene beateque vivendum et cultum verae religionis institui. At mysteria secretiora, et sub cor- tice legis rudique verborum praetextu latitantia, alts simae divinitatis arcana, plebi palam facere, quid erat illud quam dare sanctum canibus et inter porcos spar- ete margaritas? Engo haec clam vulgo habere, per fectis communicanda, inter quos tantum sapientiam Joqui se ait Paulus, non humani consili sed divini praecepti fuit. Quem morem antiqui philosophi sanc- tissime. observarunt. Pythagoras nihil scripsit nisi o ignoram como vaidades, patetices ou fabulas de charlaties, ‘quero que todos saibam que coisas si0 quais, donde der ‘Yam, por que ilustres autores sio confirmadas, quo excondi- das, quio divinas, quio necessiias sio tais coisa para defen- der a nossa religio contra as fastdiosas calinias dos Hebreus Escrevem nio s6 célebres doutores hebreus mas, entre of nnossos, também Esdras, Hildrio e Origenes, que Moisés rece- 'beu no monte nao s6a lei que depois deixou aos descendentes ‘em cinco livros, mas também uma secreta ¢ verdadeira inter- pretacio dela. A Moisés Deus ordenou que divulgasse ale ‘mas que nio escrevesse a interpretacio da lei nem a divul- -gasse, mas a revelasse 56 a Jesus Nave € este, por sa ver, 208 sequintes sumos sacerdotes, sob o sagrado sigilo do absoluto silencio. Era suficiente conhecer mediante o simples retato ddaqueles factos quer a poténcia de Deus, quer a sua ira contra (05 malvados, quer a cleméncia para com os bons, a justica ppara com todos, ¢ serem deste modo educados, mediante Dreceitos divinos esalutares, para uma vida boa e feliz, para 0 ‘cuko da verdadeira religido. Porém, revelar abertamente 4 plebe 0s mistérios mais secretos, excondidos sob a cascada lei, ‘expor os sublimes misters de Deus, ocutos sob a rude veste das palavras. que outra coisa teria sido senio dar as coisas santas a0s cies ¢ lancar pérolas a porcos? Manter, portanto, tudo isto oculto do vulgo, a fim de 0 ‘comunicar apenas aos perfeitos, entre os quais unicamente Paulo afirma pronunciar palavras de sapigncia, nio foi obra dde humana prudéncia, mas de divina sabedoria,Etal costume foi escrupulosamente observado pelos antigos flésofos. Pit oras ndo escreveu sendo pouquissimas coisas que a0 morrer confiou a filha Damo. As Esfinges, esculpidas nas frentes dos templos egipcios, advertiam que os ensinamentos misticos ddeviam ser guardados com os nés dos enigmas, invioliveis para a multidao profana. Patio, excrevendo a Dionisio acerca dos mods das substancias supremas, afirma: «E. necessério exprimir-nos mediante enigmas de modo que, se alguma ver por acaso a carta cair na mio de um outro, nio sea percebido pelos outros aquilo que escrevos. Aristételes diaia que os livros da Metafsica, nos quais trata das coisas divinas, eram paucula quaedam, quae Damae filiae moriens Fommendavit. Aegyptiorum templisinsculptae inges, hoc admonebant ut mystica dogmata per igmatum nodos a profana multitudine inviolata custodirentur. Plato Dionysio quaedam de supremis scribens substantiis, «per aenigmata, inquit, dicen- dum est, ne si epistula forte ad aliorum pervenit manus, quae tibi scribemus ab ali intelligantur~ Aristoteles libros Metaphysicae in quibus agit de divinis ‘editos esse et non editos dicebat. Quid plura? Iesum Christum vitae magistrum asserit Origenes multa revelasse discipulis, quae ili, ne vulgo fierentcommu- hia, scribere noluerunt. Quod maxime confirmat Dionysius Areopagita, qui secretiora mysteria a nos- trae religionis auctoribus €x oO eic voov 81a Uedov Royov, ex animo in animum, sine litteris, medio intercedente verbo, ait fuisse transfusa. Hoc eodem snitus modo cum ex Dei praecepto vera illa legis Interpretatio Moisi deitus tradita revelaretur, dicta est Cabala, quod idem est apud Hebraeos quod apud nos receptio; ob id scilcet quod illam doctrinam, non per literarum monumenta, sed ordinariis revelatio- hum successionibus alter ab altero quasi hereditario jure reciperet. Verum postquam Hebraci a Babylonica captivitate restituti per Cyrum et sub Zorobabel ins- taurato tempload reparandum legem animum appu- lerunt, Esdras, tune ecclesiae praefectus, post emen- datum Moseos librum, cum plane cognosceret per , caedes, fugas, captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribus morem tradendae per manus doctrinae servari non posse, futurumque ut sibi div tus indulta caelestis doctrinae arcana perirent, quo- rum commentariis non intercedentibus durare diu memoria non poterat, constituit ut, convocatis qui tunc supererant sapientibus, afferret unusquisque in medium quae de mysteriis legis memoriter tenebat, adhibitisque notariis in septuaginta volumina (tot enim fere in Synedrio sapientes) redigerentur. Qua 96 Publicados € inéditos. Que mais ainda? Origenes afirma que Jesus Cristo, mestre de vida, revelou aos disciptilos muitas ‘coisas que eles ndo quiseram escrever para ndo se tornarem vulgarizados. Tal facto confirma-o sobretudo Dionisio Areo- pagita, 0 qual diz que os mistérios mais secrets foram trans Imitidos pelos fundadores da nossa religiio &x voO eig, voov Bia pEOV Adyov, isto é, de mente a mente, sem escrtos, ‘mediante 0 Verbo, Tendo deste modo sido revelada, por mandamento de Deus, a verdadeira interpretacio da lei dada a Moisés por Deus, deu-se-lhe 0 nome de Cabala, que para os Hebreus tem © mesmo significado que para nés reeptio (recepcio). E isto porque tal doutrina era recebida, ndo mediante momentos literrios, mas por meio de sucessivas revelagées que um recebia do outro, como por direito hereditirio, Quando os Hebreus, libertados por Ciro da escravidio babilénica e construido o templo sob Zorobabel, se empe- nnharam em restaurar a lei, Esdras, entio chefe da igreja, depois de ter emendado 0 livro de Moisés, ao ver clara. mente que ndo se podia manter a tradigio fixada pelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina nos exi- lios, nos massacres, nas fugas, nos cativeiras do povo de Israel, dado que deste modo pereceriam os mistérios da celeste doutrina, concedidos por Deus, no podendo _manter-se por muito tempo a meméria desta sem a interpo- sigio de textos escrtos, estabeleceu que, reunidos 08 sibios entio sobreviventes, cada um manifestaste quanto conser- vava guardado na meméria acerca dos mistérios da lei, Estes em seguida, chamados os escribas, foram escritos em setenta volumes, tantos quantos eram entdo os sabios do Sinédrio, E porque nisto, 6 Padres, nio deveis apenas crer fem mim, escutai Esdras que assim fala: «Ao fim de quarenta dias, 0 Aktssimo falou dizendo: 0 que primeito escreveste torna-o piiblico e que o leiam os dignos e os indignos; mas os tikimos setenta livros conservé-los-is a fim de os confiares 4208 sibios do teu povo: neles esti a veia do intelecto, a fonte de sabedoria, um rio de ciéncia. E assim fie: Assim Esdras, textualmente. 7 de re ne mihi soli credatis, Patres, audite Esdram ipsum sic loquentem: «Exactis quadraginta diebus Joquutus est altissimus dicens: Priora quae scripsisti in palam pone, legant digni et indigni, novissimos autem septuaginta libros conservabis ut tradas ¢os sapientibus de populo tuo. In his enim est vena intel- lectus et sapientiae fons t scientiae flumen. Atque ita feci». Haec Esdras ad verbum. Hi sunt libri scientiae Cabalae. in his libris merito Esdras venam intellectus, idest ineffabilem de supersubstantiali deitate Theolo- giam, sapientiae fontem, idest de intelligibilibus angelicisque formis exactam metaphysicam, et scien- tiae flumen, idest de rebus naturalibus firmissimam Philosophiam esse, clara in primis voce pronuntiavit Hi libri Sixtus quartus Pontifex maximus, qui hunc sub quo vivimus feliciter Innocentium octavum proxime antecessit, maxima cura studioque curavit ut In publicam fidei nostrae utilitatem Latinis litteris mandarentur. Iaque, cum ille decessit, tres ex ills pervenerant ad Latinos. Hi libri apud Hebracos hac tempestate tanta religione coluntur, ut_nemimem liceat nisi annos quadraginta natum illos attingere. Hos ego libros non mediocri impensa mihi cum ‘comparassem, summa diligentia, indefessis laboribus cum perlegissem, vidi in ils — testis est Deus — reli- gionem non tam Mosaicam quam Christianam. Ibi ‘Trinitatis mysterium, ibi Verbi incarnatio,ibi Messiae divinitas, ibi de peccato originali, de illius per Christum expiatione, de caelesti Hierusalem, de casu daemonum, de ordinibus angelorum, de purgatoriis, de inferorum poenis, adem legi quae apud Paulum et Dionysium, apud’ Hieronymum et Augustinum, quotidie legimus. In his vero quae spectant ad philo- sophiam, Pythagoram prorsus audias et Platonem, quorum decreta ita sunt fidei Christianae affinia, ut ‘Augustinus noster immensas Deo gratis agat, quod ad eius manus pervenerint libri Platonicorum. In ple- num nulla est ferme de re nobis cum Hebraeis con- 9 Sio estes os livros da ciéncia da Cabala: neles, com razio, Esdras proclamou claramente estar alia veia do inteleto, isto 6, a inefavel Teologia da super-substancial divindade; a fonte de sapiéncia, isto ¢, a exacta metafisca das formas intligiveis «¢angélieas: € 0 rio de ciéncia, isto é, a solidissima filosofia das coisas da natureza. Estes livros, Sixto 1v, Sumo Pontifice, que foi 0 imediato predecessor de Inocéncio vit sob 0 qual felizmente vivernos, mandou, com grande cuidado e grande 2elo, que fossem traduzidos para ltim, para piblica utlidade da nossa f@. Assim, quando morreu, ja trés tinham sido tradusidos, Estes livros procurei-os com no pequeno dispén- dio de dinheiro, l-os com suma diligéncia e incansivel estudo fe vi neles — Deus é disso testemunha — no tanto a religiio Moisaica quanto a Cristi. Aqui os mistéios da Trindade, aqui a encarnagio do Verbo, aqui a divindade do Messias: aqui ‘quanto diz respeito a0 pecado original, expiacio deste por meio de Cristo, quanto concerne & Jerusalém Celeste, & queda dos deménios, 30s coros angélicos, as penas do purgatério € do inferno; li as mesmas coisas que todos os dias lemos em Paulo e Dionisio, em Jerénimo e em Agostinho. No tocante a losofia, parece-nos ouvir Pitigoras e Platio, cujos io Gio afins & fé cristd que © nosso Agostinho di igracas a Deus por Ihe terem chegado 8 maos 08 livros dos platénicos. Conchuindo, no hi nenhum assunta controverso entre nds € os Hebreus, em que estes ndo possam ser combatidos ¢ ‘convencidos com os livros cabalstcos, de tal modo que nao Tes fica nem sequer um cantinho onde se possam exconder. De tal facto tenho uma testemunha atendibilssima, Anténio Crénico, homem eruditssimo, que na sua casa durante um banquete ouviu com os seus préprios ouvidos Déctilo Hebreu, conhecedor profundo de tal ciéncia, chegar em tudo as _mesmas conclusdes dos cristios acerca da Trindade ‘Mas, volando ao exame dos argumentos da minha disput, trouxemos também 0 nosso modo de interpretar os carmes de Orfeu © de Zoroastro. Orfeu lé-se nos textos gregor quate integralmente, Zoroastro nos textos gregos esti mutilado, mas esti mais completo nos dos Caldeus. Ambos sio considerados 9 troversia, de qua ex libris Cabalistarum ita redargui convincique non possint, ut ne angulus quidem reli- ‘quus sit in quem se condant. Cuius rei testem gravissi- mum habeo Antonium Cronicum virum eruditiss mum, qui suis auribus, cum apud eum essem in convi vio, audivit Dactylum Hebraeum peritum huius scientiae in Christianorum prorsus de Trinitate sententiam pedibus manibusque descendere. Sed ut ad meae redeam disputationis capita percensenda, ttlimus et nostram de interpretandis Orphei Zoro: astrisque_carminibus sententiam. Orpheus apud Graecos ferme integer, Zoroaster apud eos mancus, apud Chaldacos absolutior legitur. Ambo priscae sapientiae crediti patres et auctores. Nam ut taccam de Zoroastre, cuius frequens apud Platonicos non sine summa semper veneratione est mentio, scribit * Iamblichus Chalcideus habuisse Pythagoram Orphi- cam Theologiam tamquam exemplar ad quam ipse suam fingeret formaretque philosophiam. ‘Quin idcirco tantum dicta Pythagorae sacra nun- cupari dicunt, quod ab Orphei fluxerint institutis; inde éecreta de numeris doctrina, et quicquid magnum sublimeque habuit graeca philosophia, ut a rimo fonte manavit. Sed (qui erat veterum mos theologorum) ita Orpheus suorum dogmatum mys- teria fabularum intexit involucris et poetico vela- mento disimulavt, ut si quis egat ius hymnos, iil subesse credat praeter fabellas nugasque mera- cissimas. Quod volui dixisse ut cognoscatur quis mihi labor, quae fuerit difficultas, ex affectatis aenigma- tum syrpis, ex fabularum latebris latitantes eruere secretae philosophiae sensus, nulla praesertim in re tam gravi tam abscondita inexplorataque adiuto ali tum interpretum opera et diligentia. Et tamen oblatrarunt canes mei minutula quaedam et levia ad umeri ostentationem me accumulasse, quasi non ‘omnes quae ambiguae maxime controversaeque sunt ‘quaestiones, in quibus principales digladiantur aca- 100 pais ¢ autores da antiga sabedoria, Para nio falar de Zoroas- tro, frequentemente mencionado pelos Platénicos e sempre com suma veneragio, Jimbico de Calcidica escreve que Pit goras considerava a teologia érfica o modelo sobre o qual plasmou e formou a sua filosofia. Precisamente por isso, porque derivam da iniiacio érfica, 6 ensinamentos de Pitigoras consideram-se sagrados: deles femanou, como sua primeira fonte, a secreta doutrina dos _nimeros ¢ tudo 0 que de grande e de sublime teve a flosofia iprega. Mas, como era costume dos antigos teélogos, Orfeu ‘revestu os mistérios dos seus dogmas com a veste das fabulas € dissimulou-os com véus potticos, de tal modo que quem (0s seus hinos pode julgar ndo passarem estes de fabulactes de divagacies brincalhonas. E quis dizer isto para que se saiba que fadiga foi a minha, que dificuldade fo tirar do emara- rnhado dos enigmas, dos véus das fabula, os sentidos ocultos da secreta filosofia, sem o auxilio de outros intérpretes, numa empresa tio grave, recéndita ¢ inexplorada. E mesmo assim, 1s que me assediam como cles, ladram que eu acumulei por ‘mera ostentacio futiidades e pateices, como se nio tvesse proposto todas aquelas quesides que sio as mais ambiguas ¢ controversas, sobre as quais polemizam as principais escolas; ‘como se eu tivesse proposto questies de todo desconhecidas © rnunca focadas mesmo por aqueles que me atacam ese reputar de mestres entre os fildsofos. De tal modo estou longe de tais culpas que procurei reduzir a discustio a0 menor niimero possivel de pontos. ‘Que, se eu tivesse querido — como € habitual outros faze- rem — dividir e desmembrar nas suas partes, teria escrito, ‘certamente um nimero inumerével de teses. Para nio falar de tudo 0 mais, quem nio sabe que uma s6 das novecentas teses, isto é, aquela sobre a conciliagio entre a Filosofia de Aristoteles € a de Platio, eu a poderia ter dividido, sem incorrer na suspeita de prolixidade, em seiscentos ppontos, para nio dizer mais ainda, enumerando separada- ‘mente todos os lugares em que os outros consideram que os dois contrastam eu penso. pelo contririo, que esto de acordo? wor demiae, quasi non multa attulerim his ipsis, qui et mea carpunt et se credunt philosophorum principes, ct incognita prorsus et intentata Quin ego tantum absum abea culpa, ut curaverim in quam paucissima potui capita cogere disputatio- nem. Quam si— ut consueverunt alii — partiri ipse in sua membraet lancinare voluissem, in innumerum profecto numerum excrevisset. Et, ut taceam de cete- Tis, quis est qui nesciat unum dogma ex nongentis, quod scilicet de concilianda est Platonis Aristotelisque philosophia, potuisse me_citra omnem affectatae humerositatis suspicionem in sexcenta ne dicam plura capita deduxisse, locos sciicet omnes in quibus dissi- dere alii, convenire ego illos existimo particulatim enumerantem? Sed certe — dicam enim quamquam neque modeste neque ex ingenio meo — difam tamen, quia dicere me invidi cogunt, cogunt obtrectatores, volui hoc meo congressu fidem facere, non tam quod multa scirem, quam quod scirem quae multi nesciunt. ‘Quod ut vobis reipsa, Patres colendissimi, iam palam fiat, ut desiderium vestrum, doctores excelentissimi, quos paratos accinctosque expectare pugnam non sine magna voluptate conspicio, mea longius oratio ton remoretur, quod fl fustumque sit qua chante woz Mas certamente —¢ di-lo, embora ndo seja modesto da minha parte e seja contra a minha indole — dilo-i, contudo, porque a isto me obrigam os invejotor e me forcam os detractores: quis nesta assembleia mostrar néo tanto que sei rmuitas coisas, mas que sei coisas que 0s outros ignoram, E para que isto agora, 6 Venerandos Padres, seja manifesto & partir da realidade dos factos, para que o meu discurso nio ‘empate muito mais o vosse desejo, excelentssimos doutores ‘que vejo, prontos e preparados, experando a contenda, ¢ no sem grande prazer, com um bom augtrio, como a0 som da trompa de guerra, venhamos agora & batalha 103 INDICE Acerca do Fensamento de Gianni Fico dela Miranda ° Not Bibogriek on ng 8 Discurso de Giovanni Pao Conde de Conca o paen EDICOES 70

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