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seo oa baewgn tmnt ates cen an anh aim ie Autor: Jean-Luc Nancy ‘Thulo: Corpus Titulo original: Corpus ‘Tradugao: Tomés Maia Capa: Paulo Bacelar Imagem da capa: Pintura de Frangois Martin, “Le soleil se couche, mot aussi”, série 1018 des. 1422 (1999) Director de ColeceRo: José A. Braganga de Miranda Revisio: Alice Aratijo @ Vega, Limitada (1.* edigHo em 2000) Apartado 41034 1526 Lisboa Codex Fotocomposicao, paginagio ¢ fotolitos: CA - Artes Gnificas ISBN: 972-699-648-1 Depésito legal: 160578/01 Impressiio e Acabamento: Grafewropa Jean-Luc Nancy Corpus ves Passagens Agradego, na tradu¢ao, ao André, Bruno, Jean-Luc ¢ Sofia. hes Corpus Hoc est enim corpus meum: vimos de uma cultu- ra em que esta frase ritual tera sido pronunciada, in- cansavelmente, por milbées de oficiantes de mithoes de cultos. Nesta cuitura todos a (re)conhecem, quer sejam ou nfo cristios. Entre os cristios, uns déo-Ihe valor de consagragio real — o corpo de Deus esta ali—, outros de simbolo — onde comungam os que fazem corpo em Deus. Esta frase constitui também, entre nés, a repetigao mais visivel de um paganismo obsti- nado, ou sublimado: péo © vinho, outros corpos de outros deuses, mistérios da certeza sensivel. Fla é tal- vez, no espago das nossas frases, a repeticao por ex- celéncia, até A obsessio — e até que «isto é 0 meu corpo> se preste também a inumeraveis gracejos. Lo nosso Om mani padne..., 0 nosso Allah ill'aliah..., 0 nosso Schema Israél... Mas a variante da nossa f6rmula indica de imediato a diferenga que nos € mais propria: somos obcecados pela vontade de mostrar um isto, ¢ de (nos) convencermos que este isto, aqui, 0 que nao se pode nem ver nem tocar, nem aqui nem noutro lugar — € que isto € aquilo, nao de qualquer maneira mas como o seu corpo. O corpo daquilo (Deus, absoluto, ou como se queira chamar), e que aquilo tenha wm corpo ou que isto seja um corpo (€ deste modo que isto seja 0 corpo, absoluiamente), eis a nossa obsessio. O isto onde se apresenta o Ausente por exceléncia: nunca 0 teremos deixado de chamar, convocar, consagrar, interpelar, captar, querer, ¢ querer absolutamente. Quisemos 6 Jenn-Lue Nancy sempre a seguranga, a certeza pura de um EIS: eis, sem mais, em absoluto, eis, aqui, isto, a mesma coi- sa, Hoc est enim... desafia, apazigua todas as nossas. diividas sobre as apar€ncias, e dé ao real o verdadeiro retoque final da sua Ideia pura: a sua realidade, a sua existéncia. Desta frase, nunca acabarfamos de modu- Jar as variantes (ao acaso: ego sum, o nu na pintura, 0 Contrato social, a loucura de Nietzsche, os Ensaios de Montaigne, o Pesa-nervos, «Madame Bovary, sou eu», a cabega de Luis XVI, as estampas anatémicas de VeSilio ou de Leonardo, a voz —- de castrado, de soprano, etc, —, a cana pensante, o histérico: na ver- dade, € toda a textura de que somos tecidos...). Hoc est enim... pode gerar a totalidade do corpus de uma Enciclopédia Geral das Ciéncias, das Artes e dos Pen- samentos do Ocidente. O corpo: eis como nés 0 inventémos. Quem mais no mundo o conhece? Mas pode-se imaginar a angistia tremenda: «eis» no € seguro: € preciso assegurarmo-nos dele. Néo ha a certeza que a prépria coisa possa estar ai. Ag, onde nés estamos, talvez nunca chegue a passar de um reflexo, sombras flutuantes. B preciso insistir: «hoc est enim, em verdade vos digo, € sou eu que vos digo: quem poderia estar mais certo da minha pre- senga em carne e em sangue? Esta cetteza seri a vos- sa, com este corpo que tero encorporado.» Mas a angtistia nio acaba: o que € isto que € o corpo? Sera isto que vos mostro, mas cada «isto»? todo o indeterminado do «isto» e dos «isto»? Tudo isso? Uma ' : ‘ i t corpus 7 vez tocada, a certeza sensivel torna-se um caos, uma tempestade, e todos os sentidos af se confundem. Corpo é a certeza siderada, estilhacada. Nada de mais préprio, nada de mais estranho ao nosso velho mundo. Corpo pr6prio, corpo estranho e estrangeiro: o que hoc est enim mostra, o que ele torna tangfvel © dé a comer, € 0 corpo préprio. O corpo préprio ou a pré- ptia Propriedade, o Ser-a-Si em corpo. Mas nesse mesmo instante, € sempre um corpo estrangeiro que se mostra, monstro impossivel de engolir. Néo saf- mos disto, enredados numa embrulhada de imagens que vao do Cristo que medita sobre o seu pao azimo até ao Cristo que se exticpa um Sagrado Coragio pal- pitante, sanguinolento. Isto, isto... isto é sempre de- mais ou insuficiente para ser aquilo. E todas as teorias do «corpo proprio», as laborio- sas tentativas para reapropriar aquilo que se julgava deploravelmente «objectivado», ou que € proprio dos batréquios. Corpo impotente e ininteligente. Os seus possiveis esto noutros iugares, as suas forgas, Os seus pensamentos. Mas «impotente» e «ininteligente> sio aqui pa- Javras impotentes ¢ ininteligentes. O corpo nao é nem estipido, nem impotente, Ele precisa doutras catego- tias de forga e de pensamento. Que forgas e pensamentos proviriam deste ser- -langado-af, que ¢ 0 corpo? Este ser-abandonado, 15 ‘corpus expandido € contraido sobre 0 limite do «af», do faqui-agora> € do «isto»? Qnais as forgas, quais os pensamentos do hoc est enim’ Nao hé aqui nem acgio, nem paixao, nem conceito, nem intuigio. Que forgas ¢ que pensamentos — que forgas-pensamentos, tal- yer — exprimiriam a estranheza tio familiar deste ser-af, deste ser-isto? Dir-se-4 que, para responder, € preciso abando- nar quanto antes a pagina escrita ¢ 0 discurso, pois os corpos nunca terdo aqui lugar. Mas isso seria engana- dor. Aquilo a que se chama Corpo sem rupturas, reviravoltas, descontinuidades (discrigdo), nem mesmo sem jnconsequéncias, contradig&es, desvios do discurso em si proprio. F preciso atravessar este «sujeito», € s6a este «sujeito» a palavra corpo impée uma dureza. seca, nervosa, fazendo estalar as frases onde nos a empregames. ‘Talvez. corpo seja a palavra por exceléncia sem emprego. A palavra a mais em qualquer linguagem. ‘Mas este «a mais», a0 mesmo tempo, nao é nada. Nao se faz assinalar com gestos ou cantos exaltados, para além da lingua, nem através de abismos silencio- sos. Nao; corpo excede a linguagem de um nada, de um nada de nada, uma palavra como qualquer outra, rigo- rosamente no seu lugar (e mesmo em muitos lugares possiveis), fazendo apenas uma fnfima saliéncia, uma excrescéncia mindscula que nunca se deixa reabsorver. Com esta excrescéncia ba a iminéncia sempre possivel de uma fractura e de um derrame desta pala- vra — e desta palavra apenas — para fora das veias do sentido onde circulava com as outras. Corpo como um bocado de osso, como um calhau, um grave, ou cascalho que cai a pique. Qualquer coisa, portanto, que evoca o fragmen- to, aqui mais do que em qualquer outro lugar, Com efeito, a fragmentagio da escrita, a partir do momen- to em que tem lugar e onde tem lugar (sempre e por todo o lado, ou sob a exigéncia de um «género»), res- ponde a uma instancia repetida dos corpos na— con- tra a — escrita, Uma intersecgio, uma interrupgio, 22 Jean-Luc Nan 3 - a esta efracgao de toda a linguagem onde a linguagem; toca no sentido. Psyche ist ausgedehnt A frase mais fascinante ¢ talvez (digo-o sem exa- gero) a mais decisiva de Freud, encontra-se nesta nota péstuma: «Psyche ist ausgedehnt: weiss nichts davon.» «A psique € extensa, € ignora-o de todo» Isto quer dizer que a «psique» € corpo, e que 6 preci- } samente isso que Ihe escapa. Pademos assim supor’ | que este escapar a constitui enquanto «psique», na dimensfo de um nao-(querer/poder)-saber-se. © corpo, ou os corpos, que se trata de tocar pelo pensamento, sio exactamente isto: corpo de «psique», ser-extenso e fora-de-si da presenga-no-mundo. Nas- cimento: espagamento, saida da pontualidade, exten- so reticular em ectopias miltiplas (¢ no apenas ado seio), fora/dentro, fori/da, geografia do id, sem mapa nem territério, zonas (o prazer tem lugar por zonas). Nao € por acaso que a tdpica tenha obcecado Freud: 0 « a abertura de um outro corpo, excepto se o matar (é por isso que hd todo um pobre léxico sexual, que nao €é mais do que um léxico de assassinio ¢ de morte...). Mas que um corpo esteja «dentio» de um corpo, ego «em ego, isso por si nao «abre» nada: é em contacto com 0 aberto que 0 corpo jf se encontra, infinitamen- te, mais do que originariamente; ¢ é em contacto com isso que tem lugar esta travessia sem penetragao, esta confusiio sem fusao. O amor € 0 tocar do aberto. Mas «o aberto» niio 6, € nao pode ser, um «subs- tantivo». O «extra» néo 6 uma outra «pars» entre as : | corpus 29 «partes», mas somente a partiiha das partes. Partilha, partitura, partida, Alter Ego constitui também o obstaculo absolute ao corpo, 4 vinda de um corpo. O ponto de ego de um corpo que (se) enuncia, isto é, que (se) estende, for- ma também, identicamente (nao contraditoriamente eno entanto com contrariedade), um ponto de con- centragao extrema onde o si que se estende e se enun- cia ofusca a extensio, o corpo que ele 6. #go enmnci- ado retrai-se no instante em que ego se enuncia, e precisamente porque € 0 mesmo, ¢ porque € assim que ele é ego: identidade retraida, identificado re- traido, idéntico ao seu retraimento. Retrai-se num ponto, 0 ponto da sua prépria contrariedade: no lu- gar em que corpus (se) enuncia «ego», ego entra na contrariedade, contraria-se com um si frente a si mes- mo, ¢ corpus torna-se a matéria-obstaculo desta con- trariedade (e o proprio lugar da enunciagao). A ma- téria ob-jectada do sub-jecium. £ por isso que nao h4 «corpo préprio», e que corpo proprio é uma re- construgio. © corpo, de facto, ou €é ainda e somenie o «cstender-se» (¢ € demasiado cede para 0 «pré- prion), ou entac esta preso nesta contrariedade (e demasiado tarde). Mas corpus nunca € propriamen- te eu. £ sempre «objecto», corpo ob-jectado precisa- mente a pretensdo de ser corpo-sujeito, ou sujeito- Mina 30 Jean-Luc; -em-corpo, Descartes 6 igualmente veridico neste sen. ;! tido: eu objecto-me o meu corpo, coisa estrangeira’ s estranha, exterioridade 4 minha enunciagio («ego») 2 desta enunciagao mesmo. Ou entao Hegel: «o espiri. to € um osso», como ele diz a propésite da conforma... gio do cranio humano, o que significa que 0 osso es. capa ao espirito, que Ihe resiste e o contraria numa objecgao impenetrvel. Hoc est enim corpus meum; © € uma apropriagdo impossivel, é a propria impossi.” bilidade da apropriagio em geral. Um «eu» extenso nao existe: se eu & extenso, € porque esti também entregue aos outros, Ou melhor, o extenso que eu sou, $6 0 posso ser tendo-me retraido, subtrafdo, retirado e ob-jectado, ‘Um corpo é sempre ob-jectado de fora, a «mim» ou a outrem. Os corpos sio sempre e antes de tudo outros — assim como os outros sao sempre e antes de tudo corpos. Desconhecerei sempre o meu corpo, desconhecer-me-ei sempre como corpo af mesmo onde «corpus ego» é uma certeza sem reservas. Os outros, pelo contrério, conhecé-los-ei sempre enquan- to corpos. Um outro é um corpo, porque s6 um corpo €um outro. Tem este nariz, esta cor, este grio de pele, esta altura, esta curvatura, este suico. Pesa este peso. Cheira a este odor. Porque é que este corpo € este, ¢ no outro? Porque ele é outro — e porque a alteridade consiste no ser-fal, no sem-fim do ser tal e tal e tal deste corpo, exposto até as extremidades. O corpus inegostavel dos tragos de um corpo. . A ob-jecgio toca. Este corpo, este trago, esta zona deste corpo toca-me (toca 9 «meu» corpo). corpus 31 Jsso agrada-me ou desagrada-me, contraria-me ou nao, intriga-me ou no, choca-me ou deixa-me in- diferente, excita-me ou revulsa-me. Mas ser4 sem- re a coisa mais longinqua que vird do outro. A ue viré na propria vinda do outro. Pois 0 outro yiri do mais longfnquo, do mais distante, num corpus de tragos que acaba por se identificar com «ele» — € que no entanto se mantém nele préprio jnidentificvel: € que esses tragos sao todos estra- phos uns aos outros, este brago com este queixo, estes pélos com estas ancas, ¢ esta voz, ¢ este. todos fazendo corpo e deslocados em conjunto. E assim até ao ponto em que se torna claro que «outro» € «outren, nfo so sequer as palavras cer- tas, mas somente «corpo». O mundo no qual eu nas- 50, morro, existo, nao é o mundo «dos outros», uma vez que é igualmente o «men». £0 mundo dos cor- pos. © mundo do fora. O mundo dos fora. O mun- do onde dentro ¢ fora, cima e baixo se baralham. O mundo da contrariedade. O mundo do contra. Um encontro imenso, intermindvel: cada corpo, cada massa retirada de um corpo é imensa, desmedida, infinita a percorrer, a tocar, sopesar, othar, a dei- xar-se pousar, difundir, infundir, a deixar pesar, a suster, a resistir, a suster como um peso ¢ como um olhar, como o olhar de um peso. Porque € que existe isto, a vista, ¢ nfo antes qualquer coisa que misturasse o ver ¢ ouvir? Mas de uma tal mistura, haverd sequer sentido em falar? 32 Jean-Lue Nancy E em que sentido? Porque é que existe esta vista “f que nao vé os infravermelhos? Estes ouvidos que nao ouvem os ultra-sons? Porque € que em cada sentido hé limites, e entre todos os sentidos um muro? Mais ainda: no serio os sentidos universos separados? Ou melhor: a deslocagao de todo e qual- quer universo possivel? O que € a separagio dos sentidos? E porqué cinco dedos? Porqué este sinal no rosto? Porqué este vinco no canto dos labios? Porqué este sulco, ali? Porqué este ar, este andar, esta medida, esta desmedida? Porqué este corpo, porqué este mundo, porqué absolutamente e exclu- sivamente ele? Hoc est enim: este mundo aqui, que aqui jaz com a sua clorofila, a sua gal4xia solar, as suas ro- chas metamérficas, os seus protées, a sua dupla hé- lice desoxirribonucleica, 0 seu mimero de Avogadro, a sua deriva dos continentes, os seus dinossauros, a sua camada de ozono, as riscas da sua zebra, o seu animal humano, o nariz de Cleépatra, o nimero de pétalas da margarida, o espectro do arco-fris, o estilo de Rubens, a pele da serpente pitdo, a figura que faz o André nesta foto de 16 de Janeiro, este fio de erva e esta vaca pas- tando-o, € o matiz da iris do olho de quem lé esta palavra, aqui ¢ agora? E porque nao também os sentidos que nio se nomeiam, os sentidos que nao se sentem, ou que nao se sentem como sentidos, um sentido da duragao, do tempo que passa? E até um sentido do espagamento dos sentidos? E um sen- tido da ex-tensfio pura? Ou da ex-isténcia? corpus 33 Expele Os corpos sempre prestes a partir, na iminéncia de um movimento, de uma queda, de um desvio, de yma deslocag&o. (O que é uma partida, mesmo a mais simples, Seno esse instante em que tal corpo nao esté mais al aqui mesmo onde estava? Esse instante em que da legar ao tinico abrir do espagamento que cle proprio é? O corpo que parte Jeva consigo o seu espagamento, enleva-se como espagamento, e de certo modo pée-se & parte, retrai-se ern si — mas ao mesmo, tempo, deixa esse mesmo espagamento «atrés de si>, isto é, no seu lugar, € este lugar mantém-se © seu, ab- solutamente intacto e absolutamente abandonado. Hoe est enim absentia corporis et tamen corpus ipse.) Este espagamento, esta partida, sao a sua pro- pria intimidade, a extremidade do seu retraimento (ou, se se quiser, da sua distingdo, da sua singuia- ridade, ou mesmo da sua subjectividade). O corpo é sina sua partida, enquanto ele parte — ¢ se aparta aqui mesmo do aqui. A intimidade do corpo expde a asseidade pura como distancia e partida que ela é. Aasseidade — 0 a si, 0 por si do Sujeito — sé existe como distancia e parlida deste a — (deste a si) que é © lugar, a instancia propria da sua presen- ca, da sua autenticidade, do seu sentido. O a si en- quanto partida — eis o que é exposio. © Na ed. francesa: Expeausition, neologismo que inscreve a pele (peau) na patavra homéfona «exposition». O modo imperative do verbo expelir, aqui, procura evocar © sentido de wexpeausiiion»: 0 ser lancado do corpo (N-4.T). 34 Jean-Luc Nancy | A cexposigio» nfio significa extrair a intimidade do seu retraimento, lev4-la para o exterior e pé-la vista. O corpo seria entio uma exposicio do «si», no | _ sentido de uma tradugio, de uma interpretagiio, de uma encenagio. «Exposicio» significa, pelo contrs- rio, que a expressio € ela propria a intimidade e o retraimento, O a si nfo se traduz na expressiio, nem ‘| af se encarna, mas resta aquilo que ele é: este vertigi- noso retraimento do si que é necessério para que se- abra 0 infinito retraimento até si. O corpo é esta par- tida de si, a si. Exposto, portanto: mas sem pér A vista aquilo que, anteriormente, tinha estado escondido, fecha- do. A exposigao, aqui, é 0 préprio ser (e a isto se 44 © nome de existir). Ou melhor ainda: se 6 ser, como sujeito, tem por esséncia a autoposigio, aqui a autoposigio € ela prépria, enquanto tal, por essén- cia e por estrutura, a exposico. Auto = ex = corpo. O corpo € 0 ser-exposto do ser, E por isso que a exposigao nao pode ser a exten- so de uma tinica superficie. E que esta extensio ex- pe ela propria outras extensGes — expée, por exem~ plo, este modo do partes extra partes que 6 a singular desconjungio dos «cinco sentidos». Um corpo s6 é capaz de sentir nesta separagio, nesta partilha dos sentidos, que no constitui um fenémeno, nem o re- siduo de uma «auto-estesia» profunda, mas antes toda a propriedade do corpo estético, esta simples tautologia, Uma sobre a outra, uma na outra e junto 4 outra: assim se expdem todas as estéticas das quais 0 corpo conpus 35 éa conjung&o discreta, miltipla, profusa. Os seus membros — pés e cabecas —., as suas partes — célu- jas, membranas, tecidos, excrescéncias, parasitas —, os seus tegumentos, suores, tragos, cores, todas as suas cores locais (nada acabara com o racismo enquanto se he opuser uma genérica fraternidade entre os ho- mens, em vez de ibe contrapormos a des-locagao, afir- mada e confirmada, das nossas ragas e dos nossos tragos, negros, amarelos, brancos, encarapinhados, com nariz, achatado, beigudos, arredondados, pelu- dos, gordos, com olhos oblfquos, nariz. largo, roucos, franzinos, prégnatos, aduncos, enrugados, com um cheiro intenso...). Por toda 4 parte — de corpo em corpo, de lugar em lugar, de lugares onde estio os corpos em zonas e pontos do corpo —, por toda a parte, a caprichosa desconjungio do que faria a assungao de wm corpo. Por toda a parte uma decom- posigao, que nao se fecha num si puro ¢ nao exposto (amorte), mas que propaga até na iltima putrefacgao, sim, que propaga mesmo af — insuportavel como ela é—uma inverosimil liberdade material de cores, bri- Jhos, tons, linhas, que nao deixa espago a nenhum continuum, ¢ que é pelo contrério a efracgao dissemi- nada, infinitamente renovada, da inicial uniio/divi- sao das células através das quais nasceré «um cor- po». Desta efracgiio, desta partida dos corpos em to- dos os corpos, todos os corpos fazem parte, ¢ a li- berdade material — a matéria como liberdade —niio €somente a de um gesto é ainda menos de uma accio voluntéria, mas também a de dois cambiantes de 36 Jean-Luc Nangy mica, de milhées de conchas desiguais, ¢ da exten, so indefinida de um principium individuationis que. faz com que os préprios individuos nao parem de se. in-dividuar, sempre mais diferentes deles préprios, © portanto sempre mais semclhantes © mais substituiveis entre eles, e todavia jamais confundi. dos em substancias. Pois a substancia, antes de Po. der sustentar 0 si ou 0 outro, € exposta aqui! no mundo. ~ @ preciso admiti-lo: toda a «filosofia da nature. za» esta por refazer, se a «natureza» deve ser pensa- da ¢omo a exposigio dos corpos.) (Ou seja: a liverdade.) Pensamento No pensamento do corpo, 0 corpo forga o pen- samento sempre mais longe, sempre demasiado lon- ge: demasiado longe para que possa ainda ser pen- samento, mas nunca o suficiente para que possa ser corpo. B por isso que no h sentido em falar separada- mente de corpo e de pensamento, como se cada um pudesse subsistir por si: € que eles sdo apenas o seu mituo tocar-se, 0 toque da efracgao de um pelo outro de um no outro. Este toque € 0 limite, o espagamento da existéncia. O qual, todavia, possui um nom bilo» © «dor», ou «pena». Este nome que decerto sé significa o limite de toda a significagio — e o bordo mesmo, a abordagem do espagamento. Nao significa b corms 37 nada, mas expe a combinatéria destes quatro ter- mos: corpo-pensamento-jaibilo-pena, Todas as suas figuras tocam no mesmo interval que disiribui os quatro. ; | Ha ainda um outro nome da combinatéria, ou da distribuigao: «sexo». Nao € 0 nome de algo que esiaria exposto, mas o nome do tocar na prépria exposigao- . «Sexo» toca no intocével. Eo nome-deflagrado do corpo, © nome que sé nomeia espagando os cor- pos pelos estilhagos desta estesia suplementar: os se- os. OS préprios sexos nao podem ser enumerados nem nomeados, «Dois», aqui, € apenas o indice de um intervalo polimérfico. O «meu» sexo néo é uno de parte a parte: € contacto discreto, aleatério, um acontecimento de zonas que € tanto do «meu» corpo como de outros — pois 0 meu corpo torna-se outro nesse tocar, ao ser tocado, iormando-se assim o mes- mo, mais absoluto, mais retrafdo do que nunca, mais identificado como ser-lugar do tocar (da extens&o), Dos pés & cabega, sem pés nem cabega, um corpo estatelado, igual, plural, feito de zonas e de sombras, de toques. Esse corpo no ser qualificade nem de «mulher», nem de «homem»: estes nomes, quer o queiramos quer nao, deixam-nos entre fantasmas © fungdes, precisamente onde nao se trata nem duma coisa nem doutra. Diremos assim, preferivelmente: wm corpo indistinto/distinto, indiscreto/disereto, € o corpo-deflagrado sexuado deslizando de um corpo para 0 outro até a intimidade (deflagrante, com efei- to) do limite em que tocam na sua diferenga. i | 42 Jeane Nang pensar, nem de experimentar, que nos destindmos a lugar. E todavia, nao podemos também ignorar que a historia que vem, na medida em que ela vem, desfaz, desafia os destinos ¢ os fins. Na medida em que a | hist6ria vem, ela espaga também. Cabe-nos doravante. pensar 0 espagamento do tempo, o tempo como co; po...) Arealidade «Arealidade» 6 uma palavra em desuso que indi.” ca a natureza ou a propriedade de drea. Por wm mero acaso, a palavra presta-se também a sugerir uma falta de realidade ov, melhor, uma realidade ténue, ligeira, | suspensa: a realidade da distancia que localiza um corpo ou que est num corpo. Pouco de realidade do «undo», portanto, da substancia, da matéria on do sujeito. Mas este pouco de realidade constitui todo‘ real da arealidade onde se articula ¢ se dispde aquilo & que se chamou a arqui-tect6nica dos corpos. A arealidade, neste sentido, € 0 ens realissimum, a po- téncia m4xima do existir, na extensao total do seu horizonte. A realidade enquanto arealidade retine 0 infinito do m4ximo de existéncia («quo magis cogitari non potest») € 0 finito absoluto do horizonte da arealidade. Esta «teuniao> nfo é uma mediacio; e o que quer dizer corpo — o que quer dizer ou o que d4 que pen- sar corpo ~— é precisamante isto: que nfo ha aqui mediagio. O finito eo infinito no passam um no comps 43 outro, nao se dialectizam, nao sublimam o lugar num ponto: nao concentram a arealidade num substrato. £ oque quer dizer corpo, mas de um querer-dizer que importa desde logo subtraf-lo a dialéctica significante: corpo nao pode querer dizer um sentido real do cor- pofora do horizonte da sua arealidade. «Corpo» deve ter sentido, assim, na prépria extensio (e inclusive na extenséo da palavra «corpo»...). Esta condigio «significante> (se for ainda possivel nomeé-la deste modo) € inaceitével, impraticdvel para o nosso dis- curso. Mas ela é a realidade/arealidade como condi- gdo de todo o sentido posstvel para um mundo dos corpos. i por isso mesmo que um «pensamento» do cor- po deve também ser (de acordo ou nfo com a etimologia) uma pesagem real, um tocar, dobrado- -desdobrado segundo a arealidade. Mistério? Como ja foi dito, o «tacto» deste pensamento — este pesa-nervos que o pensamento deve ser, sen’o nada ser — nao pertence a uma imediatez anterior ¢ exterior ao sentido. Do sentido, o tocar € antes o pré- prio limite — ¢ 0 limite do sentido toma-se em todos os sentidos, cada um constituindo a efracgio do ou- HO... Nao € necessario, porém, atribuir a0 «tocar» um valor excessive, ¢ sobretudo julgar que se chegaria a tocar no sentido de «tocar, enquanto este constitui o 44 ~Tean-Lie Neney limite para o sentido (os sentidos). Esta € uma ten. déncia bastante comum nas ideologias mais robustas do «corpo» (ou seja, nas mais ordindrias, do género; «pensamento musculoso» ou «pensamento sagrado. -coragdo», o fascismo vitalo-espiritualista — com 9 seu real € secreto horror dos corpos). Expondo o espagamento dos corpos, fixando os olhos neste intervalo, vou acabar certamente por pro- por uma qualquer visio tiltima: o olho cravado no intervalo do ser. Esta visao responde ao mais podero- so modelo visiondrio da metafisica, no seu fundo mistico. B a Visio dos Mistérios, tal como Platao a retomou e a transmitiu. A epopteia, a visio consuma- da, a visto em que se supera a iniciagao (que d4 ape- nas a «compreender) e se acede A «contemplacio», a uma «sobre-visio> que € um «devorar dos olhos» (© proprio olho que se devora), uma captura e afinal um tocar: 0 préprio absolute do tocar, 0 tocar-o-ou- tro enquanto tovar-se, um no outro absurvido e devo- rado. Para toda a tradigao, tal € a consumagdo do Mis~ tério da Certeza Sensivel: vejam, aqui mesmo, safdo do cesto de Cibele, pés e cabega, hoc est enim corpus meum, Mas a arealidade nfo pode sair de um cesto, seja ele o dos Mistérios. A arealidade nao é para ser vista — no como quet ver a epopteia. A arealidade nao € para se ver de ienhum modo: nem enquanto ela & a extensdo ou ex-tensividade pura do corpo, o fora- -de-si que como tal nao (se) faz ver (e que a logica do Mistério supSe como «inapresentavel» para apresenté-lo a sua sobre-visio), nem enquanto ela é, | ‘corpus 45 igualmente, 0 préprio apresentivel: @ configuracao determinada, 0 draco deste corpo aqui. Deste corpo, de facto, nada se verd, se sé ele for visto na pura visi- pilidade da sua apresentagao. Ver um corpo significa precisamente no o apreender numa s6 visio: a pro- ja vista af se distende, ai se espaga, nfo abarcando atotalidade dos aspectos. Pois mesmo 0 «aspecto» é um fragmento do tragado da arealidade: a vista € frag- mentaria, fractal, Jacunar. De resto, € um corpo que vé um corpo . ‘A epopteia, professando 0 mistério, s6 conhece em contrapartida um aspecto ¢ uma visio: € o otho cravado em plena face, mesmo no centro da ateatidade, na fenda ou no orificio do ex. Ela € pro- priamente e absolutamente visio da morte, desejo do mistério absoluto que nao se pode realizar sem fulminar os corpos (fulminando, assim, também a sua propria vista...). Tudo aqui é pesado ¢ mérbido, como esse erotismo que se compraz em fitar a fenda da vulva, vendo ai aparecer a cabega da Medusa. O ero- tismo metafisico e medisico é um testemunho segu- 10 da negagio do corpo. A Medusa bloqueia-lhe 0 tra- 0, paralisa-Ihe a extensfio — e sobra a masturbagao do olho. Mas as fendas, os orificios, as zonas ndo déo nada + aver, née revelam nada: a visdo nao penetra, antes desliza pelos intersticios, acompanhando as separa- g6es. B um tocar que nao absorve, que se move ao longe dos tragos e contracgées que inscrevem e excrevem um corpo. Caricia mével, instével, vendo ao ralenti, de forma acelerada ou parando a imagem, t i t |}. 46 Jean-Luc Nancy vendo também através de contactos com 08 outros sentidos, odores, sabores, timbres, ¢ mesmo com gs ~ sons, com os sentidos das palavras (0 «sim> que ju. bila). ‘Ver os corpos nfio é desvendar um mistério, 6 ver © que se oferece & vista, a imagem, a mirfade de ima- gens que € 0 corpo, a imagem nua, pondo a.nua arealidade. Esta imagem ¢ estranha a todo o imagina- rio, a toda a aparéncia — assim como a toda a inter Pretagiio, a toda a decifragio. De um corpo, no hé nada a decifrar — a nao ser o facto de que a cifra de um corpo € o préprio corpo (nfo cifrado, mas exten- so). A vista dos corpos néio penetra em nada de invi- sivel: € ctimplice do visivel, da ostensio e da exten- sfio que o visivel é. Cumplicidade, consentimento: aquele que vé comparece com aquilo que ele vé. assim que se distinguem um do outro, segundo a medida infinitamente finita de uma justa claridade. Justa claridade S6 a claridade € primeira, 6 ela se estende antes de qualquer extensio: ela € a substincia e 0 sujeito da extensio. Mas toda a materialidade ¢ toda a subjectividade da claridade provém da justa partilha do claro-escuro: af tém inicio, conjuntamente, a dife- Tenciagao do trago e a cor local, um no outro, prime: ro aspecto, primeira vista, primeira pintura. Um cor- Po, antes de mais, exp5e-se como a sua foto-grafia (0 espagamento de uma claridade). corpus 47 justiga ao corpo, A sua evidéncia. B s6 hd esta evidéncia — clara e distinta, como tencio- nava Descartes: a evidéncia do corpo. Os corpos so evidentes — e 6 por isso que toda a justeza ¢ toda a justiga comegam e acabam neles. O injusto est em baralhar, quebrar, triturar, sufocar os cor- pos, tornando-os indistintos (reunindo-os num cen- tro obscure, amontoados até a compressio do es- pao que existe entre eles © neles préprios — até a0 ponto de Ihes assassinar o espago da sua justa morte). Ainda no praticémos 0 mundo da claridade. Estamos ainda na ordem solar, cujo claro soberano nio é a claridade, tal como 0 nfo é aquilo que se Ihe contrapée, o gelo lunar, (A visdo dos mistérios é sem- pre visdéo do meio-dia ou da meia-noite.) Mas a vin- da ao mundo dos corpos, a sua fotografia, dé-se na claridade que vem depois da lua e antes do sol. A aurora € 0 tragado do traco, a apresentagio do lugar. Aaurora € 0 Gnico meio dos corpos, que nio podem subsistir nem no claro, nem no gelo (o pensamento solar sacrifica os corpos, 0 pensamento lunar fantasmagoriza-os: um e€ outro compéem o Sistema. Asteco-Austriaco, que também dé pelo nome de Metafisica). Enquanto houver corpos, haveré a claridade da aurora ~~ que é ela propria lébil na sua evidéncia, disposta ¢ diferenciada em laivos. A aurora € uma arealidade: dispde os contornos do mostrar-se, da comparéncia dos corpos. A claridade € apenas o enun- ciado: eis, hoc est enim. 48 Jean-Luc Naney Ostensiio sem ostentagao, a claridade mostra um corpo nu, desnudado de cifra e de mistério, senda infinitamente o mistério evidente, o mistério esva- ziado desta mesma claridade. O mundo 6 a aurora dos corpos: é todo o seu sentido, até ao mais secre- to. Apenas a justeza deste sentido: é 0 sentido justo, Enquanto houver um-corpo, existiré a aurora, a aurora e nada mais (nem astros nem archotes). E exis- tird, teré cada vez Ingar a aurora prépria de tal cor- po, deste corpo assim ou assim. Deste modo, um cor- po'que sofra tem a sua parte de claridade, igual a qual- quer outra, ¢ distinta. O limite da dor oferece uma evi- déncia intensa, onde, Jonge de se tornar um «objecto», © corpo que pena expde-se absolutamente «sujeiton, Quem maltrata um corpo, encarnigando-se contra a evidéncia, nfio pode ou nao quer saber que em cada pancada torna este «sujeito» — este hoc — muais claro, mais impiedosamente claro. A aurora € justa: estende-se de igual para igual de um bordo ao outro. A sua meia-tinta nao € 0 cla- ro-escuro do contraste nem da contradigao. E a cum- plicidade dos lugares no instante em que se abreme se estendem. & uma condig&o comum, pois iguais nao s&io os espagos medidos, mas os espagamentos, todos banhados pela mesma luz. A igualdade € a condigo dos corpos. Que hé de mais comum que os corpos? Antes de qualquer outra coisa, «comunida- de» quer dizer a exposigio nua de uma igual, banal evidéncia que sofre, jubila, treme. E é primeiramente isto o que a aurora subtrai a todos os sacriffcios ¢ 7 | | corpus 49 todos os fantasmas, para o oferecer ao mundo dos corpos. (Escrever, pensar assim: somente para fazer jus tiga & aurora. Fim da filosofia.) A aurora, ou antes, os projectores impeciveis so- bre uma cena evidente, aberta de par em par, como s6 o pode ser uma cena de 6pera italiana. Bocas, corpos escancarados que se fincam a clamar puros fragmen- tos de espago — dinanzi al re! davanti a iui! venham, eis, vamos, andemos, partamos, fiquemos —, as vozes vindas do ventre, os coros, numerosos, ¢ 0 canto, po- pular — vamos, vejamos, eu rio, choro, vivo, morro. Escrever € pensar assim, a boca aberta, opus-corpus. Citagao . «Com grande espanto, Kazik descobriu que esta- va condenado, para toda a vida, a arrastar um pouco 0 pé esquerdo, que um dos seus olhos distinguia difi- cilmente as formas e as cores, que quanto mais enve- Ihecesse mais se iriam multiplicar nas palmas das méos umas malvadas manchas castanhas, e que per- deria os seus cabelos e os seus dentes. Observava es- tas alteragdes como se lesse a histéria de um esiran- geito, mas a mégoa e a dor cresciam nele e tortura- vam-no: a mAgoa da deterioragao, a dor da separa sao, Varizes azuis tinham em pouco tempo coberto a barriga da perna esquerda — ¢ ele debrugava-se a contempla-las como quem olha para um mapa de uma 38 Daqui derivam algumas consequéncias: a lei ag "| menor contacto, ou do piscar de olho como intensj. 4. dade j4 maxima de prazer; a lei da maior superficia: lidade onde 0 corpo vale absolutamente como pele. sem qualquer outra espessura de Srgio nem de pe. netragao (os corpos sexuados sio invulneraveis, sig eternos); a lei, que thes é conexa, segundo a qual nao hé sexo (A excepgiio das operagées de laboraté. rio, que possuem uma finalidade) sem um minimo de amor, mesmo infinitesimal (0 qual é as mais das? vezes negado), nem amor sem sexo, mesmo se im-’ Perceptivel; ¢ por fim o sexo como lei, esse impera-” tivo de tocar, de beijar e fazer amor, do qual nem 0: instinto da espécic, nem mesmo a «libido» podem dar conta. Pois este imperativo nao yisa nenhum objecto, grande ou pequeno, nao visa a si nem um filho, mas apenas 0 jtibilo/a pena de um tocar-se, (Ou melhor; de um restar si préprio, ou de um tor. nar-se si proprio sem voltar a si. O jiibilo 6, no cora- ¢do da dialéctica, uma diastole sem sistole —e este coragiio € 0 corpo.) Tocar-se tu (e néo «si préprio») — ou ainda, de igual modo, tocar-se pele (¢ nao «si préprion): tal € © pensamento que 0 corpo forga sempre rhais Jonge, sempre demasiado longe. Na realidade, é 0 préprio pensamento que ai se forga, que af se des- loca: todo o peso, toda a gravidade do pensamen- to — que constitui ele proprio um ponderar, uma pesagem —, reduz-se afinal a dar consentimento os corpos. (Consentimento cxasperado.) a 39 ‘corpus vem 0 mundo dos corpos Houve 0 cosmos, o mundo dos espagos distribui- dos, lugares dados pelos deuses ¢ aos deuses. Houve tres extensa, cartografia natural dos espagos infini- tos e do seu mestre, 0 engenheiro conquistador, 1u- gar-tenente dos deuses desaparecidos. Vem agora 0 mundus corpus, 0 mundo como povoamento proliferante dos lugares (do) corpo. ‘Aquito que vern nao é de modo algum o que sus- tenta 0 discurso fraco da simulagao e do espectéculo (um mundo de aparéncias, simulacros,¢ fantasmas, sem carne ¢ sem presenga). Esse discurso fraco nfo é mais do que o discurso cristo da transubstanciagio, _-simplesmente esvaziado de substancia (e sem divida de cristianismo...). Discurso perdido: os corpos j4 comegaram a passar-Ihe por cima. Aquilo que vem é uma muito diferente versio, uma outra articulagio de hoc est enim... E antes de tudo, talvez seja nem mais nem menos que isto: aquilo que vem é 0 que nos mostram as ima- gens. Os nossos milhdes de imagens mostram-nos milhdes de corpos — como jamais eles foram mos- trados. Multidées, acumulagées, tumultos, montdes, filas, ajuntamentos, pululamentos, exércitos, bandas, debandadas, fugas, bancadas, procissées, colisdes, massacres, carnificinas, comunhées, dispersées, um excesso, um transbordar de corpos sempre em mas- sas compactas € ao mesmo tempo em divagagées pulverulentas, sempre reunidos (nas ruas, em conjun- tos, megalopolis, periferias, Iugares de transito, de 40 Jean-Luc Nancy vigilancia, de comércio, de tratamento, de esquecj- mento) e sempre abandonados a uma confusig estocistica dos mesmos lugares, 4 agitaga4o, que os. estrutura, de uma incessante partida generalizada. Bis o mundo da partida mundial: o espagamento do par. tes extra partes, sem que algo 0 sobrevoe ou 0 sus- tente, sem Sujeito do seu destino, tendo apenas lugar como uma prodigiosa pressio dos corpos. Este mundo — 0 nosso, desde j4 — é o mundo dos corpos, porque tem — porque é a prépria densi- dade do espacamento, ou a densidade, ¢ a intensida- de, do lugar. Esta densidade distingue-o de um uni- verso da distribuigao (4tomos, estruturas, placas, es- pagos piblicos privados de publico), assim como de uma economia da dilaceragao (almas, destinos, ne- cessidades, espagos piiblicos privades de espago). A distribuigio e a dilaceragdo parecem ser as formas reconhecidas, ¢ de resto combinadas, da organizagio humana em geral (ou do (um ciclone no Bangladesh, com centenas de milhares de mortos, dezenas de milhdes de vitimas, € indissociavel da demografia, da economia, das relagdes Norte-Sul, etc.); ov entdo, num outro plano, una sociedade que faga proliferar as margens e as exclusées fica tam- bém afectada, ou infectada, pelos abalos que vio.che- gando até ao seu centro (droga, SIDA), e € ainda de ‘compos que se trata, e da sua chaga. Bis o que antes de tudo € mundial: nfo necessariamente 0 que abrange todo o planeta (ainda que isto mesmo se v4 tomando exact), mas aquilo que, no lugar ¢ no posto de am cosmos ¢ dos seus deuses, no lugar ¢ no posto de uma natureza e dos seus homens, distribui e reane os B Corpos, 0 espago da sua extensio, a exposigio do sii desnudamento, Este mundo dos corpos — ou melhor, o muds 0 compos = «nds» — oferece-nos & nossa ocasiao e 4 * nossa histéria. O que quer dizer também que é algo que ainda nos precede, ¢ que nds devemos descobri:, Alé aqui, para o dizer uma vez mais, aquilo que apresenta € uma chaga. Desde a Primeira Guerra muy. dial (isto €, desde a invengio simultinea de um nova - espago jurfdico para a economia politica inter-nacio. nal e de um novo espago de combate para um nimerp in€dito de vitimas), estes corpos — por todo 0 lado pressionados — sio sobretudo corpos sactificados. Melhor: nem sequer sao sacrificados. «Sacrificion € excessivo ou insuficiente para designar aquilo que Sean-Lue Nancy 79 -jgnificando apenas o sofrimento em que o corpo se ttai, COrpo recothido, conceritrado, privado do seu sspago de movimento. Nao € a desgraca (que evoca a ingédia, doravante indecifrdvel), e nio é a doenga {que evoca a sua causa e a satide: onde nao hA chaga rem remédio): mas é o mal, o mal em absoluto, uma ‘aga aberta sobre si mesma, signo de si reabsorvido jm si até ndo ser mais nem signo, nem si. «Olho som élpebra cansado de ver e de ser viston: € 0 que diz iMarcel Hénaff do nosso corpo ocidental chegando ‘0 fim de um programa tragado primeiramente por sede. Porno-grafia: o nu gravado de estigmas da cha- 'g, feridas, fendas, flagelos do trabalho, do lazer, da Jrsupidez, das humilhagées, das més alimentagées, das pancadas, dos medos, chaga sem remédio, sem Accatrizes, chaga que nao se fecha. nés fazemos com os corps. «Sacrificio» significa (em princfpio) que um corpo passa a um limite em que se torna corpo comum, espfrito de uma comunhio da qual cle 0 efectivo simbolo material (hoc est enim...), absoluta relagio a si do sentido no sangue, do sangue no sentido. Mas nés nao temos mais sacrificios a fa- zer, no € mais esse o nosso mundo. O sangue que escorre das nossas chagas, escorre horrivelmente, ¢ apenas horrivelmente, como escorreu e se dissolven gota a gota o Espfrito das chagas'de Cristo. Nao hé Graal que venha recolher este sangue. A chaga 6 doravante apenas uma chaga — ¢ todo o corpo é ape- nas uma chaga. F portanto também, e antes de tudo, esta cha- ga que nao é mais do que o seu proprio signo, Corpus, anatomia Pela chaga se evade o sentido, gota a gota, horri- jlmente, irrisoriamente — talvez mesmo serenamen- le, © porque nfo alegremente? Esta € a questio que propde a aurora exangue, ao Jevantar-se sobre um mundo de corpos. Saberemos nés ictuar face a esta perda de sentido, e ter o sentido desta perda — mas um sentido que nfo faga concessio e no Iminta sobre esta mesma perda? Sera que somos capa- tes de ir até aquilo que ja se estende e se abre a partir licla? Até ao mundo dos corpos, tal como o liberta ou 0 cixa vir 0 fim perfurado do organon do sentido? 80 Seremos nés capazes, por exemplo para cong, gar, de compreender que esta perda do corpo-do-sen.. tido — a qual constitui, em rigor, 9 nosso tempo, dai? do-the 0 seu espago —, ainda que ela nos faga doey, néo nos faz porém mergular na angdstia? Ja que ¢ angistia se angustia precisamente devido A auséncia de sentido. A angistia ¢ a incorporagio melancéticg ou a encarnaciio histérica (mistérica?) desta anség, cia, mas dé-Ihe o seu sentido de angiistia. A angtistig’-~ da-se como sentido ¢, no fundo, ela propria € ainda uma forma de extrema concentracao, esta forma-f. mite em que € preciso imaginar o Espirito Santo an. gustiado (a sua santidade perdida?). Mas a dor nao se dé como sentido. Existimos na dor porque somos’ organizados para o sentido, ¢ a sua perda fere-nos, entalha-se em nés. Mas assim como a dor nfo dé sen." tido ao sentido perdido, também nao o da & perda. Dessa perda, a dor & somente o gume, a queimadura, a pena. Aqui, no ponto da dor, hé somente um «sujeito» aberto, cortado, anatomizado, desconstruido, descoit- juntado, desconcentrado. A aurora de um espaca- mento, a claridade, 0 risco ¢ a ocasiao da arealidade como aquilo a que estamos expostos, e que nos ex- poe como nés — como nds-mundo. Mais de cinco mil milhées de corpos humanos. Dentto em pouco, oito mil milhées. Para ndo falar noutros corpos. A humanidade tora-se tangfvel: mas aquilo em que se pode tocar no € «0 homem», nioé justamente esse ser genérico. Estamos a falar da sua ndo-genericidade, da sua nfio-generalidade. Encetamos ce SeancLue Na 81 ,ontologia modal € Jocal do seu ser-aqui, do seu ser rT aqui-e-0-ai, do Seu aqui-jaz e da sua ida e vinda. qual é © espaco aberto enire oito mil milhGes de cor- os, e em cada tim, entre pés cabega, entre mii do- “fas, postutas, quedas, lances, perfis de cada um? Qual go espago onde se tocam e€ se afastam, sem que ne- jum deles, nem a sua totalidade, seja reabsorvido um puto € aulo signo de si, num corpo-de-sentido? Dezasseis mil milhdes de olhos, oitenta mil milhdes je dedos: para ver o qué? para tocar o qué? E se fosse 4 isicamente para existir, para ser estes corpos, ¢ para ver, tocar © sentir os corpos deste mundo, que mais poderiamos 6s inventar para celebrar o seu nii- mero? Ser que podemos sequer pensar nisso, nés que estamos cansados, simplesmente cansados da chaga? ‘tudo € possivel. Os corpos resisiem, duras par- wes extra partes. A comunidade dos corpos resiste. A graga de um corpo que se oferece € sempre possivel, tal como est4 sempre disponivel a anatomia da dor —que no exclui uma alegria singular. Os corpos exigem ainda, e de novo, a sua criagio. Nao a encarnagaio que insufla a vida espiritual do signo, mas avinda ao mundo ¢ a partilha dos corpos. Nao mais os corpos empregues para fazer senti- do, mas um sentido que dé e partilha os corpos, Nao mais a pilhagem semiolégica, sirtomatolégica, mi- tolégica ¢ fenomenolégica dos corpos, mas um pen- samento e uma escrita que se entregam, que se dio 20s corpos. A escrita de um corpus enquanto pariilha dos corpos, partilhando © seu ser-cozpo, mas nfo o 82 - JenmLue'y significando, partithada por ele, uma escrita sept da portanto de si mesma e do seu sentido, exerita longo da sua inscrigdo, Isso mesmo que, no my dos corpos, diz a palavra «eseritay: cof anatomizado de um sentido que nfo apresenta ng Nificagao dos corpos, nem tio-pouco reduz o corpg: a0 seu proprio signo. Mas um sentido aberto oo, 98 sentidos «sensiveis» — ou melhor, aberto pel abertura dos sentidos, expondo o sou ser-extenso. uma significancia do espagamento, que se espagi ela propria. . * (Mesmo assim, ¢ inevitavelmente, continuar significar. Pois, repito-o: nés somos organizados para isso. Mas o ser em nés, a existéncia que nds poms em jogo, é a infinita suspensio finita desta organiza. $40, a exposigio frégil, fractal, da sua anatomia, Q interesse da escrita no est na desordem ou no caos da significagdo: esta na tensio junto ao sistema significante. Est nesta tensio — que nés préprics somos — do ser com aquilo que somos. Nesta anatomizagiio da organizacéo sem a qual nao seria- mos mortais, mas somente a Morte em Pessoa. Esta tensio € a extensio que se designa na nossa tradicio Por «corpo».) O que, de uma escrita, nfo € para ler Escrever 0 signo anatémico de «si», que nio significa, mas corta, aparta, exp6e. Deixar correro animal do discurso. Entalhar 0 discurso — o que, 83 _apare-se todavia, nfio é mais do que deixar andar o i Gp curso, & Sua repeli¢do, os seus acasos, a sua im- “ovisagao (minimizando o dia do didlogo e a medi- odo contrato do sentido, ou melhor, desviando-se jentamente, discretamente, e mesmo com pudor). Des- ivar para a anatomia de um corpus. Nao é # anato- ‘nia filoséfico-medical da dissecgao, o desmem- pramento dialéctico dos érgios e das fungées. E an- tes a anatomia da enumeragdo mais do que do . desmembramento. A anatomia das configuragoes, da I plasticidade, talvez fosse necessério dizer dos esta- dos-de-corpo, maneiras de ser, andares, respirag6es, : procedimentos, atordoamentos, dores, prazeres, pé- jos, enovelamentos, rogamentos, massas. Os corpos, F sates de tudo (isto é, quando os abordamos) sio mas- sas,massas oferecidas sem que nada as articule e as. encadeie, nem discurso nem narrativa: palmas, faces, ventres, nddegas. O proprio olho é uma massa, tal como a lingua € 0 16bulo da orelha. Este conceito de massa nao € 0 conceito fisico, nem tio-pouco o dos «fenémenos de massa», o de Tarde ou de Freud, que depende da concentragio (e que permitiria mostrar como na «massa popular» nio hd espago para os corpos). As massas que se distribuem, modulando a extensio dos corpos de maneira sempre altervel, sio lugares de densidade, nao de concen- tragéo. Nao tém centro, nem buraco negro. Estio em contacto com a pele — e em contacto com a palma que as pode deter. & um espago feito em massa, mas- sa espagosa, extensio exposta como um grao, como. um peso, uma dilatagio, uma articulag4o limitada, 84 uma cor local onde as partes extra partes densi, a sua arealidade, sem no entanto se precipitn nt artes intra partes. Pere ery: O paradigma é sem dtivida o seio da mulher sa que localiza numerosas cctopias. Aliment objecto separado, visibilidade do sexo, moving” independente, ereccao, transbordar, duplicagi y versio do peitoral vigoroso, nascimento da on. nascimento do fruto: o nascimento dos sxe exemplifica todo o nascimento como modalioagae essencial da aréalidade — e da também a come ender que esta modalizagao se pode chamar, en ne dos os sentidos, emogdo. Este privilégio de ung arealidade densa e modulada nomeia-se e espaca se como aréola. page Nesta anatomia das massas, isto é, no espa das emogées, o corpus nao se confunde mais cn, uma superficie de inscrigio — se esta consistis numa gravagio de significados. Nav ha mais cor, po escrito», a escrita que adere ao corpo, nem tao. ~pouco essa somatografologia na qual por vezes 5 converten «& moderna» o mistério da Encarnacio. © uma vez mais o corpo mum puro signo de si, ¢ puro si do signo. E isto, justamente: 0 corpo nao é um lugar de escrita (tornando-se assim claro, por exemplo, que é daqui que sera preciso partir se se quiser falar com justeza da tatuagem). Sem divida que 0 corpo € 0 facto que se escreve, mas nio é de modo algum onde se escreve, nem sequer aquilo ue se escreve — mas sempre o que a escrita pest 8 on 85 96 ha excrigio através da escrita, mas 0 excrito se outro bordo que.a inscrigéo, mesmo con- yinvando @ significar sobre um bordo, se obstina im indicat como o sett outro-proprio bordo. As- sip, de toda a escrita um corpo € © outro-préprio fordo: um corpo (ou mais do que um corpo, uma massa, ou mais do que uma massa) é portanto tam- pém o tracado, o pesto de tragar € 0 sew rasto (aqui, yejam, leiam, tomem, hoe est enim corpus meum...). De toda a escrita, um corpo € a letra, € todavia nunca é a letra, mas, mais recuada ¢ mais gesconstruida que toda a literalidade, uma idetricidade» que j4 nao é para ler. Aquilo que, de uma escrita ¢ propriamente dela, nao 6 para ler, cis o que € um corpo. (Toma-se evidente que devemos compreender a Jeitura ndo como uma decifragdo, mas como o tocar € 0 ser tocado, o contacto com as massas do corpo. Escrever, ler, questdo de tacto. Mas ainda — ¢ isto também deve ficar claro — na condigio de que o tacto nfo se concentre, néo aspire (a semelhanca do tacto cartesian) ao privilégio de uma imediatez que poria em fusio todos os sentidos e «o» sentido. Tam- bém o tacto, e antes de tudo 0 tacto, é local, modal, fractal.) Repito: alguém reclama, este mundo reclama 0 corpo de um sentido que nao dé a significagio de corpo, ¢ que ainda menos o reduza a ser o seu proprio signo e a.esséncia consumada de todas as onto-teolo- gias do signo. O inverso ou @ exacto reverso —- 0 ‘outro bordo — da encarnag’o que monopolizava no i Jean-Lue Nay antigo mundo todas as modelagens, todos gy espagamentos do corpo. Na encarnagio, 0 espitito f -se carne. fi de resto por isso que 0 Mistério por exce: léncia se auto-revela, Este espitito pronuncia da su, carne: hoc est enim corpus meum, ele proprio se arti: cula em toda a presenga sensivel. O que 0 Mistéri revela € portanto 0 corpo como mistério revelado, « signo absoluto de si e a esséncia do sentido, o Deus retirado na carne, a carne subjectivada para si mesma — 0 que, no pleno fulgor do Mistério, dé pelo nome de «ressurreigio». Mas trata-se aqui deste corpo, ou melhor, desta multidéo de corpos em que nenhum espirito se encarnou, ou que nenhum espirito engendrou. Techné dos corpos Nao os corpos produzidos pela autoprodugio do espirito e pela sua reprodtigdo — o qual, de resto, s6 pode produzir um ttaicd corpo, uma dnica imagem visivel do invisivel (daf que o corpo da mulher seja, para Arist6teles, mal formado, defeituoso, e para os Cristdos, marcado de uma chaga impura). Mas um corpo dado multiplicado, multissexuado, multifigu- rado, multizonal, com pés e sem pés, com cabeca e sem cabega, organizado, inorganico. Corpos assim criados, isto &, corpos que vém, ¢ cuja vinda espaca de cada vez 0 aqui, o af. (Como escreve Elaine Scar- ry, em The body in pain, quando «0 mundo, o si, @ voz esto perdidos na intensidade do sofrimento opts ” jatortura», € a «dissolugio do mundo, a des-criagio fo mundo criado».) A «criaghom € a techné dos cor- _O nosso mundo cria a maior parte dos corpos, , eja-se enquanto mundo dos corpos (evidenciando o que sempre foi também a sua verdade de mundo). O nosso mundo € 0 mundo da «técnica», 9 mundo no qual 0 cosmos, a natureza, os deuses, 0 sistema com- pleto na sua articulago intima se expde como «téc- hicav: mundo de uma ecotecnia. Aecotecnia funcio- na com aparelhos técnicos, ligando-nos a eles por todos 0s lados. Mas aquilo que ela faz sio os nossos . corpos, que ela pée no mundo e liga a esse sistema, : gsnossos corpos que ela assim cria mais visiveis, mais | proliferantes, mais polimorfos, mais pressionados, mais em «massas» € em «zonas» como jamais o esti- veram até agora. E na criagdio dos corpos que a eco- tecnia tem esse sentido que em vio se procura em resquicios de céu ou de espirito. ‘Enquanto a criagiio ecotécnica dos corpos nio for pensada sem resetvas como a verdade do nosso mun- do—e como uma verdade que ndo é em nada inferior Aquela que os mitos, as religides, os humanismos puderam representar —, niio se ter4 comegado a pen- sat este mundo aqui. A ecotecnia cria o mundo dos corpos de dois modos correlativos: as projecgées de historias ineares e de fins iiltimos substitui espaga- mentos de tempo, com diferengas locais, bifurcagdes numerosas. A ecotecnia desconstréi o sistema dos fins, tornando-os nao-sistematiz4veis, nfio-organicos, ¢ mesmo estocasticos (excepto quando submetida A finalidade da economia politica ou do capital, que hoje 88 se impée de facto a toda a ecotecnia, tomande © tempo linear, homogeneizando os fins: proprio capital deve também renunciar a tum fim wltimo, Ciéncia ou Humanidade, e a eriagaa dos corpos detém por sua vez uma forga rey, nfria...), Ao mesmo tempo, a ecotecnia liga ¢ oo, 95 corpos de todas as maneiras, colocando-os em hy. gares de intersecgdo, nas interfaces, nas interaces de ng Poréni, de todos 08 processos téenicos, ndo fazendo deley Julgan. © «objectos técnicos» (como se costuma dizer, do-se aliés saber o que é um «objecto técnico») mas mostrando-os como tais, nesta arealidade da cone. x0 que constitu o espago onde se retira toda a signi. ficagao, transcendente ou imanente. O mundo dos cor, Pos nao tem sentido, nem transcendente nem imanente. Se se faz questao emt manter estas pala. vras (transcendéncia ¢ imanéncia), dir-se-ia entio que uma tem lugar na outra, mas sem diatectizagio — que uma tem lugar como a outra, € que os luga- res so este ter-lugar. Os lugares, os lugares da exis. téncia do ser, sao doravante a exposigao dos corpos, © seu desnudamento, a sua populacdo numerosa, os seus desvios multiplicados, as suas redes intrincadas, as suas mestigagens (mais técnicas do que étnicas). Em vez de uma dialéctica transcenden- te/imanente, a arealidade oferece a lei ¢ o meio de uma proximidade, mundial ¢ local ao mesmo tem- Po, € uma na outra. Estamos, em suma, na techné do préximo. O «préximo» judaico-cristio-islamico residia no particular © no universal, na dialectizagio destes dois Apresentay Olucio. © nec: 89 jeonos, terminando sempre no universal. Mas aqui, “ oximo seria o que vem, o que tem lugar num apro- igar-se, © que toca c o que também se afasta, locali- indo e deslocando o toque. Nem natural nem artifi- Gal(como aparece até agora, alternadamente), 0 «pro- “mom como techné seria a «criagdo» © a verdadeira arte do nosso mundo. De resto, estas palavras «cria- gio» ¢ «arte» — assim como, em primeiro lugar, o fenmo «proximo» — teriam. que ser submetidas a uma visio. Prefiro por isso dizer que a techné é a da tilha dos corpos, ou da sua comparéncia: os diver- sos modos de dar lugar 20s tragados de arealidade, 20 _ jongo dos quais nds somos expostos em conjunto, isto [ «nem pressupostos num qualquer outro Sujeito, nem post-postos num qualquer fim particular e/ou univer sal. Mas expostos, corpo a corpo, bordo a bordo, to- cados ¢ espagados, préximos por nto termos mais jenkuma assuncao comum, mas apenas 0 entre-nds dos nossos tracados partes extra partes. 4 & certo que o capital também produz uma gene- talizagio que banaliza o corpo, ¢ o préximo. Disso lestemunha a obsessao com que se fotografa as mul- idées, as suas misérias, os seus panicos, 0 ntimero enquanto tal, ou as fixagées erdticas que se infiltrarama por todo o lado. A proximidade, ai, é mera banalida- de da reproducio de corpo —- reputado «singular» —em milhdes de exemplares. (E também por isto que «o corpo» j4 se tornou no mais insipido, mais vulgar e em suma no mais «fora de moda» dos temas e dos termos — em coma profundo.) 90 JoumLue Nancy, Mas é preciso observar tudo isto atentamente, Q. horror da banalidade, da reprodugio, a celebragdo do Gnico, do excepcional, sio dados banais do mundo que se retira sob os nossos pés, aqui mesmo. Somos todos banalmente avessos A «banalidade» — e a ests espécie de acréscimo de banalidade que nés atribyj. mos, precisamente, ao corpo... Mas pergunta-se: seri que sabemos ao certo o que € 0 «banal»? : Existem dois registos de banalidade dos corpos: a do modelo (as revistas, a canonizagio dos corpos afuselados, aveludados) —e a do ndo-importa-quem (am corpo qualquer, disforme, arruinado, gasto). Na’ distancia ou na dialéctica entre os dois — que a ecotecnia simultaneamente produz —, nfo ha muita proximidade possivel. Mas a banalidade completa- mente banal est talvez ainda noutro lugar, num es- aco apenas entreaberto, o espaco de uma auséncia de assungdo comum ou de modelo do corpo humano (nem o manequim, nem a multidfo). A experiéncia dos corpos, entio, seria esta: 0 que é mais comum (banal) 6 comum a cada um como tat. O excepcional de um corpo é comum enquanto tal: substituivel a qualquer outro enquanto insubstituivel. Por isso € certamente falso, ou ideoldgico, dizer que «as imagens banalizam». Se a televisio pode mos- trar milhares de corpos sofredores, diminufdos, carco- midos, nao deixa de mostrar igualmente que é cada um, cada vez, novamente, um «cada um» que softe. Mas isto s6 6 visivel no espago dos corpos, a um olhar que se dirija para os corpos — e nao a um dis- curso da humanidade genérica ¢ geral. - aps 91 Um tal olhar distingue que cada um é apenas um b gxemplar substituivel na multiddo ininterrupta e que | esse mesmo cada um é exemplar da criagio que de cada vez um corpo é. E que cada um 6 0 «préximo» f do outro de duas maneiras ao mesmo tempo. Haveria assim uma outra | eada corpo € Psique ou a disposigio de varias psi- ques, singularmente modalizadas, através da exten- +} sio dos 4tomos ¢/ou do isto. (Note-se a dupla pro- 4 priedade, a dupla comunidade dos «4tomos» e do siston: a oxtensao, a pesagem. Na verdade, a pesa- gem € a intengao da extensdo. Tudo vem a dar por- lanto na extensao, no seu duplo bordo intensivo/ extensivo, Mas «vir a dar na extensio» nao impli- ca relacionar-se com um pré-suposto. Pelo conted- tio, implica suspender irrevogavelmente toda a

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