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A América Latina sobrevivera?* Anibal Quijano Quando os europeus chegaram a este territério & conquistaram as sociedades aborigenes, nasceram, a0 mesmo tempo ena mesma ocasiso, trés categorias histéricas: a América e, naquele primeiro momento, @ ‘América Latina; 0 capitalismo; @ a modornidade. Apés 500 anos, as trés estdo em crise. Assim, de uma maneira estranha, estamos prestes a ter uma comemo- ragéo cerimonial da crise mundial, uma vez que capitalismo © modernidade nada mais sao do que os préprios alicerces do nosso mundo atual ¢ a América Latina nasceu como parte do processo de constituigao deste mundo. A crise destas trés categorias 6 tao profunda e duradoura que talvez nao seja temerdrio perguntar se no estéo, cada uma delas, no seu ponto crucial. Na verdade, estéomesmo. Afinal, esta éaprimeiravez que parte da produgdo, dentro do poder capitalista, comega asetomarpossivel soma intervengaodequalquerforga de trabalho viva e individual. A crise da modernidade 6 considerada muito mais complexae radical do que em qualquer outra ocasido. Embora seja desnecessario admitir que a pés-modernidade ¢ algo diferente ou oposta A modernidade, fica claro que neste debate ha muitas questdes implicitas que no devem ser ignora- das, com todos seus riscos e potencialidades, acima de tudo, aquela referente ao paradigma eurocéntrico dominante do conhecimento e da cultura. Dessa forma, a América Latina est indubitavelmente no meio de sua mais longa e pior crise, pelo menos neste século A crise de cada uma dessas categorias nao pode ser nem explicada nem compreendida separadamonto de suas relagdes milliplas. Provavelmente, nao é por acaso que estéo em crise ao mesmo tempo e de um modo que pode levd-las a um verdadeiro ponto critic histérico. Paraa América Latinae os latino-americanos, a questo 6 da mais extrema importancia. Nao est4 concluido, ainda, 0 que se comegou com a conquista ¢ a colonizagaio do que conhecemos como América Latina, Em primeiro lugar, 0 processo de formagéo de uma poténcia mundial ainda esta em andamento, culminando talveznaformagao do presente poder global em escala planetaria, Em segundo, o processo de concentragdo dos recursos mundiais, iniciado ha 500 anos, sob controle @ para beneficio quase exclusive dos seus colonizadores, néo esta absolutamente terminado. Na verdade, testemunhamos agora um novo estagio desse processode concentragao dos recursos mundiais. Em terceiro lugar, se olharmos parao poder global surgidorecentemente, veremos sem dificuldade que a esmagadora maioria desses explora- dos, oprimides e discriminados consiste precisamente nos povos das sociedades que ja foram ou ainda estéo colonizadas. Como tal, isso nao é diferente do poder global em si, pois, em cada pais, sem uma Gnica excepfo, existe a mesma relagdo de poder. Dessa maneira, seéverdade que ocolonialismo,comodominio explicito, formal ¢ politico, esté quase que totalmente extinto, 0 colonialismo, como a prépria base do poder cultural e social, est4 ainda onipresente. Paraa América Latina, especificamente, a posigdio de dependente «0 papel ao qual foi submetida dentro de todo esse processo continuam ainda dominando toda @ nossa historia. Portanto, ndo 6 por acidente que, neste quadro histérico @ com 0 mesmo velho padrdo de sua propria hist6ria de dependéncia, a América Latina nao tenha conseguido evitar o papel de vitima principal da crise do capitalismo e da modernidade. Efetivamonte, a atual crise da América Latina néo 6 apenas a mais longa de toda a nossa histéria no século XX, mas também a mais profunda: afeta todas as pessoas e cada aspecto de nossa vida. Deixanossa economia estagnada e, em alguns casos, a desintegra; estd na origem dos processos de desintegragao social @ anomia; torna ambiguas e sem decisdo todas as identidades sociais; mutila as bases socials, de repro- dugao local ou nacional ¢ de controle do Estado, mas assegura os mecanismos de controle transnacional; enfraquece a integridade latino-americana alé mesmo ao ponte de permitir a redugdo, ou talvez a desintegra- 40, do espago histérico latino-americano; deixa inde- fesos alguns de nossos paises no que se refere. a uma intervengao aberta, explicita e imperial. Isso ocorre, na América do Sul, pela primeira vez nos ultimos 200 anos. Ha tantas perguntas acumuladas que no momento s&o irrespondiveis, causandotantaansiedade, perplexidade, possimismo e, acima de tudo, tanto conflito e violéncia que, para muitos, 6 tempo de perguntar se a América Latina sobrevivera. Nao mais que uma década atras uma pergunta inquietanteeperturbadoracomo essa seriainimaginavel Agora, contudo, do certa maneira, esta parece quase inevitavel. A América Latina encontra-se, ainda, num proceso de constituigao de uma identidade histérica, vale dizer, de completa individualidade de uma experi- @nciahist6rica. Essa experiénciafoigeradanumamatriz deviolénciae crise. Naatualsituagdofatores semethan- tes estdoemandamento, os quais, senaotémamesma forga apocaliptica de antes, possuem a mesma fusia So Paulo em Perspectiva, 7(2):60-66, abriljunho 1893 para destruir pelomenos asidentidades historicasainda no definidas. Em outras palavras, podem nos colocar na verdadeira encruzithada de nossa histéria. Realmen- te, estamos em tal encruzilhada. Nao ¢ possivel discutir aqui todas ou a maioria das questOes e temas da atual crise latino-americana. Portanto, pretendo ater-mo aponas om trés das mai decisivas ou vitais dessas questées, sendo que a primeira refere-se ao espace. ‘A questéo do espago E claro para todos nés que a primeira e principal condigdo da existéncia de qualquer sociedade, bem como do desenvolvimento ou proservagéo de seu préprio padrdo histérico ou identidade histérica 6 a legitima posse de seu proprio espago. Sem esse espago, nenhuma sociedade poderia existir. Essa é, precisamente, a primeira e vital questéo com que se dofronta agora a América Latina. Entretanto, como sabemos, na realidade social, 0 espagondoé apenas umacategoriafisica, e,sim,acima de tudo, uma relagao de poder. Para a América Latina, ‘a quesiao do espago comegou com a conquista, pelos Estados Unidos, da metade norte do México e, desde entao, tem sido um problema aolongodo tempo, devido 8 freqdente Intervengao direta do poder imperial dos Estados Unidos no Caribe ¢ na América Central, bem como sua presenga militar no Istmo do Panama, incluindo sua invasdonaquele pais. Agora, subitamente, isso 6 de novo assunto muito mais explicito e imediato para toda a América Latina. Primeiro, de certa forma admite-se que a fronteira norte ou divisa da América Latina foi rompida e, por todas as questdes praticas, torna-se menos real. Por tanto, podemos comegar a imaginar onde comega ou termina a América Latina. Porém, muito maisimportante 6 0 fato de que Estados Unidos, Canada @ México se dirigemparaumaformadeintegragao, sendoimpossivel esconder 0 dbvio desequilibrio de poder, bem como o beneficio dessa integragao. Para muitos, a verdade é que oMéxico ficard integrado aos Estados Unidos endo com 06 Estados Unidos. So isso acontecer, mais cedo ou mais tarde a América Central @ os paises do Caribe nfo conseguirao deixar de ser parte dessa nova entidade. Na verdade, ha um ano, foi langado, juntamente com 0 primeiro exemplar de “Hemistile” (Stanford, Calitérnia), um certo mapa marrom, ineluindo num s¢ pais todo 0 territério que compreende o Istmo do Panamaatéo Alasca, sob onome de Estados Unidos da América, Portanto, a Iddia ¢ a imagem estaono ar. 61 ‘Com 0 tempo, o nome América Latina sera usado apenas pelos sul-americanos? Contudo, as foreas em agdo na América do Sui ndo sao nada claras. Quando © Pacto Andino foi criado, corca de vinte anos atrés, entre Chile, Bolivia, Peru, Equador, Colémbiae Venezue- la, este no apenas foi apresentado como um passo rumo & integragao latino-americana, mas também re- conhecido como tal. Agora, contudo, com 0 projeto de integragdo do Cone Sul, a situagdo nao 6 absoluta- mente a mesma. Por um lado, as elites desses paises consideram-se parte do grupo do Alldntico, brancas, européias @ eurotrépicas, enquanto os povos andinos 880 vistos como naio-europeus. Por ora pelo menos, ¢ do importa qual seja a discussao formal, quando se participa de uma reuniéo ou conversa com pessoas envolvidas no projeto do Cone Sul, verifica-se que elas nao tém o menor interesse na integragao latino- americana. Pelo contrario, muitas até admitem que nao existe tal coisa como América Latina. Seja qual for 0 caso, o Brasil nao esta incluido. O Chile, por sua vez, abandonou 0 Pacto Andino anos atrds e esta agora, como 0 México, vis-a-vis 0s Estados Unidos. Dessa maneira, até mesmo 0 que sobrou da possivel futura América Latina, do Istmo do Panama ao Estreito de Magalhaes, corre o risco de se dividir em duas partes opostas, mais ou menos do mesmo modo que a Repd- blica Dominicana e o Haiti que, apesar de compartilna- Fem a mesma e no muito extensa ilha, néo formam juntos qualquer entidade © muito menos qualquer identidade individual. Esse, contudo, ainda nao é 0 fim da histérica. Sob opretexto de uma guerra as drogas, os Estados Unidos enviam tropas Bolivia e ao Peru @ sabe-se que operam, as escondidas, na Colémbia. Certamente é interessante observar que, enquanto na Colombia os americanos precisam agir encobertos, na Bolivia e no Peru agemas claras. Talveza resposta nao esteja mu to longe. Bolivia e Peru sao agara os Estados mais fra- cos na América do Sul, com sociedades desintregadas, forgas sociais e politicas dispersadas e classes domi- nantes incapazes ou, pior, som vontade de resistir ou de evitara ocupacaomilitarde seus territérios por parte de um pais estrangeiro. Para muitos observadores, deve ser ingenuidade, paradizerominimo, admitir ouacreditarque a presenga militar dos Estados Unidos na regiée Andina e na ‘Amaz6nia tem apenas 0 objetivo de impadir o tratico de drogas. Muito mais ingénuo ainda seria pensar que tal presenga seré realmente eficaz para solucionar este problema. O que parece estar em jogo é 0 controle politico-militar da mais convulsiva e conilitiva area da regio, potencialmente perigosa para a estabilidade 62 Politica de toda a América do Sul. Muito provavelmen- te, a presenga de tropas dos Estados Unidos na érea vai aumentar e agravar o ja confuso conflito de muitas facgdes. Assim, a duragdo da permanéncia norte-ame- ricana no coragao da América do Sul nao sera curta. © que os panamenhos afirmam a respeito de sau pais, podemos agora dizer da América do Sul: na fronteira leste, o Oceano Atlantico; no oeste, o Oceano Pacifico: aonorteficaa América Central; no sul, aAntartida: mas, No centro, temos os Estados Unidos. O que rosta entéio da América Latina? © problema, contudo, 6 que a existéncia de um espago latino-americano integrado é agora muito mais importante do que nunca. Naatual situagao mundial, na época de um poder global e de um império global, nenhum dos temas basics dos paises latino-america- nos © do seu povo pode ser abordado, muito menos Solucionado, sem a integragao latino-americana. A “baleanizag&o” do espago pés-colonial, que des- truiu © projeto de Bolivar pouco depois do fim do domi- nio colonial ibérico, foi a condigao @ o produto de uma alianga imperialista de exploragao @ dominio entre a burguesia européia e a classe do “hacendado” ex- colonial (tormado de comerciantes e donos de terras). Talalianga estava encoberta pela sombra de nomes.co- foniais (América Hispanica, Luso-América, Ibero-Amé- rica), sob os quais era. é impossivel qualquer lugar para os americanosnativos, para os afro-americanos ou Para os novos americanos. Entretanto, indiscutivel- mente, essa era a idéia: manter 0 colonialismo do po- der. Esse espaco balconizado, escondido sob nomes coloniais, tem sido, desde ent&o constante instrumento da continuidade da alianga imperialista, agora situada entre as segdes locais e transnacionais da mesma classe, a burguesia, ainda sob o controle direto dos Es- tados Unidos. Contudo, desde o fim do século XIX um pouco de uma certa tendSncia histérica se desenvolve na diregao. deentidadeeidentidadehistorica. Aprimeirafasedesso processo comegou comacritica ao dominio imperialista e aocolonialismo de visdo hegemonica sobreaquestéo da nossa identidade, revelada através daqueles nomes coloniais como América Hispanica, otc. A propésito, 6 apenas um ato de justiga histérica lembrarmo-nos hoje de que estamos prestes a comemorar o primeiro centenario da publicagao do livro seminal deste novo Periodo: “Nuestra América”, de José Marti. Durante 0 século XX, esse processo tom estado em todosos debates basicos, contlitoserevolugdessociais, pois em todos e em cada um deles a questo de uma nova entidade e identidade tem estado no centro. Mas, acima de tudo, foi apés a Segunda Guerra Mundial que esta nova entidade @ identidade comegou a se articu- Jar como um novo espago histérico: CEAL (Comissao Econémica para a América Latina), ALALC (Associa- 80 Latino-Americana de Livre Comércio), JUNAC (0 nome espanhol @ oficial do Pacto Andino), SELA (Sis- tema EcondmicoLatino-Americano), Grupo dePresiden- tes da Amaz6nia e Grupo de Cartagena, sfo algumas das principaisinstituigses quetestemunham oprogresso nessa diego. & extremamente interessante observar que, coma derrota de todas as revolugdes sociais anteriores & Segunda Guerra Mundial, com excegao da mexicana, todos os nomes sugeridos para batizar uma entidade e identidade foram igualmente derrotados: “Nossa Améri- ca’, ‘Indo-América", *Mestigo-América’. Ao mesmo tempo, aqueles manchados pelo colonialismo- América Hispanica, Luso-América, Ibero-América - foram igual- mente abandonados. Apés a Segunda Guerra Mundial, “América Latina’, a despeito de suas reverberagdes eurocentristas, foi praticamente aceito como o novo nome para tal novo espago-entidade-identidade, nfo apenas oficialmente, mas, muito mais importante, no Ambito des grupos dominados da sociedade. E nao apenas como um novo rétulo, mas como 0 nome do préprio projeto de integracHo e mudanga revolucionaria do nosso espago e poder. Porém a aceitagao do nome “América Latina” paraanossa nova identidade histérica, fez com que este fosse quase que totalmente exaurido de sua prévia histéria semAntica. De outra maneira, seria impossivel entender como até mesmo povos de origem aborigene africana, incluindo alguns com idioma, inglés da regiéo do Caribe, sentem-se orgulhosos dese intitularem latino-americanos. E precisamente neste ponto que os ventos do poder global comegarama agoitar 0 projeto. Primeiramente, a alianga imperialisia conseguiu derrotar novamente a maioria das revolugdes sociais do nove periodo, cujo objetivo era mudar a natureza do poder social conquistar uma situagdo auténoma dentro da ordem mundial e, obviamente, levar adiante 0 proceso da integragao latino-americana as suas méximas potencia- lidades. Sobre esta base, a mesma alianga tenta, aparentemente, empurrar para seus limites 0 que comegou com a balcanizacao, 0 que equivale dizer a total desintegragéo da América Latina - como uma verdadeira o histérica entidade-identidade - para sua parcial ou total incorporagao a uma entidade estrangei- ta, Talvez ndo seja s6 uma coincidéncia se, neste preciso momento, o nome de nossa identidade, Amé- rica Latina, esteja sendo substituido outra vez pelo nome do América Ibérica, em seu inegdvel sabor colonialista. ‘Sio Paulo em Perspectiva, 7(2):60-86, abriljunho 1993 A questao da identidade Nao é de se estranhar que a pergunta crucial en- tre 08 intelectuais latino-americanos é a da identidade. Vale lembrar que, principalmente desde a Segunda Guerra Mundial até 0 fim dos anos 70, estévamos ocupados com a mudanga social e com o problema do poderenéocomaquestaodaidentidade. Agora, porém, como acontecou na virada do século XIX, marchamos, outra vez em busca da identidade. Talvez este problema seja freqientemente mal colocado pelo menos entre os latino-americanos, ja que nfo se trata de uma abordagem de algo historicamente criado alterado, mas sim ontologicamente original, de certa maneira, preexistente algo que jaz escondido em algum lugar e pode ser descoberto ou desenterrado, assumido e mostrado. Mas esse mal-entendido nao é absolutamente acidental, nem simplesmente erréneo. N6s, latino-americanos, nao sabemos ainda como lidar exatamente como simples fato de que estamos prestes @ comemorar 0 exato momento em que a historia fot rompida em duas partes, e ainda ndoaprendemoscomo reconciliar © restaurar o fato em apenas uma e unica histéria, Parece que a primeira parte dessa histéria rompida, que absolutamente nao esta morta, ainda nos pede para admiti-la como nossa real @ original identidade, que temos de recuperar e assumir. Por que isso? Sugiro quo soja um dos mais claros subprodutos do colonialismodo atual poder mundial. Em outras palavras, refere-se a questo nao resolvida do status desigual de europeus e néo-europeus, ou soja, core cultura em nossa atual sociedade. Essa desigual- dade, mais do que nunca, 6 visivel no atual estagio de concentragaode recursos epodermundial, sob controle basicamente da mesma minoria da qual vieram os colonizadores americanos. Isso relaciona-se a maneira Pela qual 0 ainda dominanto paradigma europeu e eurocéntrico de modernidade e racionalidade se esta- beleceu. Identidade é um fendmeno de relagao e categoria endo apenas uma qualidade de certa pessoa, grupo ou sociedad. O poder geralmente 6 colocado no centro dessas relagSes. Para os latino-americanos de hoje, & © tipo de relagao de poder que come¢ou ha 500 anos e estd ainda para ser cancelado. Aolongo do século XX, desde 1910 até umadécada atrés, acreditamos que poderiamos mudar tal ostrutura de poder, tanto dentro da nossa prépria sociedade quantona ordem internacional. Lutamos porissoe, pelo menos parcialmente, ganhamos, pois é verdade que o poder imperialista e oligérquico, como foi chamado no debate latino-americano, 6 histéria hoje. A servidao 63 obscurantista e/ou frivola dacultura “erioula/oligarquica” n&o 6 mais t8o dominante. No momento, polo menos, nao hénenhum ditadorsangrento dessa origem. longa luta para mudar as estruturas coloniais, oligérquicas & imperialistas de nossa sociedade latino-americana ex- plica porque nao estamos muito proocupados, acima do tudo depois da Segunda Guerra Mundial, comaquestao daidentidade. Sabiamos, ou pelomenosacreditavamos, que estévamos mudando exatamente as bases hist6ri cas que produziam 0 labirinto de nossa identidade. Entretanto, fomos derrotados, talvez por um tempo ‘Ago muito curto, nos objetivos principals, ou seja, no que se refere & extingao final do colonialismo, a legiti- mago de diferengas 0 aouso delas, se ndo paraacon- quista de uma sociedade igual e solidaria, pelo menos como base de iniqilidades politicas e sociais. As ini- qUidades socials alicergadas em diferengas colonials so mais agudas e mais visiveis do que em periodos anteriores. Para aqueles poucos que dominam, esta é a época de relegitimagao @ uso dessas diferengas, em fungao do poder. Em alguns paises, como no meu, 6 tempo de manter esse poder para praticar uma economia quase que unicamente de pilhagem contra a larga maioria pobre. Enquanto isso acontece, nao acidentalmente, a maloria da classe dominante 6 de descendéncia nfo-européia ou nfo apenas européia. A derrota do projeto de uma sociedade democratica que pudesse se expressar num Estado democrético, com relagéio democratica entre si, nd apenas impediu- nos de concluir 0 processo de desmantelamento do poder colonialista e de reorganizar nossa sociedade, mas também bloqueou 0 caminho rumo & reunificagao de nossa histéria rompida, uma vez que somente com a redemocratizagao dessa sociedade e com a extingao do colonialismo do poder seria possivel superar ou cancelar o carater de dependéncia dessa histériae sua percepeao de histéria rompida. Ao lado da questo nao decidida do espago histérico, essa derrota do processo de democratizagao da sociedade © a reprodugéio do cardter dependente de nosso padrao histérico de existéncia social e de mudanga ajuda a explicar a renovagdo de nossa busca de Identidade, que por raz6es dbvias é mais intensa entre os intelectuais da classe média. ‘Apés tantos anos de debates 140 confusos sobre dependéncia, particularmente nos Estados Unidos, tenho consciéncia de que minha alusdo a essa questao apenas acrescentaria novos elementos & contusao. Por isso, vou tentar explicar-me melhor. Trés abordagens distintas podem ser reconhecidas neste debate: 1)"Dependéncia externa’, significando 0 dominio da ‘Nagao-Estado” por outra, vinda “de fora”, ou seja, 64 das fronteiras ou divisas juridicas @ politicas da Nagao ou Estado dominado. Isso talvez néo soja exatamente falso, mas de certa maneira 6 uma abordagem mistificadora, particularmente vis-a-vis 08 paises latino-americanos, onde a idéia européia da Nagiio-Estado, mistificada como jé 6, sempre foi, tedrica e historicamente, um beco sem saida. Con- tudo, para muitos, esta ¢ mais ou menos a imagem por tras da idéia de “imperialismo”, 2) “Dependéncia estrutural". Nesta segunda aborda- gem, a idéia mais freqdente 6 a de que 0 dominio internacional nao @ organizado apenas de fora das fronteiras da Nagdo-Estado, mas também dentro, ‘como um “dominio externo-interno", j4 que o capital funciona precisamente dessa maneira: exploraostra- balhadores dentro das fronteiras dessa nagao, mas commecanismosde controleecontroladorestoradas fronteiras, em beneticio de sociedades ou nagées- estados externas. Esta segunda abordagem é carta- mente bem mais realista do que a “dependéncia externa”. Ndoobstante otato deque paramuitosesta talvezndo soja efetivamentenecessdria, umavez que ndo se diferencia, de forma clara, do conceito de imperialismo, pode-se dizer que tal conclusdo esta errada, pois esta abordagem especitica nao somente © significado do conceito de “imperialismo", como também a relagao de “classe nacional" (ndo apenas “nacional"). Ela vai além dos temas estritamente econémicos implicitos na questao do imperialismo, posicionando-se para examinar toda a estrutura de poder da sociodade. H4, contudo, um elemento nao abordado pelas Idélas anteriormente mencionadas, que bdsico para entender as especificidades do proceso latino-america- no. Refiro-me ao fatode que, com a conquista ouropéia, © padro histérico europeu de organizar e mudar a existéncia social foi sobreposio ao padrao aborigene parcialmente destruido © desarticulade. No comego, portanto, houve dualidade de padrées histéricos, come- gando a se misturare formando um hibridismo nos dois séculos seguintes. Como padrao histérico hibrido, a partirde entao, nos séculos XVile XVIII, nfo mais podia ser considerado europeu. Essa oportuna evolugao de um nove padrao histérico de organizar ¢ mudar uma existéncia social especifica, da constituigao de uma entidade e identidade, ¢ exatamente a que me retiro 0 processo de libertagao desse novo padrdo histérico da superposigaodo europeu sobreoaborigene néoestd inteiramente consumado, pois, no todo, ainda 6 um padrao histérico dependente, dentro da estrutura de poder que comegoucomaconquista, ainda manifestada no colonialismo do poder mundial e/ou interno das soviedadas latino-americanas. Por conseguinte, essa “dependéncia histérica e estrutural", como fol chamada a partir de um artigo meu (Nolas sobre o concelto de marginalidade socialna América Latina. Santiago, Chile, CEPAL, 1966), 6 um conceito necessario, claramente rente dos anteriores. Isto é o que venho tentando debater, desde meados dos anos 60. Como pode ser visto agora, essa dependéncia histérica e estrutural encontra-se no centro da quastéo da identidade, no sentido de identidade histérica Somente pode ser resolvida com 0 processo de descolonizagéodo poder, tantoem escala mundialcomo dentro das sociedades latino-americanas. Estado e sociedade Entao, encontramos a possivel questao central da América latina hoje reterente a toda e problematica que estamos abordando: as relagées estado-sociedade, Acredito que agora, na América Latina, termina um longo periodo histérico, iniciado em 1910, com o proceso que levoua revolugao mexicana, até ofim dos anos 80. Oquetorna esse periododi intona América Latina «todos os processos basicos, conilitos e debates foram definidos ou adquiriram seu significado histérico por meio de trés questdes fundamentais: nagao, identidade e democracia. Para o cardter estruturalmente heterogéneo @ dependente do Padrdo hist6rico latino-americano, essas questoes pareciam tao entrelagadas que nenhuma poderia ser abordada, para ndo dizer solucionadas, isola- das ou no todo. Estas formaram um tao especitico 6 gérdio latino-americano que, as vezes, eu as. chamava de *né arguediano”, como homenagem Aquole que foi, talvez, 0 melhor representante desse complexo histérico, o escritor peruano José Maria Arguedas; ~ essas quest5es nao estavam presentes damesma maneira antes do final do século XIX, isto é, nfo encontravam-se definidas do mesmo modo, nem Poderiam estar no period seguinte. Durante 0 século XIX, foram definidas separadamente em uma perspectiva pés-colonial “européia-crioula", no importando a oped ideolégica particular, conservadora ou liberal. No futuro préximo, cada umadessas quesidesecategoriase suas relacdes reciprocas serao certamente redefinidas radical- mente no novo terreno que comega a se formar comas atuais lutas © mudangas. Durante 0 século ‘Sdo Paulo em Perspectiva, 7(2):60-66, abriljunho 1999 XX, 08 debates © conilitos.em torn dessas questées foram conduzides em duas propostas, paradigmaticas basicas: socialismo e liberalismo. A segunda foi uma promessa real quando o poder oligdrquico estavaemplenaforga. Agora, nao para muitos, seu substituto neoliberal pode ser admiti- do. como pragmatismo cru do capital. E 0 socialis- mo, em sua verso conhecida como “socialismo existente de fato", dificilmente pode ser atraente, Essas questdes ndo resolvidas - nagdo, identidade e democracia - foram deixadas sem resposta porque, ente oulras, foram abordadas de acorde com os padiSes europeus. A idéia da nagao-estado como entidade coesa, cultural e politicaments homogénea foi aplicada em paises onde a estrutura de poder era, @ ainda 6, marcada pelo colonialismo. Os grupos sociais. dominantes estavam indubitavelmente interessados na nacionalizagaodesuassociedades. Contude, aomesmo tempo estavam sem vontade e sem condig&o de permitir qualquer democratizacao dessa estrutura de poder e, assim, abrircaminho paraa lormagaode uma sociedade nacional. 0 “problema indigena” era, e ainda é, onome exato desse impasse. No séoulo XIX, a questao nacional foi concebida de forma'separada daquela referente& democracia. Assim, por exomplo, a oligarquia argentina , de maneira menor, a chilena pretenderam resolver esse “problema” através de uma guerra genocida contra a populagéo indigena e de uma politica para atrair a imigragao curopéia, em vez de qualquer possivel descolonizagao da estrutura do poder. Contudo, basta lembrar o rétulo “cabecitas negras", durante 0 primeiro periodo do regime peronista, para descobrir que o problema ainda atormenta a oligarquia argentina. E néo 6 muito dificil relacionar essa hist6ria ao longo periodo de crise politica e declinio econdmico de um pais tao rico. problema da democralizacdo continuapendente, mesmo nos paises atlanticos e eurotrépicos. Quanto ao Brasil, basta lembrar os descendentes africanos © sua atual situagdo para concluir que 0 colonialismo esta ainda onipresente. Apesar de todas as lulas que comegaram com a revolugd mexicana, quando, pela primeira vez, a nacionalizagao da sociedade foi ligada tedrica & politicamente & democratizagdo da sociedade, n&o conseguimos resolveraquestaoe, certamente, naosera resolvida & moda européia. € pouco 0 que foi feito e 6 tarde demais para qualquer solugdo eurocéntrica para esses problemas. Hoje, 500 anos apés a conquista européia, inicia-se um vasto movimento de rebelio *étnica” por parte daqueles dominados no tundo do colonialismo, “indios" ¢ “negro '. Somente um novo 65 genocidio oceanico, como o da época da conquista, ou eomo acontecou nos Estados Unidos © Argentina, poderia destruir esses novos movimentos rumo & descolonizagao da estrutura de poder na América Latina. Enquanto no se resolver a quostao da descoloni- zago da sociedade, ou seja, a radical democratizagao da estrutura do poder, também no o sera a da identidade. Néo ha outro caminho além da radical descolonizagio do poder. Portanto, na América Latina, ago, democracia e identidade so trés dimensoes distintas, mas inseparaveis de uma questo dnica fundamental: © colonialismo do poder. Porém, se 0 poder ainda est4 marcado pelo colonialismo das relagées sociais, culturais e politica, nessecontexto, quais sao e quais seriamosverdadelros objetivos e significados da idéia da democracia liberal, da idéia de cidadania, da representatividade formal do Estado vis-A-vis a sociedade? Atualmente, quase todo mundo na América Latina esta disposto aadmitira exis- téncia de uma crise aberta da representatividade politica, como foi claramente revelado nas siltimas oloigdes nacionais no México, Brasil, Peru e Bolivia, ou nos conflitos politicos na Argentina e Venezuela. Na verdade, porém, a maioria dos analistas politicos, particularmente entre as elites dominantes, esta exigin- do uma *roforma do Estado", no sentido de resolver 0 crescente divércio entre Estado e sociedade, ou entre 0 social eo politico. Essa reforma do Estado pode ser conveniente & suficiente para os que dominam - classes e/ou grupos Stnicos @ politicos - ¢ mais ainda para aqueles interessados quase que exclusivamente em continuara economia de pilhagem. A longo prazo, contudo, as questées no solucionadas virdoatonaoutravez,talvez com forga ainda maior do que atualmente, jé que qualquer estrutura estdvel de poder diiciImente sera possivel com essas questdes indecisas e ndo resolv das. Se 0 México, ao contrério da Argentina, consegue manter a nica estabilidade politica da América Latina, sem o mesmo tipo de politica baseada unicamente em medidas sistematicas e repressivas (comonas recentes experiéncias no Brasil, Argentina © Chile), mantendo assim 0 mais prolongado periodo de desenvolvimento social e econémico que a América Latina conheceu, & precisamente porque id somente um dnicoterreno onde conseguir isso: 0 da profunda revolugao social. Talvez seja devido ao fato desse terreno ter sido gradualmen- te abandonado pela nova burguesia mexicana que a le- gitlmidade e estabilidade do poder e o desenvolvimento social nacional estejam ameagados. 66 Um conhecido economista argentino, Aldo Ferrer, disse que foi necessaria muita imaginag&o para tornar * pobre um pais tdo rico como a Argentina. De fato, hou- ve muita imaginagao, mas a explicag&o para essa lon- ga instabilidade politica, que por sua vez ajuda a ex- plicar as dificuldades econdmicas e sociais dos paisos mais ricos latino-americanos, no pode ser dissociada dessas quest5es ndo solucionadas, pols estdo sem solugao a despeito do autoretrato & moda européia o da perspectiva da classe dominante argentina. Onde quer que procuremos, seja nos paises atlanticos, seja nos eurotrépicos, ou entre os andinos, fica claro que, a menos que haja uma descolonizagio radical @ global da sociedade, cultura e pol qualquer possivel *reforma do Estado”, *modemizagao” ou “politica econémica neoliberal” ser sempre precasia © parcial. Na verdade, parece ser essa a Unica intongao das classes dominantes, uma vez que gastaram tanto esforgo @ tantos recursos tentando evitar qualquer democratizapdoparaaverdadeicamudangadocolonialismo do poder. Na América Latina, porém, também essa situagao encontrara, cedo ou tarde, seus novos contlites ineren- tes. Por ora, precisamos estar clentes apenas de que, com as tendéncias globais do capitalismo @ com a reclassificago da populagao, com 0 ja visivel, se bem que lento, processo de desnacionalizagao das nagbes- estados, @ com 0 agugamento do colonialismo do poder, certasnovas tendéncias comegamaempurraros povos dominados rumoaconstituiglodenovasrelages sociais, novas instituigées sociais e novas relagoes entre 0 social € 0 politico. Com eles, comegam a surgir também novas linhas do contlitos sociais ¢ politicos @ uma luta contra essa especilica combinagéo de classe e colonialismo na estrutura do poder latino-americano. Portanto, 500 anos depois, a América Latina continua atormentada por todos os pesadelos que pai- ravam sobre seu processo de nascimento. Talvez eu tenha pintado um quadro sombrio demais da atual situagao e tendéncias da América Latina. Poderd sur- gir, porém, alguma magica no fato do que, na mesma década, haverd tés grandes eventos histéricos: os 500 anos da América, do capitalismo e da moderni- dade; 0 fim do século XX e, assim, o fim do segundo milénio da Era Crista. Entéo, vamos pelomenos sonhar, se no esperar, quo algo bom e belo nos espera em algum canto dessa magica nova era. a

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