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CONCEITO DE PSICOPATOLOGIA As definigdes s&o diversas, o campo atribuido... idem. Ribot (1881) parece ser o primeiro a falar de Psicologia Patolégica. A pri- meira cétedra desta disciplina 6 de Dumas, em 1905. Psicologia Patolégica aparece como o que seria mais tarde a Psiquiatria. Jaspers (1) escreveu (1911) 0 tratado usado ainda hoje como base por muitos cursos de Psicopatologia. Mas, convém, em 1978, tomar como base de estudo um livro escrito 67 anos atrés? Naquele ano o conceito de Esquizofrenia ainda nao tinha sido formulado (Bleuler o inventou em 1913). Nao existiam eletroencefalografia, antibiéticos, transplantes. Fisica nuclear, cibernética, jato, cinema, televisdo, néo tinham aparecido. A humanidade no tinha vivido as duas guerras mundiais, a revolugéo russa, nem a bomba atémica. Antes de tudo isto, o leitor da Psicopatologia, e 0 objeto da mesma, poderiam ser idénticos aos de hoje? O proprio Jaspers (2) achava que o poder do atomo que mudou tudo, deve mudar também o modo de pensar. Einstein dizia em 1950 que a humanidade, para sobreviver, precisa de um modo de pensar essencialmente novo. 1 — Jaspers K. — Psicopatologia Geral. Livr. Atheneu. Rio. 1973. Ed. orig. 1911. 2 — Jaspers K. — La bombe atomique et l'avenir de l'homme. Buchet-Chastel. Paris. 1963. 3 Vamos ver porém como é que Jaspers encara Psicopatologia, neste magnifico livro, que nao pode faltar do “museu” cultural de cada um de nds. A definigaio dele da Psicopatologia 6: “a ciéncia que quer apenas conhecer e reconhecer, caracterizar e analisar, mas n&o o individuo e sim 0 homem” (pag. 11). “O dominio da Psicopatologia se estende a todo fendémeno psi- quico que se possa apreender em conceitos de significagéo cons- tante e com possibilidade de comunicagao.” “O objeto da Psicopatologia 6 0 fenédmeno realmente conscien- te, mas nem todos os fenémenos psiquicos constituem nosso ‘ob- jeto. Apenas os patolégicos” (pag. 13). “Nosso tema 6 0 homem todo em sua enfermidade. Trata-se de enfermidade psicolégica ou psiquicamente determinada” (pag. 17). “Porém entre Psicopatologia e Psicologia nao existem limites precisos e muitas questées, sao tratadas igualmente por psicélogos © psicopatologistas... As duas ciéncias nao est&o, em principio, separadas... A Psicopatologia investiga muitos fatos cujos cor- respondentes normais ainda nao foram estabelecidos pela Psicolo- gia” (pag. 14). Significa isto que Jaspers aproxima a Psicopatologia — pelo ‘menos nestes casos — mais do lado da Psiquiatria? Seria aqui le- givel uma antecipagado do conceito de “processo” em oposigdo a “compreensio”? E entre Psicopatologia e Psicologia, uma diferen- Ga apenas de quantidade, (compreensiva)? “A Psicologia oficial se ocupa quase s6 de processos tao ele- mentares que quase nunca apresentam distdrbios nas enfermidades Propriamente mentais, e que se alteram apenas em casos de lesées neurolégicas do cérebro” (pag. 14). Cita memoria, inteligéncia. .. A Psicologia estuda porém a atengao, a afetividade, cujas alteracées definem, para certos autores, a PMD, a Esquizofrenia. .. “N&o seria possivel obter uma visdo das causas do processo Psiquico sem o conhecimento das fungdes soméaticas, sobretudo da Fisiologia do sistema nervoso. Desta maneira a Neurologia, a Me- dicina interna e a Fisiologia so as ciéncias auxiliares mais impor- tantes da Psicopatologia” (pag. 14). 4 Para Jaspers, a Psiquiatria é profissdo prdatica e a Psicopatolo- gla 6 ciéncia (pag. 11). A ciéncia (Psicopatologia) 6 apenas um dos “meios de auxilio” ao doente. Na prdatica profissional, participam ainda “opinides instintivas, uma intuigéo pessoal que nunca se pode comunicar” (pag. 12). A Psicopatologia “em muitos aspectos nao alcangou o nivel de ciéncia” e o homem jamais pode ser inteiramente reduzido a conceitos psicopatolégicos. A Psiquiatria, usando “habilidade e arte” nem pode ser pensada como ciéncia. A Psicopatologia surge como mais “ciéncia”, embora limitada. Concordamos com muitos autores, para os quais, a ciéncia nao exclui e até implica intuigdo, critérios estéticos, éticos, metafisicos (Kepler, Gruss, Otto Lewi, Levi-Strauss, Dirac, Poincaré, Hadamard). E indispensaével ver como concebem a Psicopatologia outros autores. Binswanger (3), em certos textos, néo define a Psicopato- logia mas diz como deve ser, aliés que deve ser... fenomenoldgica. “O essencial, na observagéo fenomenolégica dos fenémenos psico- patoldgicos reside em que nunca se estuda um fendmeno isolado, mas se reflete o fendmeno no fundo de um eu, de uma pessoa; dito de outra maneira, sempre 0 vemos como manifestacéo de uma pes- soa definida de tal ou tal modo” (pag. 35). Ou: “O psicopatologista descritivo configura imediatamente, a partir das expressdes e do significado das palavras, conceitos verbais dos quais tira observa- gdes para chegar a conclusGes e construir teorias com as quais pode ser explicado o “sintoma’”. O mesmo procedimento formal obser- va-se no método psicanalitico. O fenomenologista que analisa a vivéncia psicopatolégica, contempla-a, em primeiro lugar, néo como modo conceitualmente fixo de um tipo psicopatolégico, a fim de re- fletir sobre ela e continuar elaborando-a, mas busca adaptar-se as significagdes que a expressao lingiiistica do enfermo suscita nele, 3 — Binswanger L. — Sobre Fenomenologia. Articulos y confe- rencias escojidas. Gredos. Madrid. 1973 (texto original ale- mao de 1922). buscar penetrar no préprio fendmeno animico anormal indicado pela linguagem” (pag. 44). A tarefa do psicopatologista seria, portanto, a de encaixar as manifestagdes do doente numa visdo geral, de atribuir-lhes signifi- cages usando a compreensdo intelectual e a captacéo fenomeno- légica. Isto € o que consideramos a prdpria atividade psiquiatrica. Mas Binswanger afirma: a Psiquiatria, “Como ramo da Medicina e portano da biologia aplicada, ou seja, como ciéncia da natureza, € essencialmente alheia @ fenomenologia psicopatolégica. JA fo- ram achadas algumas pontes (Jaspers, Kunfeld). Até agora, 0 mais proveitoso para ambas as disciplinas 6 uma diferenciacdo clara e uma oposicéo, assim como uma grande liberdade e independéncia da fenomenologia psicopatolégica” (pag. 45). Preocupado menos em definir 0 campo, quanto com o procedi- mento, entendemos que a dimensdo filosdfica é para Binswanger téo importante, que ele prefere separar, como ciéncia, a Psicopato- logia da Psiquiatria, medicina do organismo, que nao pode ser for- mulada em termos existencialistas. Em 1954, Kretschmer publica sua Psicologia Médica, na qual estuda as fungdes psiquicas, a evolucéo do psiquismo, instintos, temperamentos, personalidades. Estes temas constituem o que ‘muitos designam como “Psicopatologia”. Ele propde um ntimero de mecanismos fundamentais, que explicariam a Psiquiatria Clinica. Em 1966, G. Heuyer trata percep¢do, inteligéncia, instintos, no- sografia, psicossomatica, terapias psicolégicas sob o titulo: 20 aulas de Psicologia Médica (PUF), Pela matéria, poderia ter dito: 20 aulas de Psicopatologia. A mesma coisa pode ser dita sobre o livro de Lopez-Ibor: Psicologia Médica, publicado em 1968, pela Paz Montalvo-Madrid. Também livros intitulados Higiene Mental apa- recem com quase o mesmo contetido. Por exemplo, o de Ida Cunha Lopes, na Editora Irm&os Pongeti, de Rio em 1960. Rotter (4) diz que a Psicologia Clinica trata da aplicagéo dos princfpios psicolégicos ao ajustamento dos individuos. Admite que 4 — Rotter J. B. — Psicologia Clinica. Zahar. Rio. 1967. 6 em certos casos “verifica-se uma acentuada sobreposic&o de inte- resses entre a Psicologia Clinica e a Psiquiatria, as quais se ocupam das caracteristicas da doenga mental ou perturbagdo da personali- dade” (pag. 14). Entre os livros de Psicologia Clinica, o Catalogo Wiley 1976 cita: Contribuigdes das Ciéncias Sociais Comportamentais e Bioldégicas (Hammer, M. e€ outros); Psicopatologia (Buss, A. H.}; Distdrbios psi- copatolégicos da Infancia (Quay, H. C. e Werry, J. S.), Sintomas de Psicopatologia (Castello, C. G.). A Psicopatologia aparece neste ca- télogo como uma subdiviséo da Psicologia Clinica, portanto. Concluimos: os mesmos assuntos sao tratados sob o rétulo de Psicologia Médica, Psicologia Clinica, Higiene Mental e, claro, Psi- copatologia. Vallejo-Nagera (Introdugdo a Psiquiatria. 5.° Edigéo 1970. Ed. Cientifico-Médica. Barcelona) separa uma Psicopatologia Geral (tipologia, temperamentos, juizo, pensamento, etc.) da Psiquiatria Clinica (nosografia). No grande tratado de Fundamentos de Psiquiatria Atual (1968), Alonso Fernandes escreve um volume de Psiquiatria Geral, com te- mas que para outros constituiriam uma semiologia, ou Psicopa- tologia. Muitas vezes os autores nao explicam o que chamam de Psico- patologia. Podemos entender isto, estudando seus textos. Por exemplo: Meyer Gross (Clinical Psychiatry. 1954) escreve dois capftulos introdutérios, seguidos pelos quadros nosogrdéficos: desvios de personalidade e reagdes neurdticas, desordens afetivas, esquizofrenia, etc. A palavra Psicopatologia aparece como subtitulo nos capitulos “Desordens afetivas” e “Esquizofrenia’. Sob ela, se descrevem os sintomas dos respectivos quadros. Nos capitulos Alcoolismo, Epi- lepsia, Reagdes exdgenas e outros, os sintomas sao descritos sob 0 titulo “Aspectos Clinicos”, “Quadro Clinico” ou... sem titulo, Por- 7 tanto “Psicopatologia’” 6 equivalente com o que poderiamos dizer “gintomatologia”. No Manual de Psiquiatria de 1963 de Henry Ey nao encontramos a palavra “Psicopatologia” como titulo de capitulo. Na primeira parte lemos: Psicologia, Histéria da Psiquiatria, Tendéncias Doutrind- rias. Na segunda: Semiologia e Métodos de Investigagao. Na ter- ceira: Estudo clinico das doencas mentais. E na segunda parte que achamos o estudo das manifestagdes normais e patoldgicas do comportamento, consciéncia, memoria, timia, psicomotricidade, per- cepgao, personalidade. Mais ou menos essas mesmas “fungdes” (percepcdo, pensa- mento, sentimentos, tendéncias afetivas, vontade, consciéncia do eu, memoria, atenc&o, consciéncia, inteligéncia, personalidade) apa- recem no Curso de Psiquiatria de Hondério Delgado( 1969, quarta edi- gao), sob o titulo de Psicopatologia. A segunda parte é Psiquiatria Especial. Portanto, o que para Delgado seria Psicopatologia (ou Psiquia- tria Geral?) 6 para Ey, Semiologia. Num livro intitulado Psicopatologia Geral (PUF. 1967) Deshaies, G. delimita a Psicopatologia da Psiquiatria Geral. A tiltima seria uma disciplina exclusivamente médica, néo uma ciéncia do compor- tamento humano em geral. “O psiquismo e seus disttirbios cons- tituem um grupo de fenémenos bastante originais e auténomos em relagdo aos fenémenos corporais, para que o estudo direto dos Ul- timos seja suficiente para o conhecimento dos primeiros” (pag. 6). “Pertence a Psicopatologia Geral elaborar os materiais da Psiquiatria em teoria do conhecimento e seus fenédmenos especiais” (pag. 7). “Pela percepcéo... tudo que pode ser visto, ouvido e palpado na relagéo com o doente, fornece a contribuigdo clinica; pela intuicdo compreensiva aparece o vivido; pela inteligibilidade da experiéncia 0 conjunto de dados ganha coeréncia e um sentido de certa maneira abstrato. Desta fuséo nasce o saber da Psicopatologia” (pag. 23). Como para Binswanger, para Deshaies a Psiquiatria como cién- cla natural, seria Incapaz de entender e explicar certos fenémenos, certas situagdes que podem ser recebidas e explicadas em funcdo 8 de fatos psicolégicos. Mais exatamente, Deshaies quer introduzir na Psicopatologia nao sé conceitos psicolégicos, mas também filos6fi- cos, sociolégicos e outros. A Psiquiatria nado admitiria isto. Pa- rece querer chamar de Psicopatologia uma Psiquiatria que admite o “psiquismo”, o homem como todo — néo apenas soma de érgaos. Consideramos inutil tal separagaéo, desde que fazemos uma Psiquia- tria do homem, como ser transcendente, inserido numa cultura, em relagaéo com os outros. Em 1966, Minkowski publica (PUF) seu Traité de Psychopatholo- gie, para psicédlogos. Quer fazer um ciéncia antropelégica, toman- do o homem no isolado, mas na “primitiva solidariedade interhuma- na”. Numa Psicopatologia “a duas vozes”, procedente do encon- tro humano, o que conta nao 6 o sintorma, mas o fundo mental do qual ele procede e que lhe determina a significagdo. “As fungées perturbadas fazem pressentir distUrbios subjacentes, ligados a per- sonalidade inteira, atingida na sua estrutura e seu modo de existir” (pag. 13). A “Psicopatologia Geral” nos manuais que Minkowski critica, seria apenas descricéo dos sintomas, sintomatologia, sem indicar a significagao dos fenémenos. Ele recomenda outro procedimento. Como Binswanger e Deshaies, propde uma outra visdo do homem, que determina a transformagao da “Psiquiatria Geral” em ‘Psicopatolo- gia”. Os sintomas continuam a constituir a matéria desta ciéncia (como em Ey, Delgado) mas eles s&o considsrados de uma maneira diversa. “Sintoma” deve dizer “indicador de”, significante. A ex- posicado das alteracdes por funcées, meméria, percepc&o, conscién- cia, etc. nao indica o significado da respectiva alteragao, que sé tomaria sentido dentro de uma estrutura. De modo que o sintoma deixa de merecer este nome... A alterag&o assim descrita nado € sintomatica... “As alucinagdes poderiam ser vistas, como ex- citagdes anormais de varias zonas corticais (Tamburini e Tanzi), mas... as manifestacées visuais acompanham, em primeiro lugar, distGrbios da consciéncia e sao como a mesma, de natureza mais ou menos aguda e passageira. As alucinagées auditivas... em pri- meiro lugar as verbais (vozes}, aparecem em doentes Iticidos e tes- temunham, por esta nalam na vida mental, um distdr- que as bio mais profundo. Elas obscurecem em muitos casos 0 prognés- tico” (pag. 8). “Nas sindromes psiquidtricas nado se trata apenas de um grupo de sintomas que coexistem com regularidade e reve- lam assim sua origem comum. Os sintomas que os compéem s&o ligados entre si” (pag. 49). “A Psicopatologia, na medida em que € centrada na pessoa humana, n&éo se desenvolve a ndo ser partindo de sindromes. Ela difere, desta maneira, da Psicopatologia sinto- matica, pois essa constata-se ao nivel dos disturbios das fungdes isoladas e abre caminho a consideragées néo psicolégicas mas neu- roldgicas’”’ (pag. 53). Muito significativas estas citagoes: Minkowski fala de uma “Psi- copatologia sintomatica” (que seria uma Semiologia psiquidtrica) € recomenda uma Psicopatologia sindrémica. Portanto é um procedi- mento, uma viséo da formulacao da ciéncia dos disturbios psiquicos que torna para ele necesséria a Psicopatologia. As alteragdes de funcées isoladas constituiriam objeto da Neurologia, nado da Psiquia- tria. E as fungdes isoladas, sem patologia? Nao seriam objeto da Psicologia? Entéo por que sua alteragdo deixaria de ser “psicold- gica” e passaria a “neurolégica’’? Provavelmente a necessidade de tomar distancias da Psiquiatria , organicista, determina tanto em Minkowski, quanto em Jaspers, Binswanger, Deshaies a preferéncia pela Psicopatologia. Mas to- dos estes autores, quando falam em Psiquiatria, nao deixam de ma- nifestar uma visdo antropoldgica, filosofica, e consideram o homem em relacdo com o outro, etc. Minkowski salienta que os classicos da Psiquiatria tem esta preocupacao. Kraepelin procurou descrever o mais ricamente a sintomatologia; Bleuler, falando de “sintomas fundamentais”, passa da justaposigéo a uma tentativa de estabelecer relagdes, hierarquia entre os sintomas, 0 que constitui um passo adiante; com Freud, 0 inconsciente, 0 romance entra na ciéncia, 0 que vence o atomismo, © associacionismo incolor do tempo. A procura da adaptacdo glo- bal da pessoa aparece nas consideragdes que Minkowski faz sobre qualquer dos problemas abordados. “Viver... Nao se limita ao simples fato de estar em vida, mas comporta também os apelos que a vida nos langa a qualquer mo- 10 mento, apelos que nos pedem nao somente para enfrentar e nos adaptar, mas nos convidam sempre a reconstruir esta vida humana- mente, na medida do possivel pelo menos, enfim,“a viver” (pag. 18). Efetivamente, concebemos o homem como ser que procura dar um sentido @ sua vida. Os doentes reclamam quando sua vida lhes parece sem sentido, sem interesse, sem vibrac&o. Postulamos como condigéo humana a existéncia de um sentido, um projeto e consideramos que nossa prética e teoria psiquidtrica decorrem desta visdo. Para Minkowski, 0 ponto de visto estritamente médico nao basta: “se seguirmos de perto a marcha da doenca e, especialmente o doente atingido por ela, a um certo momento, cedo ou tarde, fatal- mente, nos achamos diante de um “ser humano doente mental” e, por um esforco de penetracdo, procuramos captar ao vivo, seu modo de existéncia, compreender o que ele tem que nos revelar dessa maneira” (pag. 20). Issq mesmo. Para Skinner, tais idéias sao ilusdo, literatura. Ele estuda condutas, sem “sentidos”, “sem viver”. Mas isto nado significa que ele é quem faz Psiquiatria, e que deveria ser comple- tado com uma Psicopatologia. A medicina, realmente, nado pode “apreender o homem em todos os seus aspectos’. Nao pode dizer tudo sobre o homem. Mas qual 6 a ciéncia que poderia? A Psiquiatria oferece um quadro de refe- réncia, uma maneira de medir as doengas psiquicas do homem. Ela diz certa realidade, em termos especificos. A nosografia é um instrumento. O homem doente é, fatalmente, apreendido pelo psi- quiatra somente deste ponto de vista. A ciéncia é por esséncia, uma aplicagao parcial, um ponto de vista. A Psiquiatria avalia doen- gas do homem, mas um homem inserido no mundo, numa cultura. Pos isto, temos dificuldade em aceitar a definicéo de Psicopatologia proposta por Minkowski. A prdpria Psiquiatria que desejamos fazer, 6 “sindrémica”, nao “sintomética”. Nem os quadros da Psicologia sao suficientes para Minkowski, . a Psicopatologia, se ultrapassa, sob certos aspectos, o ponto de vista estritamente médico, recusa também o quadro muito estreito 11 oferecido pela Psicologia corrente. Ela faz explodir esse quadro, e assim, como ja dissemos, afirma sua autonomia. Colocada diante de um fato psicopatico, como a convicc&o delirante, ela se esforca a fazer a Psicologia deste, sob o signo da posigéo fenomenolégica em primeiro lugar. Deste modo, ela se apresentaré, em muitas ocasides, mais como uma Psicologia do patolégico do que uma sim- ples patologia do psicoldgico’ (pag. 25). Entendo: patologia do psicolégico seria Semiologia, consideran- do “psicolégico” 0 normal do comportamento humano. A psicologia do patolégico seria uma maneira de interpretar, de conhecer a pa- tologia. Uma tentativa de entender os disturbios de um modo que se aplica também aos nao-alterados. Seria a Psicologia uma ten- tativa de compreender, ou explicar, uma conduta em fungéo de ou- tros aspectos da conduta. Inserir um ato numa imagem geral do psiquismo ou talvez: a Psicologia seria um método de relacionar os aspectos da conduta entre si. Significaria compreender condutas patologicas em funcdo de outras condutas, normais ou anormais. Isto pode ser aceito, conforme Jaspers, para os disturbios “compre- ensiveis”. Mas em oposigdo a estes, existem os incompreensiveis, ou “processuais”. Como podemos conceber para estes, uma “Psi- cologia do patolégico?” Por definicéo, estes ndo seriam mais dedu- ziveis de outras estruturas psicoldgicas. . . De outro lado, a Psicopatologia, ou melhor, os psicopatologistas, quase todos, se interessam pela Neurofisiologia. Fato curioso, os psicdlogos, mais do que os psiquiatras (como por exemplo W. Wolff: The Threshold of the Abnormal (1953) — Hermitage House N. Y.)... Minkowski fala também da “Psicologia do psicolégico”. Uma vez a palavra significa uma disciplina especifica, um método, outra vez significa “conduta normal”... Portanto, a Psicopatologia, fenomenologicamente pensada, si- tua-se num terreno prdprio, nem psiquiétrico, nem psicoldgico. E quando a Psicologia e a Psiquiatria sao elas mesmas fenome- nolégicas? Th. Millon junta, em 1967, uma série de textos de varios autores, para ilustrar — como 0 titulo do volume diz — Teorias de Psicopato- 12 logia (Saunders, Philadelphia and London. 1967). Agrupa teorias biofisicas (Bleuler, Sheldon, Kalinowski, Hoch e outros), intrapsiqui- cas (Freud, Erikson, Horney, Wolburg, Jung e outros), fenomenold- gicas (Rogers, May, Laing, Binswanger, Boss...) comportamentais (Skinner, Eysenck, Wolpe...) No prefdcio, Millon diz que sente falta de um livro que “focalise especificamente as teorias da pato- logia da personalidade ou comportamento anormal”. Seria, entao, isso que ele entende por “Psicopatologia”. Textualmente: “Que é Psicopatologia? Claramente, os distirbios mentais so apresenta- dos de varios modos: Psicopatologia é um fendmeno complexo que pode ser abordado em diversos niveis e pode ser visto sob varios Angulos. Ao nivel comportamental, por exemplo, os disttrbios po- dem ser concebidos como um padraéo complicado de resposta ao stress ambiental. Fenomenologicamente podem ser vistos como expresséo de desconforto pessoal e angtistia. Abordados do ponto de vista fisiolégico podem ser interpretados como seqiiéncia das complexas atividades neuronais e quimicas. Intrapsicologicamente, podem ser organizados em processos inconscientes que defendem contra ansiedade e conflitos’ (pag. 2). O autor, portanto, qualifica a “Psicopatologia” de “fendmenos complexos”. Nao seria a ciéncia destes, mas o préprio disttrbio. E as varias teorias nao seriam distintas em fungdo de seus princi- pios, mas corresponderiam a “niveis” diferentes. A cada nivel, corresponde outra teoria... Dé a impresséo que as diversas teo- rias néo podem ser consideradas antag6nicas, divergentes, mas ne- nhuma delas pode aspirar a ser aplicada a um nivel que pertence a outra... E a Psicopatologia seria o distdrbio, o fendmeno que as teorias se propdem a analisar. Um pouco mais tarde, em 1969, o mesmo autor publica na sua “Modern Psychopathology” (Saunders; Philadelphia - London - Toron- to), um capitulo de histérico, outro de etiologia (fatores biolégicos e psicogénicos), outros de sindromes: Personalidades psicopdticas (incluida a esquizofrenia, ciclofrénica, parafrénica), desordens sinto- maticas, (ansiedade, neuroses), reagdes patoldgicas, alteragdes bio- fisicas (neurosifilis, encefalites, alcoolismo, traumas cerebrais, epi- lepsias, oligofrenias), terapias (medicamentosa, elétrica, cirtirgica, 13 psicolégica...). Exatamente o contetido de livros comumente cha- mados de Psiquiatria. Mas Millon prefere falar de Psicopatologia. Que seria “provavelmente tinica entre as ciéncias, no seu interesse pelo homem em todos os passos da sua vida... Por que procura- mos ajudar nossos amigos, mas temos uma incrivel dificuldade de ser adequados com nossas familias? Por que vacilamos frequen- temente entre fantasia esperancosa e desespero opressivo? Por que sonhamos e sofremos pesadelos terrificantes? Por que nos submetemos a tentagdes loucas, contra nossos melhores julga- mentos?” Formulando tais perguntas, Millon nao trata de Patologia alguma. Seriam, talvez, problemas para uma Psicologia. Talvez por isto ele nao intitula seu livro: “Moderna Psiquiatria”. Ele diz: “Sao os pro- blemas mais dramaticos e mundanos da vida, as silenciosas e per- sistentes ansiedades, as ineficiéncias repetitivas e os conflitos imo- bilizadores que embaragam milhdes de americanos diariamente, 0 que representa melhor a verdadeira matéria na Psicopatologia” (pag. 1). : Seria o que, por analogias médico-cirdrgicas, alguns chamariam de Pequena Psiquiatria? Mas a presenga, no livro, dos capitulos Toxicomanias, neurosifilis — pelo menos —, mostra que Millon nao inclui_ na “Psicopatologia” apenas os distirbios “leves”... da maioria silenciosa. “Historicamente, os profissionais e 0 publico consideravam que somente os disttirbios severos entravam na pro- vincia da Psicopatologia. Eles refletiam a estreita viséo de que os distirbios mais suaves da personalidade, que sabemos hoje que séo precursores de desordens mais sérias, eram apenas sinais de infe- rioridade moral, obstinacao, vaidade ou dissipacaéo” (pag. 2). O tom profético consegue logo alargar o mercado de trabalho, sendo psiquiatrico, pelo menos psicopatoldgico. “Estudar a Psicopatologia pode nos ensinar a compreender os problemas do homem contemporaneo, e achar caminhos para pre- venir tais problemas, antes de escapar do contrdle”. O contrdle do médico, do psicélogo, ou quem quer que seja 0 psicopatologista, toma aqui proporgdes ameagadoras. Sob a preten- s&o de resolver os problemas do homem... 14 Lemos num trabalho brasileiro de Nobre de Melo (Psicologia Geral e Psicopatologia. Atheneu. So Paulo. 1970) que promete ser o primeiro volume de uma Psiquiatria: “se a Psicologia é o es- tudo sistematico da vida psiquica normal, a Psicopatologia viria a ser, entdo, nao propriamente uma disciplina auténoma, mas apenas uma parte da Psicologia... Seria, pois, simplesmente, a parte da Psicologia Geral que trata, com exclusividade, do que se refere as anomalias, deficiéncias e enfermidades da mente humana, ocupan- do-se com tudo que ultrapassa, enfim, o ambito da experiéncia ani- mica normal. O certo, porém, 6 que essa redugdo da Psicopatolo- gia a um mero capitulo da Psicologia envolve dificuldades de monta que a tornam inaceitdvel, como veremos em seguida” (pag. 57). Se a Psicopatologia seria um ramo da Psicologia Geral... “uma formagdo psicolégica completa obrigaria ao conhecimento desta matéria, o que implicaria formacaéo médica”... Argumentagao dificil de entender. Se a Psicologia é o estudo da da “vida psiquica normal”, e a Psicopatologia trata das “‘deficiéncias e enfermidades” e “do que ultrapassam a experiéncia normal”, na- turalmente estas duas ciéncias se situam em terrenos diferentes, embora vizinhos e néo vemos porque seria “ramo” da outra... Se realmente a Psicopatologia fosse um ramo da Psicologia (que abrangeria, portanto, nado somente o normal, no campo de seus mé- todos), entéo a Psicopatologia deveria dispensar a Medicina... “Porém, diz Melo, a Psicopatologia é uma ciéncia auténoma porque no seu campo de estudo entra uma série de fenémenos especiais que nao representam simples alteragdes quantitativas do normal. Tais fendmenos constituem antes alteracées de qualidade, extrema- mente variadas e complexas, as quais nado sdo habitualmente aces- siveis, por sua indole, ao psicdlogo em geral, e sim, ao médico em particular” (pag. 58). Podemos deduzir que o autor concebe a patologia como “alte- teragdes qualitativas” do psiquismo, o que é o campo da Psiquiatria. Alias ele diz: “A Psiquiatria nada mais 6 que a Psicopatologia apli- cada a pratica médica”. Esté aqui repetindo Jaspers. “Restringe- -se, com efeito, a Psicopatologia exclusivamente ao estudo das ma- nifestagdes e mecanismos psiquicos anormais, referentes ao homem 15 enfermo da mente em geral, formulando, pois, conceltos ¢ princi- pios atinentes ao doente mental, enquanto genericamente conside- rado. A Psiquiatria, ao contrério, sendo antes de tudo uma pratica médica, um ramo especializado da medicina interna, tem seu inte- resse voltado especificamente para o homem enfermo da mente, em particular, ou seja, para o caso clinico, concreto e individualmente considerado” (pag. 57). Aparece aqui uma oposicao entre Psiquiatria e Psicopatologia, core se faria entre uma fala qualquer e a lingiistica... Mas o psi- quiatra teria que conhecer lingijistica, para falar. No volume citado, depois das exposigées teéricas sobre as psi- cologias contemporaneas, Melo debate as assim chamadas “fun- gées” psiquicas: personalidade, consciéncia, inteligéncia, afetivida- de, vontade, com um capitulo sobre delirios. No mesmo ano (1970), os laboratérios Spécia publicam o vo- lume | da série “Confrontations Psychiatriques” intitulado “A Psi- copatologia da velhice”, e em 1971 0 volume 7, institulado “A Psico- patologia da adolescéncia”. Os temas tratados sao: Biologia do en- velhecimento normal e patolégico, As deméncias da velhice, Os estados delirantes com inicio tardio, A prevencgéo e assisténcia dos disturbios psiquicos nos velhos, Aspectos sociolgicos da ado- lescéncia, Hipocondria e suicidio do adolescente, Diagnéstico e tratamento da sindrome “borderline” nos adolescentes... etc. Os titulos “Disturbios mentais” da velhice e da adolescéncia, ou “Psi- quiatria” da velhice e da adolescéncia seriam legitimos. Alids, en- contramos na segunda dessas publicagdes titulos como: A Psiquia- tria do adolescente, um desafio para os psiquiatras; A aplicacéo da epidemiologia @ Psiquiatria do adolescente; Supervisao psiquiatrica das equipes educativas Portanto, se faz uma equiparagao entre os termos Psicopatologia e Psiquiatria. Barclay Martin escreve uma “Psicologia da anormalidade” (1973), traduzida em portugués em 1977, (E. Nacional Sao Paulo). O autor pretende “descrever as formas mais comuns de comporta- mento anormal, considerar o que se sabe a respeito de suas causas biolégicas e psicolégicas, bem como avaliar diferentes métodos para 16 sua modificagéo e tratamento”. Inclui neuroses, psicoses, pertur- bagées organicas do cérebro, mas... néo usa a palavra Psiquiatria. As pessoas chamadas “doentes” seriam gente que perturba, ame- dronta, incomoda, mas mesmo quando lesionadas, o modelo médico seria impréprio. Nao convém dizer nem “desvio social indesejavel”’, nem “sofrimento objetivo”. Seriam “deficiéncias psicoldgicas loca- lizaveis em aspectos comportamentais de ordem emocional e inter- pessoal. Incapacidade da pessoa de fazer algumas coisas para as quais tem conhecimentos e aptidées; ou compulséo para determina- dos tipos de comportamento que interferem nos aspectos normais das pessoas” (pag. 4). “Essa deficiéncia ou incapacitagéo pode re- sultar de muitas causas — doenga fisica ou ferimento, pouca inteli- géncia ou falta de informagao ou formagdo. No entanto, para nossos objetivos, centrar-nos-emos nas perturbagdes que parecem resultar de uma interagio de disposigdes biolégicas (néo necessariamente doengas fisicas especificas ou ferimentos) e experiéncias de apren- dizagem nas esferas emocional e interpessoal. Algumas expressdes como psicopatologia ou perturbagao de comportamento sao téo ade- quadas como comportamento anormal e as trés expressdes seréo usadas com o mesmo sentido” (pag. 4) “Além disso, 0 limite entre normalidade e anormalidade nao pode ser delimitado nitidamente: o ponto em que decidimos que a deficiéncia 6 suficientemente grave para ser intitulada anormal é arbitrério” (pag. 5). Martin prefere falar de psicologia da anormalidade (mesmo sem poder delimitar nitidamente o normal do anormal) e evita, pelo me- nos no titulo, a expresséio Psicopatologia, embora seja ela tao ade- quada quanto a de “perturbacaéo de comportamento” ou “comporta- mento anormal”, Fala de “Psicologia da anormalidade” mesmo quando descreve psicoses organicas, perturbagées cerebrais, e re- comenda tratamentos biolégicos e hospitalizagéo. Mas considera a doenca mental “um mito” (pag. 151). Um livrinho ruim, mas curioso. No prefécio, Bonne e Bercowicz usam 0 térmo psicopato- logia, para 0 que Martin chama psicologia da anormalidade. Encon- tramos aqui a equivaléncia entre Psicopatologia e Psicologia (seja ela da anormalidade). Num grande tratado de Psicopatologia Geral, recente (1973), Carmelo Monedero (Bibl. Nueva. Madrid.) postula a Psicopatologia 17 como “ciéncia do psiquismo doente, usando métodos diversos e, as vezes, contraditérios” (pag. 17). A medicina descobriu que nao hd doengas, ha doentes. Os sintomas nao sao idénticos em todos os doentes, mas apresentam suficiente uniformidade para serem ana- lisados por uma “ciéncia’”. (A Psicopatologia de Monedero inclui Semiologia). Captando seus caracteres essenciais, a Psicopatolo- gia, até 0 comego do século XX, descreveu a mania, a depressao, a parandia, a histeria, as alucinagdes, etc. (A Psicopatologia inclui também Nosografia). Mas a observacao e descricéo do fato psicopatolégico (sinto- ma?) nao basta. Apareceram a interpretagao (psicanalitica), a ex- plicagdo (somaticista), a descrigéo fenomenolégica (sim: o sintoma é um significante, significa outros contetdos e fendmenos e a Psi- copatologia inclui também as teorias e os procedimentos que rela- cionam um sinal com seus significados). Segundo o modélo médico, pode-se encarar a Psicologia como a ciéncia do psiquismo sadio, correspondente & Anatomia e Fisiolo- gia. A Psicopatologia (como a Patologia Geral no caso do organis- mo) tentaria uma visio panordmica das manifestagdes patolégicas do psiquismo. Os psiquiatras se acostumaram a pensar em teorias de doengas, reduzindo a Psicopatologia a uma enumeragao estéril de sintomas (pag. 20). Em muitos tratados de Psiquiatria achamos ca- pitulos de Psicopatologia que nada mais séo que uma exposigaéo de terminologia. No resto, estudam-se alteragées do psiquismo, visto como estrutura organizada na qual existem 6rgaos e fungGes: per- cepcdo, memoria, imaginagdo, inteligéncia, vontade, emogdes, sen- timentos. A Psicopatologia se constitui como a ciéncia das altera- cées dessas fungdes. As fungdes vistas isoladamente seriam objeto da Psicopatolo- gia, e dentro de um quadro nosografico seriam objeto de Psiquiatria? Mas de“um lado, Monedero atribui & Psicopatologia a descrigaéo dos quadros nosogréficos e de outro lado, intitula seu livro “Psicopato- logia Geral”, 0 que sugere a existéncia de uma Psicopatologia Espe- cial, que seria exatamente a clinica de cada caso. Isto levaria a possibilidade de equiparar a palavra Psicopatologia com Psiquiatria, 18 que também 6 formulada por certos autores como Geral e Es- pecial Monedero diz: “As alucinagdes durante as intoxicagdes nao séo iguais as do esquizofrénico, do histérico, ou as qua aparecem no ex- tremo cansago. Se, no estudo das alucinagées prescindimos das diferengas entre umas e outras, seria indtil todo nosso trabalho psi- copatolégico. Por isto se torna necesséria a continua referéncia aos quadros nosograficos, que sao estruturas totalizantes, nos quais adquirem sentido os fenémenos praticos. £ evidente que este pro- cedimento rompe a ilus&o de constituir a Psicopatologia como um in- termedidrio entre Psicologia e Psiquiatria”. “... a Psicopatologia estd a cavalo entre uma Psicologia das fungdes e uma concep¢éo dos quadros nosolégicos”. “... ha uma dialética permanente entre © conhecimento do elementar e as estruturas totalizantes em que se realiza...” (pag. 21). A Psicopatologia tentaria ser uma espécie de abstracao analiti- ca da realidade que se daria nos quadros nosolégicos. Uma semio- logia que nao seria mais médica, por néo poder ser localizada. A ciéncia do funcionamento normal do rim € a Fisiologia; 0 psiquismo ndo teria uma anatomia, nem uma fisiologia. Sua cléncia seria e@x- tra-médica; a Psicologia. “Neste século, tal conceituagéo foi posta em discussdéo. Para o Comportamentismo, a Psicologia néo 6 a ciéncia do psiquismo, mas da conduta. A Psicanalise refere-se as trés instancias da personalidade, id, ego e super-ego. Os filésofos do encaram o homem como uma coisa da natureza. Husserl tenta um reencontro do homem consigo mesmo, distante dos preconcel- tos nos quais se vé implicado (pag. 21). A Psicopatologia nao deve ser um intermedidrio entre Psicologia e Psiquiatria. Ela estuda as fungdes e os quadros nosoldgicos. Pode penetrar em campos fecha- dos tanto para Psicologia quanto para Psiquiatria”. Parece dizer que a Psicopatologia néo tem um campo proprio, & que faz... Psicologia e Psiquiatria... em geral. “Hoje, a doenga mental s6 pode ser conhecida mediante um co- nhecimento da personalidade do doente. Também a terapia nao é 19 Puramente soméatica... O psicélogo é mais preparado para mane- jar o tipo de relagao transferencial De fato vemos que muitos bons psicoterapeutas sdo hoje em dia psicdlogos e nado médicos, como era a regra antigamente...” (pag. 22). Quando? Em Psicopatologia... “o psicdlogo acentuara os aspectos psico- légicos das doengas mentais, enquanto o médico psiquiatra adotaré uma atitude mais organicista, pretendendo encontrar sempre as ba- ses somaticas das doengas mentais. ..” (pag. 22). E uma recomendacéo? ou uma confisséo? Porque pessoalmen- te nao diriamos que procedemos exatamente assim. Nao é 0 caso aqui de criticar 0 que o Monedero diz: é apenas entender, observar qual é o ponto de vista dele. Agora, se ele afirma que “o psiquiatra faz assim”, podemos responder: Nao senhor! Se ele recomendar, direito dele. Ninguém pode afirmar: Psicopatologia ou Psiquia- tria 6 somente o que eu faco. Portanto nem podemos deixar de ouvi-lo, mesmo se optamos por outra atitude, desde que queremos conhecer a Psicopatologia (ele faz também Psicopatologia). “’.. 0 psicélogo, mais interessado na tematica psicopatolégica dinamica, sentido, estruturas, em uma palavra, procuraraé compre- ender melhor seu paciente. O psiquiatra estaré muito mais inte- tessado nos sintomas, que vao conduzi-lo ao diagndstico corre- to...” (pag. 22). De que psicdlogo e psiquiatria esta falando? Ou é — nova- mente — uma recomendacdo? Mas, significaria: vocé, psiquiatra, cuide das partes, dos sinto- mas; vocé, psicdlogo, cuide das estruturas, do conjunto. Existe, sa- bemos, uma Psiquiatria que recusa a atomizacao do individuo, com- preensiva, estruturalista, comunicacional. Existe até uma Neurolo- gia gestaltista... A Psicopatologia, estudando os sintomas, de modo analitico, pa- recia ser um aspecto mais “geral”, aliés menos particular, menos unitério, da Psiquiatria. Agora aparece com outras aspiracdes. “Quando falamos de médicos e psicdlogos, nao nos referimos a eles, 20 somente porque tém um titulo ou outro. Trata-se de duas atitudes extremas que estamos especificando... A Psicopatologia, embo- ra se apoie na Psicologia e na Psiquiatria, néo aspira permanecer na eterna ciséo, mas aproveitando as contribuigées de uma e de outra, pretende superar seus prejuizos e ser a Unica ciéncia que pode dar uma visdo da psique humana doente...” (pag. 23). Da a impressdo de querer recuperar a Psiquiatria, j4 que a parte médica nado pode ser dispensada.. .. No trabalho “Psicologia da crianga”, editado por P. H. Mussen, o volume 10, de Carmichael, é intitulado Psicopatologia (Ed. USP — 1975). Inclui: Retardamento mental, Disttrbios de comportamento da infancia, Psicose Infantil. Sao capitulos presentes nos livros de Psiquiatria Infantil, de outros autores. Podemos deduzir que, para este autor, Psicologia é igual a Psiquiatria. O mais recente livro de Psicopatologia do qual tomamos conhe- cimento é o de Scharfetter Ch. — Introduction a la Psicopatologia General. Morata, Madrid. 1977 (original alemaéo — 1976). Fala dos conceitos que sdo tratados como “fungdes psiquicas”: consciéncia, eu, orientagdo, vivéncia do tempo, meméria, atencao, pensamento, inteligéncia, delirio... Nao expéde os quadros noso- graficos e por isto se trata de uma Psicopatologia Geral. Mas ja na introducdo, refere-se a Classificagéo Internacional das Doencgas Mentais. O livro é escrito explicitamente para psiquiatras. A Psi- copatologia surge como uma Semiologia, mas nao se limita a des- cricgéo; procura critérios para sistematizar, elaborar leis, incluir o patolégico no homem total, o que indica uma concepgao. “Nao perguntar: existe esquizofrenia? Mas em que ambiente, sob que circunstancias, 0 homem vivencia e se comporta de modo que nés decidimos designar como esquizofrénico?” Refere um conceito médico de doenca (ligado ao corpo), mas também um conceito social, um conceito psicoldgico, um ciberné- tico (os transtornos n&o sao cadticos, mas regulares; a doenca é um desvio submisso a regras). Achariamos mais ldégico falar de conceitos sociais, psicolégicos, cibernéticos, a respeito do “disttir- bio psiquico”, e néo da “‘doenga’”, que seria um conceito exclusiva- mente médico. 21 Ainda mais porque para Scharfetter “os sintomas psicopatolégi- COs Nao sao, sem mais, morbosos...” (pag. 33). Vejamos agora algumas definicdes esquisitas: — Al. Loven em A Bioenergia (Lafont. 1976), escreve: “Numa Personalidade psicopética, o Eu ou espirito, vira-se contra o corpo € 0 que esse sente, particularmente as impressdes sexuais. Dai 0 emprégo do térmo “‘Psicopatologia”’. — E. Schimid — Kitsikes e outros — (Ann. Méd. Psychol. 1975 — 1, 2; 197-236): “Em relacaio a esquizofrenia podemos empre- gar 0 conceito bleuleriano de processo psicopatolégico cuja uni- dade, se existe, 6 genética”. Usam “processo psicopatolégico” no sentido de alteragao psiquica (para nao dizer doenga, ou sindrome...). Passamos em revista varios autores — entre os mais conheci- dos em nosso meio — para ver como conceituam a Psicopatologia, em relacdo a Psicologia e a Psiquiatria... Nao podemos afirmar que suas definicdes s&o muito firmes. Em certos casos, 0 autor seria intimado pela propria natureza da sua obra, a definir claramente, explicitamente. Eo caso dos “Dicio- narios”. Porot A. (1955) em Manuel Alphabétique de Psiquiatrie (PUF, Paris) — nao define nem a expressao Psicopatologia, nem Psicolo- gia, nem Psiquiatria. No Dicionario Geral de Medicina New Gould (Mc Graw-Hill, New York, 1956), Psicopatologia 6 “a patologia das doencas mentais”, Psicologia é a “‘ciéncia que estuda as fungdes da mente, como sen- sagdes, percepcdes, memoria, pensamento e, mais largamente, a conduta de um organismo em relagéo a seu ambiente”, Psiquiatria 6 “o tratamento das doengas mentais”. No “Psychiatric Dictionary” de Hinsie e Campbell (Oxford, 1960), a Psicopatologia seria 0 ramo da ciéncia que opera com a morbidade ou patologia do psiquismo e da mente... A Psicolo gia... a ciéncia que opera com a mente e 9S processos mentais — consciéncia, sensagao, ideacéo, meméria, etc. A Psiquiatria. .. a ciéncia do iratamento ¢ cura das desordens psiquicas... Enten- demos que o esquema seria: o psicdlogo estuda a mente e seus 22 processos normais, o psicopatélogo estuda as doengas, o psiquiatra trata e cura. A Psicologia e a Psicopatologia seriam ramos da ciéncia, a Psiquiatria uma pratica. Nao ha diferenca entre Hinsie e Gould. Em 1972, Gori e Poinso publicam um “Diciondrio pratico de Psi- copatologia”’ (Ed. Univ. Paris), no qual o termo psicopatolégico nao é definido. A Psiquiatria, é a ciéncia médica que permite diagnosti- car, tratar e as vezes curar as doencas mentais. Sobre Psicologia, um pouco mais: é dificil de definir, seu objeto € o homem, mas este é também objeto de outras ciéncias, e, por outro lado, existe uma Psicologia animal... Seu método é, as vezes, o das ciéncias fisi- cas, outras vezes das psicanaliticas ou médicas; a Psicologia Experi- mental usa o modelo naturalista, a Psicologia Clinica o modeio hu- manista. Antes, era a ciéncia das fungGes; agora tornou-se aquela do comportamento; mas 0 comportamento é um emergente, um ele- mento manifesto de uma estrutura latente. Seria isto o que a Psi- cologia pretende alcangar. Ela estuda, portanto, a pertinéncia de uma conduta na sua articulagéo com as condutas passadas e futuras. Procura interpretar e explicar de que modo a estrutura latente — conflitos, tensdes — se torna manifesta. Procura recolocar uma conduta no contexto das condutas... A Psicologia Clinica situa na mesma unidade as condutas adaptadas e as desordens. Nao 6, portanto, igual a Psicologia Patolégica... As condutas desadapta- das seriam, para a Psicologia Clinica, apenas quantitativamente di- ferentes das adaptadas. A diferenca nao seria de qualidade, portan- to nao implicaria patologia, doenga. Esta ultima entraria no campo da Psicologia Patoldgica, ou Psicopatologia, sensivel 4 Psicanalise. Enquanto a Psiquiatria seria uma pratica diagndéstica e uma tentativa terapéutica. J& encontramos 0 termo Psicopatologia, no sentido de ci&ncia, teoria dos disttrbios psiquicos, no sentido de Semiologia, de Psi- quiatria Geral, de doenga mental. N&o pensamos a Psiquiatria como uma pratica sem teoria, como uma arte, uma habilidade médica. Atribuimos-lhe os caracteres que podem ser atribuidos, hoje em dia, a todas as ciéncias. Conside- ramo-la uma “saber”, néo uma atividade dependente de talentos ina- 23 tos, de uma personalidade privilegiada. N&o conceituamos o pen- samento psiquidtrico como referente apenas ao organismo, mas nem esquecemos que 0 homem é um organismo — entre outras coisas. No Egito das piramides, a palavra “corpo” era uma das expres- sdes para dizer “si-mesmo”. Homero achava que o herdi nao esta no Hades, porque somente sua sombra, sua psiqué, vegeta al, en- quanto que ele mesmo (autor) acha-se no Olimpo, onde seu corpo achou acolhida (Odisseia XI, 602). Mas Platéo (quatro séculos mais tarde) considerava que o que constitui nosso eu, de cada um de nos, nao 6 outra coisa sendo a alma (As Leis, 959 B). Bach tira os “sopradores” para personificar Deus nas Paixdes segundo Séo Mateus. O homem é deus, mais o corpo. Nao vamos, hoje em dia, conceber a pessoa sem corpo, ou sem psiqué. O corpo (limitado pela pele) é o subjetivo. E absurdo tentar uma Psicopatologia negligenciando o corpo. Como pensar a pes- soa sem seu organismo? Entre 0 uso do termo Psicopatologia para significar sintomato- logia (como, por exemplo, a Psicopatologia da histeria), preferimos usd-lo no sentido de “Psiquiatria Geral”, teoria, elaboragdo de nor- mas e instrumental. O estudo isolado dos sintomas j4 representa uma certa posicéo tedrica. O sintoma ganha significacdo dentro de uma concepg¢ao do homem, Também afirmar isto, indica uma certa concepcéo da Psicopatologia. O psicélogo seria o estudioso da teoria e a pratica do psiquismo normal, estudando patologia somente para melhor delimitar seu campo de trabalho. O conceito de doenca é exclusivamente médico. Comeco a Psiquiatria 14 onde faco um raciocinio médico. Escolhemos um certo sentido dado ao conceito de Psicopatolo- gia, mas isso nao nos da o direito, se quisermos estudar este assun- to, de omitir o que é Psicopatologia para outros autores. Nao pode- mos dizer que Jaspers esta errado, ou Mayer-Gross esta errado, ou 24 Monedero esté errado. Como nao podemos dizer que Boulez nao escreve mUisica, somente porque preferimos escutar Bach. O estudo das alteragées psiquicas, nao incluidas num contexto nosogréfico, representa uma abstragdéo, sem muito sentido, a nado ser como pratica ligada a um modo de entender as necessida- des diddticas. Mas é isto que constitui o contetdo da “Psiquiatria Geral”, da “Semiologia Psiquidtrica” e da Psicopatologia — para muitos autores. Achamos muito mais razodvel usar 0 termo de Psi- copatologia para abarcar os estudos de cardéter geral, as teorias, sobre o psiquismo alterado. N&o seria exatamente como queria Jaspers, porque ele fala de “ciéncia” Psicopatolégica, em oposicéo @ “pratica” psiquiétrica. Tentamos fazer uma Psiquiatria “ciéncia”, de modo que isto nao seria critério de distingéo da Psicopatologia. Em suma, devemos confessar que o termo nem nos parece indispen- savel. Talvez sua real funcdo seria a de eliminar uma separacgéo de campo entre Psicologia e Psiquiatria. O que nao nos parece negli- genciavel. Acreditamos que a diferenga entre psiquiatra e psicé- logo n&o se refere a seu dominio de estudo, mas a seus pontos de vista. 2

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