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Copyright © 1994 by Bator Pepectiva LAL 2 BIBL (26 adr bemaenide Canons Rae (Chnwrinsiendotno sc) aaa Ami 9 4 (Dee v.20, “me Gao pee Ean ta im Ren 129, 1 rte ony eae ‘oles para catlopo semis: om 1, Roe To eas Liss 80 Dicitornsnadars aor Peapeiva S.A ‘Dig Las As, 3025 DUM01-00» So Pala ~ PB TH, (01) 88-4988 ax (11 08-6078 1994 anatol rosenfeld LETRAS E LEITURAS Ee! eae = “of eovomrere I a As 3, KAFKA E 0 ROMANCE MODERNO* # geralmente conhecido em que alta medida Kafka influiu no romance contemporineo, paticularmente a partir de 1945, quando realmente comegou a tornar-se conhecido internacionalmente. Autores como Camus, Sartre, Robbe-Grillet, Butor, Dino Buzzatie, estendendo © raio das minhas consideragdes & dramaturgia, autores como Diirrenmatt, Frisch, Tonesco, Beckett, inspiram-se :muitas vezes em Kafka. Muitos deles confessaram essa di- vida, por exemplo Robbe-Grillet, Dino Buzzati, Dirren- ‘matt. A obra destes autores testemunha nitidamente a in- fluéncia kafkiana. No entanto, no é o intuito da minha palestra mos- trar tais influéncias minuciosamente em cada caso, Pare- + Texto pubicado no lize Jnnoducdo & Obva de Franz Kafka, ‘Universidade de Si Paulo, 1966, 4 ce-me impossivel abordar em tZo pouco tempo um as- sunto tio vasto, De resto, a pesquisa de influéncias dire- tas ou indiretas € um trabalho penoso. Seria necesséria ‘uma investigagio de anos, trabalho um pouco intl, em- bora naturalmente tenha a sua fungio. Mais interessante se me afigura verificar, através da andlise de alguns ele- ‘mentos caracteristicas da obra kafkiana, até que ponto € autor contemporineo nosso, até que ponto realmente faz. parte do nosso tempo, embora tenha falecido hé mais de quarenta anos, até que ponto no romance moderno flu, por assim dizer, sangue do sangue de Kafka, sem que ha- ja necessariamente em todos os casos uma influéncia di- zeta, Cabe mostrar simplesmente que Kafka faz parte do ‘nosso tempo, do nosso mundo. Iss0 se pode verificar através da andlise de algumas estruturas fundamentais da obra kafkiana. Creio que as obras de Kafka e dos grandes roman- cistas e dramaturgos contemporaneos sio expresséo da mesma época. Nao hé diferenga, por assim dizer, de perfodo, de fase. Kafka € nosso, do nosso tempo, total- ‘mente, € pode-se dizer mesmo que o proprio Kafka ja 6 parte ¢ resultado da revolugio das artes que se iniciow nos fins do século passado. E uma revolugo que coat nua até hoje a abalar os fundamentos nfo s6 do roman- ce, mas também do teatro, das artes plisticas ¢ da mési- ea, De modo que Kafka jé esta dentro de um processo aque se inicia antes de ele ter comecado a escrever. Po- ‘demos dizer que faz parte da revolugéo geral em que so cencontram a8 artes no nosso século, revolugdo esta que se iniciou por volta de 1890. Essa revolugdo, por sua vez, € sintoma do esforco de assimilar, de um outro modo, lum novo sentimento de vida, uma nova realidade, uma nova concepgio do homem. Com efeito, toda a con- ‘cepgio do homem, toda a visio da realidade se modifica- ram em virtude das virias revolugSes industriais que eclodiram desde os fins do século XVIII ¢ que se vém repetindo, levando & industrializagio acelerada ¢ & tecni- 2 zagfo do nosso mundo, criando uma nova realidade social «por assim dizer, uma nova natureza, De fato, o homem criou, por assim dizer, uma nova natureza e esse produto do homem, que € a técnica e a ciéncia, por sua vez repro- duz 0 homem a sua maneira. O homem torna-se, por as- sim dizer, produto do seu préprio produto, € modificado pelos seus produtos. Uma revolugéo de semelhante im- portancia, segundo a opinigo de alguns antropélogos, 56 ‘ocorreu hé 6 000 anos, isto 6, no periodo neolitico, quando © cacador ndmade se tornou pastor ¢ agricultor, Deviam ppassar 6 000 anos para que novamente se verificasse uma revolugio to importante como aquela, quando o homem comegou a fixar-se, a tornar-se camponés. Semelhante- ‘mente, a nossa época encontra-s¢ em face de um novo li iar de cultura. Parece-me que as modificagdes dat de- correntes vio atingir ou jé estdo atingindo todas as estru- turas sociais, as relacdes de familia, as prOprias normas morais ¢ provavelmente também as estruturas religiosas. Parece-me que nenhum setor da sociedade, nenhum nervo do homem, deixard de ser atingido. , naturalmente, um grande problema para o artista, para o romancista assimilar a nova visio do homem € da realidade, & um grande problema para o artista, e pa- ra o romancista, em especial, assimilar essa visio nova na propria estrutura da obra. Isto 6, assimilé-la néo apenas tematicamente, ndo apenas falar sobre esta nova realida- de, no apenas discorrer sobre estas novas experiéncias, ‘mas manifestar tudo isso na propria estrutura da obra, Importa, portanto, elevar a nova visio a uma expressio adequada. Trata-se, pois, de transmitir a nova experién- cia como verdadeira experiéncia, capaz.de ser vivida pelo Ieitor. Néo basta falar apenas tematicamente sobre a precariedade da situago do individuo na nossa época © na nossa sociedade; nao basta dizer que o individuo hoje se sente ameagado “de fora e de dentro”, ameacado de fora pelo mundo andnimo, social, ¢ de dentro pelas for- ‘8 andnimas do inconsciente, Sem davids, antigamente a ‘© homem também estava ameagado por forgas anénimas, mas s6 agora ele 0 sabe, s6 agora ele esté consciente do inconsciente, se assim se pode dizer. O homem agora tem uma nova conscidncia a respeito disso. Sabe que hf, no seu fntimo, forgas andnimas que influem no seu com- portamento, que invadem o proprio ego racional, mani- festando-se de uma maneira as vezes arrasadora. Ao mesmo tempo vé-sc 0 homem ameacado de fora pela engrenagem gigantesca do mundo moderno. Ora, nio basta apenas discorrer sobre isso, nfo basta, por exem- plo, discorrer sobre a capacidade, sobre a obscuridade a impenctrabilidade do mundo moderno, como nés ago- ra 0 vemos, Nao basta tudo isso para que o leitor tome apenas conhecimento disto, aprendendo-o como se aprende que 2x 2 € 4. O conhecimento, neste caso, nio se transformaria em experiéncia, seria apenas um conhe- cimento a mais. O artista tem de trabalhar num nivel su- ficientemente profundo para que esse tema, se podemos chamar isto assim, se transforme em experiéncia vivida. Nio basta, repito, expor tudo isso tematicamente, dizer que o “ew” humano ameaga perder-se no turbilhéo me- tropolitano, ow ameaca virar pega ma engrenagem do mundo administrado; no basta expor uma teoria segun- do a qual o ego racional se revela apenas epidérmico, crosta ténue sobre 0 mar insondavel do inconsciente, re- pleto de monstros arcaicos. O que importa na arte 6 transformar tudo isto em experiéncia vivida, eapaz de se tornar, por sua vez, vivida experincia do leitor. Temati- camente, muitos dos problemas e concepgées expostos, isto 6, mundo administrado, industrializagdo, mundo bu- rocrético, ameaga do mundo andnimo, pressio da socie- dade sobre 0 individuo, ou entdo, ameagas que vém de dentro, tudo isso foi tematicamente, de certa manecira e fem certa medida, j4 exposto pelo naturalismo, isto 6, ‘numa fase literéria anterior aquela de que estamos fa- Jando. Particularmente no drama naturalista jé encon- ‘ramos alguns dos temas mencionados. Mas, em termos estéticos, essa temiética continuava inexistente, porque “4 uma temética s6 se torna realmente existente em termos estéticos quando ela ¢ assimilada totalmente & organi- zacdo c & estrutura da obra. Essa assimilagdo do tema & forma, se € que podemos chamar isso assim, por razdes puramente didéticas (porque na realidade a coisa é um ppouco mais complexa), essa assimilagdo do tema a forma ‘veio a ser causa de uma profunda crise do romance, por- que o escritor agora procura fazer com que a nova expe- rncia determine organizagio total da obra. Isto se traduz numa modificagio total das artes em geral ¢ do romance em particular, Narrar, como sabemos, significa, om geral, narrar ‘uma histéria, uma histéria singular, particular, isto 6 si nifica tradicionalmente “‘contar um caso”, um caso acon- tecido, embora s6 ficticiamente, mas um caso de qual- quer maneira particular, individual, que aconteceu a este ‘ow aquele individuo. Mas como dar uma visio do gigan- tesco mundo administrado, da burocracia universal, co- mo dar uma idéia dessa engrenagem impessoal, andni- ma, através da hist6ria de um individuo ou até de um “heréi”? Nenhum “her6i", por mais tipico e mediocre ue seja, pode realmente ser representante dos processos andnimos da nossa imensa engrenagem atual. Isso jé foi visto por Hegel, hé mais ou menos cento ¢ cingiicnta ‘anos; por isso mesmo predisse ele o fim da arte. Pare- ia-lhe que a arte nio pode mais absorver, no pode ‘mais assimilar este mundo mediado, a engrenagem ‘enorme que esté surgindo. Recentemente, o Time Maga- zine, com um pequeno atraso, percebeu isto também. Mas Hegel jé 0 disse hd eento ¢ cinglenta anos, referin- do-se particularmente a0 her6i tragico. Diz Hegel, mais ‘ou menos, que num Estado desenvolvido e organizado, fem que ha leis escritas, intimeras especializagées etc., nenhum individuo é expoente e representante do todo. Tudo € infinitamente mediado. A cada individuo cabe apenas parte limitadissima no todo. A organizagio geral domina, ¢ nessa generalidade a vida do individuo é ind ro ferente c marginal. Diz Hegel que somente na “época dos hers, isto 6, numa fase em que néo haja ainda um Estado totalmente organizado, em que ainda nfo tenha surgido essa engrenagem sobreindividual, pode surgir 0 individuo exponencial, 0 her6i que represente, de fato, a sua época, Podemos dizer que nesse sentido, por exemplo, 0 far west, o cinema far west seria um exemplo tipico daquilo a que Hegel se refere. E esse tipo de individuo de cujo revélver, por assim dizer, depende a ordem que faz as leis e determina toda uma situagio; € este estado de coi sas que se afigura a Hegel como fundamental para que ‘possa surgir 0 her6i exponencial de uma época. Friedrich Diirrenmatt, falando sobre esse problema, certamente fluenciado pela opinio de Hegel, disse que atualmente ni se podem mais usar os herdis porque cles deixaram de ser representatives. Um her6i como Creonte nao se- ria mais possivel, porque ele encarregaria os seus se- ceretérios do caso de Antigone, Nio ira assumir nenhu- ‘ma responsabilidade no caso; através dos seus secreté- rios, isto 6, através da mediagio de varios seres andnimos que entrariam em jogo, Creonte liquidaria 0 caso. E, uma vez que as responsabilidades se dividem, de tal forma, en- te uma infinidade de individuos, cada um sendo apenas ‘uma parcela no todo, individuo nenhum terd caréter ex- ponencial. Hegel define esta situacdo dizendo que cada individuo € “infinitamente particular”. Com efeito, os processos andnimos do nosso mundo no sio captaveis através da hist6ria Hinear que desenvolve, numa continui- dade perfeita, 0s destinos de Jodo da Silva ou Maria das Dores, Isso sio coisas “infinitivamente particulares”. Po- dem interessar-nos para chorar ou para rir um pouco, mas iio sio representativos do todo, Por isso mesmo diz. Paul Valéry muito bem que contar aquilo que pode ser contado j@ nfo conta, E Robert Musil disse: a hist6ria deste ro- mance ~ ele escreveu 0 famoso romance O Homem sem (Qualidades, um romance de 1 600 paginas ~ Musil diz: a historia deste romance define-se pelo fato de que a hist6- 7 ria que ncle deveria ser narrada acaba nao sendo narrada. De certa mancira nfo poderia ser narrada, porque ne- nhuma hist6ria nesse sentido pode dar conta da nossa época, Realmente, os romances de Kafka também aca- ‘bam nio sendo narrados; todos eles sio fragmentos. Abolir a fibula linear, 0 desenvolvimento do heréi, significa desfabular o romance, tirar-Ihe aquela historia bonitinha, aquele entrecho ou enredo de que tanto gos- tamos (particularmente nas foto ou nas radionovelas), ‘mas que hoje de alguma forma sio clichés superados, que nio significam realmente nada ¢ j4 nao correspon- dem ao nfvel da nossa consciéncia atual. Podemos diver- tir-nos com esses clichés, sem davida alguma, mas isso no tem nada que ver com a expressio da nossa época. Abolir a fabula linear, o desenvolvimento do her6i, signi fica, portanto, desfabular o romance, ou seja, destruir, radicalmente, 0 romance tradicional como 0 conhecemos da grande literatura psicol6gica do século passado. Pen- semos apenas em Stendhal, Balzac, Flaubert, Fontane, Dickens e, em parte, em Thomas Mann, para termos ‘uma visio do romance tradicional, realista-psicol6gico, com fabulagio, com um her6i magistralmente caract zado, mas demasiado particular e diferenciado, para re- presentar uma época com a nossa. Este romance tradicional foi radicalmente destruido pelo romance moderno ¢ um dos primeiros a dar este passo foi Kafka. Néo vou dizer que tenha sido o tnico, mas foi sobretudo Kafka que se antecipou neste campo. Scus herGis, se assim os podemos chamar (porque sio na realidade anti-her6is) seus heréis, particularmente dos dois grandes romances O Processo © O Castelo, José K. ¢ K,, afiguram-se despojados de qualquer realismo psi- colégico. Jé os proprios “nomes” ~ ow a falta de nomes indicam a sua despersonalizacio e seu destino de gen- te andnima, E verdade que, na dramaturgia, autores pré-expressionistas e expressionistas se anteciparam a Kafka, Strindberg, por exemplo, numa pega como O a Caminko de Damasco, j6 usa apenas palavras abstratas como “o Desconhecido”, “o Mendigo”, “a Senhora” pa- 1a designar os personagens, ¢ essa eliminagéo dos nomes individuais ressalta a abstragéo da psicologia individual e diferenciada. Nesse sentido, Strindberg é um dos grandes renovadores do drama moderno. De uma outra mancira, também Alfred Jarry, na Franga, fez coisa semelhante na sua pega Ubu Rei. No romance, porém, foi Kafka quem parece ter iniciado esse processo com radicalismo, num nivel extraordinério. AO mesmo tempo iniciou a desfabulagdo. Nao hf, nos seus romances, o desenvolvimento de uma intriga “infinita- mente particular”, com comego, meio e fim. Ocorre a repetigio constante das mesmas situagdes, com ligeiras variagbes, evidentemente. Toda a ago de O Castelo con- siste nas tentativas mil vezes repetidas do “heréi” K,, de ser accito na aldeia ¢ de ser accito, ao mesmo tempo, pe- lo castelo misterioso. E toda a agdo de O Processo con- siste em desfazer uma acusagéo desconhecida ¢ isso em epis6dios que se repetem constantemente. E uma manei- 1a circular de construir o romance, de girar sempre em torno do mesmo assunto, sem que haja propriamente rogressio ou desenvolvimento de enredo. Dessa forma epis6dio segue a epis6dio, ¢ o fato € que muitas vezes € posstvel inverter a ordem desses episédios, porque no fundo cada um deles repete a situagio bésica da espera € da frustragio dos esforgos de K. Esforgos de K. que pro- cura ser accito ou redimido. Geralmente, tudo se reduz & espera, a uma longa espera e & frustracéo constante. A. personagem andnima quer ser aceita na aldeia, no caste- lo, ou entio quer desfazer uma acusagio misteriosa, quer redimir-se de uma culpa que desconhece, assim se constitui essa construgio circular em torno do mesmo problema, sem que haja realmente progressdo, A morte de José K. em O Processo no é realmente impositiva, cla nfo é conseqiiéncia de uma trama desenvolvida, no € propriamente motivada; ela poderia ter ocorrido antes, 8 mais tarde, ou nunca. Porque de fato a hist6ria desse ‘José K. 6 impessoal, 6 a histéria de um ser andnimo, so- breindividual, de um arquétipo. E arquétipos nao costu- ‘mam morrer em termos biol6gicos. A morte € aqui, por assim dizer, um acaso. K € simplesmente 0 arquétipo do hhomem em busca de sentido, num mundo caético, opaco, impenetrével, imperserutével. Por isso mesmo néo pode haver diferenciagio psicol6gica, pois ela destruiria a re- presentatividade desse anticheréi, Nesse caso, se ele fos- se diferenciado psicologicamente, nio iria ser represen- tativo para 0 homem tout cour para o homem da nossa 6poca em geral. Ele s6 pode sé-lo como arquétipo, como mito, como ser andnimo, como ser que, néo sendo dife- renciado, se afigure suficientemente abstrato para poder representar o todo da nossa humanidade atual, E tam- pouco poderia viver uma fabula bem desenvolvida, con- catenada e organizada, pois esta iria introduzir uma or- dem causal e temporal que desmentiria a visio de um mundo absurdo, em que toda busca de um sentido ¢ de intepragéo é constantemente frustrada. A fébula, quando ‘bem organizada, bem concatenada pelo narrador, natu- ralmente estabelece uma ordem. Uma vez que a visio de Kafka, expressa nos seus romances, € a de nio haver ‘uma ordem, pelo menos uma ordem penetrével por nos- sncia, de modo que o mundo parece absurdo, cle nio pode introduzir um encadeamento muito logico & causal, porque isso iria desmentir 0 pr6prio intento desta obra, A desfabulagao liga-se, portanto, ao préprio tema, ao tema de o mundo parecer absurdo. Se a ago fosse muito bem organizada, se cla estabelecesse uma ordem rigorosa de acontecimentos, ela estaria cm contradigéo ‘com a propria intengio da obra, © antipsicologismo da narragio kafkiana tornow-se, desde entio, momento fundamental do romance moder- no. £ preciso mencionar apenas romances como O Es- trangeiro de Camus (¢ eu preciso recorrer aqui aos ¢o- ‘nhecimentos dos presentes ~ nio posso fazer uma andl ~ se desses romances) ou os romances de Faulkner, que no so propriamente romances psicolbgicos, como mui- tas vezes se pensa, mas obras que estabelecem, por assim dizer, um mito em que se defrontam impulsos violentos no contato com uma visio religiosa. Os individuos, no aso, néo so muito diferenciados; sio expoentes de im- pulsos, de instintos violentos e, de outro lado, portadores de uma visio religiosa, particularmente no sentido de carregarem 0 peso do pecado original, © nesse sentido eles nio tem propriamente “alma” ou psicologia ~ eles sio, de um lado, instinto e, de outro lado, portadores de uma metafisica, de uma visio religiosa. André Gide disse muito bem que as personagens de Faulkner falta 0 cen- {ro psiquico. O mesmo se dé, por exemplo, nos romances, de Uwe Johnson, autor alemo moderno, nos romances de Giinther Grass ou de Robbe-Grillet, nos quais encon- ramos a mesma desfabulagio ¢ a mesma negagio de psicologia, isto é aquela maneira de levar 0 individuo a0 impessoal ¢ ao abstrato. Em Robbe-Grillet, numa obra como La Jalousie, a personagem central nem se configu- ra como individuo: ela nem sequer aparece, € apenas ‘uma “consciéncia”, olho de cémara, que focaliza o mun- do, © nés no estamos sendo informados sobre esta pr6- pria consciéneia. O “her6i”, nesse caso, desaparece com- pletamente. O mesmo fendmeno encontramos, também, na dramaturgia de Tonesco, em que niio hd nenhuma ten- tativa de por no palco individuos de contornos © matizes psicolégicos diferenciados. Da mesma forma como ni hd nada disso em Beckett. Nos ‘iltimos casos, ais, pode falar-se de uma influéncia direta de Kafka. De modo que se pode dizer que Kafka, e 0 romance moderno em geral, a0 conseguirem abordar a problems- tica do nosso mundo nesse sentido, de certa maneira desmentiram Hegel. Desapareceu 0 romance tradicional, dlesapareceram também em boa medida 0 drama e a arte tradicionais, mas nio desapareceu a arte; ela modificou- se profundamente para poder absorver, assimilar 0 nosso 50 mundo, mas nio ficou aniquilada pela problemética da nossa época, como era a opinio de Hegel que, quanto @ isso, era muito pessimista ao profetizar que a arte estava 10 fim, Kafka realizou exatamente o que Gottfried Benn cer- ta vez exprimiu da seguinte maneira: Por que inventar ho- je pessoas, nomes, relagées, quando perderam a sua im- portincia? Essa frase exprime de uma maneira muito con- cisa 0 que ocorre nos grandes romances de Kafka. Uma das inovagées mais importantes de Kafka, que iria comu- nicar-se a todo o romance moderno, de Johnson ¢ Grass & Nathalie Sarraute ¢ a Butor, de Faulkner a Robbe-Grillet € a todos os outros, 6 a maneira como Kafka estrutura seus romances para fazer-nos viver realmente experimentar a opacidade estranheza do nosso mundo. Ele poderia sim- plesmente falar sobre isso, repetindo 0 que muitas vezes, foi dito no romance anterior: 0 mundo é impenetravel, 0 mundo € escuro, imperscrutével. Entretanto, Kafka € 0 primeiro a fazer-nos viver com tamanha intensidade com cle, com os seus hersis, este mundo enigmético. Para obter este efeito, aboliu simplesmente 0 narra- dor onisciente, No vou dizer que Kafka tenha sido 0 primeiro a usar este recurso, mas ele fez sso com um in- tuito peculiar e de uma mancira tio extraordinéria, que € a partir dele que realmente podemos falar desse elemen- to como um dos mais importantes do romance moderno. No romance tradicional costuma haver dois ou varios ho- rizontes, 0 horizonte, ou os horizontes pequenas, muito limitados, dos personagens que vivem a sua vidinha e que tém o scu horizontezinho de consciéncia muito limitado, € bi o horizonte muito mais amplo, realmente quasi mitado, do narrador. £ por isso mesmo que este foi chamado de onisciente: sabe tudo, € um pequeno deus. Esse narrador, pela sua simples presenca, cria a grande ordem do mundo romanesco do século passado. Ele con- catena tudo, comenta, explica, coordena, sabe tudo, tem distancia suficente para narrar tudo calma e serenamen- St te, enfim, ele cria a ordem nos romances de Flaubert, de Balzac, de Stendhal, ele cria a ordem do mundo ficticio. Kafka aboliu este horizonte amplo do narrador em O Pro- cesso eem O Castelo, assim como em outras obras. ‘A narragio kafkiana se verfica em geral tendo por fo- ‘a partir de quem é projetado o mundo. Tal foco evidentemente limita tremendamente o horizonte do mundo. Uma vez que no hé mais a visio ampla dum nar- rador onisciente, visto tudo ser projetado a partir do foco do “her6i”, de visio muito limitada, decorre que o cam- po de visio se fecha, Passamos a viver num mundo limita- do, a partir desse foco mitido, participamos do horizonte reduzido dos “her6is”. Os protagonistas dos ditimos ro- ‘mances, distanciados do mundo hierdrquico dos funciond- rios, com 0 qual descjam relacionar-se, naturalmente i rnoram 0s mecanismos desse mundo. E 0 leitor participa da sua ignordncia, visto que dispée apenas do horizonte restrito do her6i. Como este ignora quase tudo, n6s também ignoramos quase tudo, j4 que ndo nos socorre nenhum comentario do narrador onisciente. Desta forma, 1s, leitores, vivemos na exata ignordncia daquele peque- no individuo K., em face dos mecanismos alienados do rosso mundo, em que por exemplo a bolsa de Nova York reage quando surge uma ameaca de paz no Vietnd. Basta uma pequena ameaca de paz Ié ¢ a bolsa de Nova York reage violentamente. Isto € uma estrutura tremendamente complexa e o cidadio que nio € muito conhecedor dos ‘mecanismos econdmicos fica perturbado diante disso. Ha naturalmente fendmenos bem mais complexos do que es- te, mas o exemplo nao deixa de ser elucidador. Ignorando os mecanismos, 0s “herbis” ndo-iniciados de Kafka se quedam perplexos ante a engrenagem misteriosa; eles no sabem explicar nada, ndo h4 tampouco narrador que ¢x- plique isso para n6s, de modo que ficamos tio perplexos ‘como o préprio protagonista. Tudo, no entanto, que € mi terioso passa a revestir-se de brumas sagradas. Quanto ‘mais misteriosa uma coisa parece, tanto mais sagrada ela se afigura. A distancia em face destes poderes estranhos 2 torma-se imensa, visto jé nfo intervir 0 narrador oniscien- te, com seus comentdrios elucidadores, ¢ por isso mesmo aquele castelo impenetravel torna-se de alguma forma ‘uma coisa sagrada, porque ¢ profundamente enigmitico. ‘No b& ninguém que nos explique o enigma. Nao hé nin- ‘guém que nos leve para dentro do castelo. O narrador do romance tradicional iria explicar tudo isto, n6s irfamos participar do saber dele. Mas como nao b mais esse nar- rador onisciente, tudo se torna misteriaso e se reveste, concomitantemente, de certa bruma sagrada. ‘Um processo muito semelhante, embora bem mais complexo ¢ muito radicalizado, € por exemplo usado por ‘Uwe Johnson no seu romance Suposicées em Tomo de Jacd, em que o autor focaliza um individuo a partir de varias perspectivas. Nao hé um narrador onisciente que saiba realmente alguma coisa a respeito da personagem central. H4 somente suposigées em torno desse indivi- duo, gragas a uma técnica semelhante & de Kafka, embo- ra mais fragmentada e mais elaborada. Temos aqui um ‘exemplo tipico de como certo individuo se torna miste- rioso e se transforma quase em mito, j& que ndo temos uma visio muito nitida a partir de um narrador oniscien- te, nem da sua feigo, nem de seu cardter etc. Johnson manipula esta técnica magistralmente, de modo que ex- perimentamos intensamente 0 mistério dessa persona- gem, Mercé da introducio de semelhante técnica, Kafka tornou-se um dos grandes inovadores do romance con- temporineo, Eu gostaria de chamar particularmente a atengio sobre a obra de Robbe-Grillet, um dos represen- tantes do “Romance Novo” da Franca. Na sua obra te- ‘mos muitas vezes uma visio do mundo a partir de uma ‘mente obsessiva, maniaca, por exemplo, em Le Voyeur, ‘ou nés temos uma visio da realidade a partir de uma consciéncia devorada pelo ciiime no romance La Jalou- sie, Mas esses her6is, se quisermos chamé-los assim, nem aparccem. Nos vemos apenas o mundo a partir da visio doles. E, essencialmente, um processo expressionista, 53 Coisa semethante ocorre no filme Dr. Caligari, em que tudo 6 focalizado a partir da mente de um louco. Tal processo tem suas raizes j& nos inicios do século, mas semelhante técnica naturalmente € radicalizada extre- ‘mamente em Robbe-Grillet, ao ponto de nao haver ne- nhuma referéncia & propria consciéncia focalizadora. Isto ‘6 muito importante, Decorrem daf novas transformagies| que nao podem ser abordadas agora. ‘Um dos recursos de Kafka € 0 de ndo escrever 0 seu romance na forma do Eu, embora o foco seja essencial- mente 0 “her6i”. A forma mais natural de eserevé-lo s0- neste caso, a partir de um Eu que narra a sua hist6- ria; neste caso terfamos, naturalmente, um horizonte li- rmitado, j4 que este Eu narrador evidentemente no pode ser narrador onisciente. No entanto, Kafka no adota es- te processo: hé um narrador exterior a0 her6i, mas muito préximo ao mesmo, de alguma forma ligado a ele, De fa- to focaliza tudo a partir do herGi, mas nio de dentro do mesmo. De modo que tampouco pode focalizar pro- priamente a intimidade deste her6i. Nos ficamos conhe- cendo apenas a superficie da sua consciéncia, nfo pene- tramos realmente no fundo da sua alma e, por iss0, 0 préprio heréi sc torna tio estranho como 0 mundo em {que vive. Nunca sabemos exatamente 0 que ocorre na in- timidade profunda dele. Vemo-lo preso, sempre, ao momento que passa, totalmente dedicado & sua tarefa de buscar solugées para o seu desespero. Ele vive comple- tamente colado a0 momento e as suas reflexdes, de que participamos. Tais reflexées, porém, giram sempre em torno dessa tarefa, em torno do momento ¢ suas possibi- lidades. Nunca, porém, temos acesso a sua vida mais pro- funda, Desta forma, 0 pr6prio her6i nos € estranho; nio 6 Ihe ignoramos o nome, apenas indicado por uma letra, {que 0 torna anénimo ¢ incompleto, mas também o pas- ssado , no fundo, toda sua vida fatima. Ndo sabemos na- da a respeito dele. Ele jé ¢ tdo estranho como 0 O Es- trangeiro de Camus, realmente uma conseqhéncia direta 4 de K. Esse magnifico romance, talvez.0 melhor que Ca- ‘mus escreveu, leva a estranheza as éltimas conscqi ia. Nao sabemos nada da vida fatima deste her6i. Ali, cesta vida {ntima nio existe, tampouco como aquela em ‘que vive totalmente absorto, devorado e como que esva- iado pela sua tarefa, isto é pela sua busca desesperada de accitaglo ou redengéo, pela sua busca de sentido ¢ de ordem num mundo que nfo parece ter ordem. Assim, K. vive como que esvaziado pelas reflexdes ligadas a essa ta- refa, de modo que 0 vemos sempre colado a essa fase ‘momentiinea da sta busca. A voz do presente, tao impor- tante no romance moderno, essa voz do presente seria a forma natural para Kafka, porque hé realmente uma presenga imediata na sua mancira de escrever, mas ele preferiu a forma do pretérito, Atualmente, no entanto, autores como Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute € muitos outros, preferem muitas vezes a vor do presente, para desta forma forgar a convivéncia imediata com o hersi. Estamos, entio, dentro do her6i, vivendo com ele 0 mo- mento, justamente devido a falta daquela distancia cria- da pelo pretérito, Na medida em que se abole o preté to, hé uma presenga muito mais proxima dos acontec ‘mentos, © ao mesmo tempo se exprime com isto a impos- lidade de eriar uma ordem maior, uma concatenagéo mais logica, porque enquanto se narra no presente nio hd distincia do narrador em face dos acontecimentos, de ‘modo que ele no pode imprimir aos acontecimentos ‘uma ordem coerente, © conjunto dos momentos descritos eria a impressio de certo automatismo. Hi algo de marionete na maneira das personagens de Kafka, Temos a impressio de cles terom uma conscincia muito rasa, sem dimensio inte- rior ¢ isto, sem dévida alguma, € a fonte do Eu falso de Camus em O Estrangeiro, Em Camus € particularmente interessante que ele usa a forma do Eu, toda a narrativa desenvolve-se na forma do Eu, mas esse Eu no sabe na- dda de si, nio tem acesso a propria intimidade, arranha 5S apenas a superficie da propria consciéncia. Assim surge uum homem estranho a si mesmo, estranho no mundo © estranho ao mundo, Nao h4 nenhuma possibilidade de comunicagio, nem sequer dele consigo mesmo. Essa forma de narrar de Kafka € também a fonte da conscién- cia registradora de Robbe-Grillet. HG, naturalmente, diferengas profundas entre Kafka © 08 expressionistas. Mas, em alguns processos, aproxi- ma-se muito deles, particularmente no radicalismo com {que nos impée participar intensamente da experiéncia extrema de seus herdis em situagdo-limite. NOs nfo es- capamos. Os romances de Kafka forgam-nos, impéem- nos viver 0 seu drama, 0 seu desespero. Como os expres- nistas, Kafka manipula livremente os clementos da realidade, conjugando-os e distorcendo-os segundo ne- ceessidades © obsessées expressivas, para desta forma aprescntar a imagem essencial do nosso mundo. A expe- rigncia corriqueira ¢ habitual de todos nés ¢ sujeita por Kafka a um processo de redugio ¢ acentuagao deforma- doras, de remanipulagio nas relagdes de espago, tempo causalidade. Kafka distorce as relagées fundamentais que constituem @ nossa realidade empftica, habitual, corri- dqucira, Nio hé causalidade real na obra dele, tempo espago se deformam. A realidade ¢ scus niveis ontol6gi- cos se desagregam, ao ponto de o mundo anorginico € ‘orginico, nos seus virios planos, se fundirem e confundi- rem, Dessa forma consegue exprimir uma experiéncia mais verdadeira, mais exata, mais fundamental, consegue ponetrar além da nossa visio cotidiana, corriqueira e su- perficial, para dentro da esséncia do mundo como ele © vé. Kafka procura apresentar a estrutura fundamental dda existéncia humana, Por isso mesmo os existencialistas ‘6 consideram um dos seus e se referem com freqiiéncia a cle, O esforgo de Kafka visa apresentar a estrutura fun- al da existéncia a partir duma consciéncia que se cemancipou das regras da nossa experiéacia comum, coti- fidade, embora scus dados estejam presentes na obra de Kafka, © mesmo de uma mancira ‘muito precisa, aparece curiosamente transformada,fato ‘que explica ao mesmo tempo a impressio de estranha mento e de dé vu, de extrema realidade e de extrema realidade, Temos, a0 mesmo tempo, ambas as impresses: tudo parece ser muito real e, ao mesmo tempo, muito it~ real. Eisto que se afigura tio curioso na obra de Kafka, es- ta sensagio de alienagio, de estranhamento daquilo que nos 6 corriqueiro. Os dados reais da nossa vida sio vistos com muita precisio, mas num eontexto que torma tudo es- tranho. Conhecemos este processo, em parte, do surrea- Tismo. Kafka antecipou-se nesse sentido ao surrealismo, aque também poe elementos da realidade com muita pre- dso dentro de um contexto estranho: 0 guarda-chuva na ‘mesa de operagio ea bicicieta ao lado, constelagio um tanto estranha, O surrealismo justapSe e monta elementos reais, istos com extrema precisfo, num contexto total mente alogico e desordenado. Semelhante processo susc taa visio de um mundo onirco, de sonho. Desta mancira surgem imagens de estranha profundeza, aparentemente criadas sob a pressio de obsessées inconscientes. Todos salem que oinconsciente se manifesta através do sonho, © ‘as visbes onfrcas de Kafka parceem estar impregnadas de elementos inconscientes. Néo eabe indagar agora se Kafka, 6 influenciado por Freud (cuja teoriaconhecia) ou se, co- ‘mo filho da sua época,simplesmente participa do interes- $e geral do expressionismo pelo inconsciente, ou se repro- dluziu apenas a sua vivéncia onirica pessoal. De qualquer ‘modo defrontamo-nos, muitas vezes, com vis6es oniricas que formam nao raro uma espécie de contos de carochi- ‘tha, mas num sentido iaverso, porque enquanto os contos de carochinha em geral concluem bem, os de Kafka giram fem torno da frustragio, de modo que sio, por assim dizer, fanticontos de carochinha. Kafka usa em larga medida a técnica do render strano, de tornar estranho, tpica do sur- realismo ¢ que, de outro modo e numa fungio bem dive £3, € também usada por Brecht nos seus processos de dis- tanciamento. 7 © exemplo mais conhecido dos processos literdrios de Kafka 6.4 Metamorfose. Nés temos que viver a expe- rigncia de Gregor Samsa, quando certa manha desperta transformado em inseto gigantesco. Isso contradiz, natu- ralmente, todas as leis da nossa experiéncia. Contudo, considerando-se a vida que este jovem leva ¢ as relagdes no scio da sua familia, essa imagem do inseto nojento torna-se verdadeira. A lingua, de fato, forneceu a Kafka a metéfora: “Eu me sinto miseravel como um inseto”, is- so se pode dizer em portugues, da mesma forma como ‘em alemio. Essa visio imaginativa contida na lingua é para 0 expressionismo a verdadeira, a mais profunda, Kafka leva a metéfora a sério, riscando a palavrinha “como”: ele nio diz “eu me sinto como um isento”, ele iz “eu sou um inscto”. Transforma a metéfora em rea dade. Assim “ontologiza” 0 estado subjetivo, por assim dizer, transforma a imagem em “ser”. O conto nio prope um caso psicolégico: “eu me sinto como se eu fosse um inseto”, mas uma “realidade” ontol6gica: cu sou realmente. Por isso as ilustragées em que Gregor ‘Samsa 6 mostrado como ser humano ¢ nao como inseto se afiguram inadequadas porque ele ¢ para Kafka, real- ‘mente em todos os sentidos, um inseto que, tendo no int- cio uma vida psiquica ainda humana, torna-se cada vez mais desumano. E preciso tomar isto ao pé da letra. A imagem transformada em realidade c a partir dai o conto segue numa l6gica rigorosa, realmente impres nante, apresentando-nos uma terrivel visio das relagSes hhumanas, cuja verdade profunda néo 6 anulada por ob- Jesbes do senso comum. Sabemos que em certa situagio, ‘em certa realidade familiar ete, pode perfcitamente sur- sir uma realidade como esta. Através desta técnica temos dd viver, portanto, a experigncia semi-humana de um in- seto, Semelhantes metamorfoses no ocorrem s6 na obra de Kafka. J4 antes Strindberg transforma gente em pa pagaios; eles aparecem em pleno paleo embora ainda te- ‘nham configuragdo humana, mas falam e se comportam como papagaios na Sonata de Espectros, por exemplo, ou 58 centdo, Alfred Jarry, em Ubu Rei, pbe no paleo essa figura grotesca que representa essencialmente 0 homem que vi- ‘ve em funcdo do estémago; Ubu Rei tem mascara de orco ¢ ao mesmo tempo aparece envolvido em entra- has, isto 6, ele carrega todo o seu aparelho digestivo posto por fora. Como s¢ vé, esse processo de conto da carochinha invertido j4 6 anterior a Kafka, ¢ ¢ usado pos- teriormente de uma mancira mais radical por Ionesco, quando apresenta no paleo rinocerontes. © que distingue Kafka do expressionismo ¢, como todos sabem, o estilo frio e s6brio, através do qual nos ‘comunica experiéncias terriveis, pesadelos, cenas horri antes, como por exemplo aquelas da Cotdnia Penal. Tais, cenas hediondas, acontecimentos muitas vezes surpreen- dentes, ocorréncias absurdas © de fato, em falando, impossiveis, tudo isto Kafka p6e num relato fro, burocrético, meticuloso, sereno, calmo, ¢ quase indife- rente, como se assunto fosse um passtio pela rua Bardo de Itapetininga ou um item dos estatutos de uma corganizaco comercial, ou ainda a informacéo de uma reparticéo pablica, ou coisa que valha, mas é neste estilo ‘que Kafka conta as coisas mais terriveis que se possa imaginar. Um eritico alemao, Wiesengrund Adorno, diz: Em Kafka no 6 0 mundo monstruoso que choca, e sim a naturalidade quase sorridente com que esse mundo monstruoso € apresentado, a maneira quase desumana, s6bria, calma, serena, com que as coisas mais monstruo- sas sio focalizadas. Essa maneira desumana de descrever desumano, no entanto, talvez,seja a tinica adequada. Pre- cisamente pela falta de realce, ele da realce ao horrivl. Nao humaniza pela emogéo e pelo sentimento o que é desumano. Talvez seria até antimoral humanizar 0 de- sumano, envolvé-lo no papel cclofane de emogdes, acon- dicionado com fitinhas cor-de-rosa de pieguice e de sen- timentos. Kafka, portanto, apresenta o hediondo de uma maneira desumana por ser desumano, ¢ isto parece-me ser a mancira mais honesta de focalizar 0 desumano. 2 Nisto se exprime naturalmente um humor negro as vezes terrivel. Esse humor negro revela um mundo perverso raves da propria perversidade da revelagio e 6 prin. palmente mercé de Kafka que esse principio estilistico penetrou profundamente no romance € no teatro con- fempordneos. Temos hoje até piadas deste tipo, as cha- madas piadas do humor negro, surrealistas ete., que se contam por af, ou pelo menos durante certa época se contavam por af, Elas provém realmente desse estilo kafkiano ¢ reencontramos esse estilo em Diirrenmatt, em Beckett, particularmente Giinter Grass, em Tonesco, em Martin Walser, ou em alguns contos e novelas de Heinar Kipphardt, 0 autor de O Caso Oppenheimer. A situagio fundamental descrita nos romances de Kafka, também abordada em muitos contos, 6 a do ho- mem oscilando entre a auto-entrega e a auto-afirmagio «em face de poderes insondaveis. Os her6is ou anti-heréis encontram-se excluidos do mundo hierérquico dos fun- cionérios em que se organiza o poder misterioso no qual procuram penetrar ¢ integrar-se, enquanto ao mesmo tempo tomam atitudes agressivas de combate. Eles gos- tariam de belong, de pertencer a este mundo e a0 mesmo tempo receiam pertencer totalmente a esta engrenagem terrivel, Ou entio esses heréis querem fugir deste mundo dda engrenagem, em O Processo, enquanto ao mesmo ‘tempo avangam, como que fascinados, de encontro a ele. Este retroceder © esse aproximar-se repetem-se com in- sistGncia; 0 her6i aspira a integrar-se, mas néo totalmen- te, para nao perder a individualidade, mas de outro lado deseja perdé-la, deseja integrar-se totalmente, anscia por ‘encontrar um aconchego total. Entretanto, ainda assim petmance o medo de tornar-se rodinha na engrenagem. (0 resultado 6 que os protagonistas nem se ajustam, nem se afirmam, Todas as suas tentativas de contato, acesso, ajustamento permanecem frustradas; slo seres que nio ‘conseguem tornar-se pecas sjustadas a imensa engrena- ‘gem ¢ essa incapacidade, esse fracasso, essa frustragio, oo ‘quer em auto-afirmar-se, quer em ajustar-se, explica 0 profundo sentimento de culpa de que sio possufdos. Em esséncia, os romances se afiguram como uma espécie de epopéia, cujos herbis se empenham na ansiosa busca de sentido, de harmonia e de repouso numa ordem significa- tiva, A situagéo fundamental da frustragdo desse anseio © dessa busca repete-se constantemente em indmeros cpisédios, como jé foi antes descrito. A procura fracassa cou esta ordem tio ansiosamente procurada € muito dis- tante, ou ela néo existe mais. Neste caso 0 mundo seria ab- surdo, isto 6 sem nenhum sentido ¢ ordem. mundo nfo nos responde, nés gritamos para dentro do mundo, que- remos comunicar-nos com o castelo e nada responde. Por- tanto, o mundo no 6 congruente & nossa mente, o mundo no € feito, por assim dizer, para abrigar o homem; 0 ho- mem permanece alheio neste mundo, nao hé ordem que corresponda ao nosso desejo de sentido. Concebido assim, ‘0 mundo € absurdo, ou se existir sentido e ordem, pelo ‘menos se tornaram inacessiveis ¢ tio remotos que 0 resul- tado acaba sendo o mesmo. Quer 0 mundo seja absurdo, quer tenha uma ordem, mas inacessivel, porque Deus ou 0 castelo sio téo distantes que ndo podemos alcangé-los, 0 resultado é mais ou menos 0 mesmo, porque de qualquer rmancira ficamos frustrados. Em esséncia os herbis de Kafka sio, por conseguin- te, filles prédigos, expulsos do Paraiso € incapazes de ‘encontrar 0 caminho de volta, aquela unidade que tio ansiosamente buscam. O mais terrivel € que a imagem dos poderes superiores, que parccem simbolizar a or- ‘dem, € a de um labirinto, de uma engrenagem burocréti- ‘ca que € a exata representagio do nosso mundo alienado, com sua organizagio gigantesca totalmente desumaniza- da, pelo menos segundo a visio de Kafka. Trata-se, em esséncia, de uma visio mitica, Kafka acredita que esta seja a situagdo fundamental do homem no nosso mundo essa visio, parece-me, tornow-se caracteristica no ro- mance moderno, Todo 0 romance moderno, de uma ou a de outra forma, aspra a voltar a0 mito, a apresentar a si- tuagio fundamental do homem. Por isso se multiplicam romances ut6picos ou miticos como os de George Orwell ¢ Erast Jinger, ou Hermann Hesse (O Jogo das Contas de Vidro) ou William Faulkner, com suas visées de um ‘mundo arquetipico, em que se pretende apresentar a es- trutura bésica da situago humana, Em Kafka e n0 r0- ‘mance moderno em geral, exprime-se intensamente a experiéncia da alienagio. Os atos e energias do homem tornaram-se alheios a ele mesmo, dominam-no em vez de serem dominados por ele; o homem no domina mais fs seus proprios produtos, mas € dominado por eles. tuigées, ¢ essas coisas ¢ insttuigées, transformados em fdolos, j& nfo séo reconhecidos como produtos da pré- atividade humana, tornam-se misteriosos ¢ indom: veis, Assim, 0 homem jé ndo se experimenta como st to das suas proprias forgas, mas como coisa esvaziada, como escravo de coisas as quais cedeu a sua substincia viva, Essa visio € tipica, tanto de Kafka como do roman- ce moderno. Portanto, no s6 nos seus processos narrativos, mas também tematicamente, também nessa visio de um mundo alienado e absurdo, Kafka parece ter sido um predecessor muito importante, Ao mesmo tempo ele € prot6tipo como criador de uma arte que foi muito bem definida por Umberto Eco, quando hé pouco esteve aqui entre nés, Numa entrevista que concedcu a Augusto de Campos’, definiu aquilo que chama de “arte aberta”, Temos varios conceitos de “arte aberta” ou de “obra aberta”. Ougamos 0 conceito proposto por Eco que 6 exatamente aguele que define Kafka, Transcreverei esse trecho da entrevista, que apresenta uma idéia exata de + Bntrevista publicda origialmente no Suplemento Literirio de O Estado de $. Paulo, de 17 de setembro de 196 e reproducida na ‘digi bral do livre de Umberto Eco, Obra Abera, Sio Paso, Perspectiva, 1968, a Kafka ¢ do romance contemporineo. A pergunta: “O que significa discurso aberto?”, Umberto Eco responde: "0 diseurso aberto, que € tipico da arte, ¢ da arte de vanguarda em particular, tem duas caractersticas: acima de tudo € ambiguo, no tenta nos definir a realidade de ‘modo un‘voco, definitivo, j4 confeccionado”. Isto é uma das coisas mais corriqueiras em Kafka, o fato de ele ser ‘multivoco, ambiguo, enigmético, ¢ ndo nos dar uma coisa definida, uma coisa confeccionada, como diz muito bem © autor citado. Eco continua: “Como diziam os formalis- tas da década de vinte, 0 discurso artstico nos coloca numa condigéo de estranhamento, de despaisamento”. Esse dépaysement & exatamente 0 que ocorre em Kafka, ‘como tentei mostrar antes. Prossegue Eco: (© discurso abertoapresenti-nos as coisa de um modo novo, pa- 1 além dos hibitos conquistadoe, infringindo as norms da linguager, as quais temo sido habituados, Ax coisas de que nos fala 0 dscurso berto nos aparecem sob uma luz extra, como fe a8 vssemos, go ‘pela primeira ve; precsamos fazer um esforgo para compreend®- las, para tomas familiares, precisamos intervie com atos de escolha, construrnos a ralidade sob 0 impulso da mensagem estéica, sem {ue este noe obrigue a véla de um modo predcterminado. Assim, a minha compreensbo difere da sua, eo discurso aberto se toma 8 pos- sibildade de dscursos diversos para cada um de nds é uma continua ‘escoberta do mundo...A segunda caracteritica do dicurso aberto é ‘gue ele me recta, antes de tudo, nfo As coisas de que ele fala, mar 0 modo pelo qual ele ae diz, © discuro aberto tem como primeizo significado a propria estratura, por isso mesmo que eu falsi tanto da estratura © da maneira como Kafka narra. © siseurso aberto [prossegue Ezo] tem como primiro signifi do a propria estratura, assim a mensagem no se consuma jamal permanece sempre come fonte de informagdes possveseresponde de ‘modo dverso a dversostpos de sensibiidadee de cultura discurso bert € um apelo & responsabilidad, & escola individual, um desafio ‘cum estimolo ara o gosto, para aimaginacio, para ainteigencia. Por isto a grande arte € sempre dif e sempre imprevists; nfo quer agra a ar econslar quer coloear problemas, renovara nossa pereepsio, © 0 nosto modo de compreender as coisas. Parece-me que cada palavra dita por Umberto Eco se ajusta, palavra por palavra, a obra de Kafka.

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