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Praticas musicais e classes sociais: estrutura de um campo local MICHEL BOZON EM PAUTA~ vith, o.t6/17 - aoritvmovembre 2000: rs 0 texto do sociélogo Michel Bozon pode ser considerado como um protétipe de pesquisas que tenham por objetivo entender @ constituigao social e cultural das hierarquias e processes de identidade que marcam a prdtica musical, bem como seu reverso, em instituigGes escolares © ndo-escolares. Sabidamente este tem sido um dos focos de grande demande e interesse de orientagao de monografias entre discentes de gradua- a0 e pés-graduagao no Brasil em anos recentes. Por constituir um texto-modelo capaz de gerar muitas varia des em torno do mesmo tema é que este espe 1e sociolégico extraido de uma coletanea inventariante da “Etnomusicologia da Franga" nos anos oitenta (Ethnologie Frangaise 14/3, 1984 organizado por Marie~ Marguerite Pichonnet-Andral) foi escolhido para este volume. Partindo da nogéo de campo social desenvolvida por Pierre Bourdieu, mormente como apresentada no classic: Distinction: critique sociale du jugement (1979) em que 0 conhecide socidlogo francés langou as bases para ume sociologia do gosto estético, 0 trabalho de campo realizado pelo Prof. Bozon no final da década de 1970 em uma pequena cidade operdria nos arredores de Lyon, qual ifica-se como exemplar para os jov 1S pesquisadores que queiram realizar estudos similares seja no selo de uma ou de varias instituiges dedicadas 4 prética musical neste tio de contexto. Ainda que o material empirico possa ter sofrido os inevitéveis desgastes advindos do transcurso de dues décadas, chamamos atengéo para os procedimentos metadolégicos @ interpretativos com que 0 autor examina as fontes da legitimidade musical local, as redes de sociabilidade construidas pelos membros de diversas associagées musicais, os antagonismos @ conflitos que unem 0 social a0 musical. Desta urdidura feita de ambiguidades e contradig6es é que 0 autor tenta extrair um sistema dotado de coeréncia capaz de “abrir uma via nova para a interpretagéo do fenémeno musical”. 0 modelo de campo local obtido a partir da etnogratia das préticas musicais em um microcosmo urbano re- presenta para Bozon um certo ideal cldssico que nao seria t8o plenamente desvelado em outros dominios sociais como 0 do esporte, do lazer ou da politica. Cobrindo de forma original uma extensa gama social, as préticas musicais permitem a observacao simulténea de continuidades e de descontinuidades na constituicao da sociedade ¢ da cultura que outros tipos de préticas sociais certamente nao revelariam aos socidlogos. Dai a importancia de aprender-se a dialogar com este tipo de pesquisa, problematizd-la @ enriquecé-la também com a expertise do conhecimento técnico-musicel, Michel Bozon @ pesquisador senior junto ao Ini titut National D' études Démographiques (INED/Paris) MARIA ELIZABETH LUCAS res Praticas musicais e classes sociais: estrutura de um campo local EM PAVIA. v.41, mt6/47 = abeitrmovembre 2000 uw MICHEL BOZON Tanto quanto os misicos, melémanos e musicoldgos, os sociélogos e os etndlogos 8&6 fascinados pela musica. Fendmeno trans- versal, que perpassa todo o espago de uma sociedade, a pratica musical constitui um dos dominios onde as diferengas sociais ordenam-se da maneira mais cléssica e marcante, mesmo se os agentes sociais, mais seguido e constantemente que em outros campos, se recusem a admitir que a hierarquia interna da pratica 6 uma hierarquia social. Longe de ser uma atividade unificadora no que concerne todos os ambientes socials @ todas as classes, a musica 6 0 lugar por exceléncia da diferenciagao pelo desconhecimento mutuo; os gostos ¢ os estilos seguidamente se ignoram, se menosprezam, se julgam, se copiam. O estudo do campo musical seguiu até aqui diversas vias. Em primeiro lugar, aquela de uma sociogratia da pratica, Varias enquetes estatisticas' de bom nivel permitem-nos obter hoje um panorama preciso do Conjunto dos praticantes. Mas no se pode aprender facilmente a originalidade do campo ao se contentar apenas em classificar as praticas musicais nas categorias residuais “atividades de lazer" ou *praticas cul- turais’, rubricas de questiondrio que se tornam, abusivamente, um ponto de vista sobre a realidade. A sociologia do gosto tal como propée Pierre Bourdieu em seu livro La Distinction? permite ir mais longe: aplicada misica, ela indica a que ponto 0 gosto musical é socialmente classificante, mas também como 0s gostos das classes superiores, num movimento incessante, so desprezados por estas ultimas retomados por grupos situados num patamar inferior na escala social. Por seu lado, 0 etnomusicélogo mostra que instituicdes sociais como a Escola, a Armada ou os Orfedes tm profundamente remodelado 08 repertorios as praticas populares*, Falta, contudo, sublinhar uma outra dimenséo do fenémeno musical que joga um papel importante no “vivido" pelos praticantes: seu cardter social devido ao fato de que a pratica em si implica em relagdes entre as pessoas que tocam juntas, e induz, ao mesmo tempo, a um processo de diferenciagao entre gru- * Tradupéo de Rose Marie Reis Garcia e revisdo de Maria Elizabeth Lucas, pari do texto orginal pubicado na revista Ethnolge Francase 14 (3): 251-264 juno setembro 1268. Aparece aqu sb permisso do ator ea fe otada, EM PAUTAs v.14, n.16/17 = abeitinevembre 2000 148 pos de musicos. Varios trabalhos recentes* tém insistido sobre o fato de que ‘a musica constituiria, assim, um fendmeno de sociabilidade, A pesquisa apre- sentada aqui desoreve e analisa as atividades e as praticas musicais numa pequena cidade e procura extrair as caracteristices gerais do campo local que as constituem. Inscrita num trabalho mais amplo sobre a sociabilidade e as relagdes sociais em uma pequena cidade operdria’, este estudo sobre as praticas musicais tem uma importancia capital no conjunto da pesquisa, con- tribuindo para descobrir o funcionamento de um campo local exemplar®. Certamente que a hierarquia local dos instrumentos, das obras interpre- tadas, das associagdes musicais nao é explicavel fora de uma histéria social dos instrumentos? ou ainda de uma histéria das relagdes de conflito entre amadores e profissionais da muisica®. Adotando uma perspectiva resoluta- mente sincronica, pretende-se, simplesmente, mostrar que a todo instante os conflitos ¢ as rivalidades, as imitagdes e os desprezos entre praticantes for- mam um sistema dotado de coeréncia: a observagao aprofundada destas con- tradigdes pode abrir uma via nova para a interpretagao do fenémeno musical As fontes locais da legitimidade musical A legitimidade musical em Villefranche € representada antes de tudo pela Escola Municipal de Misica. Numa primeira abordagem, fica-se chocado pela rigidez do modelo escolar presente na instituigao musical. Patio de recreio, salas de aula, controladores de disciplina, professores, recados, palavras de escusa e certificados médicos, exercicios, exames, todo o arsenal escolar encontra-se na organizagéo da Escola de Musica, como para bem mostrar que somente os comportamentos ligados 4 instituigéio escolar dao acesso aos lugares culturais, Esta impressdo € confirmada num exame das profissdes dos pais dos alunos inscritos. Nota-se, de saida, a escassa proporgao de operarios, assim como a sub-representagao dos empregados. Em troca, ha uma ligeira super-represen- taco dos arteséos e comerciantes, ¢ uma nitida super-representagao dos industriais e dos quadros medianos. Enfim e sobretudo, ha uma grande pro- porgdo de quadros superiores e de membros de profissdes liberals (trés estu- dantes em cada dez sao originarios deste meio social, embora eles nao repre- sentem localmente mais do que 5% da populagao ativa). Digno de registro, iguaimente, a proporgao elevada de filhos de professores (um estudante em Em pAUTA “No ot habtan vot, mt6/17 - aprit/novembre 2000 149 cada dez). Em Villefranche, como em outros lugares, a aprendizagem oficial da miisica aparece estreitamente ligada 4 detengao de um capital cultural elevado por parte dos pais*. Quadro 1. Origem social dos alunos da Escola de Musica, comparada a estru- tura social da populagao de Villefranche (Foram considerados somente os alunos residentes na cidade) Categorias soci Escola de Musica | % Populacdo de Villefranche Agricultores 1,8% 2.3% Artesaos, pequenos 7.3% 5.8% comerciantes Industriais, grandes 3.1% 1.3% comerciantes Profissionais liberais 6.4% 0,8% Operérios, pessoal de 19% 51.4% servigos Empregados 15.3% 20,4% Quadros médios 20,4% 11,6% (educadores 2,4%) Quadros superiores: 22,3% 48% (professores 7,9%) Para compreender as fungdes que exerce a Escola de Misica na cidade, 6 necessério, primeiro, apresentar brevemente as associagSes musicals ai exis- tentes. Villefranche contava, em 1979, com nove sociedades musicais e algumas orquestras de jovens, que tocavam da musica rock ao folk. Cinco associagdes praticavam uma musica instrumental: a Fanfarra, a Harmonia (Uniéo Musical), a Orquestra Sinfonica, a Amigos dos Acordeonistas e as Trompas de Villefranche* ‘As quatro outras praticavam a arte vocal: a De Coragao Alegre (A Coeur Joie), a Associagao Coral, 0s Cantadores do Beaujolais, os Cadetes do Beaujolais. Frente a esse dispositive associative, a Escola de Musica, instituigo onde os custos de funcionamento so mantidos em 90% pela municipalidade, nao fica Neutra. Ela mantém relagdes estreitas com trés associagdes que, cada uma com diferentes nuances, representam a legitimidade musical local: a Harmonia, a Orquestra e a Associagao Coral. Pode-se mesmo falar de ligagdes orgénicas entre elas. A Escola de Misica atual emana, efetivamente, de uma escola de nal, Trompes Caladises, referindo-se o adjetivo “caladoises aos fes da Cidade de Viletranche-sur-SaaneN.1) EM PAUTA~ v.44, 9.46/17 + abritinovembre 2000 190 miisica da Harmonia que foi municipalizada. E a Associagao Coral, hoje uma associagao valendo-se de locais municipais independentes, era antigamente a classe adulta de arte vocal da Escola. Um diretor precedente da Escola foi, em determinada época, simultaneamente diretor (isto 6, responsavel musical) das trés associagdes anteriormente nomeadas. O atual presidente da Harmonia exerce também duas fungdes na Escola: representante dos pais de alunos professor de tuba. Enfim, estas trés sociedades recrutam, sistematicamente, seus novos colaboradores entre os melhores alunos da Escola de Misica, o que explica de acordo com o diretor atual "ver-se com frequéncia os presidentes da Harmonia, da Orquestra ou da Associago Coral na Escola”. Nesta Escola de Musica que, em 1979, contava com 555 estudantes de mais de seis anos, 0 ensino musical dispensado compreendia um tronco comum seguido de uma especializagao e de uma diversificacao. O primeiro periodo cor- respondia & aprendizagem abstrata do solfejo com duragdo de dois anos. O segundo periodo era destinado a introdugao progressiva, depois a pratica exclu- siva pelo estudante de uma especialidade instrumental, entre dezesseis que eram ensinadas na Escola. 0 solfejo aparecia como uma passagem obrigatéria e rela- tivamente indiferenciada, mesmo sendo ele bem seletivo socialmente, enquanto que a escolha de um instrumento era a ocasiao para os diversos grupos mani- festarem suas diferengas, seus pertencimentos ou suas aspirag6es socials. E fcil distinguir os instrumentos conforme a maneira como eles sao ensina- dos (aulas coletivas/individuais), conforme sua possivel destinagéo (fantarra, harmonia, orquestra, instrumentos que podem ser tocados como solistas ou no), conforme suas possibilidades musicais (instrumentos polifénicos ou nao), conforme seu custo. Pode-se construir um verdadeiro sistema dos instrumen- tos, que 6 facil relacionar com um sistema social do gosto musical. E também possivel interpretar a escolha do instrumento, no qual os pais dos estudantes tém um papel preponderante, como aquela de uma estratégia de sociabilidade. © instrumento exprime 0 estilo de vida e de contato com 0 outro que o possul ou que se deseja possuir, em suma a estratégia social ( socidvel ) seguida pelo grupo. A apreensdo que os agentes tém do valor simbélico dos instrumentos musicais (resultado de uma histéria social incorporada) permite-Ihes atribuir a estes um nivel social, definido essencialmente pelas formas de sociabilidade das quais 0 instrumento pode ser o suporte. Um destaque sistematico da origem social daqueles que escolheram um determinado instrumento esclarece as modalidades desta escolha Em PAUTA WoL, w16/97 © abritsnovembre 2000 181 Reteve-se para esta abordagem um representante de cada uma das grandes familias de instrumentos: um instrumento de percussao, um metal (0 trompete), um de madeira (a flauta transversa) e dois instrumentos de cordas (0 piano [sic] ¢ 0 vio~ lino). Percuss6es, metais e madeiras so ensinados em cursos coletivos, enquan- to que as cordas sao objeto de aulas individuals, mesmo se uma minoria de pro- fessores de piano da aulas coletivas. Os instrumentos da primeira categoria séo tipicamente aqueles da Harmonia, enquanto que as cordas, & excegao do piano, encontram-se, geralmente, nas orquestras sinfénicas. Os primeiros séio desprovi- dos de possibilidades polifénicas"®, ao contrario dos segundos. Em compensago, a linha diviséria entre os instrumentos que podem ser executados como solistas, @ aqueles que nunca © poderdo, passa distante, pois ela ope as cordas © as madeiras as percussdes e aos metais. De acordo com nossa amostragem, parece que os grupos sociais manifestam preferéncias instrumentais bem marcadas. AS classes populares (operdrios e agricultores) sZo, nitidamente, mais numerosas que aS outras camadas sociais a escolher 0 trompete ou as percuss6es. As classes superiores adotam, por seu lado, 0 violino, as classes médias, macigamente, 0 piano. Enfim, a flauta transversa parece ter caracteristicas menos marcantes: ela 6 somente um pouco mais escolhida pelas classes operdrias e pelas camadas supe- flores. Paralelamente, pode-se dizer que as camadas independentes, ao contrario do que acontece em outros meios sociais, no apresentam personalidade musical nitida, ao menos nos quadros da Escola de Musica Quadro 2. Instrumento escolhido na Escola de Musica e categoria s6cio-profissional do pai do estudante Categoria Cor Piano Percus- | Flauta profissional Seine Wing | Mompete | Peres iranvera [Agricultores 5%. 3% 3%. 19% 8%. 5% Industriais, 128% | 12% 13% | 12% 8% 14% Icomerciantes, lartesaos lQuadros 288% | 25% | 38% | 19% | 17% | 32% Prof. liberais |Empregados, 222% | 43% 7% 15% 25% 25% quadros médios lOperarios wi% | 1% | 16% | s1% | 50% | 21% Total N=103 | N=110 | N=26 | N=t2 | N=56 Tm PAUTA~ van, 9.16/17 = abritiaevembro 2000 152 © principio que norteia a escolha dos instrumentos lembra, de uma certa maneira, aquele que se exprime na escolha dos esportes"". Aos esportes cole- tivos correspondem os instrumentos que so tocados somente em conjunto, 0s esportes individuais os instrumentos que podem ser praticados por solis- tas: as camadas populares marcam uma preferéncia pelos primeiros, as camadas medianas e superiores pelos segundos. Estas grandes tendéncias dos dados, tm multiplas excegées, muito significativas. Colocando suas crian- gas numa instituigéo como a Escola de Musica, os individuos realizam, com efeito, um ato que nao 6 obrigatério, e que, em cortos meios socials (classes populares, classes médias inferiores) quer dizer muito, Pode-se, entéo, pensar que eles constituem uma amostra bastante atipica'® do grupo social ao qual eles pertencem e que a adesao de seus filhos & Escola de Musica faz parte de uma estratégia de ascenséo social supondo a aprendizagem de uma outra sociabilidade. Quando se percebe que certos instrumentos "burgueses” so escolhidos igualmente pelos membros das classes populares ou medianas, pode-se levan- tar uma dupla hipdtese: por um lado, que estas classes populares constituem um subgrupo bem especifico em sua classe; por outro lado, que a indicagao social desses instrumentos esta, justamente, em via de redefinigdio. € um tal processo de desclassificagao social que atingiu 0 piano; em nosso escalona- mento, a turma de piano compreende mais alunos de classes médias que das classes superiores. Inversamente, ensina-se a pratica de instrumentos "popu- lares’ na Escola s6 quando eles tenham alcangado as transformagées técnicas que permitam uma forma de toque nobre ou autorizem sua integragao em uma Harmonia ou orquestra sinfénica: seu sentido social ¢ entéo obliterado, Trompete, percussées e violdo tomam 0 nome de “classicos". A trompa ensina- da na Escola no é a trompa de caga vulgar, mas a trompa da Harmonia, metal “nobre" disputado pela Harmonia e pela Orquestra. Enfim, a aprendizagem do acordedo nao se faz a partir do acordeao-musette, mas somente a partir de um acordeao cromatico, dito classico. Um instrumento que nao tenha sido “despo- pularizado* tem pouca chance de ser integrado ao ensino nesta escola. A Escola de Musica exerce um duplo papel: designar as praticas legitimas e estigmatizar as outras, Malgrado seu poder institucional, a Escola de Milsica no € a Unica fonte local de legitimidade musical. Por um lado, uma pequena fragao das classes superiores (aquela que é a mais distante da cidade por seus lugares de origem Em PAUTA vont, mt6/t7 - apritsmevembre 2000 159 ou por sua recente presenga local), procura ingressar seus filhos o mais rapido possivel em um conservatério nacional, como o de Lyon, e, portanto, investe Muito pouco na defesa da reputagéo desta escola "provincial". Por outro lado, varias associagdes de musica, essencialmente populares, praticam uma espécie de autoformagao de grupo que aleanga, em definitive, uma legitimagao interna’* das competéncias musicais individuais. Esta validagao auténoma tira sua forga de uma legitimagao indireta externa. A municipalidade contribui, com efeito, para certas associagdes populares como a Fanfarra, com uma ajuda financeira material que se situa no nivel de uma subvengéo de funcionamento, 0 que traduz a legitimidade social da atividade subvencionada. A manutengao finan- ceira informal por parte da populagdo (recohida pela venda de titulos de mem- bros honorarios) pode ser considerada também como uma forma de legitimagao indireta. Se a Escola de Mésica beneficia-se, sem divida alguma da legitimidade cultural, ela também usufrui de outras formas de legitimidade local pelas ativi- dades musicais: a legitimidade municipal, e mesmo a legitimidade social difusa. O sistema das associagées musicais As associages pertencem a um sistema de encenagao da identidade social coletiva’. Para descrever as associagdes musicais, nao é suficiente mostrar sua composigao sociolégica e seu repertério, é preciso também mostrar qual o esti- lo de vida e de sociabilidade colocado em acao com a pratica musical, indicar como cada associagao situa-se em relagdo as outras e em relagdo a populagao. A Fanfarra de Villefranche Tradicionalmente, a Fantarra de Villefranche, uma sociedade compreendendo, essencialmente, operarios, artesdos e alguns vinhateiros, no mantinha muita relagao com a Escola de Misica. Conjunto musical realizando numerosas apre- sentagdes, ela funcionava de maneira auténoma como um lugar de formagao para seus jovens: aprendizagem e ensaios nao se faziam com partituras, mas de ouvido, a partir de gravagées, € sob a dirego de um chefe. Este funcionamen- to tradicional atingiu seu apogeu por volta de 1970, época em que a sociedade contava com oitenta executantes ¢ ganhava numerosos concursos. Mas a morte do presidente da associagéio em 1972 revelou suas fraquezas profundas. [M PAUTA+ v.tt, nt 6/47 = abeiiinovembee 2000 154 De um dia para outro, o escritério da Fanfarra desorganizou-se: ninguém mais tomou a si o encargo dos contatos com o exterior, Além disso, as rivalidades muito acentuadas entre os jovens e os veteranos vieram a tona, cristalizando-se em toro da disciplina ou da indicago do chefe. Apés alguns anos, a Fanfarra perdeu todos os seus membros um pouco idosos e viu-se reduzida a cerca de quinze musicos. Foi neste estado de extrema desorganizagao que seu novo presidente, ali « colocado » pela municipalidade, encontrou-a por volta de 1976. Sua primeira preocupagao foi de fazer funcionar a associagao recrutando os jovens. A narrativa de seu fracasso trouxe a luz um certo numero de impedi- mentos sociais fundamentais. Para remontar @ sociedad, eu tinha decidido néo procurar os veterans, ¢ de contar sobretudo com o recrutamento dos jovens que nés mesmos formariamos. Para tal, fiz sair longos artigos no jornal. Mas @ reputacdo'® da sociedade estava felts, néo apareceu rninguém interessado, apesar do empenho que tivemos. Entéo, eu pensei que talvez seria possivel atrair as pessoas para nossa sociedade se a Escola de Musica Municipal minis- trasse aulas de bateria para fantarra. A municipalidade pediu ao diretor da Escola, que fizesse por bem organizar um curso de embocadura (clarone, trompete militar) ¢ um curso de percusséo (tambor militar, caixa de guerra). Eu tinha sido criticado na Fantarra. As pes- soas diziam: se os garotos vao a Escola de Musica, ndo os veremos mais depois em nossa sociedade; eles irdo atuar na Harmonia cu na Orquestra. Entéo, para ndo deixar as coisas assim, @ para que os boatos cessassem, os cursos foram ministrados em outra local e ndo ra Escola. No primeiro ano, havia oito ou nove inscritos. Mas @ maioria deles no era de Vilefranche. As familias achavam os cursos demasiado caros. Além disso, havia alguma coisa que néo ia bem nesses cursos, pois 0s professores no compreendiam que tinhamos urgéncia na formagao dos jovens. Eles comegavam pelo solfejo mas isso era demasiado Jango, 0 que desgostava os estudantes. Quando um garoto de dez, doze anos, dediiha um instrumento, ele quer tocar 0 mais répido possivel. Nao 6 como aqueles que comegam aos, seis anos @ tém todo 0 tempo para se preparar. Por exemplo, houve o caso de um rapazi- inho que, 20 final de um ano, tinha aprendido um pouco de soifejo mas ele nao sabia ainda tocar clarone, enquanto que nés éramos capazes de formar um tocador de clarone em seis meses. Eu me comprometi em passar todas as semanas no curso para dizer bom dia a0 professor e ver 0 que faziam os alunos. Mas era demasiado longo, para eles e para nds. O que devia acontecer, aconteceu. No segundo ano do curso, houve um grave problema. A ‘massa dos jovens teve vontade de praticar 0 futebol, ao invés da fantarra. Mais da motade dos estudantes desistiv, assim, de repente, Apés 0 fracasso de uma tentativa de reorutamento de acordo com 0 modo tradicional, a qual tropegou na ma reputagao da Fanfarra entre a populagdo, o presidente tentou uma estratégia diferente: apoiar-se sobre o prestigio local da legitima instituigao de formagéo musical para atrair, segundo o exemplo da Harmonia ou da Orquestra, os jovens muisicos para a Fanfarra. Mas os dois sis- Em pAUTA- Fo1N, 16/97 = abritinovemare 2000 155 temas de aprendizagem opdem-se profundamente, porque eles se apoiam, um sobre 0 manejo de um objeto, € 0 outro sobre a aprendizagem de uma lin- guagem abstrata. O descompasso entre 0 funcionamento da Escola de Musica © as exigéncias da Fantarra pareciam ainda maiores quando se cotejava o dis- curso do presidente com a historia da criagao, da vida e da extingdo do curso de fanfarra, fato narrado pelo professor de miisica que tinha sido encarregado da sua organizagao. Desde a morte do antigo presidente, a Fanfarra ndo funcionou mais. E isso preocupava a Prefeiture, que estava ciretamente interessada neste assunto: normalmente, a Fanfarra deve estar presente, ebrihantando todas as solenidades oficials! Por isso, 2 Prefeitura tinha pedido 4 Escola de Miisica para criar uma classe de bateria de fantarra. Para mim que era professor de soltejo, pedtram para eu ministrar um curso de clarone e de trompete imiltar,e criou-se, também, um curso de tambor militar, O professor de percussdo da Escola foi contactado para assumi-lo, mas isso nao 0 interessava, ento ele passou rapi- damente esse encargo para um de seus assistentes. O recrutamento de estudantes foi feito por interméalo dos drigentes da Fanfarra, que enviaram alguns jovens para que eles se formassem, No primeiro ano, eu tinha cinco alunos; no segundo, havia trés e no ter- ceiro, nenhum 0 que fez com que o curso fasse suprimido. Eram todos flhos de operérios, salvo um filho de comerciantes. © que eu tentava fazer no era ensinar-ihes solfejo como na Escola de Milica, era dar-thes alguns fundamentos, um soifejo sumério, Em geral, quando eles chegavam lé @ conheciam trés, quatro notas, jé se achavam capazes de tocar! Normalmente, para saber tocar clarone ou trompete, eles deveriam seguir @ classe durante. trés anos, do meu ponto de vista. Nenhum ficou muito tempo. Somente um ficou um ano e meio, e eu acho que ele quase néo fez progressos. E bem possivel que isto ndo se preste aos cursos, a fantarr... Os cursos eram dados no local da sociedade. No inicio, fez-se tudo para procurar integrar um pouco os alunos & Escola de Misica. No final do primeira ano, para marcar uma etapa, fez-se uma pequena audigao no Teatro, com 0s outros. Mas depois, chegou na Escola um ‘novo diretor que queria trabalhar somente para a elite! Ele ndo quis que se organizasse uma segunda audigdo. Ele zombava da Fantarra, tinha muita mé vontade para com ela, € jamais fez propaganda para a classe de fanfarra na Escola. Desde este momento, eu esta- va quase certo que este curso seria extinto no ano seguinte, ¢ isto foi o que aconteceu. & praciso dizer que os diigentes da Fantarra tinham também acabado de dar-se por venci- dos, Eles recrutaram aqusles que haviam passado pela Escola, mas eles nao fizeram mais publicidad. Desta forma, o trabalho se interrompeu. E mesmo uma pena que esta classe ‘do tenha dado certo. Numa cidade como Villefranche, uma fantarra é necessarial Precisa- se de garotos que estejam prontos para apresentar-se em diferentes momentos, O professor descreve as relagbes da Fanfarra e da Escola de Musica, do ponto de vista da instituigéo. Por vezes, ele dé uma imagem inversa da realidade descrita pelo presidente, principalmente a propésito do papel do solfejo na for- magao dos estudantes. Por vezes, as coisas aparecem claramente sobre um EM PAUTA. ¥.0t, m16rt7 = aoriisnovempre 186 outro prisma. Assim, a extingao do curso de fanfarra resultou menos de causas anedéticas que de fato da rejeigao pela instituigao de um ensino ilegitimo: ha uma heterogeneidade radical entre a pratica musical escolar e as praticas popu- lares de aprendizagem da musica. A instituigao teme ser contaminada - "eles fazem barulho" - e os membros da Fanfarra temem que seus jovens sejam per- vertidos do que os cursos nao se desenvolvam nos locais da Escola, mas no lugar de 12s n&o queriam mais vir & sociedade": Todo 0 mundo esta de acor- reuniao da Fanfarra. O espirito de instituigéo aparece igualmente nos comporta- mentos de seus agentes. O professor de percusséo no quer ensinar para a Fanfarra. O novo diretor da Escola recusa admitir os membros do curso & tradi- cional audigéo anual. E chocante constatar que a necessidade da Fanfarra é, contudo, reconhecida pelo professor de musica, mas de maneira minimizada: “estar pronto para apresentar-se em todos os momentos". A imagem social da Fanfarra € ma, segundo a opinio publica (problema do alcoolismo), sua rejeigao pelas instancias legitimas da misica, suas dificuldades de recrutamento abrem para ela uma crise de identidade e colocam em perigo sua existéncia, Na época €m que entrevistamos o presidente, os musicos da Fanfarra se definiam, ainda, amplamente, em oposigao Harmonia, as relagdes entre os dois grupos sendo tradicionaimente tensas. A Harmonia Sabe-se que uma harmonia é uma orquestra composta unicamente de sopros (madeiras © metais) ¢ de percussdes; este 6 0 caso da Unido Musical de Villefranche. O fato de que as relagdes entre os executantes da Fanfarra e aque- les da Unido Musical sejam dificeis nao seria de admirar pois a Harmonia é forte- mente ligada &s instancias locais legitimas da musica, como observamos anterior- mente. A animosidade entre os misicos 6 uma forma de definigao social por oposigao. © presidente da Fantarra: Eu experimentei restabelecer as ligagdes com a Uniéo Musical. V.., 0 presidente & um amigo. Tradicionalmente, as relacdes eram més entre nos- sas duas sociedades, era ridicula! Os musicos recusavam se cumprimentar. Nas cerim6- nies oficiais, a Fanterra @ a Harmonia néo se misturavam. A Fanfarra marchava na frente @ tocava marchas militares enquanto que a Harmonia, a ultima do cortejo, destiava em siln- cio. E somente quando 0 cortejo parava que a Harmonia tocava a Marselhesa, porque isto, ‘és, ndo tocamos ! Mas agora, vai experimentar-se trabaihar junto. Tem-se, ali, faito isto tm pauta. WoL, 9.18/17 « abritinovemare 2000 187 om certas ceriménias, Eles tocam, @ nés, os sustentamos em certos momentos. Esté-se em vias de fazer ensalos comuns para o 11 de novembro. Entao, certamente, os garotos, conosco, fazem reflexdes do género: atengao, vao nos fundit! Isto 6 idjotice. Pode-se per- feitamente tocar um pouco junto sem fundir-se.. © presidente da Harmonia: Vocé sabe, nés temos quatrocentos membros honordrios, comerciantes do centro em geral, @ cada ano, regularmente, eles nos aizem: & uma pena, ndo os vemos o suficiente! Mas a rua ndo é 0 que mais nos convém. Nao & nossa vocagao, ndo fazemos bastante baruiho. Somos obrigados a participar de certos servigos oficiis, cinco ou seis por ano, em geral com a Fanfarra. Mas nossos jovens néo gostam dos desfiles ¢ eles participam de muita mé vontade. Quando hé uma ceriménia, 1nd a metade que nao vem, eles boicotam! E depois, eles ndo querem mais usar 0 cas- quete. No ano passado, eles votaram com a mao elevada, para suprimi-lo. Nos velhos tempos, ia-se desfilar no estédio no 14 de julho, agora néo se vai mais, Onde se esté vontade, agora, & na sala de aula, @ 6 lé que & preciso nos avaliar. Ainda que nem todos (5 lugares sejam propicios - 0 teatro, por exemplo, ndo é sensacional - 0 que esté me- thor para nés é a privacidade do colégio ou das igrejas. Mas vocé vai ver 0 que acon- tece quando se experimenta fazer alguma coisa boa. No diltimo ano, montamos a Sinfonia Fnebre de Berlioz com a Associagao Coral. Tocamos na Notre Dame de Marais, em Villefranche, € na Igreja de Civrieux de Azergues. Foi um concerto de alto nivel ea sala estava repleta. Eh, bem, néo saiu uma noticia ne imprensa, nenhuma linha, nada. O Jornal (Le Progrés} ndo enviow ninguém. Se isto tivesse sido um campeonato de boliche, ‘com um macho @ houvesse vinho do beaujolais, eles teriam vindo, no tenho dlivida. ‘Mas como se tratava de um concerto, Integrante de quadro médio, que se sente um pouco desclassificado, ao aceitar a presidéncia da Fanfarra, o responsdvel por ela descreve com preciséo a rivalidade com a Harmonia, sem contudo subscrevé-la: bem ao contrario, ele quer experimentar de fazer os dois grupos colaborarem, 0 que nao é de todo a preocupagao do pequeno empreendedor que dirige a Harmonia @ que se identi- fica totalmente com 0 comportamento hostil de seu grupo. As rivalidades superticiais entre misicos revelam manifestamente as profun- das oposigdes que a comparagao entre os dois discursos permite dar-se conta Um quadro-resumo torna-se util para mostrar os modelos conscientes-incons- cientes que so construidos nas praticas de cada grupo'® EM PAUTA. vit, m.16s17 - aoritrnovembre 2000 158 Quadro 3, A Fantarra e a Harmonia Modelo popular Modelo de classes médias Rua Sala Numerosas apresentagdes Alguns concertos Autoformacao Escola de Misica "Barulho" “Alto nivel” Operarios Filhos de operarios (em ascensdo social?), comerciantes, artesaos, quadros medianos © constrangimento dos musicos da Harmonia, obrigados a participar de certas ceriménias oficiais, explica-se essenclalmente por seu medo de serem confundidos com aqueles da Fanfarra. Num caso como noutro, os uniformes 8a fornecidos pelo grupo e nao permitem aos executantes da Unido Musical se distinguirem com nitidez. Os desfiles na rua sao vivenciados por eles como uma desclassificagao. Eles nao podem, absolutamente, evité-los Porque os principais contribuintes dos fundos (municipalidade, comer- ciantes, membros honorérios) tém que "ver" os seus protegidos, e sdo, em troca, indiferentes desde que eles organizem alguns concertos (0 que expli- ca a *mancha" do correspondente do Progrés). A Harmonia e seus misicos aspiram a ser reconhecidos como produtores de criagées artisticas por inteiro, mesmo que eles devam desempenhar ao mesmo tempo o papel de auxiliares municipais. Esta forte tensao entre identidade social real e identi- dade reivindicada pode ser relacionada a estrutura social da Harmonia, do- minada pelas camadas intermediarias (classes médias, assalariadas ou inde- pendentes e operdrios em ascensdo social). Ela deve ser igualmente rela- cionada ao rejuvenescimento da sociedade: a associagaéo que contava ha dez anos 90% de antigos membros e somente alguns jovens, compde-se, hoje, de dois tergos de jovens e de um nucleo de musicos mais antigos, que tende a se reduzir. Todos, jovens e veteranos, conhecem o solfejo. Os primeiros frequentaram a Escola de Musica e praticaram-no em um alto nivel. Os segundos adquiricam uma formagao pessoal, geralmente mais modesta, ‘seja como autodidatas, seja por intermédio de professores particulares. Esta diferenca de formagao permite compreender porque os jovens rejeitam téo em PaAUTA Voth, mtert7 - sariiymevempre 2000 199 claramente 0 modelo tradicional da Harmonia. Os veteranos, que chegavam a conciliar desfiles © concertos, sentem-se cada vez mais pouco a vontade: eles nao sao mais suficientemente formados, o chefe 6 demasiado joven, ¢ muito "parte deles mesmos" Entre a Harmonia e a Orquestra Sinfonica, existem pequenas rivalidades. Aproveita-se os jovens mUsicos, recém saidos da Escola de Musica nas espe- cialidades raras (fagote, oboé): alguns dentre eles, alias, fazem parte dos dois grupos, ao mesmo tempo. Mas ndo se trata de uma rivalidade fundamental: a imagem social da Orquestra Sinfénica representa o ideal da Harmonia, e seus melhores exeoutantes deixam-se facilmente por ela corromper. A Orquestra Sinfénica A Orquestra Sinfénica de Villefranche, via de regra, ndo costuma participar dos desfiles de rua, Para as grandes ocasides, contrariamente aos grupos da Fanfarra e da Harmonia, os executantes da Orquestra nao sao vestidos pelo grupo; cabe a eles mesmos encontrar uma roupa sébria ou um vestido negro que os faz considerarem-se como “burgueses". E preciso dizer que as “grandes ocasides" sdo infinitamente menos numerosas para uma orquestra que para uma fanfarra ou uma harmonia. As trés sociedades musicais citadas tém o mesmo ritmo semanal de ensaios, mas os *rendimentos" ndo sao comparaveis: 0 que representam os raros concertos da Orquestra, face as inumeraveis apresentagdes da Fanfarra? Estas diferengas quantitativas correspondem as diferengas no dominio das relagdes interpessoais, mais exuberantes na Fanfarra (a apresentagao implica, seguidamente, num deslo- camento comum em carro, um trecho a ser percorrido a pé na rua, um con- tato pessoal com uma multidéo ou um grupo), mais distantes na Orquestra (cada um tem um lugar fixo tanto no ensaio como no concerto, e 0 piiblico esté bem longe). Entre a Orquestra e @ Harmonia existem também diferengas sociais sensiveis. Os misicos da Orquestra provém, no conjunto, de categorias bem mais abas- tadas que aqueles da Harmonia. No primeiro grupo nomeado, os meios popu- lares ndo esto quase representados, as camadas medianas assalariadas so menos numerosas, predominando assim as camadas superiores e as camadas medianas independentes, ricas em capital econdmico. EM PAUTA~ v.14, 9.16/17 = aaciitnovemora 2000 160 Quadro 4. Composigao social comparada da Harmonia e da Orquestra Sinfonica Harmonia Orquestra ‘Adultos | Jovens | Total_[| Adultos | Jovens | Total Operarios| 2 18 17 1 3 4 [Agricultores: 4 1 5 2 0 2 Comerciantes, 9 2 "1 7 6 13 artesaos, industriais [Empregados 7 0 7 [Quadros médios 7 7 14 [Quadros superiores | 2 3 5 8 10 19 Prof, liberais [Aposentados 2 2 = : omens 54 26 Mutheres 10 23 (Conjunto 61 49 No interior mesmo da Orquestra, a distribuigdo das fungdes 6 relativamente rigi- da: ela reproduz as divisdes de idade e as divisées sociais. A fungdo mais presti- giosa'®, aquela dos primeiros violinos, escolhe individuos de mais idade e de meio social abastado. Em troca, aqueles que tém papel mais intermitente e que estéo mais distanciados do maestro, os metais e as percussées, apresentam carao- teristicas opostas (juventude, meio social mediano ou modesto). Estabelecemios uma idade mediana para todas as fungées recenseadas: 0s primeiros violinos (em nimero de nove) tém, em média, 47 anos; os segundos violinos {igualmente nove) 29 anos; as outras cordas (violas, violoncelos, contrabaixo, em nlimero de doze) 26 anos; as madeiras (em néimero de oito) 23 anos, 0 mesmo que os metais, enquanto que os executantes das percussdes tém, em média, 16 anos. A hierar- quia musical na Orquestra entao também uma hierarquia social No funcionamento da Orquestra, encontram-se os principios de escolha dos instrumentos que tinham sido colocados em evidéncia a propésito da Escola de Musica, porém "naturalizados* de alguma maneira pela diviséio musical do tra- balho. Portadora de uma imagem social “burguesa", representante local mais acabada da legitimidade musical, a Orquestra é uma associagao hierarquizada conde se exprimem aspiragées diversas: desejo de ascensdo social, tanto quan- to desejo de distingdo intelectual (ai se encontram varios membros da Educagao Nacional) Em PAUIAS Wott, mt6/t7 - abriismevembre 2000 181 Ha uma gradagao da Fanfarra a Harmonia e da Harmonia & Orquestra, Os misicos da Fanfarra conhecem aqueles da Harmonia e sentem ciumes. De ‘sua parte, os executantes da Harmonia nao querem acima de tudo serem tomados por uma Fanfarra e muitos dentre eles aspiram mais ou menos a ser integrados na Orquestra: varias pessoas, membros ao mesmo tempo das duas sociedades, servem de intermediarios. Em troca, os misicos da Fanfarra nao conhecem aqueles da Orquestra, ¢ reciprocamente: nao se pode falar de rivalidades entre dois grupos a nao ser quando a proximidade no espago cultural, social ou geografico € tal que ha a necessidade, para eles, de empreenderem um grande trabalho de diferenciagdo. E na proximidade que se exacerba a diferenga. Em Villefranche existem outras associagées, cujas atividades desenvolvem- se & margem da legitimidade musical, a Amigavel dos Acordeonistas e as Trompas de Villefranche cujas caracteristicas sao bastante proximas as da Fanfarra. Acordedo e trompas de caga Nenhum destes dois instrumentos 6 efetivamente ensinado na Escola de Masica. No primeiro caso, a formagao dos musicos reverte ao aspecto de uma “escola paralela’ sob a diregdo de um professor ligado a sociedade, @, no outro, aquele de uma autoformagao de grupo, como para a Fanfarra. Os modos de validago do ensino recebido so comparaveis: trata-se de concursos orga- nizados pelas federagdes, permitindo avaliar 0 nivel individual de cada um e de indicé-los a uma categoria. Os acordeonistas alcangam pouco a pouco os escalées nos concursos da Unido Nacional dos acordeonistas da Franga, enquanto que os trompistas de caga véem seu valor reconhecido pela obtengao de uma licenga [brevet de sonneur classé], por ocasiéo de um concurso nacional anual, A historia das duas sociedades de musica 6 aquela de uma longa errancia, de local em local, de um beco a outro, de café em café. Cada vez que elas acreditavam ter encontrado uma sede, colocavam-nas porta a fora, polida- mente, porque elas “faziam demasiado barulho". Esta é a sina das praticas musicais ilegitimas! Os tocadores de trompa de caga, que na verdade ninguém quer, ficam reduzidos a ensaiar sob a tribuna do estadio. Os acordeonistas, por EM PAUTA~ v.4t, mr6ri7 - apeitrmevemare 2000 182 sua vez, terminaram por conseguir uma sala pertencente ao complexo dos locais municipais reservados & musica. Este conjunto, construido ha cerca de dez anos em uma praga central, mas bastante distanciada de qualquer habitagdo, abriga as trés associagées ja estudadas, assim como 0 coro A Coeur Joie € a Associagao Coral. Esta concentracao espacial aparente dos misicos @ de fato regulada pela instauragao de dias diferentes de ensaio assim, "nao se incomodam", expresséo essa entendida tanto em sentido social como musical A atividade dos acordeonistas a dos trompistas [sonneurs} como aquela dos mdsicos da fanfarra, € caracterizada por numerosas apresentagoes, porém de carater sazonal: sao quase todas agrupadas entre maio e setembro. Os misicos nao criam obras novas, eles executam um repertério que todos j& conhecem. As duas sociedades sao essencialmente animadoras de festas no Beaujolais € na regiao préxima. Os acordeonistas participam tradicionalmente de bailes, quermesses, quinzenas comerciais, festas patronais, "por cachés simbélicos", segundo o presidente. Os tocadores de trompa, por sua vez, apés um periodo em que eles participaram da animagao de pequenas festas, decidiram ser seletivos Percebeu-se que nem todas as festas eram convenientes para tocar a trompa de caga, declara pomposamente o operdrio que é presidente ativo das Trompas de Villefranche. Na prética, isto significa que a sociedade fez uma espécie de acordo com a Unio Interprofissional de vinhos do Beaujolais"®. Assim, os tocadores sdo requisitados para todas as ‘aberturas" (entronizagées) da sociedade baquica dos Compagnons du Beaujolais (Companheiros do Beaujolais), E a eles que os congressos realizados em Lyon apelam para orga- nizar eventualmente “soirées beaujolaises" (reunides festivas regadas a vinho da regio do Beaujolais]. Em suma, eles ndo se deslocam mais a ndo ser para "grandes" ocasiées Entre acordeonistas e trompistas, hd diferengas importantes a observar. A Amigos dos Acordeonistas compreende sessenta aderentes; duas orquestras, uma sénior e uma junior, ¢ jovens estudantes, todos em vias de entrar para a orquestra. Ha, entéo, uma estreita imbricagéio entre escola de acordedo e orquestra. Os alunos, que podem comegar seu aprendizado aos seis ou sete anos, S40 de origem modesta (operdrios, empregados, artesdos). As massas que vém aprender as ligées, & por que nos viram numa gala ou ‘numa festa e por que querem entrar na orquestra, diz 0 professor da “Amigos’, Em pAUTA Volt, m16/17 - aaritsmevembro 2000 163 filho de operério e antigo operério ele proprio. Atrés do gosto pelo acordedo ha toda uma série de elementos proprios a atrair as criangas de meio popular, e que se reencontraré também no Grupo folelérico Cadetes do Beaujolais: um lindo traje, pertencimento a um grupo conhecido localmente, a participagao va- lorizadora nas festas, 0 atrativo das viagens (todos os anos a “Amigos” visita uma das sete sociedades de acordeao com as queis ela estd geminada, tals como Annecy, Lausanne ou Munster). A Sociedade das Trompas de Villefranche compreende somente nove pes- soas, todas adultas. E preciso lembrar que a associagao tem uma origem recente (1959), @ que ela saiu da Fanfarra, um grupo de miisicos tento ficado muito * ipressionado", na época, por um concerto do Débiché de Paris, apre- sentado em Villefranche. Embora nenhuma precisao nos tenha sido dada sobre a natureza dessa ‘impressfio", pensamos que a beleza da miisica e a atragdo da caga estavam presentes nisso em pequena parte. Para os misicos da Fanfarra, de meio operario, 0 prestigio social dos instrumentos e os espléndi- dos trajes de caga vermeihos 6 que devem ser 0 elemento determinante da troca para a trompa de caga. As propostas liminares do presidente ative da sociedade, a nosso ver, testemunham isso de uma forma desviada: As trompas de caga tém uma reputagao um pouco burguesa. Para as pessoas, isto faz parte da cagada montaria. De fato, nem sempre este & 0 caso. Hd muitos tocadores & sociedades de tocadores que nada tém a ver com a caga. Esta tonalidade simbdlica do instrumento e do traje é sensivel sobretudo aqueles que nao dispdem de um capital cultural elevado: a trompa de caga esta situada no alto da hierarquia das préticas musicais nao legitimas. E por isso que os tocadores, como ja se disse anteriormente, recusam-se a parti- cipar das festas de ordem menor, mesmo se eles so chamados. Pode-se pensar que eles querem evitar de serem confundidos com a Fanfarra ou com um simples agrupamento orquestral. A sociedade compreendia, em 1979, dois operarios, dois agricultores, dois contramestres, um empregado, um sub- distinguir musicalmente é a expresséo desviada de um desejo de se dife- ial aposentado eo filho de um quadro mediano. Sua vontade de se renciar socialmente. Na categoria das associagdes musicais animadoras de festas, 6 preciso incluir dois agrupamentos do tipo folclérico. Pode-se perguntar que lugar eles ocupam no campo musical. EM PAUTA~ vitt, 16/17 + abriiymovembre 168 Os grupos folcléricos Os grupos dos Cadetes e dos Cantadores do Beaujolais apresentam grande similitude. A Interprofissao viticola [Unido Interprofissional dos Vinhos do Beaujolais], sem estar na origem de nenhum dos dois grupos, concedeu-Ihes nitidamente uma fungao de embaixadores da regido e de seus produtos; resulta que um e outro grupo se produz quase que unicamente nas regides limitrofes e muito pouco em Villefranche onde eles sao praticamente desco- nhecidos, Em quarenta apresentagées anuais dos Cadetes, somente trés aconteceram em Villefranche, quando todos os membros da associagao moram na cidade. A area de deslocamento do grupo se estende de Chalon- sur-Saéne @ Valence num sentido, e da fronteira suiga a Saint-Etienne no outro, seja o Rhéne @ 0 conjunto dos quatro ou cinco departamentos li 0: fes": os "embaixadores do Beaujolais" se deslocam menos que certos clubes esportivos, mas cobrem uma regiéo bem mais vasta que outras sociedades musicais animadoras de festas, Quando os Cadetes se deslocam para mais longe do que se pode chamar a regiao extensiva, trata-se de viagens do agru- pamento destinadas a recompensar os societérios; aqueles que tém entre sete e vinte anos, jé foram assim para a Bélgica e a Russia! © recrutamento social dos Cadetes 6 compardvel aquele dos acordeonistas, talvez mais proletarios. Segundo o presidente Eles vem todos de familias operérias, e seguidamente de familias que tém problemas: seja de familias numerosas que ficam felizes de se desembaragar_um pouco da filharada, seja de casos sociais, Para as criangas de meio mais modesto, 0 pertencimento a um grupo folci6 co € uma ocasido inesperada de saidas ou de viagens. Os pais mesmos se aproveitavam muito disso até que o novo presidente colocou tudo em ordem: Quando eu me tornei presidente, eu observei que, para os deslocamentos de carro, havia sempre quarenta pessoas, embora o grupo compreendesse apenas vinte cadetes. Muitos pais vinham para a viagem e para comer. Evidentemente, isso nos custava caro. Entéo, eu tive de parar com tudo isso, e decid que daquele dia em aiante néo deveria haver nas via gens mais que dois acompanhantes além de mim. © espetaculo padrao do grupo compreende umas vinte cangdes e umas dez dangas sem canto, O liame que elas apresentam com a "cultura beavjolaise" parece bastante ténue de acordo com a opinido do presidente. 2000 Em PAUTA volt, @16/17 © apritimovemare 2000 165 Nossas dangas, nossas cangdes ndo sao especificamente beaujolaises. Trata-se do fol- Clore da terra que se encontra um pouco por toda parte, um folelore universal. No nosso repertério, hd muitos elementos burguinhdes @ bressées. Além aisso, hé um de nossos presidentes de honra, um representante que nos compde as cangdes. Mas os trajes dos Cadetes sao regionais. Foi uma criagdo do presidente-fundador da sociedade (um instru- tor miltar aposentado), apds pesquisas com pessoas que ele conhecia no Beaujolais... Consideram-nos os embaixadores do Beaujolais, mas 6 mais raro, que nos vejam na regio, Para as festas do Beaujolais, em setembro, os garotos foram & casa dos vi- nnhateiros, eles ficaram todos contentes, era a primeira vez que isso ihes acontecia.. O recrutamento social do grupo, a maneira como seus membros so formados (formagao interna sob a diregao "dos antigos" da sociedade), os vinculos estreitos que eles mantém com a Interprofissdo (esta assegura sua publicidade, e fornece- thes vinho em abundancia para ser distribuido em todos seus deslocamentos), a indiferenga marcante do grupo a respeito do problema da “autenticidade" do fol- clore que ele apresenta, fazem com que os Cadetes nao sejam bem vistos nos meios locais que se interessam pelos estudos regionais e que ocupem também, um lugar ilegitimo no espago musical. Uma esposa de um médico declarou: Os Cadetes? Seus movimentos de danga séo mal executados. Além disso, sdo jovens que bebem desde mocinhos, Isto é triste de ver, sobretudo quando se pensa que les repre- sentam 0 Beavjolais no exterior. A festa anual fechada que retine os membros do grupo e seus afins nao é a de Santa Cecilia, como 6 a tradigao dos musicos; ela € celebrada por ocasiao do dia da Festa de Sao Vicente, padrosiro dos vinhedos, A pratica vocal dos Cadetes esta to distante da legitimidade local representada pela Escola de Musica que eles so, entéo, praticamente, excluidos da comunidade dos musicos: seu local de ensaios nem é mesmo situado no grupo de salas reservadas as sociedades musicais. Nao é 0 caso de outras duas sociedades praticantes da arte vocal, se bem que somente uma dentre elas esteja fortemente ligada a instituigao musical. Os grupos cor: No campo musical em Villefranche, os coros de adultos (4 Coeur Joie e a Associagéo Coral) representam um setor onde predominam as mulheres, enquanto que as associagées instrumentais (Fanfarra, Harmonia, Trompas de caga) s40 quase exclusivamente formadas por homens; somente a Orquestra EM PAUTA. vt, 16/17 = abritimovembre 2000 166 compreende o mesmo numero de executantes de cada sexo. Nao se contam aqui os grupos de criangas, todos mistos, mas de alguma maneira "assexua- dos". A oposigao do vocal feminino e do instrumental masculino é correlata com outros pontos: 0 dentro e o fora, a colocagao em jogo do corpo e a questao do objeto da técnica. Os coros se produzem quase unicamente na sala, enquan- to as associagées instrumentais saem algumas vezes ou seguidamente; na tnica dessas Ultimas que nao sai (a orquestra), a relagéio dos sexos 6, alids, equilibra- da. Ora, 0 ato de cantar implica, um pouco como o exercicio de gindstica, numa utilizagdo e numa valorizagao dos recursos do corpo do individuo, praticas muito ligadas @ feminilidade social. Em troca, a apreensao social do mundo pelo homem parece menos ligada a uma performance de seu corpo do que a medi- agao técnica e a utilizagao dos objetos que fundamentam uma certa sociabili- dade vil. Sob este aspecto, a pratica instrumental é parente da caga, da pesca (nas classes médias e superiores), da motobola, ete. Os dois coros de adultos mantém relagdes complexas. Apos uma fase de rivalidade aberta, suas relagdes esto distendidas; eles lembram, hoje, no plano formal, o que existe entre a Harmonia e a Orquestra’. A Associagao Coral re- presenta um pouco 0 ideal para os coristas da A Coeur Joie (ACJ) : os membros do escritorio desta Ultima, uma dezena de pessoas mais ou menos, S40 aliés, ao mesmo tempo, aderentes da Associagao Coral. © periodo de rivalidade franca remonta @ época (ou alguns anos antes) em que a Associagao Coral era praticamente integrada & Escola de Musica, tendo como responsavel musical o proprio diretor da Escola: querendo “trabalhar para a elite” (ver 0 relato do professor de musica, neste mesmo artigo), somente poderia desprezar os coristas da A Coeur Joie, que assumiram de maneira auténoma a formagao vocal de seus membros. Em troca, os membros do escritorio desta associagao consideravam e tendem ainda a considerar que a Escola de Musica tradicional é um lugar muito chato @ muito desencorajante para as criangas A Associago Coral desligou-se em seguida da instituigéo. Ela é, entretanto, sempre considerada como o lugar da pratica vocal legitima, mesmo se a presi- dente da associagao reconhece que os seus aderentes so mais melémanos ‘que musicos, a maioria deles nao conhecendo soltfejo, ¢ alguns continuando a freqentar a classe adulta do coro da Escola de Musica. O prestigio da Associagéo Coral, verdadeiro, pois ela atraiu membros da A Coeur Joie, susten- ta-se também por outras razdes além do talento intrinseco de seus aderentes. Em PAUTA Wott, msest7 - apritimevembre 2000 167 Comparando sua composigéo social aquela do coro adulto da A Coeur Joie, vé-se primeiro, nos dois casos, a auséncia quase total das classes populares. AA Coeur Joie & uma associagao de classes médias, compreendendo muitos professores primarios. Na Associagao Coral, conta-se com mais de um tergo de quadros superiores ¢ membros de profissées liberais, Mesmo se as clas- ses superiores ndo so majoritarias, elas servem de ponto de referéncia obri- gatoria: elas sabem dominar sociaimente uma assoviagdo, sem dominé-la numericamente, Quadro 5. Composigao social comparada da Associagao Coral e da A Coeur Joie ACoeur Joie | Associagao Coral Operarios 0 4 Agricultores 1 1 Empresérios 0 1 Empregados 9 21 Quadros médios 14 22 Quadros superiores 5 20 Profiss6es liberais, Desconhecidos 5 6 Homens: 9 26 Mulheres 25 49 Conjunto 34 75 A Associagao Coral mantém relagdes de colaboragéo com as duas outras sociedades musicais legitimas, visando realizar trabalhos conjuntos, por ocasiao de concertos. O grande concerto anual, o mais valorizado pela presi- dente, & aquele que 6 organizado uma vez por ano, no teatro, com a Orquestra Sinfonica. A colaboragao é menos frequente e menos natural com a Harmonia. A presidente declarou que so raras as obras orquestradas para coro @ harmo- nia: sera a Unica raz4o? Do ponto de vista do sucesso popular, parece contu- do que a Harmonia néo tem nenhuma dificuldade em encher uma sala, ao con- trario da Orquestra Sinfonica. Quando a Associagao Coral tenta se produzir ‘sozinha, em lugar nao habitual, ou mesmo ao ar livre, a afluéncia de publico nao parece tao boa. EM PAUTA. vitt, mvestT = abtitsnevembre 2000 168 Uma vez, fe2-se uma apresentaao descentralizada em Béligny (bairro periférico, bem ‘operéirio}: apresentamo-nos no pétio da escola. Havia trés curiosos, no mais. Quis-se fazer um concerto de propaganda na igreja de Bellerache (baitro operéio). Ocorreu a mesma coisa. ‘Mas nao ¢ possivel atingir as pessoas do bairro. Contudo, foram colocadas propagandas fem todas as caixas de correio para anunciar 0 concerto, Eu néo sei: talvez a sala preta e camisa branca torne a apresentagéo muito solene e nos dé uma imagem de destaque. Aiguns nos aizem: "Vocés so burgueses." Isto 6 um tanto verdadelro. Gostariamos de penetrar no meio operdrio, mas no momento, ficamos em nosso territério. Alls, este é um problema geral em Villefranche. Eu me lembro, uma vez, a Escola de Misica quis fazer audigdes da classe de orquestra no centro comercial de Bellerache, Ninguém veio nos escuter. A subversdo dos lugares, evidentemente, nao basta para tornar popular uma pratica na qual todos os signos exteriores indicam-na como burguesa, @ que os atores concebem como tal. O ponto de vista, ligeiramente desvalorizante, que a presidente da Associagao Coral oferece sobre a associagao concorrente, mostra que ela sabe bem 0 que "distingue” o seu grupo. Com a A Coeur Joie, somos quase amigos no limite. Em verdade, as relacdes sdo boas. Mas nosso diretor precedente ndo gostava mesmo do género doles. E nitidamente mais boy-scout entre eles, hd mais fraternidade. Esse é um movimento nacional, enquanto que nds somos independentes. A Associagao “De Coragao Alegre de Villefranche” mantém poucas relagdes com outras sociedades musicais da cidade, salvo com a Coral. Em compen- sagao, os contatos com as associagdes co-irmas das cidades vizinhas {Belleville ou Tarare}, parecem ser procurados deliberadamente, o que é bem a marca de um movimento nacional. A associagao de Villefranche compreende dois grupos de cantorias infantis e um coro de adultos: os diretores dos ensaios s80 geralmente formados pelos estagios organizados pela A .C. J. No plano nacional. O canto é concebido como lazer. O ensino as criangas fun- damenta-se sobre cantos ritmados, deixando de lado a aprendizagem do solfejo. O repertério do coro adulto compée-se unicamente de cangdes con- temporaneas @ de obras curtas. Compreende-se as dificuldades do grupo quando ele tenta passar ao canto-espetaculo. Os concertos no teatro reine somente os amigos, parentes e conhecedores, 0 que nunca lota a sala, € as tentativas ao ar livre encontram assim pouco sucesso como aquelas da Associagao Coral. Tendo em vista romper o isolamento social e musical do grupo (no qual as mulheres, celibatarias, em particular, s40 numerosas), duas Em PAUTAS Vo, mtO/17 © abritsmowembre 2000 169 estratégias so tentadas. A primeira consiste em se apoiar sobre a coesio do movimento no plano nacional e a organizar encontros entre segdes locais. A segunda consiste em uma abertura para outras formas vocais, mals va- lorizadas, e para os meios sociais mais elevados: é assim que é preciso inter- pretar a adesdo de um tergo dos membros adultos da A Coeur Joie & Associagao Coral, e a organizagao de atividades comuns com esta (uma saida a Opera de Lyon). Se as relagdes entre os dois grupos so orientadas neste sentido (ACJ para a Coral), ¢ que a atividade musical da primeira, sem ser de fato ilegitima, é, contudo, desvalorizada @ considerada como ocupando um plano baixo da escala: ela resultou da solicitante do contato. Esta situagao intermediaria, entre legitimidade e ilegitimidade, é testemunhada bastante bem pela vestimenta dos coristas. Em concerto, eles nem usam uniformes perten- centes & associagao, nem trajes pessoais de ceriménia. O grupo compra cingenta metros de tecido que séo cortados por uma costureira membro do grupo; as saias longas, cor-de-rosa ou bordd, que ela confecciona, ficam como propriedade da associagao. A De Coragdo Alegre encomenda igual- mente 0s corseletes de fantasia, cor-de-rosa com flores, que cada membro é levado a comprar. O conjunto da vestimenta fornecido aos coristas situa-se, portanto, entre fantasia e ceriménia. Uma aproximagao etnografica das associagdes musicais mostra, entao, que as praticas que se tém intitulado *musicais” so extremamente diferenciadas, mas também que elas serve, concretamente e mutuamente, de referéncia positiva ou negativa. E por esta razdo que se est autorizado a falar de um ‘campo local. Estrutura de um campo local As caracteristicas socio-geogréfico-culturais de uma pequena cidade reapro- ximam das atividades e dos grupos tudo 0 que, na sociedade global, tende a se separar. Assim, as atividades musicais nado sdo somente ligadas por um pa- rentesco ldgico, mas por relagdes concretas; citamos, por exemplo, a concen- tragio dos locais das associagées, a participagao comum nas festas municipais, a circulagao (relativa) dos musicos de uma associagao a outra, a existéncia de uma Escola de Misica e de uma super-associagéo sob controle municipal (0 Grupamento das Sociedades Musicais). EM PAUTA~ vids, 9.16/47 = abritinovembre 2000 17 Ao se construir um espago das associagdes de musica, quase que automati ‘camente se é conduzido a desenhar um sistema hierérquico. Percebe-se, aliés, que a hierarquia na legitimidade das praticas musicais recorta muito amplamente uma hierarquia social. As associagdes menos legitimas no plano cultural, com- postas de membros dos meios populares, procuram sua legitimagao no contato com associagées exteriores, da mesma natureza que elas: elas mesmas formam seus membros, e suas atividades consistem em saidas e numerosas animagées, que Ines permitem obter um certo reconhecimento local. Inversamente, as asso- ciagdes mais legitimas e mais prestigiosas localmente compreendem os mem- bros das camadas abastadas e beneficiam-se do aporte das instancias e dos poderes locals, incluindo a imprensa. A formagao de seus membros acontece ‘numa instituigéo municipal, e suas atividades consistem em raros concertos em salas, fortemente valorizadas. Quadro 6. O espago da musica em Villefranche. Classes Classes Classes Populares médias superiores Santa Cecilia] Fanfarra «——» Harmonia ——» Orquestra Nd Acordeao ‘Assoc. | ——* Assoc. Coral Coragao Alegre S. Hubertus | Trompas de caga Sao Vicente | Cadetes Cantadores Cada grupo produz signos exteriores de reconhecimento para os quais se opera uma verdadeira teatralizagao da identidade coletiva (sonhada ou relvindi- cada) de cada um, A importéncia acordada por todas as sociedades ao traje de seus musicos € um bom exemplo. A vontade de renovagéo da Fanfarra se exprime assim na deciséo de aquisigéo de trajes novos, mas idénticos aos precedentes. Os misicos da Harmonia para evitar de serem confundidos com seus inferiores, recusam usar casquetes durante as cerimdnias oficiais. As chamativas vestimentas de montaria dos tocadores de trompa de caga marcam Em pAUTA. Volt, wt 6/97 = abeitinovemare 2000, m seu desejo de serem distinguidos do vulgar, ao mesmo tempo que elas trazem um gosto pelo cintilante, da parada, do briiho, especificamente popular. A ves- timenta cerimonial dos membros da Orquestra ou da Associagao Coral signiti- ca sua distingdo social natural. A imagem de marca de uma associagao 6 sua imagem social. As associagoes como a Orquestra ou a Coral, que tém poucas ocasides de mostrar seu valor, cuidam particularmente da preparagdo e a apresentagao de seu grande concer- to anual. Esposa de notario, a presidente da Coral insiste muito sobre a aparén- cia exterior dos cantores Se 08 coristas ndo estéo todos parelhos, eu ndo os aceito. Eles se vestem, aliés por conta propria... As mulheres usam saia preta e camisa branca, é muito solene, mas é preciso que © espectador seja primeiro atraido pelo olho. Para os homens, usa-se 0 terno sdbrio (negro ‘ou azul-marinho), a camisa branca e a gravata borboleta. Aqueles que possuem varias do Aquelesque ndo tém. Para mim, na apresentacao isto conta muito. Eu ajudo sempre, enormemente, a entrada de coristas O ideal social aqui colocado em cena nao é certamente popular. O contato entre dois grupos, duas associagées locais relativamente proximas pela sua pratica ou por seu recrutamento social pode se estabelecer de duas for- mas, em prinoipio exclusivas: uma relagdo bastante equilibrada de rivalidade ou de distancia (cada um dos dois grupos construindo uma imagem negativa e ca- ricatural dos membros do outro para se valorizarem), ou bem, uma relagao inegavel de imitagao ou de identificagao (um dos dois servindo de ponto de refe- réncia, inacessivel aos membros do outro}, Assim se explicam estes julgamentos de valor e estas reputagdes que so creditadas as assoclagdes das quais nao se faz parte: tal associagtio 6 formada de alcodlicos, aquela outra é chamada de burguesa, a terceira 6 um pouco boy-scout, a quarta faz barulho. O carater simul- taneamente concreto e lapidar dos julgamentos enunciados traduz, por vezes, a proximidade no espago e a vontade social de guardar (marcar) suas distancias, situagdes caracteristicas dos agentes inscritos num campo local. No inicio de minha pesquisa, havia lido no jornal local que as relagdes entre sociedades musi- cais eram um domi io onde abundavam as "suscetibilidades*: mais que um fend- meno psicolégico, parece tratar-se de um efeito do campo local © modelo de campo local que se pode extrair da descrigao das praticas musicais em uma pequena cidade representa um certo ideal classico, raramente realizado to plenamente em outros domi ica, lazeres... [EM PAUTA. v.41, 16/17 = apeiiynovempre 2000 2 A originalidade do campo musical est4 no fato de que, cobrindo um espacgo social muito extenso, ele permite a observagao simulténea de continuidades & de descontinuidades, favorecendo no mais alto grau 0 espirito de encenagdo por parte dos agentes ANEXO Alcoélicos ou boas vidas? ‘A propésito dos misicos da De sua parte, o novo presidente Fanfarra em 1975, apresidente da | explica como ele se opés a0 ‘Associagao Coral (esposa de comportamento tradicional dos notario) declarou: misicos da Fanfarra neste Estamos no Beaujolais, todo 0 cominio: ‘mundo gosta do bom vinho, mas Quando eu assumi (como eles exageraram. Quando eles presidente), eu percebi que durante terminaram de tocar, néo dava para | 0s ensaios, havla um garraféo de olhar muito porque nao era bonito | vinho que circulava. Bastava os ver: eles rolavam sobre a mesa, ‘muisicos pararem de tocar um ‘mesmo os responsaveis. E mais, instante, para encherem seu copo. les tinham uma triste aparéncia, Ao final de dois ensaios, eu proteste 08 cabelos demasiado longos @ Ihes disse que era preciso ao sujos. Néo, isso ndo era possivel! | menos um suco de fruta para os ‘No poderlamos nos desiocar com | mais jovens. Finalmente, ao cabo les, isto ndo poderia continua. de seis meses, decid que ndo se beberia mais nada durante os ensaios; podia-se matar a vontade de beber depois, se se quisesse! Por causa disso, eu chaveei os copes no armari... NOTAS 1 Pode-se citar em particular as enquetes do Servigo de estudos e de pesquisas do Ministerio da Cultura. Pratiques culturelies des francais, description, sociodémographique. Evolution 1973: 1981, Paris, Dalloz, 1983. Ver em particular, ‘Les violons d'ingres et les jeux’, 96 p. © “Fréquentation des concerts et des festivals", 192 p. Ver também Antoine HENNION, Frangoise MARTINAT, Jean-Pierre VIGNOLLE, Les conservatoires et leurs éléves, Paris, La Documentation frangaise, 1984. Em PATA wi 2 Pierre BOURDIEU. La distinction, Critique sociale du jugement. Paris, Minuit, 1979. Ver também Monique PINSON-CHARLOT, Wes GARNIER, Ségrégation sociale e équipements culturels. Le cas de enseignement musical dans un Conservatoire municipal. Paris, Centre de sociologie urbaine, aio, 1984. 3 Paul GERBOD, “Linstitution orphéonique en France du XIKe, au XXe, siécle", Ethnologie Francaise, X, 1980, pp.27-44 Ver 0s textos de Jacques GUTWIRTH, ‘Les associations de losir d'une petite ville, Chatilon-sur Seine’, Ethnologie frangalse, Xll1-2, 1972, pp. 140-180. -- Pietre-Michel MENGER, *Conflts cul turels et changement social. Les pratiques et a consommation musicale dans une vile moyenne", Cahiers de r'opservation du changement social. Vol. XVIll, Paris, Ed. du CNRS, 1982, pp. 97-153, - Jean-Paul CALLEDE, Quelques pratiques associatives de la musique. Contribution au thame des cultures populaires, 12 p. Communication au colloque “Les cultures populaires", Université de Nantes, organizado pela Sociéte francaise de sociologie e a Société d'éthnologie francaise, 9 e 10 de junho de 1988. 5 A cidade de Villfranche-sur-Sa6ne, situada a 30km ao norte de Lyon, possui 30.000 habitantes, ‘em sua grande maioria constituida por operérios © empregados. Para informaches mais aprotun:

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