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INTRODUGAO: A REVOLUGAO INDUSTRIAL E A ARQUITETURA M_14 de abril de 1791, a Uniéo Fraterna dos ‘Trabalhadores em Construgdo de Paris — os ope- rdrios das obras de Sainte-Genevitve, da Place de la Concorde, das novas pontes sobre o Sena — convida 0s empreiteiros a instituir, de comum acordo, um re- gulamento dos salérios, com base em um salério mi- imo, * ‘Um més antes, um decreto da Assembléia Consti- tuinte abolira o ordenamento tradicional das corpora- Bes, que até entio regulava as relagdes de trabalho. Os operstios, exclufdos das eleigdes pela Constituinte, ppermaneceramn fora do espirito dessa disposi¢io; no Jamentam as antigas corporagées, onde eram oprimi dos pelos mestres, porém néo demonstram um part cailar entusiasmo pela liberdade de trabalho proclama~ a pelos economistas liberais, como se pode ver nos Cahiers, apresentados em 1789; preocupam-se com seu sustento imediato, e defendem a idéia de que o novo ordenamento deva produzit uma melhora de seu nivel de vida ou, a0 menos, deixar-lhes uma margem para que defendam por si mesmos seus interesses. Por essa razio, dirigem-se diretamente aos empresérios a fim de convidé-los a fazer um contrato. Os empresérios no dio resposta. Entio a Unido Fraterna dirige-se a0 Municipio de Paris, para que este intervenha em seu favor. O prefeito de Paris, Os dados ¢ as citagdesreferentes a este episédio foram ‘extraidos de Le moutement ouvrler d Paris pendant la Révo- lution Francaise, de G. M. Tarr, © sho mencionados no Cap. 11 do livro de C. Baswacuto, Le origin! della grande indus: tila: contemporanca, Floren, 1951 Bailly, percebe que sob essa discussio encontra-se uma grave questio de principios, e prefere responder publicamente por meio de um manifesto que 6 afixado nas ruas de Paris em 26 de abril, onde ele reafirma solenemente_ os principios te6ricos’ do liberalismo que levaram a aboligio das corporagées, © condena a pr6- pria existéncia das associages de operdtios, ainda mais que seus pedidos: A lei ab-rogou as corporagées que detinham 0 mono- pélio da produsio. Ela, portanto, nio pode autorizar coalizées ‘Que, em substituiglo Aquelas, iriam estabelecer um novo séne 0 de monopélio. Por iso, aqucles que entrarem nessas co lizdes operitias, que as suscitarem ou fomentarem, sfo evi- entemente refratérios A lei, inimigos da liberdade © puniveis ‘como perturbadores da paz e da ordem pablica. (Assim, 0 pedido de detetminar 0 salério por lei nfo pode ser acolhido.) FE bem verdade que todos ot cidadfos so iguais em direitos, pporém no o #80, de fato, em capacidade, talentos € meios: portant, impossvel que eles se iludam pensando que podem todos obter os mesmos ganhos. Uma coalizio de operérios, para levar os salérios difrios a um prego uniforme € para forgar aqueles mesmor que pertencem 20 scio operdrio @ sub- meter-se a esse decisfo, seria, por conseguinte, evidentemente contria aor verdadeiros interesses dos mesmos.? Em 30 de abril, também os empresérios endere- gam uma petigo Municipalidade; afirmam eles que as associagSes operdrias so contrérias & lei vigente € que pretendem impor pela forga seus préprios pedi- dos; essa conduta “constitui um atentado aos direitos ‘2, Barssoatto, C. Op. cit, pp. 30 € 31 19 do homem ¢ & liberdade dos individuos” e opte-se 208, principios da economia, “‘sendo bastante a concorrén- ia para conter os interesses reciprocos dentro dos limites naturais”.* ‘A agitagio operiria espalha-se para outras cate- gorias, em Paris ¢ fora dela, enquanto também os fempresérios organizam-se entre si; muitos trabalhado- res entram em greve e, a 22 de maio, o problema levado perante a Assembléia Nacional. Os empregs- ores sustentam que as associagGes operirias sio um novo disfarce para as antigas corporagdes; os traba~ Thadores refutam enerpicamente essa comparagio, afir- mando que se trata de uma nova forma de organizaglo, indispensdvel em virtude da modificagéo no estado das coisas, e que também os empregadores entram em acordo entre si, ¢ mais facilmente, dado seu menor nimero. ‘A Asembléia Nacional — afirma um memorial operério —, to destruir todos os privilégios © a mestranga ¢ a0 declarar (os direitos do homem, por certo previu que aquela declarasio Servria para. algo para a classe mais pobre, que por muito tempo foi o jopuete do despotismo dos empresénios.¢ Em 14 de junho, 0 deputado Le Chapelier — representante do Terceiro Estado — apresenta seu pro- jeto de lei que acolhe, em substincia, as pretensdes dos ‘empresiiios ¢ reafirma a neutralidade teérica do Es- tado nas relagSes de trabalho. problema levantado ‘st4 vinculado a liberdade de reunido, sancionada na Declaragio dos Direitos do Homem; porém “deve-se proibir os cidadaos pertencentes 2 determinadas pro- fissdes que se redinam tendo em vista seus pretensos interesses comuns”, porquanto 0 novo Estado nio re- conhece de fato a existéncia desses pretensos interes- es: “no Estado, nao se encontram mais do que o inte- resse particular de cada individuo ¢ o interesse geral”. © Le Chapeliet, pessoalmente, esté convicto de que as pretensées dos operarios so justas; mas a Assem- biéia néo pode e nao deve intervir e apoié-las por meio de uma lei pois, com tal passo, seria recolocada em pé toda a antiga estrutura das corporagGes, e os melho- Tamentos momenténeos seriam compensados com um ano permanente. ‘A lei Le Chapelier, aprovada em 17 de junho de 1791, proibe imparcialmente ‘quer as associagSes ope- rérias para provocar aumento no salério quer as coa- Jiabes patronais para reduzi-los";* nega, tanto a uns v.33. 35 >. 40. Pat 3, Bansaaatto, C. Op. it 4 Bansseatto, C. Op. 5S) Barsscatto, C. Op. ci 6. Bansneatto, ©: Op. i 20 quanto a outros, também o diteito de reunifo, protbe gue 0 corpo administrative ouga pretens®es desse gé- hero, ¢ estabelece varias penas — ainda nfo graves — para’ os transgressores. © exemplo da Franga 6 seguido, poueos anos mais tarde, pela Inglaterra. Em 1800 — também aqui logo apés uma agitagio dos operdrios na construgao — ¢ promulgado o Combination Act, que profbe toda asso- Ciago de categoria. Define-se, assim, no perfodo cru- cial da Revolugio Industrial, a conduta do poder po- Titico no campo das relagées de trabalho segundo um enunciado teoricamente inatacdvel. Os fatos, porém, fencarregam-se logo de demonstrar que a solugio é in- sustentavel. Na Franga, a crise da agricultura, a des- valorizagio do papel-moeda ¢ as dificuldades bélicas impedem que 0 governo revolucionério mantenha a diregdo liberal na economia, ¢ modifica bem répido essa diego para um sistema de controles rigidos; Yem depois 0 Império, que nfo somente restabelece ‘oativamente, em 1813, as associagdes de categoria, como também impulsiona 0 controle econémico alént da. propria monarquia, chegando a ponto de insttuir uma inddstria estatal. Na Inglaterra, a direglo libe- ral € parcialmente mantida_mesmo durante guerra napolednica; entretanto, 0 Combination Act mostra-se inadequado para regular a economia inglesa em ex- pansio ¢, apés ter sido moderado, € abotido na pré- tica em 1824, ‘Assim, apés uma geraglo, o problema encontra- se novamente em aberto ¢ deve ser enfrentado de rmaneira muito diversa daquela que tinham em mente 0s deputados franceses de 1791: nio por meio de uma declaragao de principios, mas construindo, pouco a pouco, uma nova estrutura’ de organizaglo, diferen- te da antiga © nfo menos complexa, (Os motivos imediatos desses acontecimentos so, indubitavelmente, os interesses de classe. A burguesia francesa, depois de ter conquistado 0 poder com 0 auxilio do Quarto Estado, nfo pretende dividit com este as vantagens da nova posigao. Na Inglaterra, os trabalhadores manuais ainda estfo excluidos da vida politica ativa. Mas nfo 6 tudo. Os legisladores de 1791 ¢ de 1800 so movidos néo apenas pelos interesses como também por uma visio teérica que parece, no momen- to, 2 nica, possivel; por enquanto, os operérios néo tém meios de oporse senéo lamentando-se por sua condigdo, ou por uma vinculacfo retr6grada as inst- tuigdes ultrapassadas. Le Chapelier € um jurista in- dependente, animado por uma intransigéncia teérica que no 0 impede de reconhecer, na mesma exposi¢io fem que apresenta sua Ici, o nivel por demais baixo dos salérios atuais e a necessidade de elevé-los. A causa dos operirios ¢ defendida, é verdade, ‘pelo ‘Ami du Peuple de Marat, porém o mesmo jornal, tr8s meses antes, também protestou contra a aboligéo das corporagées, sem encontrar outros argumentos sendo ‘9s mais reaciondrios Iugares-comuns contra 0 progresso industrial. 7 Entre os discursos que so feitos ¢ os problemas que devem ser resolvidos, encontra-se um evidente de- sequilforio. Uma questio real e plena de dificulda- des € traduzida em termos ideais € resolvida por essa maneira, abstraindo exatamente as dificuldades mais, importantes; uma situagio eminentemente dinimica é discutida em termos estaticos ¢ os raciocinios so colo- eados em forma absoluta, como se as teses sustenta- das tivessem o valor de serem eternas ¢ naturais. As dificuldades concretas, por outro lado, esto presentes e visiveis aos olhos de todos, © portanto a abstracio gue € feita é em certa medida, proposital, por uma Convengio aceita por todas as partes. Os termos do discurso teérico so aparentemente clarissimos, porém ambiguos em sua substincia. As palavras usadas pelos politicos, pelos empresitios ¢ pelos operdrios nao possuem 0 mesmo significado; “li berdade” significa para uns um programa originado nos filésofos iluministas, para outros, uma diminuigéo do controle estatal sobre sua iniciativa, para os uiti- mos, 0 dircito de obter um nivel de vida razodvel. Todos, contudo, adotam as mesmas frases ¢ accitam que 2 discussio se desenvolva por metéforas, por éleulos ou por hébitos, Assim, a formulagio a que se chega parece resolutiva ¢ inatacével mas, na reali- dade, € aberta e provisoria; a0 invés de encerrar a questio, abre uma série ilimitada de novos desenvol- vimentos. Essa constatagio & aplicével a muitos outros cam- A teoria demonstra-se inadequada para resolver as dificuldades préticas dos processos que, entretanto, ‘ajudou a colocar em movimento, ¢ consegue manter- Se coerente somente através de uma resirigio con- vencional de seu proprio campo. ‘Uma vez que o destino da arquitetura depende do equilibrio entre teoria e pritiea — e uma vez que, afinal de contas, as condigdes dos opersrios na cons. truco civil fazem parte da arquitetura, embora a cul- tura da época nao estivesse disposta a admitilo —, ‘nosso relato deve tomar impulso nesse ponto. 7. Bansncatso, C. Op. city p. 38. E artiscado dizer que a lei Le Chapelier sobre- pe-se ao problema nascente da organizagio sindical como as fachadas ncocléssicas as nascentes construgdes industrais, que contém implicitamente exigéncias total- mente diversas? ‘Tanto num quanto em outro caso, o problema é dado por resolvido ao se postular a coincidéncia entre ertos modelos teéricos ¢ a realidade concreta. Na realidade, pelo contrério, abre-se um processo de re- visto de'toda a cultura contemporinea, revisto da qual as convicgdes correntes sobre economia politica e sobre arquitetura saem profundamente modificadas Nio se pode, por conseguinte, comegar a falar de arquitetura, tomando como ja descontada a na- tureza e 05 limites daquilo que se entende como ar- quitetura nesse momento. E necessario tecer breves Consideracdes sobre 0 quadro geral das mutagdes so- ciais © politicas, os jufzos que a cultura da época for- mula sobre essas mutages, e o Tugar que ocupa, nesses relacionamentos, o sistema de nogdes ¢ de experiéncias transmitido pela tradigio arquiteténica passada, As mutagdes da Revolugo Industrial delineiam- se na Inglaterra, a contar da metade do século XVIII em diante, e repetem-se, com maior ou menor atraso, nos demais Estados europeus: aumento da popul gfo, aumento da produgio industrial e mecanizagio dos sistemas de producao. ‘A Inglaterra, em meados do século XVIII, possui cerca de seis milhdes e meio de habitantes; em 1801, quando ¢ feito 0 primeiro recenseamento, contam-sé 8 892.000 e, em 1831, cerca de 14000000. Esse ‘aumento ndo se deve a'um crescimento do coeficiente de natalidade — 0 qual se mantém quase que exata~ ménte constante durante todo 0 periodo, entre 37,7 © 36,6 por mil —, nem a um excesso das imigragées em relagfo as emigragées, mas sim a uma decisiva redugdo no coeficiente de’ mortalidade, que baixa de 35,8 (na década 1730-40) para 21,1 (na década 1811-21).* certo que_as causas dessa redugdo si0 sobretudo’ de ordem higiénica: melhoria na. alimen- tacdo, na higiene pessoal, nas instalagbes piblicas, nas moradias, progressos da Medicina e melhor organiza- ‘cao dos hospita © aumento de populagio € acompanhado por um desenvolvimento na produgao jamais visto antes: 2 produgio de fefto passa, nos setenta anos que me- deiam entre 1760°e 1830, de vinte mil para setecen- tas mil toneladas; @ producio de carvéo, de quatro 8. AsuTo, T. S, La rivolucione industrale 1760-1830, Trad. ‘it, Bari, 1970, pp. 57. 21

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